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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SUPLÍCIO DE UMA MULHER / Émile de Girardin
SUPLÍCIO DE UMA MULHER / Émile de Girardin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Alexandre Dumas Filho

 

 

 

 

PERSONAGENS: HENRIQUE DUMONT (banqueiro) JOÃO ALVAREZ (sócio de Dumont) MATHILDE (mulher de Dumont) JOANA (filha de Mathilde) A SRA. LARCEY UM CRIADO   Paris: 1855.   

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ATO I Uma sala.
 
CENA I Dumont, um criado.
  DUMONT (entrando, ao criado)  Diga à senhora que eu já voltei. Onde está minha filha?    CRIADO A menina está brincando na galeria.    DUMONT Diga-lhe que venha aqui.    CRIADO Ei-la aí. (Sai)     
 
CENA II Dumont, Joana.
  JOANA Que trazes aqui, meu paizinho?    DUMONT Que dia é hoje?    JOANA Hoje é sábado.    DUMONT E amanhã?    JOANA Domingo.    DUMONT Mas de quem é o dia amanhã.    JOANA É o do meu santo.    DUMONT É o de todas as meninas que se chamam Joana, e todos os que se chamam João.    JOANA Como meu padrinho.    DUMONT Pois bem! teu pai, a quem não esquecem datas, na sua qualidade de banqueiro, lembrou-se do dia 27 de dezembro, e foi comprar umas teteias para a sua filha, a quem faz respeitosamente os seus cumprimentos.   
 
JOANA Hoje?    DUMONT Hoje.    JOANA De véspera?    DUMONT Tal qual.    JOANA Mas por que de véspera e não no dia?    DUMONT Porque é uso.    JOANA E por que é uso?    DUMONT Oh! perguntas muito! Onde iriam parar os homens se tivessem metade da lógica das crianças.    JOANA Não sabes por que é?    DUMONT Minha filha, tu hás de achar no mundo uma porção de usos deste gênero, cuja explicação não deves pedir, porque ninguém te poderá dar. Eu de mim creio que este uso foi inventado por algum pai que tinha ânsia de presentear a filha, e a quem os outros pais imitaram.    JOANA É uma boneca que me trazes?   
 
DUMONT Sim    JOANA Oh! como é bonita, papai, como é bonita! Parece-se com a senhora Larcey. E mais bonita do que ela.    DUMONT Pudera! Esta não fala!    JOANA Deixa dar-te um beijo!    DUMONT Estás contente?    JOANA Estou, meu paizinho.    DUMONT Eu sou o primeiro, não?    JOANA Primeiro quê?    DUMONT Que te faz hoje um mimo.    JOANA É sim.    DUMONT Alvarez, teu padrinho, ainda não veio?    JOANA Não. Que foi que deste aos meus pobres?   
 
DUMONT Toma, dá-lhes tu mesma.    JOANA Uma, duas, três... cinco moedas de ouro. Então, já não terão fome.    DUMONT Hoje.    JOANA Mas amanhã?    DUMONT Que se há de fazer? A mesma coisa.    JOANA Dás-me dinheiro todos os dias para eles?    DUMONT Nos dias em que não fores travessa.    JOANA Pois não serei travessa... Vou dar de comer à minha boneca.      CENA III Os mesmos, Mathilde.   DUMONT (a Mathilde)  Vem gozar da alegria da pequena!    JOANA (mostrando a boneca)  Olha mamãe, como ela é bonita!    MATHILDE (um pouco fria e distraída)  Sim, é muito bonita! A tua governanta está à tua espera.   
 
JOANA Eu quero antes ficar aqui.    MATHILDE Bem sabes que Miss Brown não gosta disso.    JOANA Porém, mamãe, o dia de meu santo é amanhã, isto é, hoje.    DUMONT Ela tem razão, hoje a casa é dela. Vai brincar! (A Mathilde) Que tens tu? Sempre preocupada!    MATHILDE Não tenho nada, meu amigo!    DUMONT Faze então como Joana: abraça-me. A filha já teve o seu presente, a mãe também terá um.    MATHILDE Ainda!    DUMONT Por que dizes isso?    MATHILDE Porque me dás presentes todos os dias... Lindas pérolas! Lindos brilhantes!... Queres, Henrique, esvaziar por minha causa todos os joalheiros de Paris? Sabes o que se diz por aí? Não se diz que és generoso, diz-se que és pródigo.    DUMONT Quem diz isso?    MATHILDE As minhas melhores amigas. 
 
DUMONT Deixa falar as invejosas! Pois quantas pérolas encerra o mar, e quantos diamantes cria a terra, valerão nunca a felicidade que tu me dás? Há apenas uma nuvem na minha felicidade: é a tua tristeza, que vai aumentando. Faço o que posso para dissipá-la, e nada obtenho. Dize-me, o que tens Mathilde? Que te falta?    MATHILDE Nada, meu amigo, nada!    DUMONT Tens alguma queixa de mim?    MATHILDE Nenhuma! Fazes tudo para que eu seja feliz... e se...    DUMONT E se?...    MATHILDE E se eu ouvisse somente o meu coração...    DUMONT Que farias?    MATHILDE Não teria um só minuto de tristeza, nem ainda de aborrecimento.    DUMONT Então por que andas triste?    MATHILDE Não ando triste; ando doente, ando nervosa; tenho vontade de chorar sem motivo real.    DUMONT
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Far-te-á bem uma viagem? partamos.    MATHILDE Partir?    DUMONT Queres passar o inverno na Itália?    MATHILDE E os teus negócios?    DUMONT Não precisam de mim... Verei... Arranjarei as coisas de modo que eles não sofram com a minha ausência... E demais, os meus negócios não podem competir com o teu prazer ou a tua saúde. Já te vejo sorrir; o devedor sou eu.    MATHILDE Como não hei de sorrir vendo tanta bondade em ti!    DUMONT Tanto amor, é o que deves dizer! Nunca te amei mais do que hoje. Tu e Joana são os dois anjos da minha vida.    MATHILDE Pois bem, vamos, quero ir.    DUMONT Quando quiseres.    MATHILDE Só contigo.    DUMONT E Joana?    MATHILDE Por que havemos de levar Joana?    DUMONT E por que havemos de deixá-la? é o complemento da família.    MATHILDE Tão criança, ainda!    DUMONT E aborrece-te algumas vezes!    MATHILDE A mim? Pois acaso?...    DUMONT És um tanto severa com ela.    MATHILDE Passam-lhe tanto a mão por cima... que é preciso alguém que a trate com menos brandura.    DUMONT Talvez tenhas razão. Eu só a vejo nas horas em que não trabalho, e então acho delicioso tudo quanto ela faz. Quando a gente gasta um dia inteiro em negócios, é um raio de sol o sorriso de uma criança; mas tu vives sempre com ela, e eu compreendo, que te amofine às vezes; todavia, és tão boa esposa que não podes deixar de ser boa mãe. Dar-se-á caso que lhe queiras mal, apesar teu, pelo que ela te faz sofrer? A coitadinha, quando nasceu pôs em risco a tua vida. É fácil os pais amar os filhos que só lhes dão alegrias, ao passo que fazem derramar tantas lágrimas às mães... Mas é preciso perdoar (sorrindo), sobretudo aos inocentes. Por que choras?    MATHILDE Porque tu vales mais do que eu... porque tens razão. Sou às vezes injusta com Joana. Prometo que nunca mais o serei. Ela irá conosco. E partiremos sem o dizer a ninguém! a ninguém! 
 
  DUMONT Como quiseres. Mas por que este mistério?    MATHILDE Para que a viagem tenha mais atrativo, e não sobrevenham obstáculos... Passaremos dois ou três meses em um canto do mundo, onde ninguém nos conhecerá, e então verás como me hei de fazer prazenteira, como me tornarei a tua Mathilde de outrora!    DUMONT Está decidido; dá-me arras. Sorri ainda; dize que me amas.    MATHILDE (abandonando-se)  Poderei eu nunca amar-te bastante? 
 
(No momento em que Mathilde vai abraçar Dumont, Alvarez entra, traz uma caixa, de que se desembaraça logo)   
 
CENA IV Os mesmos, Alvarez.
  DUMONT Ah! és tu, Alvarez; estavas aí?    ALVAREZ Vinha entrando... procuro Joana. (A Mathilde, que faz movimento de sair) Sai com a minha chegada?    MATHILDE Não, senhor!... não!... saía porque tenho de dar uma ordem urgente.    DUMONT Para o baile de Joana?    MATHILDE Sim. O baile deve ser às duas horas e é quase meio-dia.      CENA V Os mesmos, menos Mathilde.   ALVAREZ Miss Brown disse-me que Joana estava aqui. Onde está?    DUMONT No jardim de inverno... Anda tão ocupada com a boneca nova que não te viu entrar... Como estás tu?    ALVAREZ Bem! e tu?    DUMONT Melhor do que nunca.    ALVAREZ E a senhora Dumont?... Está boa de saúde?    DUMONT Excelente... Não preciso perguntar o que trazes aí dentro dessa grande caixa... Aposto que é uma boneca?...    ALVAREZ Não aposto, porque perco. A tua boneca fala?    DUMONT Não!    ALVAREZ Pois a minha fala.    DUMONT Oh! profundo corruptor!... Assistes à festa das crianças? 
 
ALVAREZ Sim.    DUMONT Jantas conosco?    ALVAREZ De certo.    DUMONT Bom, fica com Joana. Eu vou ver o que há pela praça... sabes de alguma coisa?    ALVAREZ Se nunca me ocupo com isso... És tu que fazes tudo, e não te sais mal... Por que me havia de intrometer?    DUMONT Talvez tenhas de fazei-o agora.    ALVAREZ Por quê?    DUMONT Sabê-lo-ás depois. (Sai)      CENA VI Alvarez, Joana.   ALVAREZ (chamando)  Joana! Joana!    JOANA Ah! és tu, meu padrinho?   
 
ALVAREZ Adivinha o que está aqui dentro.    JOANA Mais uma boneca. 
 
(Dumont entra, sem dizer palavra, no quarto de sua mulher)    ALVAREZ Sim, com todas as mudas de roupa.    JOANA Ah! como o meu padrinho é bonito! a tua boneca é maior que a do papai.    ALVAREZ Então preferes a minha à dele?    JOANA Oh! não. Gosto tanto como da de papai.    ALVAREZ Por quê?    JOANA Porque foi papai que me deu.    ALVAREZ Então tu amas muito ao teu papai?    JOANA Oh! sim!    ALVAREZ Mais do que a mim?    JOANA Pois então?    ALVAREZ Por que razão?    JOANA Pela razão de que ele é meu papai.    ALVAREZ Mas que quer dizer papai?    JOANA Não sei. Mas quando eu digo papai, parece, que eu não posso dizer mais nada, e que e preciso abraçá-lo logo.    ALVAREZ E a mim, não me abraças tu?    JOANA Sim, eu gosto muito de ti, acredita; mas é depois dele, e de mamãe! (Dirigindo-se à boneca) A menina tem juízo? Há de chamar-se Fanchete.    ALVAREZ Que fez tua mãe ontem à noite?    JOANA Ficou aqui com papai!    ALVAREZ Não houve visitas?    JOANA Houve, a Sra. de Talveira.    ALVAREZ A que horas se foi ela embora? 
 
JOANA Não sei, porque me deitaram às nove horas.    ALVAREZ Olha, aqui tens mais uma teteia!    JOANA Oh! o que é?    ALVAREZ Um leque para o baile.    JOANA Baile?    ALVAREZ Sim, um baile que eu pedi a tua mãe que arranjasse para ti e tuas amiguinhas; é uma surpresa.    JOANA Um baile como o das filhas da Sra. Talveira? Oh! que belo! Então é preciso vestir-me e enfeitar-me.    ALVAREZ Está claro!    JOANA Vou ter com Miss Brown.    ALVAREZ Vai, filha, vai... Joana!    JOANA O que é?    ALVAREZ Dá-me outro beijo... Hás de achar confeitos na outra sala.    JOANA Vou ver. O que é que deste aos pobres?    ALVAREZ Nada!    JOANA Pois papai deu alguma coisa.    ALVAREZ Eu também darei. 
 
(Enquanto Alvarez tem Joana nos braços, a Sra. Larcey entra)      CENA VII Alvarez, a Sra. Larcey.   A SRA. LARCEY Bom dia, meu caro Sr. Dumont. Ah! é o Sr. Alvarez! pois olhe, tomei-o pelo dono da casa!    ALVAREZ Sem me ver?    A SRA. LARCEY Oh! a força de viver juntos a gente acaba por se parecer uns com os outros!... É como esta menina, que se parece tanto com o senhor como com o pai. Delicadeza de afilhada. (Dá-lhe um beijo) Onde está tua mãe?    JOANA Está com papai... Vou chamá-los.   
A SRA. LARCEY Não os incomodes. Estou aqui como em minha casa; é a casa de uma velha amiga... velha, entenda-se, como amizade, porque Mathilde é uma criança, como idade e também como caráter. Vou esperar aqui, com o senhor, até que venha aquele jovem casal. Duas rolas, não é verdade? Que belo exemplo!... e quão pouco imitado! Demais, não será a primeira vez que o senhor faça as honras da casa. Mas que é feito? Ninguém mais o vê?    ALVAREZ A senhora vivia retirada.    A SRA. LARCEY Estava de luto, e isso era o menos; mas o meu luto acabou hoje, graças a Deus!... Se não fora isso, não teria eu o prazer de inaugurar com o senhor o meu primeiro vestido de cor. Entra no baile das crianças?    ALVAREZ Como espectador.    A SRA. LARCEY Naturalmente. Também eu, como espectadora; é mesmo hoje o baile? O convite apanhou-nos tão de supetão que eu vinha perguntá-lo a Mathilde.    ALVAREZ É hoje.    A SRA. LARCEY Às duas horas?... Como se tratam hoje as crianças!... Umas pequenas de 7 anos a darem bailes... Não acha isso ridículo?    ALVAREZ O culpado sou eu.   
A SRA. LARCEY Então a minha pergunta é mal cabida, retiro-a; afinal de contas, o senhor tem razão, é preciso que as crianças se divirtam. As mágoas chegam cedo. Desde que se falou em baile, Adriana perdeu a cabeça... não dorme. Ela gosta tanto de se divertir! É como o pai. Aquela não sai a mim. As meninas saem sempre aos pais. Joana saiu ao pai? conheço-a muito pouco.    ALVAREZ Ela é como todas as crianças daquela idade... Não tem caráter determinado, mas tem boa alma, afetuosa e meiga.    A SRA. LARCEY Sai à mãe, o senhor gosta muito dela? De Joana, entende-se.    ALVAREZ Adoro as crianças.    A SRA. LARCEY Ela gosta do senhor?    ALVAREZ Como as crianças gostam de quem lhes faz as vontades.    A SRA. LARCEY Seria muito ingrata se não gostasse do senhor.    ALVAREZ Por que, minha senhora?    A SRA. LARCEY Primeiramente, porque o senhor lhe faz as vontades, depois...    ALVAREZ Depois?   
A SRA. LARCEY Depois, porque o senhor enche a casa de felicidade. Nunca ela há de saber quanto lhe deve.    ALVAREZ Não compreendo.    A SRA. LARCEY Pois é simplíssimo. Há oito anos, Dumont estava apertado em seus negócios. Não é verdade? O senhor emprestou-lhe 1.000.000 de francos... Não negue, foi ele quem me disse, transportado de admiração e com efusões de reconhecimento, que são o elogio dele e o seu. Salvou-o o senhor. Continuaram os negócios, e nada lhe faltava para ser feliz, a não ser um filho que ele pedia ao céu desde três anos de casado, e que o céu teimava em negar-lhe. Lá veio um dia em que nasceu Joana, tanto é certo que as grandes venturas não chegam sós. Dumont merecia aquela felicidade!... É tão bom marido, não? Confiante! fiel à sua mulher! fiel à sua mulher! fiel à sua mulher! Coisas são estas que se devem dizer três vezes para que se acredite, e ainda custa a crer! Laborioso! hábil! meigo como uma criança! e corajoso. Bem o provou ele nos dias de junho, em que ficou ferido na cabeça, à frente da companhia que comandava... Ah! se eu tivesse um marido como aquele!    ALVAREZ (a Dumont que entra)  Chega aqui, meu caro Dumont; falávamos mal de ti.      CENA VIII Os mesmos, Dumont.   DUMONT De mim?    A SRA. LARCEY Sim, dizíamos que a senhor é a pérola dos maridos. E depois deste cumprimento, retiro-me.   
 
DUMONT À minha chegada?    A SRA. LARCEY Tinha apenas dez minutos para gastar aqui; tomou-os o Sr. Alvarez, ele que lhes restitua. Aqui vai em duas palavras. Tenho camarote para hoje no Vaudeville, primeira ordem... Vai comigo? Mathilde decidirá daqui a pouco quando eu voltar com Adriana. O Sr. Alvarez está convidado; demorei-me demais, vou-me embora; até já. Não precisa acompanhar-me. (Sai)   
 
CENA IX Alvarez, Dumont.
  DUMONT Está doida varrida.    ALVAREZ Se fosse só isso, mas é má...    DUMONT Enganas-te. É maldizente apenas.    ALVAREZ Dizer mal ou fazê-lo, é quase a mesma coisa. Acredita, a Sra. Dumont faz mal em conservar semelhante amiga.    DUMONT Para uma mulher moça, uma amiga tão maldizente como a Sra. Larcey vale por dez amigas e das melhores: é um alvará de honestidade.    ALVAREZ A Sra. Dumont não precisa disso.   
DUMONT Sem dúvida. Disse há pouco que precisava falar-te. É um segredo, promete que o não contarás a ninguém, nem serás como eu, que já estou faltando a um juramento. Mas tu és da família; e demais, não pode ser de outro modo, porque és meu sócio.    ALVAREZ De que se trata?    DUMONT Vou fazer uma viagem.    ALVAREZ (com um movimento de alegria que reprime logo)  Vais fazer uma viagem?    DUMONT A modo que te alegras com isso?    ALVAREZ Sim... Suponho que tens algum bom negócio em vista.    DUMONT Não.    ALVAREZ Como! não se trata de negócios?    DUMONT Admiras-te?    ALVAREZ De certo, os negócios são a tua vida. Vais só?    DUMONT Não vou só?    ALVAREZ Com quem vais? 
 
  DUMONT Com Mathilde.    ALVAREZ E Joana?    DUMONT Naturalmente. E como é preciso que alguém trate dos negócios, na minha ausência, ficas tu incumbido disso.    ALVAREZ De certo! De certo!    DUMONT Quando eu dizia que ias ter alguma ocupação!    ALVAREZ A viagem é longa?    DUMONT Depende de Mathilde!    ALVAREZ A causa da viagem?    DUMONT Mathilde anda doente.    ALVAREZ Desde quando?    DUMONT Há muito tempo.    ALVAREZ Há pouco me dizias que ela estava perfeitamente boa. 
 
  DUMONT É um modo de falar.    ALVAREZ Foi o médico que aconselhou?    DUMONT Fui eu o da lembrança.    ALVAREZ Ela aceitou?    DUMONT Com alegria.    ALVAREZ Quando partem?    DUMONT Dentro de dois ou três dias.    ALVAREZ Onde vão?    DUMONT Pelo caminho que houvermos diante, mas do lado do sol, como as andorinhas.    ALVAREZ E os namorados.    DUMONT (apertando-lhe as mãos com efusão)  Como os namorados, sim, não podias dizer melhor. Não tens inveja? Rico como és, mais de quatro milhões!... moço, que o és ainda... trinta e cinco anos... boa idade para casar? Casa-te!   
 
ALVAREZ No dia do meu nome.    DUMONT Sim! no dia do teu nome... e para felicidade da tua vida! 
 
(Entra Mathilde)   
 
CENA X Alvarez, Dumont, Mathilde.
  DUMONT (continuando)  Entra... Dizia eu a João que devia casar-se; a fim de ser tão feliz como nós... Havemos de achar-lhe uma, mulher como tu!... Não é fácil, bem sei. Mas já se pode contentar com um quase. Vamos lá, prova-lhe que deve casar-se. Eu não tenho tempo para convencê-lo, porque daqui até o dia da partida, não posso perder um minuto... Já lhe falei da nossa viagem... Não podia haver segredo para ele. Adeus!   
 
CENA XI Alvarez, Mathilde .
  ALVAREZ Então, vai viajar?    MATHILDE Vou.    ALVAREZ Foi a senhora quem teve a ideia?    MATHILDE Não, é desejo de Henrique.   
 
ALVAREZ Não lhe pedi que não pronunciasse esse nome de Henrique diante de mim?    MATHILDE É desejo de meu marido.    ALVAREZ Meu marido?    MATHILDE Na verdade, já não sei como lhe hei de chamar!    ALVAREZ Chame-o como quiser. Proíbo-lhe que vá com ele.    MATHILDE Proíbe-me? Com que direito?    ALVAREZ Bem sabe com que direito.    MATHILDE Estou enferma, João; afirmo-lhe que estou e preciso mudar de ares... Tenha piedade de mim.    ALVAREZ Hoje, como sempre, a senhora só tem uma ideia: escapar-me, fecharme a porta. (Trava de uma cadeira e faz um gesto violento)    MATHILDE Que é isso? Se meu marido ouvisse!    ALVAREZ Ouviria! tanto melhor! Seria esse o desenlace de uma situação que não pode prolongar-se... E demais, ele não tinha de que se queixar. Ficaria sabendo que a senhora suporta-me por medo, e para conjurar um rompimento que iria perturbá-lo... Saberia que a senhora quer partir porque já não me ama. Se é que alguma vez me amou.    MATHILDE De quem é a culpa, se eu já não o amo?    ALVAREZ A culpa é de Henrique, que a senhora ama!    MATHILDE Se fosse assim?    ALVAREZ (com cólera)  Senhora!    MATHILDE Senhor! Posso eu impedir que ele seja bom, tanto quanto o senhor é cruel, tão nobre quanto o senhor é injusto, tão delicado quanto o senhor é ingrato? Posso eu impedir-me de os comparar ambos e arrepender-me? achá-lo em tudo superior ao senhor, e principalmente a mim?    ALVAREZ É tarde. Devia ter feito essas comparações há sete anos.    MATHILDE Ai, que se eu as tivesse feito!    ALVAREZ Hoje amo-a; é minha; disse que me amava. Mentira ou verdade, firmo-me nessa declaração. Já não posso viver sem a senhora, não quero perdê-la, e não me há de escapar, previno-a.    MATHILDE Que fará então?   
 
ALVAREZ Ah! cuida que, se eu pus toda a minha vida em um só amor; se durante sete anos sofri todas as torturas e humilhações do ciúme; se ouvi minha filha, — sim, minha filha, — dar a outro o nome de pai; se suportei tudo isso por amor da senhora e de Joana, é para que um belo dia senhora venha dizer-me: vou viajar; e cuida que eu a deixarei partir? Engana-se. Se não achar um meio de ficar, achá-lo-ei eu.    MATHILDE Que meio será?    ALVAREZ Saio daqui com Joana.    MATHILDE Está louco.    ALVAREZ Não. A lei não será por mim, mas eu terei por mim o escândalo e a sua desonra. Dumont não as quererá em casa, e então serão minhas, porque só eu lhes restarei.    MATHILDE Mas não há ódio que não seja preferível a um amor semelhante! Dois adversários prestes a vir às mãos não falariam de outro modo.    ALVAREZ Ah! eu não sou Genebrês... como Henrique. Não aprendi a vida no Emílio e no Vigário saboiardo; não amassei minha alma com a neve das geleiras; nasci em plena Espanha, sob um céu de fogo, e é o sol com todos os seus raios que me faz arder o sangue das veias. Amo com todo o meu ser, dou-me inteiro, exijo tudo. Que me importa a mim seu marido?! Tenho-lhe ódio!    MATHILDE O homem a quem chama seu amigo? 
 
  ALVAREZ Tanto pior para ele se é cego!    MATHILDE Apertou-lhe a mão, socorreu-o, salvou-lhe a fortuna e a vida!    ALVAREZ Era por causa da senhora, a quem eu amava, e de quem me queria fazer amado.    MATHILDE É melhor dizer que eu me vendi!    ALVAREZ Amava-a, adorava-a. Não sei por que meio pude convencê-la. Todos os meios são bons a quem ama. Se até hoje tenho suportado esta vida dupla, é porque pensei que era amado, e que a senhora suportava, como eu, uma escravidão social. Mas dês que a senhora ama aquele homem, ele é meu inimigo, é meu rival, e matá-lo-ei se for preciso.    MATHILDE O crime após a vergonha, faltava só isso. Ouça... Se o senhor cometer semelhante infâmia, considerar-me-ei tão superior, por mais desonrada que seja, que não só deixarei de pertencer-lhe, senão que o senhor não me verá mais. Respeite, proteja até os dias de meu marido, porque, viúva por sua causa, e até a pesar seu, entrarei para um convento com minha filha, e ninguém me poderá tirar. Será unicamente minha, e eu a defenderei contra os seus furores. Aquela inocente criança, que o senhor converteu em espião, a quem interroga a cada instante, e que lhe dá, sem sabê-lo, coitadinha, pretextos para torturar sua mãe, essa criança a tal ponto ficou aos meus olhos que eu sou obrigada a corar diante dela, a temê-la, a fugir-lhe, porque me lembra quanto sou culpada. Fala-me das suas torturas!... acaso comparam-se às minhas? Que vida me dá o senhor?... E quantas vezes tenho eu pensado em morrer para escapar-lhe? De há sete anos para cá, não se passa um só dia, sem que haja uma cena como esta. O senhor desonra-me em meu marido, em minha filha, nas minhas recordações, no meu sono! Dele por dever, — sua por medo, — nada de mim me pertence, e o amor, amor de esposa, amor de amante, amor de mãe, é tudo sacrilégio, mentira, ignomínia; e o senhor quer que eu o ame!    ALVAREZ Ah!    MATHILDE Faça o que quiser; desonre, mate... Deus louvado, resta-me a morte, que o senhor não me pode tirar.    ALVAREZ (em lágrimas e suplicante)  Mathilde! Mathilde! perdoa-me, amo-te acima de tudo... Tu não sabes até onde chegam os transportes de um amor aguilhoado pela humilhação de saber que não é correspondido!... Dize-me só uma vez que me amas, que me amaste, que me amarás sempre. Dá-me uma prova de ternura. Não partas ainda amanhã... mais tarde... daqui a um mês, daqui a oito dias... não me podes recusar!    MATHILDE Levante-se!    ALVAREZ Promete-me que não partirás.    MATHILDE Pois sim.    ALVAREZ Que farás?    MATHILDE Não sei... verei... acharei algum meio. Mas, em nome do céu, levante-se, vá-se embora! 
 
ALVAREZ Dize que me amas!    MATHILDE Pois, sim, sim, amo-o!    ALVAREZ Oh! Mathilde, como sou feliz! (Sai)      CENA XII   MATILDE (só)  Ah! meu Deus! que suplício!        ATO II A mesma decoração.   CENA I A Sra. Larcey, Mathilde   A SRA. LARCEY Bom dia, querida; como está? É a segunda vez que venho hoje aqui. Com que então, improvisou um baile de crianças?    MATHILDE É verdade. Arranjou-se no outro dia... uma ideia...    A SRA. LARCEY Uma ideia do Sr. Alvarez... foi ele quem me disse... Dar-se-á caso que fosse indiscreto?   
MATHILDE De modo algum... Onde está Adriana?    A SRA. LARCEY Lá ficou conversando com Joana. Sua filha agarra em todas as meninas que entram e faz-lhes uma distribuição real de teteias. Deu à minha filha um gato tocando bandolim. Os vendedores destas coisas já não sabem que inventar.    MATHILDE Chegaram já muitas pequenas para o baile?    A SRA. LARCEY Chegam todas juntas. Então sou eu quem lhe dou conta do que se passa em sua casa!    MATHILDE Demorei-me... mas aqui estou pronta para desempenhar os meus deveres de dona de casa.    A SRA. LARCEY Espere! O Sr. Dumont está fazendo as suas vezes. Deixe-me algum tempo para dizer que está formosa. Quem é a sua costureira? É a mesma Sra. Valentina?    MATHILDE É.    A SRA. LARCEY Tem gosto aquela mulher, creio que volto a ela. Quem me veste a mim é Stokley... Veste bem... mas é um homem, o que torna a gente acanhada. Contudo, tem muito gosto, e as rodas dos vestidos são enormes. Só se podem comparar às contas, isto é, aos preços; porque as contas são, ao contrário, de extrema simplicidade: um vestido cor de rosa: 1.200 francos, um vestido branco, 1.500 francos... Faz-me lembrar os estalajadeiros espanhóis que nunca fazem a conta pelo miúdo, mas que, quando a gente sai, apresentam um pedacinho de papel, com esta única frase: soma tanto. Ah!
 
Stokley mostrou-me há pouco um vestido cinzento, que é uma maravilha. Cuidava que eu ainda estava de luto. Perguntei-lhe por que não me mostrara aquele vestido há um mês; respondeu-me que há um mês o vestido ainda não tinha aparecido; chegou agora de Lyon.    MATHILDE Pode servir no seu próximo luto.    A SRA. LARCEY Deus a ouça! Tenho uma tia por quem hei de deitar luto de boa vontade: oitocentos mil francos de herança! Não digo isto por mim. Uma viúva não precisa de luxo. É para minha filha, a quem devo procurar estado daqui a dez anos!    MATHILDE Já pensa nisso?    A SRA. LARCEY É preciso... Ah! como a senhora é feliz em ter marido! é coisa que faz rir, mas ninguém sabe que falta faz um marido. Enquanto a gente tem o seu, parece-lhe que pode passar sem ele, e quando o perde não sabe como haver-se. E depois, que bandeira minha amiga! como os outros navios nos dão salvas! que respeito!... e como se pode entrar francamente nos portos estrangeiros!... Ah! mas o seu é uma pérola engastada em milhões... Dá-lhe o que a senhora quer, ama-a, deixa-a livre e senhora de todas as suas ações; importa-lhe tanto a opinião do mundo como se ela não existisse ..    MATHILDE E por que lhe havia de importar a opinião do mundo? Ele nada tem a temer.    A SRA. LARCEY Pessoalmente... nada!   
MATHILDE Acabe.    A SRA. LARCEY Oh! meu Deus, pois o mundo não murmura de todas as mulheres, as que são elegantes, e as que o não são? as que são moças, e as que deixaram de sê-lo? Só as feias estimariam que se falasse delas, mas ninguém lhes faz essa caridade.    MATHILDE Isso quer dizer que se fala de mim. E que diz o mundo?    A SRA. LARCEY De positivo, nada.    MATHILDE Entretanto...    A SRA. LARCEY Vejamos, Mathilde. Há alguém que nunca a deixa, como a sua sombra, não? Vai com a senhora a toda a parte, à Ópera ou aos Italianos. Se a senhora está em um pequeno teatro, no fundo de um camarote, quem é que aparece por trás do seu ombro? É o Sr. Alvarez.    MATHILDE O Sr. Alvarez...    A SRA. LARCEY Ah! minha amiga, se se perturba, paro.    MATHILDE Não me perturbo.    A SRA. LARCEY Não... mas desconfie desses movimentos que podem parecer comoção.   
 
MATHILDE Não estou comovida, estou espantada.    A SRA. LARCEY Ora, pois! Francamente, já que comecei, acabo; o Sr. Alvarez anda muito com a senhora.    MATHILDE Mas se ele é sócio de meu marido.    A SRA. LARCEY Isso mesmo.    MATHILDE Leonia!    A SRA. LARCEY Não sou eu quem fala: repito, nada mais. Pois é isso, o Sr. Alvarez, não é culpa sua, mas imprime nesta casa uma mancha preta que salta aos olhos. Serei franca, o Sr. Alvarez é comprometedor. Anda muito com a senhora. Creia-me, Mathilde, afaste-o daqui... Bem vê, pelo tom em que me exprimo, que eu não creio nas balelas do mundo.    MATHILDE E faz bem.    A SRA. LARCEY Uma ideia! Faça com que ele se case! Há tantas raparigas prontas a se apaixonarem por uns olhos brilhantes!    MATHILDE Não tenho direito algum ao Sr. Alvarez, e não posso fazer com que ele se case, nem deixe de casar-se...   
A SRA. LARCEY Tanto pior... porque era o meio de dar uma resposta a tudo, é já é tempo de responder.    MATHILDE Explique-se claramente, faz favor.    A SRA. LARCEY Pois bem, minha amiga, a senhora tinha uma criada grave, Zoé... uma pestezinha que está pedindo o lazareto... Foi boa de mais com ela! Viu-se, entretanto, obrigada a despedi-la.    MATHILDE Era atrevida.    A SRA. LARCEY Não nego... mas fez mal. Era melhor fazer ouvidos de mercador aos atrevimentos dela...    MATHILDE Por quê?    A SRA. LARCEY Porque ela deu à língua.    MATHILDE Não compreendo.    A SRA. LARCEY Eis o caso: Zoé foi apresentar-se em casa da Sra. de Berteux, inimiga íntima da senhora, e cujo marido é tão tagarela e maldizente como a mulher. Sabe da alcunha que puseram ao Berteux? Portaria de Convento. A Sra. Berteux tomou Zoé ao seu serviço, e logo no dia seguinte entrou a fazer-lhe perguntas, e ela falou.    MATHILDE Mas Zoé não tem nada que dizer.   
 
A SRA. LARCEY Mas falou... inventou, estou certa disso. Infelizmente, inventou pormenores tão precisos, que têm ares de verdade, para quem gosta do escândalo.    MATHILDE E a Sra. Berteux acreditou em semelhante rapariga?    A SRA.LARCEY Qual! despediu Zoé, dizendo-lhe que era uma infame criatura, que caluniava odiosamente a sua antiga ama, e que nunca tomaria ao seu serviço uma tal víbora. Zoé, debulhada em lágrimas, jurou que de tudo quanto disse podia dar provas.    MATHILDE Provas!    A SRA. LARCEY Não as tem. Foi o que eu disse. “Saia de minha casa!” exclamou a Sra. Berteux, com aquele ar teatral que lhe conhecemos, e entretanto anda ela simulando a indignação por toda a parte! Berteux vai também espalhando a história de club em club... Pobre amiga! como está pálida! Não lhe peço confidências, dou-lhe um conselho. Afronte o escândalo, ou preparando seu marido, para que ele não sinta o choque, ou afastando o Sr. Alvarez. Se ele recusar casar-se, ponha-se em boas contas com o mundo, é quanto se lhe pede... é tudo o que querem os seus amigos... e demais não há um homem que valha a pena de nos comprometermos por ele... e será muito fino aquele que me comprometer a mim...    MATHILDE Aceitarei a luta com o mundo, provarei...    A SRA. LARCEY Não lute, minha amiga... Ceda, viva em paz com a maledicência, é menos perigoso do que viver em guerra com a calúnia... Já não pensávamos no baile, e ei-lo que vem à nossa procura. 
 
   
CENA II As mesmas, (um bando de crianças, com Joana à frente, entra dançando o galope, e sai por outra porta).   JOANA (vem beijar a mãe e diz-lhe baixo)  Mamãe, é uma carta para ti.    MATHILDE De quem?    JOANA De meu padrinho, que entrou no salão, só para me entregá-la e dizer-me: “Vai dar isto já a tua mamãe, é uma surpresa”.    MATHILDE Obrigada, minha filha, vai dançar. 
 
(Joana vai ter com as companheiras)      CENA III Mathilde, a Sra. Larcey.   A SRA. LARCEY (a Mathilde que se dispõe a esconder a carta, pensando não ser vista)  Leia a sua carta, minha amiga, leia a sua carta!    MATHILDE Dá licença?    A SRA. LARCEY Pois não! (Mathilde abre a carta e parece perturbada) Que aconteceu?    MATHILDE  Nada! 
 
A SRA. LARCEY Parece comovida.    MATHILDE Uma contrariedade.    A SRA. LARCEY Se lhe posso ser útil, disponha de mim.    MATHILDE Não, obrigada. Eu preciso escrever algumas palavras.    A SRA. LARCEY Escreva, escreva. Vou ver as crianças dançar. Até já, não?    MATHILDE Sim, até já...    A SRA. LARCEY Até já.      CENA IV   MATHILDE (só, está meia desmaiada em uma cadeira)  Que será de mim? (Lê) “A sua miserável Zoé cumpriu o que disse. A esta hora o nosso segredo corre de boca em boca; já esta noite não será segredo para seu marido. Mathilde, não se pode perder um minuto, é preciso fugir! A fatalidade, que eu abençoo, vem obrigai-a a ser ainda mais minha do que eu esperava que fosse. Esteja às 8 horas no caminho de ferro do Norte com Joana. Não se preocupe de coisa alguma, eu previ tudo. Ah! Mathilde! viver juntos os três! que felicidade!” (Depois de uma pausa) Que vergonha! Desta vez, como sempre, ele só pensa em si! Amor! egoísmo do coração, ser maldito! Que fazer? se fosse um laço para obrigar-me a acompanhá-lo? Mas não! Esta mulher que daqui saiu não deixou dúvida alguma, estou perdida. Com que arte ela me torturava! Amizade, tu és então uma vã palavra como o amor? A quem hei de pedir conselhos? A minha mãe, santa mulher que só conheceu o bem em sua vida? Onde achará ela os recursos do mal? A meu pai? Ele morrerá de vergonha ante esta confissão. Mentir então, mentir ainda; sempre mentir! Ah! morrerei! é mais simples e mais leal! Morrer como? A minha morte, como a minha vida, não me pertence. Posso fazer crer num desastre para salvar a minha honra, para ser chorada pelos que me amam. Essas lágrimas serão o meu último roubo. Sim, posso montar a cavalo, e esmigalhar a cabeça contra a calçada da rua. Que morte! Sou covarde! não serei capaz disso! Meu Deus, que será de mim? Quando me lembra da minha infância tão calma e alegre... Ah! meus sonhos! onde estais? Como me perdi eu? Olha a que ponto, chegaste, desgraçada! Que lodo à roda de ti! Que procuras? Vai até o fim do teu destino; o teu amante tem razão. Dir-se-á que não pudeste resistir ao teu amor... Invejar-te-ão outras mulheres; cantarte-á um poeta! Falarão de ti na grande cidade, ficarás célebre... Os lacaios contarão a tua história entre gargalhadas nas antecâmaras dos teus amigos; dirão que já o sabiam, e talvez já saibam... E tu, envelhecerás lá na Itália, heroína de romance, à borda de algum lago, eternamente entregue à tua culpa. Pois sim! partamos! (Para) Nunca!      CENA V Dumont, Mathilde.   (Ouve-se música fora)    DUMONT (entrando)  É assim que presides à dança dos pequenos? Felizmente Joana desempenha-se às mil maravilhas. Toma a coisa a sério; faz morrer de riso. Adriana também é engraçada, mas que diferença de Joana! Aqui para nós, não há menina que chegue aos pés da nossa. Que tens tu? É verdade, a Sra. Larcey disse-me que receberas uma carta que te contrariou muito... Que te aconteceu?   
 
MATHILDE (olhando Dumont com olhos espantados, e como não podendo resistir à ideia que lhe vem)  Henrique!    DUMONT Assustas-me! Por que me olhas assim? Morreu tua mãe? Onde está a carta? (Mathilde dá-lhe a carta. Depois de ler) A letra é de Alvarez! que significa isto? É a ti que esta carta é dirigida?!    MATHILDE É.    DUMONT Mas não compreendo... Alvarez... esta carta diz a verdade?    MATHILDE (exausta e vacilante)  Diz.    DUMONT (com explosão erguendo o braço)  Miserável!... (Para, querendo abatê-la; afasta-se e passando a mão pela fronte como para reter o seu pensamento) Sinto que vou ficar doido... perdão... Adeus!    MATHILDE (suplicante)  Henrique!    DUMONT Fez bem em confessar... nestes casos é melhor dizer a verdade, mas podia esperar ainda um pouco, por compaixão... Eu não lhe fiz nada... Deixa-se a ilusão àqueles que não têm outra coisa mais... Mas a senhora não podia perder tempo, urgia sair, ele esperava e espera... Mas que me quer? por que está aqui? É livre, saia! Devia sair sem me dizer nada, era muito mais simples. E eu que nada percebi, nem suspeitei! Mas, por que me fez esta confissão?    MATHILDE (sufocada) 
 
Porque esperava que o senhor me matasse, não tendo eu coragem de matar-me, a mim própria.    DUMONT Por que motivo quer morrer?    MATHILDE Porque sou a mulher mais infeliz deste mundo.    DUMONT Infeliz! Em quê? Ama e é amada, deve viver.    MATHILDE Não o amo!    DUMONT Não o ama! Então que mulher é a senhora?    MATHILDE Se eu lhe disser que no fundo da alma só tenho amado o senhor, não há de acreditar. E entretanto não tenho outra coisa para lhe dizer, e não repito para que o acredite, mas porque é a verdade mais verdadeira. Eis porque lhe fiz a confissão. Ordene o que quiser, sujeito-me de antemão, contanto que eu não sofra mais este martírio, este castigo, mais tremendo que todos quantos o senhor pudesse inventar. Quer que eu morra para deixá-lo livre, para que possa amar outra, e dar-lhe o seu nome que não respeitei? Eu lhe fornecerei as provas todas. Julgue-me, mate-me, faça de mim o que quiser, eu o abençoarei qualquer que seja a minha sorte.    DUMONT E desde quando caiu tão baixo?    MATHILDE Desde o dia em que eu acreditei que ele o salvaria da ruína.   
DUMONT Há sete anos!... Então, Joana? (Mathilde abaixa a cabeça, e a esconde nas mãos sem responder) Erga-se, senhora! Nada mais tem a dizer?    MATHILDE Que me ordena?    DUMONT Faça o que quiser, senhora; tome sua filha, leve-a; eu não a conheço.    MATHILDE Adeus! (Levanta-se e dá um passo)    DUMONT Onde vai? Proíbo-lhe que se mate!    MATHILDE Por quê?    DUMONT Porque já há bastantes crimes no passado, e a sua filha precisa da senhora. Não sou eu quem a educarei, e o pai pode falhar de um instante para outro.    MATHILDE Vai bater-se, Henrique?    DUMONT Que lhe importa?    MATHILDE Em nome do céu, não exponha os seus dias!    DUMONT Assim, durante sete anos, mentiu-me a senhora todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos, e eu nada vi! E simulava ternura para mim! E não a sufoquei naqueles abraços que eu tomava por amor!... Miserável! E via-a corar se o acaso a punha em contato no teatro ou no passeio com alguma mulher comprometida! E cuidava que era ela quem produzia o seu vexame! O vexame era por si própria! A fome, a miséria são as desculpas dessas perdidas; quais são as suas?    MATHILDE Não as tenho.    DUMONT Veja ao menos se encontra alguma!    MATHILDE Não quero ter nenhuma. Eu não lhe mentia, amava-o, amo-o.    DUMONT Basta, senhora! Levante-se! É inútil a comédia. Entre para os seus aposentos, e espere as minhas ordens.    MATHILDE Que vai fazer de mim?    DUMONT Não sei; vá, senhora! Enxugue os olhos, que a não vejam os lacaios.    JOANA (entrando)  Ah! mamãe... tenho-me divertido muito.    MATHILDE Vai-te, Joana, vai-te!    JOANA Mamãe manda-me sempre embora, mas eu hoje tenho juízo, não é papai?    DUMONT Leve esta criança!   
 
JOANA Que tem, papai? Por que me não dá um beijo?    DUMONT Leve esta criança!    JOANA Papai! papai! meu papaizinho!    DUMONT (tomando Joana pelo braço e empurrando-a para sua mãe)  Leve esta criança, já lhe disse!    JOANA Papai machucou-me no dia de hoje, e quando eu ia beijá-lo.    DUMONT Fica, Joana! Entre, senhora! 
 
(Mathilde sai vacilante)     
CENA VI Dumont, Joana.
  DUMONT (com uma comoção crescida)  Vem cá, Joana... Peço-te perdão!    JOANA (querendo beijá-lo)  Eu te perdoo!    DUMONT (de joelhos diante delia, que está no canapé)  E se te fiz algum mal até hoje, perdoa-me ainda, porque eu não tinha direito.    JOANA Nunca me fizeste mal, papai!   
 
DUMONT Não me chames teu pai!    JOANA Como te hei de chamar então?    DUMONT Chama-me teu amigo! (Não podendo conter-se e caindo com a cabeça nos joelhos de Joana, debulhado em lágrimas) Ah! minha pobre menina, como eu sou desgraçado!    JOANA (com medo)  Mas que é? (Toma o lenço e enxuga os olhos de Dumont) Não chore, papai, os homens não choram: isso é bom para as meninas!    DUMONT Tens razão. (Toca a campainha) Vai brincar! (Ao criado) Vá à casa do Sr. Alvarez e diga-lhe que estou à espera dele. 
 
 
 
ATO III A mesma decoração.
 
CENA I A Sra. Larcey, um criado.
  A SRA. LARCEY (consigo)  Ninguém! Nem ela... nem ele... nem ele... nem ela. Ninguém a viu no baile... De quem se despede a gente nesta casa quando sai? Que se terá passado? (Toca a campainha) É talvez aquela carta... Preciso saber o que havia naquela carta... cheira-me a mistério. (Ao criado que entra) Onde está Mathilde?    CRIADO A senhora achou-se repentinamente indisposta. Retirou-se para o seu quarto e deu ordem de não receber pessoa alguma.    A SRA. LARCEY E o Sr. Dumont?    CRIADO Esteve aqui há pouco com a menina. Não saiu, porque mandou chamar o Sr. Alvarez. Ei-lo.      CENA II Dumont, a Sra. Larcey.
 
A SRA. LARCEY Procurava o senhor ou Mathilde para despedir-me.    DUMONT Peço que desculpe a senhora Dumont, um fato imprevisto obrigou-a a retirar-se para o quarto.    A SRA. LARCEY Aquela carta, sem dúvida.    DUMONT Sim... aquela carta.    A SRA. LARCEY Alguma notícia má?    DUMONT (afirmativamente)  Uma má notícia, com efeito.    A SRA. LARCEY Que só lhe interessa, a ela?   
DUMONT Que me interessa a mim, e também à senhora...    A SRA. LARCEY A mim?    DUMONT À senhora! Foi mesmo por isso que eu me conservei no gabinete até agora. Tinha de lhe dar alguns papéis, antes que a senhora fosse, e era preciso pô-los em ordem.    A SRA. LARCEY Que papéis?    DUMONT A senhora é nossa amiga, não é?    A SRA. LARCEY Creio que está bem convencido disso.    DUMONT Também nós somos seus amigos, e não queremos arrastá-la no infortúnio que nos fere.    A SRA. LARCEY Explique-se.    DUMONT Devo-lhe com efeito uma explicação; é o banqueiro quem lhe vai dar, e que reclama de sua parte a maior discrição, ao menos por alguns dias.    A SRA. LARCEY Eternamente, se for preciso.    DUMONT Não lhe peço tanto. A senhora sabe que serviço me prestou em outro tempo... o meu amigo... Alvarez? 
 
A SRA. LARCEY Sei.    DUMONT Foi por ele que eu pude restabelecer os meus negócios.    A SRA. LARCEY Sei.    DUMONT Desde essa época... estou eu à testa de uma das primeiras casas bancárias de Paris, depositário e administrador de algumas grandes fortunas, entre as quais conto a sua.    A SRA. LARCEY (já inquieta)  Ou ao menos uma parte da minha... Depois?    DUMONT Pois bem, a nossa sociedade dissolveu-se e a casa vai liquidar.    A SRA. LARCEY Liquidar! Oh! meu Deus!    DUMONT Os negócios iam bem. Mas o Sr. Alvarez precisou repentinamente dos seus fundos.    A SRA. LARCEY Que sobem a...?    DUMONT A quatro ou cinco milhões hoje.    A SRA. LARCEY Então?   
 
DUMONT Entrego-lhes; mas para isso é preciso fazer grandes sacrifícios... Vou vender as minhas propriedades do Berrey, os meus quadros, a minha casa... Estou falido, em uma palavra, porque eu não contava com esta reclamação.    A SRA. LARCEY Não havia contrato de sociedade, ou não estará ele em regra?    DUMONT O contrato estava em regra, porque o caso foi previsto. Cada qual ficava com a sua liberdade. Éramos mais amigos do que sócios.    A SRA. LARCEY (mais inquieta)  E os seus credores?    DUMONT Descanse, não perdem um ceitil. A sua conta foi a primeira que eu tirei... Aqui está um saque sobre o banco, com o qual, pode receber a quantia que lhe cabe.    A SRA. LARCEY (respirando)  Recebo tudo? Ah! o senhor é um homem honrado!    DUMONT Nunca duvidei disso, mas nem por isso deixa de alegrar-me a sua confirmação.    A SRA. LARCEY E a que atribui a repentina necessidade de dinheiro que tem o Sr. Alvarez?    DUMONT A uma necessidade de dinheiro.    A SRA. LARCEY Mas ele podia fazer a reclamação por outros termos. 
 
DUMONT Não os empregou para obsequiar-me. É um homem de primeiros movimentos. É preciso aceitá-lo como ele é.    A SRA. LARCEY E o senhor não lhe fica querendo mal?    DUMONT Eu não quero mal a ninguém.    A SRA. LARCEY Mas ele sabe que o arruína?    DUMONT Deve supô-lo.    A SRA. LARCEY E que diz Mathilde?    DUMONT Resigna-se... Foi a ela que Alvarez encarregou desta comunicação... inesperada. Esse era o conteúdo daquela carta que a perturbou tanto.    A SRA. LARCEY Senhor Dumont!    DUMONT Minha senhora!    A SRA. LARCEY Sua mulher é um anjo! Perdoe-me o senhor, e ela também...    DUMONT O quê?   
 
A SRA. LARCEY Quase a caluniei.    DUMONT A senhora!    A SRA. LARCEY No meu pensamento...    DUMONT Como?    A SRA. LARCEY O senhor sabe... a gente nem sempre resiste aos maus pensamentos... e é mau isso, mas a minha franqueza lhe provará como deploro os que eu tive, e tudo quanto eu faria para combatêlos, se outrem os tivesse.    DUMONT Peço-lhe que se explique.    A SRA. LARCEY Mathilde podia impedir a sua ruína. É verdade que seria à custa de sua honra: o Sr. Alvarez ama-a.    DUMONT Acredita?    A SRA. LARCEY Estou certa, e foi para vingar-se da resistência dela que ele fez o que fez. Vingança de lacaio.    DUMONT Oh! não... seria demasiado horrível e indigno de um cavalheiro!   
A SRA. LARCEY Era visível esse amor. Falava-se, e até já se começava a acusar Mathilde... Vim hoje adverti-la disso... mas agora é preciso calar. Há gente que eu conheço, sem falar no casal Berteux, que vai ficar desesperada, mas estou contente por causa de Mathilde.    DUMONT Obrigado, minha senhora, pelas suas boas palavras... Com efeito, Mathilde é a minha consolação neste desastre que a fere também, e que ela quer compartir até o fim... Há de lhe custar, a ela, que está afeita desde a infância ao luxo e a todos os gozos da vida; mas, no caso mesmo em que lhe faltasse a coragem e ela voltasse para a casa dos pais, como já lhe lembrei, nem assim lhe ficarei querendo mal. A lembrança da felicidade que lhe devo no passado basta-me no futuro.    A SRA. LARCEY Posso abraçá-la antes de sair?    DUMONT (sorrindo)  Pois não! (Ao criado) Diga à senhora que venha aqui.    A SRA. LARCEY Aquele Alvarez é um miserável; deixarei de cumprimentá-lo a primeira vez que o vir, e proibirei aos meus amigos que lhe falem...    DUMONT Ele está no seu direito.    A SRA. LARCEY Conte com a minha eterna amizade... Coragem, Sr. Dumont, coragem!    DUMONT Tê-la-ei.    A SRA. LARCEY (olhando para o papel que Dumont lhe deu)  Então, é um saque à vista? 
 
DUMONT À vista...    A SRA. LARCEY Eu própria posso ir cobrar o dinheiro?    DUMONT Agora mesmo...    A SRA. LARCEY Vou passar pelo Banco antes de entrar em casa...    DUMONT É isso...    A SRA. LARCEY Está aberto até às 4 horas?    DUMONT Está... (Entra Mathilde)    A SRA. LARCEY (indo a ela)  Pobre amiguinha... (Abraça-a) Queria abraçá-la ainda uma vez... Perdoe-me tudo o que lhe disse, a senhora não tem melhor amiga do que eu... Há de ter a prova, porque havemos de nos encontrar muitas vezes... Eu não sou daquelas que fogem ao infortúnio... Coragem! e até breve!    CRIADO (anunciando)  Está aí o Sr. Alvarez.    A SRA. LARCEY Adeus!... Não quero vê-lo. (Consigo) Três horas e meia... mas há tempo de sobra... (Sai por outra porta)    DUMONT
 
Pode entrar, o Sr. Alvarez.     
CENA III Dumont, Alvarez, Mathilde.
  MATHILDE (a Dumont)  Que devo fazer?    DUMONT Fique...    ALVAREZ Estou às tuas ordens, Henrique, que queres de mim?    DUMONT Dois homens na situação em que nos achamos em face um do outro só podem impedir que essa situação caia no ridículo ou na ignomínia, falando com franqueza.    ALVAREZ Que situação?    DUMONT Faltei alguma vez aos deveres de amizade?    ALVAREZ Nunca.    DUMONT E contudo tu traíste essa amizade... e pelo crime mais odioso... pelo mais covarde...    ALVAREZ Henrique!    DUMONT Há sete anos que o senhor é amante de minha mulher!    ALVAREZ Senhor!!    DUMONT Eis a sua carta.    ALVAREZ O senhor interceptou-a?    DUMONT Foi a minha senhora que me entregou.    ALVAREZ Ela!    DUMONT Ela, e de mão própria.    ALVAREZ Teve semelhante audácia?    DUMONT Confiança, deve dizer.    ALVAREZ Por que confiança?    DUMONT Porque não o ama; porque nunca o amou... e prefere a minha justiça, a minha cólera mesmo... ao seu amor... É verdade, senhora?    MATHILDE É verdade.    ALVAREZ É tudo quanto tem para dizer-me?    DUMONT Não. Há sete anos!... Compreende que, sem que eu saiba, dou ao mundo o indigno espetáculo de um marido ridículo pelo excesso de sua confiança, talvez mesmo o de um marido infame pela aparência de sua cumplicidade... e sobretudo depois do serviço que o senhor me fez, porque eu fui obsequiado pelo senhor.    ALVAREZ Mas...    DUMONT E quero ficá-lo sendo.    ALVAREZ A que quer chegar?    DUMONT Quero pedir-lhe um conselho.    ALVAREZ Um conselho, a mim? Não está falando seriamente?    DUMONT Como não falaria a sério, numa situação tão séria? Pensa que no espaço de duas horas não tive tempo de refletir? E a reflexão vai depressa em certos momentos. Sei o que faço, porque, graças a Deus, o meu espírito é são, e a minha alma forte... É uma boa coisa aprender a vida na escola de pais honestos... Interrogo-o, pois, — é esse o menor dos meus direitos! — e pergunto-lhe: se eu lhe tivesse prestado outrora um favor assinalado; se, depois de tê-lo prestado, tornasse-me seu sócio e amigo íntimo, se depois lhe roubasse a mulher, e se tivesse dela uma filha, que, sendo minha, passasse por sua, que faria o senhor? Responda!    MATHILDE (de joelhos) 
 
Meu Deus! Meu Deus!    ALVAREZ Há situações em que só se tomam conselhos de si próprio, e da própria dignidade.    DUMONT Responda, senhor!    ALVAREZ Não me compete a mim dizer-lhe o que deve fazer.    DUMONT Então posso interpretar o seu silêncio?    ALVAREZ Interprete-o.    DUMONT No meu lugar, tratar-me-ia de miserável, de infame, talvez mesmo me esbofeteasse... a fim de tornar inevitável o duelo que ordinariamente deve resultar de uma situação como esta, entre dois homens como nós.    ALVAREZ Talvez! 
 
(Mathilde ouve com terror)    DUMONT Eu não admitirei quatro testemunhas na confidência de um fato que só deve ser conhecido dos culpados e do juiz... E demais, se eu não o matasse onde estaria a reparação?... Se o senhor me matasse onde estaria a justiça.    ALVAREZ Então? 
 
DUMONT Interroguei a lei, e pedi-lhe alguns meios que ela me oferecia... Posso matá-los, a ela e ao senhor... Posso fazer prender minha mulher, e infamá-la publicamente. Posso separar-me dela... amigavelmente, como se diz... Mas seja o que for, desonra para ela, ridículo para mim, vergonha para a criança que não pode ser solidária do crime de vós ambos... A lei é cruel... podia prever melhor... Resta-me o direito de perdoar. Ai! bem o quisera, mas eu sou apenas um homem, e não tenho forças para isso, apesar do desejo que teria de mostrar-me superior a ambos. Por mais cega que fosse essa paixão, é impossível que não corassem nem sofressem com o mal que fizeram... mal incalculável, irreparável, — porque rouba-me o passado, o presente e o futuro... rouba-me o amor da mulher, as esperanças da filha, e até a amizade do senhor... Todo o meu coração se resumia nos três!    ALVAREZ (comovido)  Senhor! ... 
 
(Mathilde chora em silêncio e ajoelhada)    DUMONT E depois, há o mundo a quem eu tinha de dar uma explicação... A Sra. Larcey, que o representa aos meus olhos com todas as suas frivolidades, injustiças, motejos... e direitos, já sabe o que deve dizer, e o mundo dirá o que ela disser, porque eis aqui o que eu exijo de ambos. O Sr. Alvarez me reclamará bruscamente esta tarde, por via legal, os capitais que tem em minha casa... de maneira que me arruíne, para que lhes entregue no prazo que marcar.    ALVAREZ Pede-me uma infâmia.    DUMONT Está no caso de recusar alguma?   
 
ALVAREZ Mas...    DUMONT E acredita o senhor que eu possa guardar agora um ceitil da fortuna que adquiri com o seu dinheiro? Exijo que se submeta a esta condição... Quero ficar arruinado, e arruinado pelo senhor.    ALVAREZ E se eu recusar?    DUMONT Sabe que nunca faltei à minha palavra... e se recusarem fazer aquilo que eu tenho o direito de impor-lhes, dou-lhes a minha palavra de honra que ao sair daqui... dou um tiro na cabeça, e deixarei uma carta junto ao meu testamento, por onde se verá a verdadeira razão da minha morte...    ALVAREZ Desonra-me por outro modo, eis tudo...    DUMONT (dispondo-se)  Escolha.    ALVAREZ Obedeço.    DUMONT Está bem. As suas contas estão feitas, dentro de uma hora o meu caixa se entenderá com o senhor. Quanto à senhora... (Para um momento)    MATHILDE Meu Deus, que vai ele fazer?    DUMONT Quanto à senhora, irá viver com seus pais... depois de me reclamar o seu dote, escrevendo-me uma carta em que me há de dizer que não tem coragem de suportar a miséria ...    MATHILDE Mas é impossível... seria esse o meu perdão....    DUMONT Não quero perdoar... e entre os castigos que eu podia impor-lhes, escolhi o mais infamante. Condeno-os à ingratidão.    MATHILDE (timidamente)  E minha filha?    DUMONT (sorrindo)  Sua filha? (Ao criado que entra) Mande cá a menina. (Sai o criado) Como de nós três, sou eu o único que pode fazer dela uma mulher honesta, guardo-a comigo, e, como não tenho mais nada, trabalharei para educá-la agora, e para casá-la mais tarde. Na prosperidade o trabalho é ainda um dever... na desgraça, é um refúgio!    JOANA Aqui estou.    DUMONT Vem cá, Joana! Tua mãe é rica, teu padrinho é rico, eu estou pobre. Sabes o que é ser pobre?    JOANA Oh! sei, papai!    DUMONT Com qual de nós queres tu viver?    JOANA Com papai.   
 
DUMONT Tua mãe é obrigada a partir, queres ficar comigo ou ir com ela?    JOANA Quero ficar contigo!    DUMONT Vai abraçar tua mãe! (Joanna vai a sua mãe, depois de abraçá-la e beijála, faz um movimento para ir a Alvarez. Mathilde a retém e com o braço impele-a para Dumont. Alvarez sai desesperado) E agora, senhora, pode ir para casa de sua mãe! (Mathilde sai abatida. — A Joana, tomando-a nos braços) Gostas então de mim?    JOANA Oh! sim, papai... mas eu tornarei a ver mamãe?    DUMONT (olhando para a porta por onde saiu Mathilde)  Talvez!

 

 

                                    Émile de Girardin

                                  e

                                    Alexandre Dumas Filho

 

 

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