Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TOCADA PELAS SOMBRAS / Richelle Mead
TOCADA PELAS SOMBRAS / Richelle Mead

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Quase imperceptivelmente, os dedos dele escorregaram de leve pelas minhas costas e, no entanto, faziam com que ondas de arrepio percorressem meu corpo. Lentamente, bem lentamente, suas mãos se movimentavam pela minha pele, descendo pelo lado da barriga até finalmente descansarem nas curvas dos meus quadris. Logo abaixo da orelha senti os lábios dele pressionarem o meu pescoço, seguindo-se outro beijo, e mais outro, e outro ainda...
Seus lábios abandonaram meu pescoço e alcançaram o rosto, até finalmente encontrarem minha boca. Nos beijamos, então, envolvendo-nos num abraço apertado. O sangue ferveu dentro de mim, e eu me senti mais viva do que nunca. Eu o amava, amava tanto Christian que...

 


 


Christian?

Ah, não.

Uma parte lúcida de mim finalmente se deu conta do que estava acontecendo — e, caramba, eu senti muita raiva mesmo. O resto de mim, no entanto, ainda estava vivendo aquele encontro, sentindo tudo exatamente como se eu estivesse sendo beijada e tocada. Essa parte de mim não conseguia se desvencilhar daquilo. Eu me mesclara demais com Lissa, e para todos os efeitos, aquilo estava acontecendo comigo.

“Não”, disse a mim mesma com firmeza. “Não é real — não para você. Dê o fora daí.”

Mas como é que eu podia ouvir a voz da razão quando cada nervo do meu corpo estava ardendo em chamas?

“Você não é ela. Essa não é a sua cabeça. Dê o fora daí.”

Os lábios dele. Não havia mais nada no mundo naquele exato momento a não ser os lábios dele.

“Não é ele. Dê o fora.”

Os beijos eram os mesmos. Iguais aos que eu me lembrava de quando ele me beijara...

“Não, não é Dimitri. Dê o fora!”

O nome de Dimitri foi como um balde de água fria. Eu saí.

Senti-me subitamente sufocada e sentei com as costas retas na cama. Tentei afastar as cobertas chutando-as, mas acabei me enrolando mais ainda nelas. Meu coração batia forte no peito, e eu tentei respirar fundo algumas vezes para me concentrar e conseguir voltar para a minha própria realidade.

Os tempos eram mesmo outros. Muito tempo atrás, eram os pesadelos de Lissa que me faziam acordar. Agora era a vida sexual dela que me tirava o sono. Dizer que as duas coisas eram um pouco diferentes seria uma ironia. Eu aprendera a bloquear os encontros amorosos dela — pelo menos quando estava acordada. Dessa vez, sem querer, Lissa e Christian, foram mais espertos do que eu. Dormindo, as minhas defesas relaxavam, permitindo que emoções fortes passassem pelo laço psíquico que me conectava à minha melhor amiga. Isso não teria sido um problema se os dois estivessem na cama como pessoas normais — e quando digo “estar na cama”, quero dizer “dormindo”.

— Caramba — resmunguei, sentando com as pernas para fora da cama. Minha voz foi abafada por um bocejo. Será que Lissa e Christian não podiam manter distância um do outro ao menos até que todos estivessem acordados?

Pior do que ter sido acordada, no entanto, foi a sensação que tomou conta de mim em seguida. Claro, nada daquele encontro de fato acontecera comigo. Não era a minha pele que estava sendo tocada nem os meus lábios que estavam sendo beijados. E no entanto o meu corpo parecia sentir falta daquele toque. Já passara muito tempo desde a última vez em que eu estivera envolvida numa situação como aquela. Eu ansiava por tudo aquilo e sentia aquele calor no corpo. Era absurdo, mas, de repente, eu desejei desesperadamente que alguém me tocasse — mesmo que fosse só para me abraçar. Mas não o Christian, definitivamente. A lembrança daqueles lábios nos meus me voltaram à mente como um flash, a sensação do toque daquela boca, e de como a minha consciência sonolenta tivera certeza de que era Dimitri quem estava me beijando.

Levantei equilibrando-me sobre as pernas trêmulas, sentindo-me inquieta e... bem, triste. Triste e vazia. Pensando em dar uma caminhada para afugentar aquela sensação estranha, vesti um robe e chinelos e saí do quarto em direção ao banheiro que ficava no final do corredor. Joguei água fria no rosto e me olhei no espelho. O reflexo que ele me devolveu tinha cabelos emaranhados e olhos injetados. Eu parecia alguém que estava sem dormir há tempos, mas não queria voltar para a cama. Não queria me arriscar a cair no sono, não agora. Precisava de algo que me despertasse e me afastasse da mente o que eu acabara de ver.

Saí do banheiro e me encaminhei para a escada. Fui descendo com passos leves. O primeiro andar do dormitório ainda estava silencioso e sem movimento. Já era quase meio-dia — o meio da noite para os vampiros, já que viviam em horário noturno. Pela fresta de uma porta, eu espiei a antessala. Estava vazia, exceto por um Moroi sonolento que bocejava sentado à mesa da recepção. Ele folheava uma revista sem qualquer entusiasmo, já quase dormindo. Virou, então, a última página e bocejou novamente. Moveu-se na cadeira giratória, jogou a revista numa mesa atrás de si e estendeu a mão para apanhar outra coisa qualquer para ler.

Enquanto ele estava de costas, aproveitei para passar às pressas em direção às portas duplas que se abriam para fora do prédio. Rezando para que não rangessem, abri calmamente uma brecha, o suficiente para passar. Uma vez do lado de fora, fechei a porta com o maior cuidado possível. Nenhum barulho. No máximo, o que o cara ia sentir seria uma brisa. Saí para a luz do dia sentindo-me uma ninja.

O vento frio bateu no meu rosto, mas era exatamente disso que eu precisava. Os galhos das árvores desfolhadas balançavam, arranhando os muros de pedra do dormitório como unhas. O sol me espreitava por entre as nuvens cor de chumbo, lembrando que eu devia estar na cama, dormindo. Apertando os olhos desacostumados com a luz, abracei o robe contra o corpo e saí andando ao redor do edifício, em direção a um espaço entre o prédio e o ginásio que não ficava tão exposto ao vento e ao frio. A lama da calçada umedeceu o meu chinelo de pano, mas não me importei.

Era mesmo um típico dia de inverno rigoroso em Montana, mas era exatamente isso o que eu queria. O ar fresco e revigorante me ajudou a acordar e afastar os restos de lembrança daquela cena de amor. Além disso, ele me manteve firme na minha própria cabeça. Concentrar-me no frio que eu sentia era melhor do que continuar recordando a sensação de ter as mãos de Christian em minha pele. De pé, ali, com os olhos fixos num grupo de árvores sem de fato enxergá-las, me surpreendi com a faísca de raiva que senti de Lissa e Christian. Deve ser bom, pensei com amargura, fazer o que diabos você quisesse. Ela frequentemente comentava que gostaria de poder entrar na minha cabeça e viver os meus sentimentos do mesmo jeito que eu podia viver os dela. A verdade era que ela não fazia ideia da sorte que tinha. Ela não fazia ideia de como era desagradável ter os pensamentos de outra pessoa invadindo os seus, as experiências de outra pessoa se misturando às suas. Ela não sabia o que significava conviver com a vida amorosa perfeita de outra pessoa enquanto a sua própria era inexistente. Ela não entendia o que era sentir-se tomada por um amor tão forte que fazia doer o peito, um amor que você só podia sentir, nunca expressar. Manter o coração enterrado não era muito diferente de manter a raiva reprimida, isso eu aprendera. O sentimento corrói você por dentro até que tudo que você quer é gritar ou chutar alguma coisa.

Não, Lissa não compreendia nada disso. E nem precisava. Ela podia seguir adiante com suas histórias amorosas, sem qualquer preocupação com o que estava fazendo comigo.

Percebi então que a minha respiração estava novamente pesada, mas, desta vez, era de ódio. Minha repulsa em relação a Lissa e a Christian por conta do namoro tarde da noite fora superada. Havia sido substituída por raiva e inveja, sentimentos cujas raízes estavam em tudo o que eu não podia ter e que para ela fora tão fácil conseguir. Tentei ao máximo afastá-los; não queria ficar ressentida por causa da minha melhor amiga.

— Está sonâmbula? — perguntou uma voz atrás de mim.

Virei-me, surpresa. Dimitri estava ali, de pé, olhando para mim, ao mesmo tempo curioso e divertido. Seria mesmo de se supor que, enquanto eu estava ali, remoendo-me por dentro por causa dos problemas de uma vida amorosa tão injusta, exatamente a fonte desses problemas fosse aparecer na minha frente. Eu não o ouvira se aproximar. Minhas habilidades ninja já eram. E, sinceramente, o que me custaria ter apanhado uma escova e penteado o cabelo antes de sair? Passei apressadamente a mão pelos fios compridos, sabendo que agora era um pouco tarde para ajeitá-los devidamente. Devia estar dando a impressão de haver um bicho morto na minha cabeça.

— Eu estava testando a segurança do dormitório — respondi. — É uma droga.

Um esboço de sorriso brincou nos lábios dele. O frio estava realmente começando a invadir o meu corpo, e não pude deixar de notar como o seu longo casaco de couro parecia quente. Eu não me importaria nem um pouco de me enrolar nele. Como se estivesse lendo a minha mente, ele disse:

— Você deve estar congelando. Quer o meu casaco?

Fiz que não com a cabeça, decidida a não admitir que já não conseguia mais sentir os pés.

— Estou bem. O que você está fazendo aqui fora? Está testando a segurança também?

— Eu sou a segurança. Esse é o meu horário de trabalho. — Os guardiões se revezavam em turnos para patrulhar o campus enquanto todos dormiam. Os Strigoi — vampiros mortos-vivos que perseguiam os Moroi, vampiros vivos como Lissa — não se expunham à luz do sol, mas alunos desrespeitando as regras e saindo disfarçadamente dos seus dormitórios eram um problema tanto de dia quanto à noite.

— Então, bom trabalho — disse eu. — Fico feliz por ter ajudado a testar suas incríveis habilidades. É melhor eu ir agora.

— Rose... — A mão de Dimitri me pegou pelo braço e, apesar de todo o vento, gelo e lama de neve derretida, um raio de calor percorreu o meu corpo inteiro. Ele me soltou de repente como se também tivesse sentido. — O que é que você está fazendo aqui fora de verdade?

Ele usou aquele tom de “pare de brincadeiras e vamos falar sério”, e então eu dei a ele a resposta mais verdadeira possível.

— Tive um sonho ruim. Precisei tomar um pouco de ar.

— E então você simplesmente saiu. O fato de estar quebrando as regras nem lhe passou pela cabeça? Nem pensou em vestir um casaco?

— É. Você acabou de resumir exatamente o que aconteceu.

— Rose, Rose. — Dessa vez foi o tom de voz exasperado que ele usou. — Você nunca muda. Sempre fazendo as coisas intempestivamente, sem pensar.

— Não é verdade — protestei. — Eu mudei muito.

O ar divertido que eu percebera antes em seu semblante subitamente desapareceu; agora a expressão era de preocupação crescente. Ele me observou durante algum tempo. Às vezes eu sentia como se aqueles olhos pudessem enxergar minha alma.

— Tem razão. Você mudou.

Ele não parecia muito contente ao admitir isso. Estava provavelmente lembrando o que acontecera há quase três semanas, quando alguns amigos e eu fomos capturados por vampiros Strigoi. Foi por pura sorte que conseguimos escapar, e nem todos saíram ilesos. Mason, um amigo muito querido que era apaixonado por mim, foi assassinado, e uma parte de mim jamais me perdoaria por isso, mesmo eu tendo eliminado os seus algozes.

O episódio me fizera ver a vida por uma perspectiva mais sombria. Na verdade, todos aqui na Escola São Vladimir passaram a enxergar a vida assim, principalmente eu. As outras pessoas começaram a perceber as mudanças em mim. Eu não gostava, no entanto, de ver Dimitri preocupado, e tentei minimizar o peso do seu comentário com uma brincadeira.

— Bem, não se preocupe. Meu aniversário está chegando. Assim que eu fizer dezoito serei adulta, certo? Tenho certeza de que acordarei na manhã do meu aniversário toda responsável e tal.

Como eu esperava, ele abrandou levemente a expressão para um pequeno sorriso.

— Sim, tenho certeza de que isso vai acontecer. Quando é mesmo? Daqui a um mês, mais ou menos?

— Trinta e um dias — anunciei prontamente.

— Não que você esteja contando, claro.

Eu dei de ombros, e ele riu.

— Imagino que você tenha feito uma lista de presentes também. Dez páginas? Espaçamento simples? Organizada por prioridade? — Ele ainda sorria. Era um daqueles sorrisos relaxados, verdadeiramente divertidos, raros quando se tratava de Dimitri.

Eu ia começando a fazer outra gracinha quando a imagem de Lissa e Christian me queimou a mente de novo. Aquele sentimento de tristeza e de vazio no estômago voltou. Tudo o que eu pudesse querer — roupas novas, um iPod, o que quer que fosse — de repente pareceram trivialidades. O que significavam coisas materiais como essas quando comparadas à única que eu de fato queria intensamente? Meu Deus, eu tinha mudado mesmo.

— Não — disse eu em voz baixa. — Não tem lista nenhuma.

Ele inclinou a cabeça para me ver melhor, deixando cair no rosto uma mecha do cabelo comprido, que estava agora na altura dos ombros. O cabelo era castanho, como o meu, mas bem mais claro. O meu parecia preto, às vezes. Ele afastou os fios rebeldes para o lado, mas eles caíram de novo em seu rosto.

— Não acredito que você não queira nada. Vai ser um aniversário muito sem graça assim.

“Liberdade”, pensei. Esse era o único presente que eu queria. Liberdade para fazer as minhas próprias escolhas. Liberdade para amar quem eu quisesse.

— Não importa — resumi, em vez de externar tudo que pensara.

— O que você... — Ele se interrompeu. Ele compreendeu. Ele sempre compreendia. Era também por isso que havia uma ligação tão forte entre nós, apesar dos sete anos de diferença que nos separavam. Nós nos apaixonáramos no outono anterior, quando ele foi meu instrutor de combate. Quando as coisas começaram a esquentar entre nós, achamos que tínhamos mais com que nos preocupar além da diferença de idade. Nós dois seríamos os protetores de Lissa quando ela se graduasse, e não podíamos deixar nossos sentimentos nos distraírem quando a verdadeira prioridade era ela.

É claro que isso era mais simples na teoria do que na prática, porque eu achava que o que nós sentíamos um pelo outro nunca iria passar. Nós dois tínhamos momentos de fraqueza, momentos que nos levavam a beijos roubados e a dizer coisas que realmente não deveríamos dizer. Depois que sobrevivi aos Strigoi, Dimitri disse que me amava e praticamente admitiu que, por causa desse amor, ele não poderia ficar com mais ninguém. No entanto, ficou claro também que ainda não podíamos ficar juntos, e retomamos nossos velhos hábitos de nos manter distantes um do outro e fingir que o nosso relacionamento era estritamente profissional.

Numa tentativa não muito óbvia de mudar o assunto, ele disse:

— Você pode negar o quanto quiser, mas eu sei que está morrendo de frio. Vamos entrar. Eu levo você pela porta dos fundos.

Fiquei um pouco surpresa. Dimitri não era de evitar assuntos desconfortáveis. Na verdade, ele era mestre em me fazer conversar sobre questões com as quais eu não queria lidar. Mas falar sobre a nossa relação problemática e amaldiçoada? Aparentemente ele não estava com vontade de entrar nesse assunto hoje. Pois é. As coisas estavam definitivamente mudando.

— Eu acho que é você quem está com frio — provoquei, enquanto caminhávamos ladeando o dormitório onde moravam os aprendizes. — Você não devia ser mais resistente ao frio, já que veio da Sibéria?

— Acho que a Sibéria não é exatamente como você imagina.

— Eu a imagino como um território devastado e gelado — disse eu, sinceramente.

— Então não é mesmo como você imagina.

— Você sente saudades de lá? — perguntei, olhando para ele, que caminhava logo atrás de mim. Eu nunca pensara a esse respeito. Na minha cabeça, todo mundo devia gostar de viver nos Estados Unidos. Ou, pelo menos, ninguém poderia escolher viver na Sibéria.

— O tempo todo — disse ele, com a voz um pouco melancólica. — Às vezes eu gostaria que....

— Belikov!

Ouvimos uma voz carregada pelo vento vindo de trás de nós. Dimitri resmungou alguma coisa e depois me empurrou para a esquina que eu acabara de virar.

— Fique fora do campo de visão.

Eu me abaixei atrás de um dos arbustos de azevinhos que contornavam o prédio. Não estavam carregados de frutas, mas os grossos grupos de folhas afiadas e pontiagudas me arranharam a pele. Levando em conta a temperatura gélida e o possível desmascaramento da minha caminhada noturna, alguns arranhões eram o menor dos meus problemas naquele momento.

— Não está na hora do seu turno — ouvi Dimitri dizer, alguns instantes depois.

— Não, mas eu precisava falar com você. — Reconheci a voz. Era de Alberta, capitã dos guardiões da Escola. — Vai levar apenas alguns minutos. Vamos ter que mudar alguns dos turnos enquanto você estiver no julgamento.

— Já imaginava — disse ele. Havia um tom estranho, quase desconfortável, na voz dele. — Isso vai deixar todos os outros sob pressão. Péssimo momento.

— Bem, é verdade, mas a rainha faz os próprios horários. — Alberta parecia frustrada, e eu tentei entender o que estava acontecendo. — Celeste vai ficar com os seus turnos, e ela vai dividir com Emil as suas horas de treinamento.

Horas de treinamento? Dimitri não vai conduzir os treinamentos na semana que vem porque... ah. Era isso, me dei conta. A experiência de campo. Amanhã seria o dia do pontapé inicial para as seis semanas de exercícios práticos dos aprendizes. Não haveria aula, e teríamos que proteger os Moroi dia e noite enquanto os adultos nos testariam. Quando ela dizia “horas de treinamento” devia se referir aos momentos em que Dimitri estaria fora, participando dos exercícios. Mas que julgamento era esse que ela mencionou? Será que eram as provas finais pelas quais nós temos que passar no final do ano escolar?

— Eles disseram que não se importam com o trabalho extra — continuou Alberta —, mas eu queria saber se você não poderia compensar um pouco e pegar alguns dos turnos deles antes de partir.

— Claro — disse ele com a voz firme, segura, e usando poucas palavras.

— Obrigada. Acho que isso vai ser de grande ajuda. — Ela suspirou. — Eu gostaria de saber quanto tempo esse julgamento vai levar. Não quero ficar longe da Escola muito tempo. Pensávamos que o caso Dashkov seria fácil de encerrar, mas agora eu ouvi dizer que a rainha está temerosa de colocar na prisão um membro da alta realeza.

Fiquei dura como uma pedra. O calafrio que corria pela minha espinha agora não tinha mais nada a ver com o dia de inverno. Dashkov?

— Tenho certeza de que eles farão a coisa certa — disse Dimitri. Naquele momento percebi por que ele não estava falando muito. Não era para eu ter escutado aquela conversa.

— Assim espero. E espero que demore apenas alguns dias, como eles dizem. Escute, está muito frio aqui fora. Você se importa de vir comigo até o escritório por um instante para organizarmos os horários?

— Claro — disse ele —, deixe-me apenas checar uma coisa primeiro.

— Está bem. Vejo você depois.

Fez-se silêncio então, e eu supus que Alberta estivesse indo embora. Dimitri, é claro, virou a esquina e ficou de pé em frente ao arbusto. Eu me ergui do esconderijo. O olhar em seu rosto denunciava que ele já sabia o que eu diria.

— Rose...

— Dashkov?! — exclamei, tentando manter um tom de voz baixo para que Alberta não me ouvisse. — Estão falando de Victor Dashkov?

Ele nem se deu ao trabalho de negar.

— Sim. Victor Dashkov.

— E vocês estavam falando sobre... Quer dizer... — Eu estava tão chocada, tão abismada, que mal podia colocar os pensamentos em ordem. Aquilo era inacreditável. — Eu pensei que ele estivesse preso! Você está dizendo que ele ainda nem foi julgado?

Realmente. Aquilo era definitivamente inacreditável. Victor Dashkov. O sujeito que perseguira Lissa e que a torturara física e mentalmente para controlar os seus poderes. Cada Moroi tinha a habilidade de usar a magia em um de seus quatro elementos: terra, ar, água ou fogo. Lissa, no entanto, manejava um quinto elemento quase desconhecido, chamado espírito. Ela podia curar qualquer coisa — inclusive os mortos. Era por isso que eu tinha um laço psíquico com ela — eu fora “beijada pelas sombras”, segundo alguns diziam. Ela me trouxe de volta à vida depois de um acidente de carro que matou os pais e o irmão dela. Isso criou um laço entre nós que me permite sentir seus pensamentos e viver suas experiências.

Victor sabia, muito antes de nós, que ela tinha esse poder de cura, e planejou mantê-la prisioneira para usá-la como sua fonte particular de juventude. Ele também não hesitou em matar qualquer um que se pusesse em seu caminho, ou, como no meu caso e no de Dimitri, chegou a fazer uso dos métodos mais criativos para deter seus oponentes. Fiz muitos inimigos em dezessete anos de vida, mas tenho certeza absoluta de que não existe ninguém no mundo que eu odeie tanto quanto Victor Dashkov, pelo menos entre os vivos.

Dimitri tinha uma expressão no rosto que eu conhecia muito bem. Era a expressão que ele fazia quando achava que eu estava a ponto de socar alguém.

— Ele está preso, sim. Mas, não, ainda não foi julgado. Processos legais às vezes demoram muito tempo.

— Então vai haver um julgamento agora? E você vai? — disse eu, com os dentes trincados, tentando manter a calma. Imagino que eu ainda estivesse com cara de quem queria socar alguém.

— Semana que vem. Eles precisam de mim e de alguns outros guardiões para testemunhar sobre o que aconteceu com você e Lissa naquela noite. — A expressão no rosto dele mudou ao mencionar o que tinha se passado quatro meses antes, e novamente eu reconheci aquele olhar. Era um olhar ameaçador e protetor que ele adquiria quando aqueles de quem ele gostava estavam em perigo.

— Pode me chamar de louca por estar perguntando isso, mas Lissa e eu vamos com vocês? — Eu já adivinhara a resposta, e não gostara dela nem um pouco.

— Não.

— Não?

— Não.

Pus as mãos na cintura.

— Escute, não parece razoável, se você vai falar sobre o que nos aconteceu, que nós estejamos lá?

Dimitri, assumindo inteiramente o papel de instrutor severo, fez que não com a cabeça.

— A rainha e alguns outros guardiões acharam que seria melhor vocês não irem. Nós temos provas suficientes, e, além do mais, criminoso ou não, ele é, ou era, um dos mais poderosos membros da realeza no mundo. Aqueles que sabem sobre esse julgamento preferem manter a discrição.

— Então vocês acharam que, se nos levassem, nós contaríamos para todo mundo?! — exclamei. — Qual é, camarada. Você acha mesmo que faríamos isso? Tudo o que queremos é ver Victor preso. Para sempre. Para toda a eternidade. E, se existe uma chance de ele sair dessa livre, vocês têm que nos deixar ir.

Depois de ser capturado, Victor foi levado para a prisão, e eu pensei que a história acabara ali. Imaginei que eles o manteriam trancado até apodrecer. Nunca me ocorreu, embora devesse ter me ocorrido, que ele precisasse passar por um julgamento primeiro. Na ocasião, os crimes pareciam tão evidentes... Embora o governo Moroi fosse secreto e separado do governo humano, as coisas funcionavam de forma muito semelhante. Processos legais e tudo o mais.

— Não cabe a mim decidir — disse Dimitri.

— Mas você exerce influência. Poderia interceder por nós, principalmente se... — Um pouco da minha raiva diminuiu levemente e foi substituída por um medo súbito e assustador. Eu quase não consegui dizer as palavras seguintes. — Principalmente se houver alguma chance de ele sair livre. Existe? Existe mesmo uma chance de a rainha o deixar sair em liberdade?

— Eu não sei. Às vezes é difícil saber o que ela e alguns dos outros membros da alta realeza vão fazer. — Ele pareceu cansado de repente. Enfiou a mão no bolso e apanhou um molho de chaves. — Escute, sei que você está zangada, mas não podemos conversar sobre isso agora. Tenho que ir ao encontro de Alberta, e você precisa entrar. A chave quadrada abre a porta dos fundos. Você sabe qual é.

Eu sabia, sim.

— É verdade. Obrigada.

Eu estava de mau humor e detestava me sentir assim, principalmente quando ele estava me poupando de me meter em confusão — mas eu não podia evitar. Victor Dashkov era um criminoso, um vilão mesmo. Ele tinha fome de poder, era ganancioso e pisava em qualquer um para alcançar seus objetivos, sem pestanejar. Se ele ficasse livre novamente... bem, não dava nem para imaginar o que poderia acontecer com Lissa ou com qualquer outro Moroi. Fiquei enraivecida ao pensar que, embora houvesse uma forma de eu ajudar a mantê-lo na cadeia, ninguém me deixaria fazer nada.

Eu já tinha dado alguns passos quando Dimitri me chamou:

— Rose? — Olhei para trás. — Sinto muito. — Ele fez uma pausa, e a expressão de pesar em seu rosto se transformou numa expressão de cautela. — E eu acho bom você me devolver as chaves amanhã.

Eu me virei e segui meu caminho. Era injusto, provavelmente, mas alguma parte infantil em mim acreditava que Dimitri podia fazer qualquer coisa. Se ele realmente quisesse que Lissa e eu estivéssemos no julgamento, eu tinha certeza de que ele conseguiria isso.

Quando estava quase chegando à porta, percebi um movimento com a minha visão periférica. Meu humor piorou. Que ótimo. Dimitri me dera a chave para que eu entrasse desapercebida, e agora uma outra pessoa me pegaria em flagrante. Isso era típico da minha falta de sorte. Meio esperando que um professor me perguntasse o que eu estava fazendo, eu me virei e preparei uma desculpa.

Mas não era um professor.

— Não — disse eu, suavemente. Aquilo só podia ser algum truque. — Não.

Durante meio minuto me perguntei se eu estava mesmo acordada. Talvez estivesse ainda na cama, dormindo e sonhando.

Porque certamente, certamente, essa era a única explicação para o que eu estava vendo agora na minha frente, no gramado da Escola, espreitando à sombra de um velho carvalho retorcido.

Era o Mason.


Dois

Ou, bem, parecia com o Mason.

Ele — ou aquilo, ou sei lá o quê — estava difícil de enxergar. Tive que apertar e piscar os olhos várias vezes para colocar a imagem em foco. Era uma forma inconsistente, quase translúcida, e ficava aparecendo e desaparecendo do meu campo de visão.

Mas, sim, pelo que pude distinguir ela definitivamente se parecia com Mason. As feições estavam esmaecidas, de modo que sua pele clara parecia ainda mais branca do que antes. Os cabelos ruivos tinham uma cor desbotada, agora, eram de um laranja aguado. Mal pude ver suas sardas. Ele estava com as mesmas roupas de quando o vi pela última vez: calça jeans e um casaco de lã amarelo. A ponta de um suéter verde aparecia por debaixo da bainha do casaco. Todas essas cores também estavam esmaecidas. Ele parecia uma fotografia que, abandonada ao sol, foi perdendo o viço. Um brilho muito, muito suave parecia contornar o corpo dele.

A coisa que mais me impressionou — além do fato de ele supostamente estar morto — foi o olhar. Um olhar triste — muito triste mesmo. Meu coração se partiu quando olhei dentro de seus olhos. Todas as lembranças do que acontecera há apenas algumas semanas voltaram violentamente. Eu vi tudo aquilo outra vez: o corpo dele caindo, o olhar cruel nos rostos dos Strigoi... Um nó foi se formando na minha garganta. Eu fiquei lá, parada, em estado de choque, sem conseguir me mover.

Ele me observou também, sem nunca mudar a expressão do rosto. Triste. Soturna. Séria. Ele abriu a boca, como se fosse falar, e depois fechou. Um tempo longo e pesado ficou suspenso entre nós dois, e depois ele ergueu a mão e a estendeu na minha direção. Algo naquele gesto me puxou para fora do meu torpor. Não, aquilo não podia estar acontecendo. Eu não estava vendo aquilo. Mason estava morto. Eu o vira morrer. Eu abraçara o seu cadáver.

Seus dedos se moveram levemente, como se ele estivesse acenando, e eu entrei em pânico. Dei alguns passos para trás, distanciei-me dele e esperei para ver o que iria acontecer. Ele não me seguiu. Ficou simplesmente lá, com a mão suspensa no ar. Meu coração disparou, e eu corri. Quando cheguei perto da porta, parei e olhei para trás, esperando que a minha respiração se normalizasse. O lugar onde ele estivera parado se encontrava completamente vazio agora.

Consegui chegar ao quarto e bati a porta com as mãos trêmulas. Afundei-me na cama e repassei na memória o que acabara de acontecer.

Mas que diabos? Aquilo não podia ser real. De jeito nenhum. Era impossível. Mason estava morto, e todo mundo sabe que os mortos não voltam. Bem, até voltam; eu voltei... mas era uma situação diferente.

Evidentemente aquilo era fruto da minha imaginação. Era isso. Tinha que ser. Eu estava exausta e, na minha cabeça, ainda rodavam as imagens de Lissa e Christian, sem falar das notícias sobre Victor Dashkov. Provavelmente o frio congelara parte do meu cérebro também. Só podia ser isso. Quanto mais eu pensava no assunto, mais me convencia de que deviam existir mil explicações racionais para o que acabara de acontecer.

Não importava quantas vezes eu repetisse isso para mim mesma, não conseguia dormir. Deitei na cama com as cobertas até a altura do queixo tentando afugentar aquela imagem assustadora da minha mente. Não consegui. Tudo o que eu via eram aqueles olhos tristes que pareciam me dizer: Rose, por que você deixou isso acontecer comigo?

Fechei bem os olhos tentando não pensar nele. Desde o funeral de Mason eu vinha tentando seguir em frente com todas as minhas forças e agir como se eu fosse forte. Mas a verdade é que eu estava longe de conseguir superar a sua morte. Eu me torturava todos os dias me perguntando: e se as coisas tivessem acontecido de maneira diferente? E se eu tivesse sido mais rápida e mais forte durante a luta com os Strigoi? E se, para início de conversa, eu não tivesse contado a ele onde os Strigoi estavam? Enfim, e se eu tivesse simplesmente correspondido ao amor dele? Quaisquer dessas hipóteses poderiam tê-lo salvado, mas nenhuma delas de fato se concretizara. E a culpa era toda minha.

— Eu imaginei aquilo — sussurrei para mim mesma, no escuro do quarto. Eu só podia ter imaginado aquilo. Mason já me assombrava em sonhos. Eu não precisava ficar vendo a imagem dele quando estava acordada também. — Não era ele.

Não podia ser ele, porque só poderia ser ele se... bem, essa era uma hipótese sobre a qual eu não queria pensar. Porque, apesar de eu acreditar em vampiros, em magia e em poderes paranormais, eu com certeza não acreditava em fantasmas.


E parecia que eu também não acreditava no sono, pois de fato não consegui dormir muito naquela noite. Virei e revirei na cama, sem conseguir acalmar minha mente agitada. Acabei cochilando enfim, mas tive a impressão de que o despertador tocou cedo demais, porque devo ter dormido durante pouco mais de alguns minutos.

Para os humanos, a luz do dia costuma afugentar os pesadelos e o medo. Eu não dispunha de algo assim. Acordei quando o dia já escurecia. Mas só por estar fora do quarto, no meio de pessoas vivas, eu já obtinha o mesmo efeito, e, à medida que fui iniciando o dia com o desjejum e o treinamento da manhã, percebi que o que eu vira — ou pensara ter visto — estava aos poucos se esvaindo da minha memória.

O desconforto que aquele encontro me causava estava sendo substituído por outra sensação: excitação. Era hoje. O grande dia. O pontapé inicial para a nossa experiência de campo.

Durante as próximas seis semanas eu não teria nenhuma aula. Poderia passar os dias passeando com Lissa e, no máximo, teria que escrever um relatório diário de apenas meia página sobre a experiência de campo. Fácil. E, sim, é claro que eu estaria trabalhando como guarda-costas o tempo todo, mas não estava apreensiva com isso. Já era algo muito natural para mim. Lissa e eu tínhamos vivido entre os humanos durante dois anos, e eu a protegera durante todo esse tempo. Antes disso, quando ainda era uma caloura, eu vira os testes que os guardiões adultos planejavam para os aprendizes nessa fase. As provações eram capciosas, com certeza. O aprendiz precisava estar atento e nunca baixar a guarda — e devia estar preparado tanto para defender quanto para atacar, se necessário. Mas nada disso me preocupava. Lissa e eu passáramos os nossos primeiro e segundo anos longe da escola, e eu ficara para trás nas lições. Graças aos treinamentos extraclasse com Dimitri, eu rapidamente alcancei os meus colegas e era agora uma das melhores da turma.

— Ei, Rose.

Eddie Castile se aproximou enquanto eu me encaminhava para o ginásio onde seriam dadas as orientações para a experiência de campo. Por um instante, ao olhar para Eddie, senti um aperto no coração. De repente, foi como se eu estivesse novamente no pátio quadrangular com Mason, olhando para aqueles olhos cheios de pesar.

Eddie — junto com o namorado de Lissa, Christian, e uma Moroi chamada Mia — estava conosco quando fomos capturados pelos Strigoi. Eddie não morreu, obviamente, mas chegou bem perto disso. Os Strigoi que nos mantiveram em cativeiro o usaram como fonte de alimento, bebendo do seu sangue durante todo o tempo em que estivemos presos, numa tentativa de provocar os Moroi e inspirar medo nos dampiros. A tática funcionou; eu ficara aterrorizada. O pobre Eddie quedou inconsciente durante quase todo o nosso suplício, por causa da perda de sangue e da endorfina injetada pelas mordidas que recebeu. Ele era o melhor amigo de Mason e quase tão divertido e alegre quanto ele.

Mas, desde a nossa fuga, Eddie, assim como eu, estava diferente. Ele ainda sorria e ria com facilidade, mas havia uma tristeza nele agora, um olhar sombrio e sério que parecia estar sempre atento para o pior. Isso era compreensível, claro, uma vez que ele realmente vira o pior acontecer. Se me sentia culpada pela morte de Mason, também me considerava responsável pela mudança de Eddie e pelo que ele sofrera nas mãos dos Strigoi. Isso podia não ser justo comigo, mas eu não conseguia deixar de me sentir assim. Era como se agora devesse algo a ele, como se eu precisasse protegê-lo ou compensar de alguma maneira os traumas que sofrera.

E isso era meio engraçado porque Eddie também estava tentando me proteger. Ele não ficava me espreitando nem nada disso, mas notei que ele tomava conta de mim. Acho que depois do que aconteceu ele sentia que devia isso a Mason. Tomar conta da namorada dele. Achei melhor não contar a Eddie que eu nunca fui namorada de Mason, não no sentido real da palavra, assim como nunca repreendi Eddie por seu comportamento de irmão mais velho. Eu certamente podia tomar conta de mim mesma. Mas, sempre que eu o via advertir os outros garotos para ficarem longe de mim, dizendo a eles que eu ainda não estava pronta para namorar novamente, não via motivo nenhum para interferir. Era verdade mesmo. Eu não estava pronta para sair com ninguém.

Eddie me lançou um sorriso torto e fez uma cara de bom garoto.

— Está animada com a experiência?

— Claro que estou — respondi. Nossos colegas de turma ocupavam as arquibancadas de um dos lados do ginásio, e encontramos um lugar vazio perto do centro. — Vai ser como um período de férias. Lissa e eu, juntas durante seis semanas. — Por mais frustrante que o nosso laço fosse algumas vezes, ele, por outro lado, fazia com que eu fosse a guardiã ideal para ela. Eu sempre sabia onde ela estava e o que estava acontecendo com ela. Quando nós nos graduássemos e estivéssemos soltas no mundo, fora da escola, eu seria designada oficialmente sua guardiã.

Ele se virou, pensativo.

— É, você não precisa se preocupar muito. Você sabe a quem será designada quando se graduar. Nós, os outros aprendizes, não temos essa sorte.

— Está de olho em algum membro da realeza? — instiguei.

— Bem, isso não importa. Ultimamente a maioria dos guardiões acaba sendo designada para a realeza, mesmo...

Isso era verdade. Hoje em dia havia poucos dampiros — meio vampiros como eu —, e os membros da realeza geralmente tinham preferência na escolha dos guardiões. Houve um tempo em que mais Moroi, fossem ou não da realeza, poderiam conseguir guardiões, e aprendizes como nós competiam ferozmente para serem designados para alguém importante. Agora era quase certo que cada guardião fosse trabalhar para uma família real. Não havia muitos de nós para todos os Moroi, e as famílias menos privilegiadas acabavam tendo que se virar sozinhas.

— Mesmo assim — disse eu —, acho que a questão agora é saber para qual membro da realeza você vai ser designado, não é? Quer dizer, alguns são totalmente esnobes, mas muitos são legais. Se você pegar alguém bem rico e poderoso, vai morar na Corte Real ou vai viver viajando para países exóticos. — A segunda opção me agradava bastante, e eu sempre fantasiara que no futuro Lissa e eu viajaríamos mundo afora.

— É, sim — concordou Eddie. Ele acenou para alguns garotos que estavam na fila da frente. — Você não acreditaria se eu contasse como esses três caras vêm puxando o saco dos Ivashkov e dos Szelsky. Isso nem vai influenciar na designação de atividades hoje, é claro, mas dá para perceber que já estão tentando arrumar a vida deles para depois da graduação.

— Bem, a experiência de campo pode influenciar nisso, sim. A avaliação que recebermos nessa fase vai ficar registrada no nosso histórico.

Eddie concordou de novo, com um gesto de cabeça, e começou a dizer alguma coisa quando uma voz feminina e alta interrompeu nossa troca de sussurros. Nós dois levantamos o olhar. Enquanto estivéramos conversando, nossos instrutores haviam se reunido diante das arquibancadas e agora estavam de pé, olhando em nossa direção e formando uma fila incrivelmente perfeita. Dimitri estava entre eles, sombrio, imponente e irresistível. Alberta tentava chamar nossa atenção. Todos fizeram silêncio.

— Muito bem — começou ela. Alberta estava com uns cinquenta anos, firme e forte. Vê-la ali me fez lembrar da conversa entre ela e Dimitri na noite anterior, mas resolvi deixar esse assunto para depois. Victor Dashkov não ia estragar aquele momento. — Todos vocês sabem por que estão aqui. — Nós estávamos tão quietos, tão tensos e excitados que sua voz agora reverberava pelo ginásio. — Este é o dia mais importante da educação escolar de vocês antes dos exames finais. Hoje vocês saberão ao lado de qual Moroi foram alocados. Na semana passada vocês receberam uma apostila detalhada sobre as próximas seis semanas. Acredito que, a esta altura, todos já tenham lido esse material. — Eu lera, de fato. Eu provavelmente nunca havia lido nada com tanta concentração em toda a minha vida. — Só para recapitular, o guardião Alto irá destacar as principais regras deste exercício de campo.

Ela entregou uma prancheta ao guardião Stan Alto. Ele era o instrutor de quem eu menos gostava, mas, depois da morte de Mason, a tensão que havia entre nós se dissipara. Nós nos entendíamos melhor agora.

— Vamos lá — disse Stan, rispidamente. — Vocês farão plantão seis dias por semana. Isso é, na verdade, um presente para vocês. No mundo real, geralmente trabalharão todos os dias. Vocês estarão sempre acompanhando o seu Moroi: nas aulas, no dormitório, quando estiverem se alimentando... em todos os lugares. É dever de vocês descobrir a melhor maneira de se inserir na vida deles. Alguns Moroi interagem com os guardiões como amigos; outros preferem que vocês sejam como fantasmas invisíveis e sequer lhes dirijam a palavra. — Ele precisava mesmo usar a palavra fantasma? — Cada situação é única, e vocês terão que analisá-las e agir da melhor forma possível, no intuito de garantir a segurança deles. Os ataques podem acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar, e precisamos estar preparados quando acontecerem. Vocês devem estar sempre alerta. Lembrem-se: ainda que vocês saibam que somos nós atacando e não Strigoi de verdade, devem reagir como se suas vidas corressem um perigo terrível e imediato. Não fiquem com medo de nos machucar. Sei que alguns de vocês não encontrarão qualquer escrúpulo antes de aproveitar a oportunidade de se vingar de nós por problemas passados. — Alguns alunos deram risadinhas ao ouvir esse comentário. — Mas outros talvez se sintam compelidos a se refrear por medo de se meterem em encrencas. Não façam isso. Vocês estarão, sim, encrencados se pegarem leve. Não se preocupem. Nós aguentamos o tranco.

Ele virou a página em sua prancheta.

— Vocês estarão de plantão vinte e quatro horas por dia durante os ciclos de seis dias, mas podem dormir durante o dia, quando o seu Moroi estiver dormindo. Mas fiquem atentos, pois, embora os Strigoi raramente ataquem durante o dia, eles podem fazê-lo em ambientes fechados; portanto, vocês não estarão necessariamente “a salvo” nesse intervalo.

Stan seguiu descrevendo outros detalhes técnicos, e eu parei de prestar atenção ao que ele dizia. Eu já sabia aquilo tudo. Todos nós sabíamos. Olhei em volta e vi que não era só eu que estava impaciente. Ao meu redor, todos pareciam excitados e apreensivos. Apertavam as mãos. Arregalavam os olhos. Todos queríamos receber nossas designações. Queríamos que a experiência começasse logo.

Quando Stan terminou, ele entregou a prancheta a Alberta.

— Muito bem — disse ela. — Vou chamá-los, um a um, pelo nome e anunciar quais serão os seus pares. Quando eu disser os nomes, venham até aqui, e o guardião Chase entregará a vocês uma pasta contendo informações sobre o seu Moroi, sobre o passado dele, os seus horários etc.

Todos nos endireitamos enquanto ela folheava seus papéis. Os alunos sussurravam. Ao meu lado, Eddie tinha a respiração pesada.

— Ah, cara. Espero pegar alguém bom — murmurou ele. — Não quero viver infeliz pelas próximas seis semanas.

Apertei o braço dele para lhe dar segurança.

— Você vai — sussurrei de volta. — Pegar alguém legal, digo. Não vai ser infeliz.

— Ryan Aylesworth — anunciou Alberta com a voz clara. Eddie estremeceu, e eu imediatamente soube o motivo. Antes, Mason Ashford era sempre o primeiro nome de qualquer chamada. Isso nunca aconteceria de novo. — Você foi designado para Camille Conta.

— Droga — resmungou alguém atrás de nós, alguém que aparentemente torcia para ficar com Camille.

Ryan era um dos puxa-sacos sentados na fileira da frente, e ele abriu um largo sorriso enquanto caminhava para buscar sua pasta. Os Conta eram uma família real bastante promissora. Havia rumores de que um de seus membros seria um dos indicados pela rainha Moroi a herdar a coroa. Além disso, Camille era bonita. Ficar seguindo-a aonde quer que ela fosse não seria um trabalho árduo para nenhum garoto. Ryan, andando como um pavão, parecia muito satisfeito consigo mesmo.

— Dean Barnes — disse ela em seguida. — Você ficará com Jesse Zeklos.

— Ugh — Eddie e eu dissemos juntos. Se eu tivesse sido designada para Jesse, ele iria precisar de mais uma pessoa para protegê-lo. De mim.

Alberta continuou lendo os nomes, e eu percebi que Eddie estava suando.

— Por favor, por favor, só peço para que seja alguém legal — murmurava ele.

— Vai ser — disse eu. — Vai ser.

— Edison Castile — anunciou Alberta. Ele engoliu em seco. — Vasilisa Dragomir.

Eddie e eu congelamos por um segundo, e em seguida o dever fez com que ele se levantasse e se encaminhasse até os guardiões. Enquanto ele descia os degraus das arquibancadas, lançou sobre o ombro um olhar rápido e apavorado em minha direção. A expressão em seu rosto parecia dizer: Eu não sei! Eu não sei!

Então éramos dois. O mundo à minha volta foi lentamente ficando todo embaçado. Alberta continuava convocando os alunos, mas não ouvi nenhum outro nome. O que estava acontecendo? Era evidente que alguém cometera algum engano. Era eu quem estava designada para Lissa. Tinha que ser eu. Eu seria sua guardiã quando nós duas nos graduássemos. Aquilo não fazia sentido algum. Com o coração aos pulos, vi Eddie ir até o guardião Chase e apanhar a pasta e a estaca de treinamento. Ele olhou imediatamente para os papéis, e suspeitei de que ele estivesse confirmando o nome, certo de que haviam se confundido. A expressão em seu rosto quando levantou o olhar, no entanto, me fez ver que era mesmo o nome de Lissa que estava naquela pasta.

Respirei fundo. Tudo bem. Nada de pânico ainda. Alguém cometera um erro de digitação, um erro que podia ser corrigido. Na verdade eles teriam que corrigir logo. Quando chegasse a minha vez e eles lessem o nome de Lissa novamente, eles se dariam conta de que dois guardiões foram designados para um mesmo Moroi. Eles consertariam o erro e indicariam outra pessoa para Eddie. Afinal, havia muitos Moroi a serem protegidos. Havia mais Moroi do que dampiros na escola.

— Rosemarie Hathaway. — Fiquei tensa. — Christian Ozera.

Eu fiquei olhando para Alberta, sem conseguir me mover nem responder. Não. Ela não acabara de dizer o que eu ouvira. Algumas pessoas, percebendo que eu continuava parada, olharam para mim. Mas eu estava atônita. Aquilo não estava acontecendo. A minha alucinação com Mason na noite passada parecia mais crível do que aquilo. Alguns instantes depois, Alberta também se deu conta de que eu não esboçara nenhum movimento em direção a eles. Aborrecida, levantou o olhar da prancheta e passou os olhos por toda a arquibancada, procurando por mim.

— Rose Hathaway?

Alguém me deu uma cotovelada, como se eu pudesse não ter reconhecido o meu próprio nome. Engoli em seco, levantei e desci os degraus, num gesto mecânico. Havia algum erro. Tinha que haver algum erro. Segui em direção ao guardião Chase, sentindo-me como uma marionete que alguém estivesse manipulando. Ele me entregou a pasta e uma estaca de treinamento própria para “matar” os guardiões adultos, e saí para dar lugar ao aluno seguinte.

Incrédula, li as palavras escritas na pasta três vezes. Christian Ozera. Folheei a papelada e vi toda a vida dele como um livro aberto na minha frente. Uma foto atual. O horário escolar. A árvore genealógica. Sua biografia. Havia até detalhes sobre a trágica história de seus pais, sobre eles terem escolhido se transformar em Strigoi e terem assassinado muitas pessoas antes de finalmente serem caçados e mortos.

Nossas tarefas agora eram ler os dossiês, preparar a mochila e depois encontrar o nosso Moroi no almoço. Mais nomes foram sendo chamados, e muitos dos meus colegas ficaram pelo ginásio, conversando com os amigos e mostrando as pastas. Eu me aproximei de um grupo e esperei discretamente por uma oportunidade para falar com Alberta e Dimitri. O fato de eu não ter ido na mesma hora falar com eles para pedir explicações era um sinal de que eu desenvolvera recentemente a capacidade de ser paciente. Acreditem, era exatamente o que eu queria ter feito. Apesar disso, aguardei que acabassem toda a lista, o que me pareceu interminável. Francamente, por que tanto tempo só para ler uma série de nomes?

Quando o último aprendiz foi designado para o seu Moroi, Stan chamou a nossa atenção para que nos concentrássemos no cumprimento da etapa seguinte e tentou arrebanhar os meus colegas de turma para fora dali. Atravessei a multidão e me aproximei de Dimitri e de Alberta, que, graças a Deus, estavam um ao lado do outro. Eles conversavam sobre algum assunto administrativo e não perceberam de imediato a minha presença.

Quando olharam para mim, ergui a pasta e apontei para ela.

— O que é isso?

Alberta pareceu surpresa e confusa. Algo na expressão de Dimitri revelou para mim que ele já previa isso.

— É a sua designação, senhorita Hathaway — disse Alberta.

— Não — disse eu, com os dentes trincados. — Não é, não. Essa é a designação de outra pessoa.

— Você não tem o direito de escolher o seu Moroi para a experiência de campo — me disse ela com firmeza. — Assim como também não poderá quando estiver no mundo real. Você não pode escolher quem vai proteger com base em caprichos ou vontades; não poderá aqui, e certamente também não depois da sua graduação.

— Mas depois da graduação eu vou ser a guardiã de Lissa! — exclamei. — Todo mundo sabe disso. Eu devia ficar com ela agora nessa coisa.

— Eu sei que já está certo que vocês ficarão juntas depois da graduação, mas não me recordo de nenhuma regra obrigatória dizendo que você deve ficar com ela ou com qualquer outra pessoa aqui na escola. Aceite, portanto, quem lhe foi designado.

— Christian? — Joguei a pasta no chão. — Você perdeu o juízo se pensa que vou protegê-lo.

— Rose! — me repreendeu Dimitri, finalmente entrando na conversa. Seu tom de voz foi tão duro e afiado que eu estremeci e esqueci, por alguns segundos, o que eu estava falando. — Você está saindo da linha. Não pode falar assim com os seus instrutores.

Eu odiava ser criticada por qualquer pessoa. Mas odiava principalmente ser criticada por ele. E odiava especialmente ser criticada por ele quando ele estava certo. Mas não consegui me conter. Estava zangada demais, e a falta de sono começava a me perturbar. Emocionalmente, eu estava esgotada e no limite, e de repente qualquer coisinha parecia difícil de suportar. Coisas grandes como essa, então, se tornavam impossíveis.

— Desculpe — disse eu, com muita relutância. — Mas isso é burrice. Uma burrice quase tão grande quanto não nos levar para o julgamento de Victor Dashkov.

Alberta pestanejou, surpresa:

— Como você sabe...? Bem, não importa. Vamos discutir isso depois. Por enquanto, esta é a sua designação, e você precisa cumpri-la.

Eddie, ao meu lado, falou de repente com a voz muito apreensiva. Eu o perdera de vista um pouco antes.

— Escutem... eu não me importo... nós podemos trocar....

Alberta voltou o olhar gélido para ele.

— Não, vocês não vão trocar. Vasilisa Dragomir está designada para você. — Ela me olhou novamente. — E Christian Ozera está designado para você. Acabou a discussão.

— Isso é burrice! — repeti. — Por que é que eu vou perder o meu tempo com Christian? É com Lissa que eu vou ficar depois da graduação. Eu acho que, se vocês querem que eu faça um bom trabalho, vocês deveriam me deixar treinar com ela.

— Você vai fazer um bom trabalho com ela — disse Dimitri —, porque você a conhece. E vocês têm um laço. Mas em algum lugar, em algum dia, pode ser que você fique com um outro Moroi. Você precisa aprender como proteger alguém com quem você ainda não teve nenhuma experiência.

— Eu tenho experiência com Christian — resmunguei. — Esse é o problema. Eu odeio ele. — Tudo bem, esse foi um enorme exagero. Christian me irritava, é verdade, mas eu não o odiava de verdade. Como já disse, termos trabalhado juntos contra os Strigoi mudou muitas coisas. Mais uma vez, senti que a minha noite maldormida e a facilidade para me irritar com tudo estavam atingindo uma magnitude absurda.

— Melhor ainda — disse Alberta. — Nem todo mundo que você proteger vai ser seu amigo. Nem todo mundo que você proteger vai ser alguém de quem você goste. Você precisa aprender isso.

— Eu preciso é aprender a lutar contra um Strigoi. Eu aprendi isso em aula. — Eu olhei para eles com um olhar penetrante, pronta para dar a minha cartada final. — E eu fiz isso na vida real.

— Esse trabalho exige mais do que habilidades técnicas, senhorita Hathaway. Há todo um aspecto pessoal, um aspecto comportamental, se você preferir, que vocês não estudam em sala de aula. Nós os ensinamos a lidar com os Strigoi. Mas precisam aprender sozinhos a lidar com os Moroi. E você particularmente precisa aprender a lidar com alguém que não seja o seu melhor amigo há anos.

— Também precisa aprender como é trabalhar com alguém que você não consegue sentir instantaneamente que está em perigo — acrescentou Dimitri.

— Certo — concordou Alberta. — Essa é uma desvantagem para você. Se você quiser ser uma boa guardiã, se quiser ser uma excelente guardiã, precisa fazer o que estamos lhe dizendo.

Cheguei a abrir a boca para responder, para argumentar que estar com alguém de quem eu era tão íntima me treinaria melhor e mais rápido e faria de mim uma guardiã mais eficiente para qualquer outro Moroi. Mas Dimitri me cortou.

— Trabalhar com outro Moroi também vai ajudar a manter Lissa viva — disse ele.

Isso fez com que eu me calasse. Era realmente a única coisa que me faria ficar quieta, e, maldito Dimitri, ele sabia disso.

— Como assim? — perguntei.

— Lissa também tem uma desvantagem: você. Se ela nunca tiver a chance de aprender como é ser protegida por alguém que não tem um laço psíquico com ela, pode correr um risco maior se for atacada. Proteger alguém é uma via de mão dupla. A tarefa que nós escolhemos para a sua experiência de campo é um desafio tanto para você quanto para ela.

Fiquei em silêncio enquanto processava as palavras dele em minha mente. Elas quase faziam sentido.

— E tem mais — acrescentou Alberta. — Esta é a única designação que você poderá pegar. Se não a aceitar, estará optando por não participar da experiência de campo.

Optando por não participar? Será que ela é maluca? Aquilo não era como uma aula que se podia decidir faltar um dia. Se eu não passasse pela experiência de campo, não me graduaria. Minha vontade era explodir reclamando de tamanha injustiça, mas Dimitri me impediu sem precisar dizer uma palavra sequer. A calma constante que seus olhos negros transmitiam me segurou, me encorajou a aceitar aquilo tudo com elegância, ou com o máximo que eu pude demonstrar naquele momento.

Apanhei a pasta do chão com relutância.

— Está bem — declarei em tom gélido. — Contem comigo. Mas quero que fique registrado que estou fazendo isso contra a minha vontade.

— Creio que nós já compreendemos isso, senhorita Hathaway — observou Alberta secamente.

— Não importa. Eu ainda acho que é uma péssima ideia, e vocês vão acabar concordando comigo.

Virei-me e atravessei o ginásio furiosa antes que algum deles pudesse responder. Ao fazer isso, me dei conta do quanto estava sendo uma menina mimada e irritante. No entanto, se eles houvessem acabado de ter uma participação involuntária na vida sexual da melhor amiga deles, se tivessem visto um fantasma e mal tivessem conseguido dormir, eles também teriam se comportado como meninos mimados. E além do mais, eu estava prestes a passar seis semanas com Christian Ozera. Ele era sarcástico, difícil e fazia de tudo uma piada.

Na verdade, ele era muito parecido comigo.

Seriam seis longas semanas.


Três

— Por que tão desanimada, dampirinha? — Eu estava atravessando o pátio quadrangular em direção ao prédio comunitário, quando detectei o cheiro de cigarro de cravo. Suspirei.

— Adrian, você é a última pessoa que eu queria ver agora.

Adrian Ivashkov se apressou para me acompanhar, soprando uma nuvem de fumaça que, é claro, veio parar direto na minha cara. Abanei a fumaça com a mão e fiz uma cena tossindo exageradamente. Adrian era um Moroi da realeza que nós “adquirimos” em nossa recente viagem para uma estação de esqui. Ele era alguns anos mais velho do que eu e voltara para a Escola São Vladimir para trabalhar com Lissa em suas pesquisas sobre o espírito. Até agora, ele era o único usuário desse elemento que nós conhecíamos. Ele era arrogante e mimado e passava a maior parte do tempo satisfazendo os próprios desejos com cigarros, álcool e mulheres. Ele também tinha atração por mim, ou pelo menos queria me levar para cama.

— É o que parece — disse ele. — Eu quase não vi você desde que voltamos. Se eu não a conhecesse bem, diria que estava me evitando.

— Eu estou evitando você.

Ele deu um suspiro alto e passou a mão pelos sedosos cabelos castanhos, que sempre mantinha cuidadosamente desarrumados.

— Escute, Rose. Você não precisa se fazer de difícil. Você já me conquistou.

Adrian sabia perfeitamente que eu não estava bancando a difícil, mas ele tinha sempre um prazer especial em me provocar.

— Eu realmente não estou com paciência para o seu “charme” hoje.

— O que aconteceu, então? Você está com cara de quem quer socar a primeira pessoa que aparecer.

— Por que você continua por perto, então? Não está com medo de acabar apanhando?

— Ah, você nunca me machucaria. Meu rosto é tão bonitinho...

— Não a ponto de compensar a fumaça nojenta e cancerígena que você fica soprando na minha cara. Como consegue fazer isso? Não é permitido fumar no campus. Abby Badica pegou duas semanas de detenção quando a flagraram fumando.

— Estou acima das regras, Rose. Não sou nem aluno, nem empregado; sou meramente um espírito livre vagando por essa bela escola conforme o meu bel-prazer.

— Talvez você devesse sair vagando agora mesmo.

— Se quer se livrar de mim, conte o que está acontecendo.

Não tinha como evitar. Além do mais, cedo ou tarde ele acabaria sabendo. Todos acabariam sabendo.

— Eu fui designada para Christian na minha experiência de campo.

Adrian fez uma pausa e em seguida explodiu numa gargalhada.

— Uau. Agora estou entendendo. Na verdade, diante de uma tarefa dessas, você parece estar incrivelmente calma.

— Eu deveria ficar com Lissa — resmunguei. — Não acredito que fizeram isso comigo.

— Por que fizeram isso? Há alguma chance de você não ficar com ela depois da graduação?

— Não. Eles todos parecem simplesmente concordar que isso agora vai fazer com que eu tenha um treinamento melhor. Dimitri e eu seremos os verdadeiros guardiões dela depois.

Adrian me lançou um olhar malicioso.

— Ah, tenho certeza de que isso vai ser um sofrimento e tanto para você.

O fato de Lissa nunca ter, nem de longe, suspeitado dos meus sentimentos por Dimitri e de Adrian ter percebido tudo de imediato era a coisa mais estranha do Universo.

— Como já disse, os seus comentários irônicos não estão sendo muito apreciados hoje.

Ele pareceu não concordar. Eu tinha uma leve suspeita de que ele já andara bebendo, e ainda não estava nem na hora do almoço.

— Qual é o problema? Christian vai passar o tempo inteiro com Lissa mesmo.

Adrian tinha razão. Mas eu não precisava admitir isso. Então, devido àquela dificuldade de concentração que ele tinha, mudou de repente de assunto quando nos aproximamos do prédio.

— Eu já falei com você sobre a sua aura? — perguntou ele subitamente. Havia um tom estranho em sua voz. Hesitante. Curioso. Isso era muito pouco característico dele. Tudo o que ele dizia era quase sempre em tom de deboche.

— Não sei. Falou, sim, uma vez. Você disse que ela era negra ou algo do gênero. Por quê? — Auras são os campos de luz que circundam cada um de nós. Alega-se que a cor e a luminosidade da aura estão relacionadas com a personalidade e a energia da pessoa. Apenas usuários do espírito eram capazes de vê-las. Adrian via a aura das pessoas desde muito jovem, mas Lissa ainda estava aprendendo a fazer isso.

— É difícil explicar. Talvez não seja nada. — Ele parou perto da porta e deu uma longa tragada no cigarro. Desviou o rosto para soprar uma nuvem de fumaça para longe de mim, mas o vento a trouxe de volta. — Auras são estranhas. Elas vão e vêm e mudam de cor e de intensidade. Algumas são vívidas, outras são pálidas. De vez em quando a de alguma pessoa se fixa e queima com uma cor tão pura que você pode... — Ele reclinou a cabeça para trás, olhando para o céu. Eu reconheci os sinais do estranho estado de “desequilíbrio” em que ele às vezes caía. — Você pode compreender imediatamente o que ela significa. É como olhar dentro da alma da pessoa.

Eu sorri.

— Mas a minha você não conseguiu compreender, não é? E nem o que todas essas cores significam.

Ele deu de ombros.

— Ainda estou destrinchando a sua aura. É assim: você conversa com uma determinada quantidade de pessoas, percebe mais ou menos como elas são e aí começa a ver pessoas de tipos parecidos, cujas auras possuem as mesmas cores... Depois de um tempo, as cores começam a ter significados.

— Como é que a minha está agora?

Ele olhou para mim.

— Bom, não estou conseguindo vê-la direito hoje.

— Eu sabia. Você andou bebendo. — Algumas substâncias, como álcool ou certos medicamentos, amorteciam o potencial do espírito.

— Só o suficiente para me aquecer do frio. Mas posso adivinhar como está a sua aura. Ela costuma ser como as outras, com aquelas cores se mesclando em movimento. Só que a sua é contornada por uma escuridão. Como se sempre houvesse uma sombra seguindo você.

Algo na voz dele me fez estremecer. Embora eu já tivesse muitas vezes ouvido ele e Lissa conversarem sobre as auras, nunca imaginei que devesse me preocupar muito com elas. Para mim, elas eram mais como algum tipo de truque teatral. Uma coisa legal com pouca substância.

— Isso é tão animador... — disse eu. — Você alguma vez já pensou em dar palestras de motivação?

O olhar vago dele desapareceu, e ele retomou o jeito gaiato.

— Não se preocupe, dampirinha. Você pode estar rodeada de nuvens, mas vai ser sempre o sol para mim. — Revirei os olhos. Ele deixou cair o cigarro na calçada e o apagou com o pé. — Tenho que ir. Vejo você mais tarde. — Ele me fez uma elegante reverência e foi andando na direção do alojamento dos visitantes.

— Você acabou de sujar o chão! — gritei.

— Acima das regras, Rose — gritou ele de volta. — Estou acima das regras.

Balançando a cabeça em sinal de reprovação, apanhei a guimba já fria e a joguei numa lata de lixo que ficava do lado de fora do prédio. Quando entrei, o ar aquecido foi uma mudança muito bem-vinda enquanto eu tirava a lama das botas. No refeitório, encontrei o almoço já sendo retirado do bufê. Aqui os dampiros sentavam-se lado a lado com os Moroi, o que permitia um estudo de contrastes. Nós, dampiros, que tínhamos sangue meio humano, éramos maiores — embora não fôssemos mais altos — e tínhamos uma estrutura física mais sólida. As aprendizas tinham um corpo mais cheio de curvas do que a silhueta longilínea e magra das garotas Moroi; os aprendizes tinham músculos muito mais definidos do que os vampiros da sua idade. A pele dos Moroi era clara e delicada como porcelana, enquanto a nossa era bronzeada, porque passávamos mais tempo a céu aberto, sob o sol.

Lissa estava sentada sozinha numa mesa, vestindo um suéter branco que a deixava com um ar sereno e angelical. O cabelo louro bem claro caía em cascata sobre seus ombros. Ela levantou os olhos quando me aproximei, e um sentimento acolhedor me invadiu através do nosso laço. Ela abriu um sorriso largo.

— Ah, olhe só para você. Então é verdade, não é? Você foi mesmo designada para Christian. — Lancei-lhe um olhar feroz. — Será que você não podia ficar um pouquinho menos infeliz? — Ela me lançou um olhar de reprovação, mas que ao mesmo tempo revelava que ela estava se divertindo com aquilo, enquanto lambia a última colherada de iogurte de morango. —Afinal de contas, ele é meu namorado. Estou sempre com ele. Não é tão ruim assim.

— Você tem a paciência de uma santa — resmunguei, jogando-me a uma cadeira. — E além do mais, você não está com ele o tempo todo.

— E nem você. Serão apenas seis dias por semana.

— Que fossem dez dias por semana; daria na mesma.

Ela franziu o cenho.

— Isso não faz nenhum sentido.

Fiz um gesto de descaso pelo meu próprio comentário idiota e olhei sem interesse ao redor do refeitório. Estavam todos comentando excitadamente as novidades sobre a experiência de campo, que começaria assim que o almoço terminasse. A melhor amiga de Camille fora designada para o melhor amigo de Ryan, e os quatro comemoravam juntos alegremente, parecendo estarem prestes a embarcar num encontro de casais que duraria seis semanas. Pelo menos alguém se divertiria com aquilo. Suspirei. Christian, que seria meu protegido num futuro muito breve, estava na sala dos fornecedores — humanos que doavam sangue para os Moroi por vontade própria.

Através do nosso laço, senti que Lissa desejava me contar algo. Estava se segurando porque se preocupava com o meu mau humor e queria ter certeza de que eu poderia lhe dar apoio. Eu sorri.

— Pare de se preocupar comigo. O que foi?

Ela sorriu de volta. Seus lábios pintados de batom cor-de-rosa cobriam seus caninos.

— Eu consegui permissão.

— Permissão para...? — A resposta revirou em sua mente antes que ela pudesse verbalizá-la. — O quê?! — exclamei. — Você vai parar com os remédios?

O espírito era um poder incrível, um poder cujas habilidades nós estávamos apenas começando a descobrir. Mas trazia, no entanto, um efeito colateral muito desagradável: podia levar à depressão e à insanidade. Uma das razões pelas quais Adrian se embriagava tanto — além da sua natureza boêmia — era o de amortecer esses efeitos colaterais. Lissa tinha uma maneira bem mais saudável de fazer isso. Ela tomava antidepressivos, e eles anulavam todo o seu poder. Lissa odiava a perspectiva de não utilizar o espírito novamente, mas aquele parecia um preço justo a pagar para não enlouquecer. Bom, ao menos eu achava que sim. Ela aparentemente discordava, já que estava pensando mesmo em fazer essa experiência insana. Eu sabia que ela queria muito trabalhar a sua magia novamente, mas não acreditava que ela fosse mesmo levar a ideia adiante — ou que alguém fosse deixá-la fazer isso.

— Terei que fazer avaliações diárias com a professora Carmack e ainda me consultar regularmente com um terapeuta. — Lissa fez uma careta de desagrado para essa última parte, mas, de modo geral, seus sentimentos eram bastante otimistas. — Mal posso esperar para ver o que sou capaz de fazer com Adrian.

— Adrian é má influência.

— Ele não está me obrigando a fazer isso, Rose. Fui eu que quis. — Como eu não disse nada, ela, então, acariciou de leve o meu braço. — Olhe, preste atenção. Não se preocupe. Eu tenho me sentido muito melhor, e muitas pessoas estarão cuidando de mim.

— Todos, menos eu — disse a ela, melancólica. Do outro lado da sala, Christian entrou por uma porta dupla e se aproximou de nós. O relógio marcava cinco minutos para o fim do horário de almoço. — Ai, droga. Está quase chegando a hora.

Christian apanhou uma cadeira da nossa mesa, virou-a de costas e sentou com o queixo apoiado no encosto de ripas. Ele afastou os cabelos negros dos olhos azuis e nos lançou um sorriso presunçoso. Senti o coração de Lissa ficar mais leve com a presença dele.

— Mal posso esperar para esse show na estrada começar — disse ele. — Eu e você vamos nos divertir tanto, Rose... Escolhendo cortinas, testando penteados nos cabelos um do outro, contando histórias de fantasmas...

A referência a “histórias de fantasmas” me soou um pouco mais próxima da realidade do que eu gostaria. Não que escolher cortinas ou escovar o cabelo de Christian fossem atividades muito mais atraentes.

Balancei a cabeça num gesto exasperado e me levantei.

— Vou deixar vocês sozinhos para curtirem os últimos momentos de privacidade. — Eles riram.

Fui até a fila do almoço na esperança de que tivessem sobrado algumas rosquinhas do café da manhã. De longe, pude ver croissants, quiches e peras cozidas. Parecia que era dia de comida chique no refeitório. Será que desejar umas rosquinhas bem fritas era pedir muito? Eddie surgiu na minha frente. Seu rosto assumiu uma expressão de desculpas assim que ele me viu.

— Rose, eu sinto muito mesmo...

Eu ergui a mão para impedi-lo de continuar falando.

— Não se preocupe. Não foi culpa sua. Apenas me prometa que você vai fazer um bom trabalho como guardião dela.

Era um receio bobo, já que ela não seria exposta a nenhum perigo real, mas eu não conseguia deixar de me preocupar com ela, especialmente agora que eu sabia desse novo experimento com a medicação dela.

Eddie ficou sério, aparentemente nem se dando conta de como era tolo o meu pedido. Ele era uma das poucas pessoas que conheciam as habilidades de Lissa, bem como seus efeitos colaterais, e foi provavelmente por isso que o escolheram para protegê-la.

— Não vou deixar que nada aconteça com ela. Eu juro.

Não consegui evitar que um sorriso se abrisse em meus lábios, apesar do meu humor soturno. A experiência que ele vivera com os Strigoi fez com que levasse tudo isso muito mais a sério do que qualquer outro aprendiz. Com exceção de mim, ele era provavelmente a melhor escolha para protegê-la.

— Rose, é verdade que você socou a guardiã Petrov?

Virei e dei de cara com dois Moroi, Jesse Zeklos e Ralf Sarcozy. Eles tinham acabado de entrar na fila atrás de Eddie e de mim e pareciam mais satisfeitos consigo mesmos e ainda mais irritantes do que o habitual. Jesse fazia o tipo moreno bonito e esperto. Ralf era seu parceiro, ligeiramente menos atraente e ligeiramente menos inteligente. Eles deviam bem ser as duas pessoas que eu mais odiava em toda a escola, principalmente por conta de uns boatos sórdidos que espalharam sobre eu ter feito coisas bastante explícitas com eles. Foram as intimidações de Mason que os forçaram a contar a verdade, e acredito que eles nunca me perdoaram por isso.

— Socar Alberta? Dificilmente isso aconteceria. — Fui me virando, mas Ralf continuou falando.

— Ouvimos dizer que você teve um ataque de nervos no ginásio quando soube com quem ia ficar.

— “Ataque de nervos”? Quantos anos você tem? Sessenta? Tudo o que eu fiz foi... — Me interrompi e escolhi cuidadosamente as palavras: — ...registrar a minha opinião.

— Bem — disse Jesse —, imagino que, se alguém vai ter que ficar de olho nesses aspirantes a Strigoi, é melhor mesmo que seja você. Você é a aprendiza mais poderosa que temos por aqui.

O tom invejoso fez parecer que ele estava me fazendo um elogio. Mas não me deixei enganar nem por um segundo. Antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa, eu já estava bem na frente dele, não restando quase qualquer espaço entre os nossos corpos. Considerei um verdadeiro sinal de disciplina o fato de eu não ter colocado as mãos em seu pescoço para estrangulá-lo. Os olhos dele se arregalaram de susto.

— Christian não tem nada a ver com nenhum Strigoi — disse eu, num tom de voz baixo.

— Os pais dele...

— São os pais dele. E ele é o Christian. Não misture as coisas. — Jesse já vira o lado mais negro da minha raiva antes. Ele evidentemente estava se lembrando disso, e o medo entrou em atrito com a vontade de falar mal de Christian na minha frente. Surpreendentemente, a segunda opção venceu.

— Hoje mais cedo você agiu como se ficar com ele fosse o fim do mundo, e agora você o defende? Você sabe como ele é... Está sempre desrespeitando as regras. Você está realmente me dizendo que não acredita existir qualquer chance de ele virar um Strigoi como os pais?

— Não há a menor possibilidade — disse eu. — Absolutamente nenhuma. Christian tem mais vontade de lutar contra os Strigoi do que provavelmente qualquer outro Moroi aqui. — Os olhos de Jesse piscaram incrédulos na direção de Ralf antes de se voltarem para mim novamente. — Ele até me ajudou contra aqueles em Spokane. Não existe qualquer hipótese de ele se transformar num Strigoi. — Eu revirei a minha mente tentando lembrar quem tinha sido designado para Jesse na experiência de campo. — E se eu ouvir você espalhando essas mentiras por aí, Dean não vai ser capaz de proteger você de mim.

— Nem de mim — acrescentou Eddie, que se posicionara bem ao meu lado.

Jesse engoliu em seco e deu um passo para trás.

— Você blefa demais. Não pode tocar em mim. Se for suspensa agora, nunca vai se graduar.

Ele estava certo, é claro, mas eu sorri assim mesmo.

— Pode ser que valha a pena. Vamos ver, não vamos?

Foi nesse momento que Jesse e Ralf decidiram que não queriam mais nada para comer afinal. Eles se afastaram, e eu ouvi algo que pareceu soar como “vaca maluca”.

— Imbecis — murmurei. E depois me animei. — Oba! Rosquinhas.

Peguei uma com glacê de chocolate, e depois Eddie e eu nos apressamos para encontrar nossos Moroi e ir para a aula. Ele sorriu para mim.

— Se eu não conhecesse você direito, diria que acabou de defender a honra do Christian. Ele não era um pé no saco?

— Sim — disse eu, lambendo o açúcar dos meus dedos. — Ainda é. Mas, durante as próximas seis semanas, ele vai ser o meu pé no saco.


Quatro

começou.

A princípio, as coisas não foram muito diferentes de um dia como outro qualquer. Dampiros e Moroi assistiram às próprias aulas na primeira metade do dia letivo, e depois do almoço se juntaram. Christian cursava quase as mesmas disciplinas que eu fizera no semestre anterior na parte da tarde, então foi quase como refazer o meu horário. A diferença estava em eu não ser mais aluna nessas aulas. Eu não ficava sentada numa carteira nem tinha que participar das tarefas. Fiquei numa situação bem mais desconfortável, de pé o tempo todo, no fundo da sala, ao lado de outros aprendizes que também estavam ali protegendo os Moroi. Fora da escola seria assim também. Os Moroi vinham primeiro. Os guardiões eram as sombras.

Pairava no ar uma forte tentação de falar com os nossos colegas aprendizes, principalmente nas horas em que os Moroi trabalhavam uns com os outros e conversavam entre eles. No entanto, nenhum de nós cedeu à tentação. A pressão e a adrenalina do primeiro dia nos fizeram manter o bom comportamento.

Depois da aula de biologia, Eddie e eu começamos a usar uma técnica de guarda-costas própria para o trabalho em dupla. Eu era a guardiã próxima e acompanhava Lissa e Christian para o caso de haver a necessidade de uma defesa imediata. Eddie, por ser o guardião distante, mantinha-se mais afastado e cobria uma área maior, atento a qualquer ameaça potencial.

Trabalhamos assim até o final do dia, até pouco antes da última aula. Lissa deu um beijo rápido no rosto de Christian, o que me fez perceber que eles estavam se despedindo.

— Vocês não têm o mesmo horário esse semestre? — perguntei desolada, refugiando-me a um canto do corredor para sair do caminho do tráfego de alunos. Eddie já deduzira que nós nos separaríamos e parara de agir como o guardião distante, aproximando-se de nós. Eu não sabia como os horários de Lissa e Christian seriam neste semestre.

Lissa percebeu o meu olhar de decepção e lançou-me um sorriso solidário.

— Desculpe. Nós vamos estudar juntos depois das aulas, mas agora eu tenho que ir para a aula de escrita criativa.

— E eu — declarou Christian pomposamente — vou para a aula de ciência culinária.

— Ciência culinária? — resmunguei. — Você optou por fazer ciência culinária? Essa é a aula mais estúpida que já existiu.

— Não é, não — retrucou ele. — E mesmo que fosse... bem, esse é o meu último semestre, certo?

Eu rosnei.

— Não fique assim, Rose. — Lissa riu. — É só uma aula. Não vai ser tão...

Ela foi interrompida quando uma comoção se desenrolou um pouco mais adiante, no final do corredor. Nós e todos os que estavam por perto pararam e olharam. Um dos meus instrutores guardiões, Emil, surgira praticamente do nada e, se fazendo passar por Strigoi, pegou uma garota Moroi. Ele a trouxe para perto de si, segurando-a próxima ao seu peito, e expôs o pescoço dela como se fosse mordê-la. Não consegui ver quem ela era, naquele emaranhado de cabelos castanhos, mas o protetor que lhe fora designado era Shane Reyes. O ataque o pegou de surpresa — foi o primeiro do dia —, mas ele só titubeou um pouco e logo estava chutando Emil de um lado e resgatando a garota para longe dali. Os dois se prepararam para a luta, e todos assistiam ansiosos. Alguns até assobiavam e gritavam fazendo torcida para Shane.

Um dos que estavam na torcida era Ryan Aylesworth. Ele estava tão compenetrado assistindo à luta — a qual Shane, brandindo sua estaca de treinamento, acabara de vencer — que nem deu pela presença de outros dois guardiões adultos que se aproximaram dele e de Camille. Eddie e eu vimos ao mesmo tempo o que estava acontecendo e entramos em estado de alerta, o instinto nos impelindo a agir.

— Fique com eles — me disse Eddie, e foi na direção de Ryan e Camille, que haviam acabado de descobrir que caíram numa armadilha. Ryan não reagiu tão bem quanto Shane, principalmente porque ele teve que encarar dois agressores. Um dos guardiões distraiu Ryan, enquanto o outro (Dimitri, eu logo vi) agarrou Camille. Ela gritou de verdade, não era medo fingido. Ela certamente não achava tão excitante estar nos braços de Dimitri quanto eu acharia.

Eddie partiu em direção a eles, aproximou-se por trás e acertou um golpe no lado da cabeça de Dimitri. O golpe nem chegou a incomodá-lo, mas mesmo assim fiquei maravilhada. Eu quase nunca conseguira acertar um soco sequer nele durante os treinamentos. O ataque de Eddie forçou Dimitri a soltar Camille e a encarar essa nova ameaça. Ele se virou com a graça de um bailarino e avançou contra Eddie.

Enquanto isso, Shane já “apunhalara” o seu Strigoi e viera ajudar Eddie, aparecendo do outro lado de Dimitri. Eu assisti com os punhos cerrados de excitação, intrigada com a luta em geral e observando Dimitri em particular. Fiquei espantada de ver como alguém tão letal podia ser tão lindo. Desejava tomar parte na luta, mas sabia que eu tinha que ficar atenta ao espaço à minha volta caso algum “Strigoi” nos atacasse ali.

Mas ninguém nos atacou. Shane e Eddie “liquidaram” Dimitri com sucesso. Uma parte de mim ficou um pouco triste. Eu queria que Dimitri fosse o melhor em tudo. No entanto, Ryan tentou ajudar e falhou. Dimitri tecnicamente o “matou”, então senti um estranho conforto ao pensar que Dimitri ainda assim havia se mostrado um Strigoi poderoso. Ele e Emil elogiaram Shane por ter reagido rápido, e Eddie, por ter percebido que nós tínhamos que lidar com o treinamento como um trabalho de equipe, e não como uma luta de um contra um. Eu recebi um cumprimento de cabeça por ter ficado atenta à retaguarda de Eddie, e Ryan foi repreendido por não ter cuidado do seu Moroi.

Eddie e eu sorrimos um para o outro, contentes por termos nos saído bem nesse primeiro teste. Eu não teria me importado de receber um papel um pouco maior, mas esse não tinha sido um mau começo para a experiência de campo. Trocamos cumprimentos com as mãos, e eu vi Dimitri balançar a cabeça para nós quando ele saiu.

Terminada a dramatização, nosso quarteto se separou. Lissa me lançou um último sorriso por sobre o ombro e falou comigo através do laço: Divirta-se na aula de ciência culinária! Eu revirei os olhos, mas ela e Eddie já haviam dobrado a esquina.

“Ciência culinária” era um nome bastante impressionante, mas na verdade era apenas um termo metido a besta para o que era simplesmente uma aula de culinária. Apesar de eu ter provocado Christian dizendo que era uma aula estúpida, eu bem que tinha algum respeito pelo curso. Afinal de contas, eu mal sabia ferver uma água. Mesmo assim era muito diferente de outras matérias eletivas, como escrita criativa ou debate, e eu não tinha dúvida de que Christian só se matriculara porque seria um curso fácil, e não porque realmente estivesse interessado em ser um chefe de cozinha algum dia. Pelo menos eu talvez fosse me divertir um pouco vendo-o bater um bolo ou algo do gênero. Quem sabe ele até tivesse que usar um avental?

Havia três outros aprendizes na aula protegendo estudantes Moroi. Como a sala de ciência culinária era grande e aberta, com muitas janelas, nós quatro trabalhamos juntos para unir forças e fazer com que toda a sala ficasse segura. Quando observava, em anos anteriores, outros aprendizes trabalhando em suas experiências de campo, eu costumava prestar atenção apenas nas lutas. Nunca reparei no trabalho de equipe e de elaboração de estratégias aos quais eles certamente se dedicavam. Teoricamente, nós quatro estávamos ali para proteger apenas os Moroi que nos haviam sido designados, mas criamos uma estratégia na qual protegeríamos toda a turma.

Meu posto era junto a uma porta de incêndio que dava para o lado de fora da escola. Por coincidência, era bem ao lado da bancada na qual Christian estava trabalhando. A turma normalmente se dividia em duplas, mas os alunos estavam em número ímpar. Em vez de formar um grupo de três, Christian se voluntariou para ficar sozinho. Ninguém pareceu se importar. Muitos ainda tinham contra ele e sua família o mesmo preconceito que Jesse fizera questão de manifestar. Para minha decepção, Christian não estava fazendo nenhum bolo.

— O que é isso? — perguntei, vendo-o tirar da geladeira uma tigela cheia de uma espécie de carne moída crua.

— Carne — disse ele, passando a carne para uma tábua de corte.

— Eu sei que é carne, seu idiota. Que tipo de carne?

— Bife de carne moída. — Ele tirou outro pote da geladeira e mais outro. — E isto é vitela, e isto é porco.

— Você por acaso pretende alimentar um tiranossauro?

— Só se você quiser comer. Isso é para fazer um bolo de carne.

Olhei, espantada.

— Com três tipos de carne?

— Por que comer uma coisa que se chama bolo de carne se você não vai encontrar bastante carne nele?

Balancei a cabeça com impaciência.

— Não acredito que esse ainda é o primeiro dia com você.

Ele baixou o olhar, concentrando-se em amassar e juntar as três carnes para a criação do seu prato.

— Você está mesmo fazendo um escândalo por causa disso. Você me odeia tanto assim? Ouvi dizer que gritou isso a plenos pulmões no ginásio.

— Não, eu não estava gritando. E... eu não odeio você nem um pouco — admiti.

— Está só descontando em mim pelo fato de não ter formado par com Lissa.

Não respondi. Ele não estava de todo errado.

— Sabe de uma coisa? Pode ser realmente uma boa ideia você treinar com alguém diferente.

— Eu sei. Isso é o que Dimitri diz também.

Christian colocou a carne numa tigela e começou a acrescentar outros ingredientes.

— Então por que discutir? Belikov sabe o que está fazendo. Eu confiaria em qualquer coisa que ele dissesse. É uma pena a escola perdê-lo depois que nos graduarmos, mas eu prefiro que ele esteja protegendo Lissa.

— Eu também.

Ele fez uma pausa e levantou o olhar. Seus olhos encontraram os meus. Nós dois sorrimos, achando graça em como ficáramos chocados com o fato de concordarmos um com o outro. Um segundo depois ele retomou o trabalho.

— Você também é boa — disse ele, não muito a contragosto. — O jeito com que você soube lidar...

Ele não terminou a frase, mas eu sabia do que ele estava falando. Spokane. Christian não estava por perto quando matei os Strigoi, mas ele foi fundamental para nos ajudar a fugir. Ele e eu trabalhamos em equipe, usando a sua magia com o fogo para que eu pudesse subjugar nossos sequestradores. Nós trabalhamos bem juntos, com todas as nossas diferenças postas de lado.

— Acho que nós dois temos coisas melhores para fazer do que ficar brigando o tempo todo — disse eu, pensativa. Como nos preocuparmos com o julgamento de Victor Dashkov, pensei. Por um instante considerei contar a Christian o que eu descobrira. Ele estava lá na noite em que Victor foi pego, no outono passado, mas decidi não mencionar a novidade ainda. Lissa precisava saber primeiro.

— É mesmo — disse Christian, sem saber dos meus pensamentos. — Você pode não admitir, mas não somos assim tão diferentes. Quer dizer, eu sou mais inteligente e muito mais divertido, mas, no final das contas, o que nós dois queremos é mantê-la a salvo. — Ele hesitou. — Sabe... eu nunca vou afastá-la de você. Eu não posso. Ninguém pode, não enquanto existir esse laço entre vocês.

Fiquei surpresa de ele mencionar o laço. Eu sinceramente suspeitava que houvesse duas razões para as nossas discussões. Uma era o fato de nós dois termos uma personalidade explosiva. O outro motivo, o maior deles, era o fato de invejarmos mutuamente a relação que Lissa tinha conosco. Mas, como ele disse, nós de fato lutávamos pela mesma causa. Nós nos preocupávamos com ela.

— Mas não ache que o laço vai afastar vocês dois — contrapus. Eu sabia que a nossa ligação o incomodava. Como você podia ficar íntimo de alguém quando essa pessoa tinha uma ligação dessas com outra, mesmo que essa outra fosse apenas uma amiga? — Ela gosta de você... — Eu não consegui dizer “ama”. — E guarda um lugar especial para você no coração.

Christian colocou a travessa no forno.

— Não é possível que você tenha dito isso. Estou com a sensação de que estamos quase nos abraçando e inventando apelidos bonitinhos um para o outro. — Ele tentava parecer enjoado com o meu sentimentalismo, mas pude perceber que ele tinha adorado ouvir que Lissa gostava dele.

— Eu já tenho um apelido para você. Mas vou me meter em confusão se o disser em classe.

— Ah — disse ele alegremente —, esta é a Rose que eu conheço.

Ele saiu de sua bancada de trabalho para ir conversar com outro amigo enquanto o bolo de carne assava, e provavelmente foi melhor assim. A minha porta ficava em posição vulnerável, e eu não deveria ter passado todo aquele tempo conversando, mesmo vendo que o resto da turma fazia o mesmo. Do outro lado da sala, avistei Jesse e Ralf trabalhando juntos. Assim como Christian, eles também escolheram pegar uma disciplina mais tranquila.

Nenhum ataque aconteceu, mas um guardião chamado Dustin entrou para fazer anotações sobre os aprendizes e sobre como estávamos guardando nossas posições. Ele estava parado perto de mim quando Jesse resolveu fazer um passeio por ali. A princípio achei que era coincidência, até Jesse começar a falar.

— Eu retiro o que disse antes, Rose. Já entendi tudo. Você não está chateada com a história de Lissa nem de Christian. Está chateada porque, segundo as regras, você tem que ficar com um aluno, e Adrian Ivashkov é velho demais. Pelo que ouvi, vocês dois já andaram praticando muito corpo a corpo juntos.

Aquela piada poderia ter sido muito mais engraçada, mas eu aprendera a não esperar tanto de Jesse. Eu sabia que ele não possuía o menor interesse em mim e em Adrian. E suspeitei de que ele sequer acreditasse que houvesse de fato algo entre nós. Mas Jesse ainda estava com raiva por eu tê-lo ameaçado mais cedo, e essa era a chance que ele tinha de revidar. Dustin, de pé, próximo o bastante para ouvir a conversa, não parecia nada interessado na provocação idiota de Jesse. Mas aposto que ele se interessaria bastante se eu lançasse a cara de Jesse contra a parede.

Mas isso também não era motivo para eu ficar calada. Guardiões falavam com os Moroi o tempo todo; eles apenas tendem a ser respeitosos e a manter a atenção no que acontece em volta. Assim, dei um sorriso curto para Jesse e disse, simplesmente:

— Seu humor é sempre impecável, senhor Zeklos. Mal posso me conter quando estou por perto. — Em seguida me virei e fui inspecionar o resto da sala.

Quando Jesse percebeu que eu não ia fazer mais nada, riu e saiu andando, aparentemente achando que obtivera alguma grande vitória. Dustin saiu pouco depois.

— Imbecil — resmungou Christian, voltando para a sua bancada. Faltavam cinco minutos para o fim da aula.

Os meus olhos seguiram Jesse enquanto ele atravessava a sala.

— Sabe de uma coisa, Christian? Estou bem contente de estar protegendo você.

— Se está me comparando a Zeklos, não vou tomar isso como um elogio. Mas, aqui, experimente isto. Aí, sim, você vai ficar mesmo contente de estar comigo.

A obra-prima dele estava pronta, e ele me deu um pedaço. Eu não tinha me dado conta, mas, um pouco antes de o bolo de carne ir ao forno, ele o enrolara em bacon.

— Deus do céu — disse eu —, essa é a comida de vampiro mais estereotipada que eu já vi.

— Só se estivesse crua. O que achou?

— É bom — disse eu, com relutância. Quem diria que o bacon faria tanta diferença? — Muito bom mesmo. Acho que você tem um futuro promissor como dona de casa enquanto Lissa estiver trabalhando para ganhar milhões de dólares.

— Que engraçado, é exatamente o meu sonho.

Saímos da aula com o humor mais leve. As coisas ficaram mais amigáveis entre nós, e eu concluí que não seria muito duro passar aquelas seis semanas como sua guardiã.

Ele e Lissa iam se encontrar na biblioteca para estudar, ou fingir que estudavam, mas ele tinha que passar no dormitório primeiro. Então atravessei com ele o pátio quadrangular de volta ao ar frio do inverno, ainda mais frio desde o pôr do sol sete horas atrás. A neve, que virara lama por causa do sol, agora congelara e tornara a travessia traiçoeira. No meio do caminho, Brandon Lazar, um Moroi que morava no andar de Christian, se juntou a nós. Brandon mal podia se conter, relatando uma luta que ele testemunhara em sua aula de matemática. Ficamos ouvindo a história, os três rindo muito ao imaginar Alberta entrando de fininho pela janela.

— Ei, ela pode estar velha, mas ainda é capaz de derrubar qualquer um de nós — disse eu a eles. Lancei um olhar intrigado para Brandon. Ele estava machucado e com manchas vermelhas no rosto. Também pude ver algumas marcas estranhas perto da orelha dele. — O que aconteceu com você? Andou lutando com guardiões também?

O sorriso desapareceu-lhe imediatamente do rosto, e ele desviou o olhar.

— Que nada. Eu só caí.

— Ah, até parece — disse eu. Os Moroi não treinam para lutar como os dampiros, mas brigam uns com os outros como qualquer um. Tentei imaginar com que Moroi ele poderia ter algum problema. Para a maioria, Brandon era muito querido. — Essa é a desculpa mais esfarrapada e menos original do mundo.

— É sério — disse ele, ainda evitando o meu olhar.

— Se tem alguém sacaneando você, posso dar algumas dicas.

Ele se virou para mim, nossos olhos se encontraram.

— Deixe isso para lá. — Ele não foi hostil nem nada, mas falou com firmeza. Foi quase como se ele acreditasse que eu obedeceria só por ele ter dito aquelas palavras.

Eu ri.

— O que você está tentando fazer? Me forçar a...

De repente percebi um movimento à minha esquerda. Uma leve sombra se misturando às formas escuras de vários pinheiros carregados de neve, mas era o suficiente para chamar a minha atenção. O rosto de Stan surgiu saindo da escuridão, e ele saltou na nossa direção.

Finalmente o meu primeiro teste.

A adrenalina disparou pelo meu corpo quase com tanta força quanto se um Strigoi de verdade estivesse se aproximando. Eu reagi instantaneamente, apanhando Brandon e Christian. Este era sempre o primeiro movimento, colocar a minha vida na frente para proteger a deles. Empurrei os dois para longe e me voltei para o agressor, já sacando a minha estaca para defender os Moroi...

E foi aí que ele apareceu.

Mason.

Ficou parado alguns metros à minha frente, à direita de Stan, com a mesma aparência da noite passada. Translúcido. Tremeluzente. Triste.

O cabelo atrás da minha nuca arrepiou. Eu congelei, incapaz de me mover ou de terminar de puxar a minha estaca. Esqueci o que eu estava fazendo e perdi completamente a noção das pessoas e da comoção ao meu redor. O mundo entrou em câmera lenta, tudo começou a sumir à minha volta. Havia apenas Mason, aquele Mason fantasmagórico, que brilhava no escuro e parecia querer muito me dizer algo. O mesmo sentimento de impotência que eu sentira em Spokane voltou: lá eu não pude salvá-lo. Eu não podia salvá-lo agora. Meu estômago ficou frio e oco. Eu não consegui fazer mais nada a não ser ficar ali, parada, me perguntando o que ele estaria tentando dizer.

Ele ergueu uma das mãos e apontou para longe, para o outro lado do campus, mas eu não sabia o que aquilo significava. Havia tanta coisa lá, e não estava claro para o que exatamente ele estava apontando. Sacudi a cabeça, sem entender, mas desejando desesperadamente poder compreender. A tristeza no rosto dele pareceu aumentar.

De repente alguma coisa bateu no meu ombro, e eu tropecei para a frente. O mundo subitamente voltou a se mover, tirando-me do estado de sonho em que eu estava. A única coisa que eu consegui fazer foi jogar as mãos para frente a tempo de impedir que eu desse de cara no chão. Olhei para cima e vi Stan de pé sobre mim.

— Hathaway! — rosnou ele. — O que você está fazendo?

Eu pisquei os olhos, ainda tentando afastar a sensação estranha de ver Mason novamente. Me senti lenta e tonta. Olhei para a expressão de raiva no rosto de Stan e depois olhei novamente para onde Mason estava. Ele desaparecera. Voltei minha atenção para Stan e me dei conta do que acontecera. Na minha distração eu me desligara completamente enquanto ele encenava o seu ataque. Ele agora estava com um braço ao redor do pescoço de Christian e o outro ao redor do pescoço de Brandon. Ele não estava machucando nenhum dos dois, mas compreendi o que aquilo significava.

— Se eu fosse um Strigoi — rosnou ele —, esses dois estariam mortos.


cinco

A maioria dos problemas disciplinares na escola eram encaminhados para a diretora Kirova. Ela supervisionava tanto os Moroi quanto os dampiros e era famosa por seu repertório de castigos criativos, que era utilizado com frequência. Ela não era exatamente cruel, mas também não era frouxa. Ela simplesmente levava muito a sério o comportamento dos alunos e lidava com isso da maneira que achava mais adequada.

Havia algumas questões, no entanto, que iam além da alçada dela.

Um comitê disciplinar armado pelos guardiões da escola não era algo que nunca tivesse acontecido, mas era muito raro mesmo. Era preciso que um aluno fizesse algo bastante sério para aborrecer os guardiões a esse ponto. Como, por exemplo, colocar um Moroi em perigo deliberadamente. Mesmo que esse perigo fosse hipotético.

— Pela última vez — rosnei —, eu não fiz de propósito!

Sentei em uma das salas de reunião dos guardiões, de frente para o meu comitê: Alberta, Emil e uma das outras raras guardiãs do campus, Celeste. Eles estavam sentados numa longa mesa, com um ar imponente, enquanto eu fiquei sentada numa cadeira, vulnerável. Muitos outros guardiões estavam na sala observando, mas felizmente nenhum dos meus colegas de turma estava lá para ver a minha humilhação. Dimitri estava assistindo também. Ele não fazia parte do comitê, e eu fiquei me perguntando se o tinham deixado de fora porque ele, por ser o meu mentor, poderia se mostrar parcial em meu favor.

— Senhorita Hathaway — disse Alberta, encarnando inteiramente o seu papel de capitã —, você deve saber por que temos uma grande dificuldade em acreditar nisso.

Celeste concordou com a cabeça.

— O guardião Alto viu você. Você se recusou a proteger dois Moroi, inclusive o Moroi cuja proteção estava especialmente sob sua responsabilidade.

— Eu não me recusei! — exclamei. — Eu... vacilei.

— Aquilo não foi um vacilo — disse Stan, que estava entre os ouvintes. Ele olhou para Alberta pedindo permissão para falar. — Posso? — Ela fez que sim com a cabeça, e ele se voltou para mim. — Se você tivesse tentado bloquear os golpes ou me atacado e tivesse se enrolado, aí sim teria sido um vacilo. Mas você não me bloqueou. Você não me atacou. Você nem mesmo tentou. Você simplesmente ficou lá parada como uma estátua, sem se mover.

Naturalmente, me senti ultrajada. A ideia de que eu teria deliberadamente abandonado Christian e Brandon para serem “mortos” por um Strigoi era absurda. Mas o que eu poderia fazer? Ou eu confessava que tinha me atrapalhado toda, ou confessava ter visto um fantasma. Nenhuma das opções era atraente, mas eu tinha que escolher a que me prejudicasse menos. A primeira me fazia parecer uma incompetente. A segunda me fazia parecer maluca. Eu não queria ser associada a nenhuma dessas descrições. Preferia ser vista como “irresponsável” ou “encrenqueira”, como era de hábito.

— Por que estou sendo castigada por ter reagido mal a um ataque? — perguntei com firmeza. — Eu vi o Ryan se embananando todo hoje cedo. E ele não foi castigado. Não é para isso que estamos fazendo esse exercício? Para treinar? Se fôssemos perfeitos, vocês já teriam nos soltado no mundo!

— Você não ouviu o que eu disse? — perguntou Stan. Juro que pude ver uma veia saltar na testa dele. Eu acho que ele era o único ali que estava tão irritado quanto eu. Ou ao menos ele era o único além de mim que estava mostrando suas emoções. Os outros mantinham a expressão impassível de jogadores de pôquer, mas eu entendo, pois nenhum deles testemunhara o que aconteceu. Se eu estivesse no lugar de Stan, teria pensado o pior de mim também. — Você não vacilou, porque para “vacilar” você teria que de fato ter feito alguma coisa.

— Está bem, então. Eu congelei. — Olhei para ele com ar desafiador. — Isso não conta como um vacilo? Eu não suportei a pressão e saí do ar. Eu não estava preparada para aquilo, no fim das contas. Chegou o momento, e eu entrei em pânico. Isso acontece com os aprendizes o tempo todo.

— Com uma aprendiza que já até matou Strigoi? — perguntou Emil. Ele era da Romênia, e seu sotaque era um pouco mais forte que o sotaque russo de Dimitri. Mas não era nem de longe tão bacana quanto o dele. — Isso me parece pouco provável.

Eu lancei um olhar faiscante para ele e para todos os outros na sala.

— Ah, entendi. Depois de um incidente, vocês agora esperam que eu seja uma perita em matar Strigoi? Não tenho o direito de entrar em pânico nem de ter medo nem nada? Faz sentido. Obrigada. É justo. Muito justo mesmo. — E me recostei de volta na cadeira, cruzando os braços. Eu nem precisei fingir indignação. Eu já estava mesmo carregada de agressividade para colocar para fora.

Alberta suspirou e inclinou-se para a frente.

— Estamos discutindo semântica. Questões técnicas não são importantes aqui. O que importa é que esta manhã você deixou bem claro que não queria ser a guardiã de Christian Ozera. Na verdade... que eu me lembre você chegou mesmo a registrar que faria aquilo contra a sua vontade e disse ainda que nós em breve veríamos que aquela fora uma péssima ideia. — Ai, droga. Eu realmente tinha dito aquilo tudo. Sério, no que eu estava pensando? — E então, quando surge o seu primeiro teste, você se mostra completa e inteiramente indiferente.

Eu quase voei da cadeira.

— Então é sobre isso que estamos conversando? Vocês acham que eu não o protegi porque descobri uma maneira muito estranha de me vingar de vocês?

Os três olharam para mim com expectativa.

— Você não é exatamente conhecida pela calma e graciosidade com que aceita as coisas que não lhe agradam — respondeu Alberta com ironia.

Dessa vez eu me levantei mesmo da cadeira e apontei o dedo na cara dela de forma acusatória.

— Isso não é verdade. Eu tenho seguido todas as regras que Kirova me impôs desde que voltei para a escola. Tenho frequentado todos os treinamentos e obedecido a todos os toques de recolher. — Bem, eu escapei de alguns toques de recolher, mas não por capricho. Sempre por um bem maior. — Não vejo como eu faria isso só para me vingar! Em que isso me beneficiaria? Stan... digo, o guardião Alto nunca machucaria Christian de verdade, então eu nem teria o prazer de vê-lo levar um soco. A única coisa que eu conseguiria seria me ver arrastada para o meio de uma coisa como esta aqui e possivelmente me arriscando a ser afastada da experiência de campo.

— Você está se arriscando a ser afastada da experiência de campo — respondeu Celeste categoricamente.

— Ah, sim. — Sentei e subitamente não me senti mais tão corajosa. O silêncio pairou pela sala durante alguns minutos, e depois ouvi a voz de Dimitri falando atrás de mim.

— O que ela diz faz sentido — disse ele. O coração bateu forte no meu peito. Dimitri sabia que eu não me vingaria desse jeito. Ele não me considerava mesquinha. — Se ela quisesse protestar ou se vingar, ela o faria de outra maneira. — Bem, ao menos não me considerava tão mesquinha.

Celeste franziu o cenho.

— Sim, mas depois da cena que ela fez essa manhã...

Dimitri deu alguns passos à frente e se colocou ao lado da minha cadeira. Ter a presença forte dele mais perto me reconfortou. Tive um déjà vu e me lembrei de quando Lissa e eu voltamos para a Escola no outono passado. A diretora Kirova quase me expulsara, e Dimitri me defendera naquele momento também.

— Isso é tudo muito circunstancial — disse ele. — Independente do quão suspeito isso pareça, não há provas. Afastá-la da experiência e, com isso, arruinar sua graduação é uma atitude um pouco extrema sem que haja provas de sua má-fé.

O comitê ficou pensativo, e concentrei minhas atenções em Alberta. Ela era a mais poderosa ali. Eu sempre a admirara, e ao longo do tempo em que estivéramos juntas ela sempre fora firme, mas escrupulosamente justa. Eu tinha esperanças de que ela agisse do mesmo modo dessa vez. Ela acenou para que Celeste e Emil se aproximassem, e os outros dois guardiões se inclinaram para perto dela. Eles discutiram um pouco, aos sussurros. Alberta fez um aceno com a cabeça, e os outros voltaram a se recostar em suas cadeiras.

— Senhorita Hathaway, há algo que você queira dizer antes de comunicarmos a nossa conclusão?

Algo que eu quisesse dizer? Ah, claro que sim. Milhares de coisas que eu queria dizer. Eu queria dizer que não era incompetente. Eu queria dizer a eles que eu era uma das melhores aprendizas da escola. Eu queria dizer a eles que eu vira Stan se aproximando e também que eu estava pronta para reagir. E eu principalmente queria dizer a eles que não desejava que aquele episódio ficasse registrado no meu histórico. Mesmo que eu continuasse na experiência de campo, eu certamente tiraria um F neste primeiro teste. E isso modificaria a minha média final, o que poderia prejudicar o meu futuro.

Mas que escolha eu tinha? Dizer a eles que eu vira um fantasma? O fantasma de um cara que era apaixonado por mim e que muito provavelmente morrera por causa dessa paixão? Eu ainda não compreendia o significado daquelas visões. Se tivesse sido uma vez só, eu poderia colocar a culpa no cansaço... mas por duas vezes eu vira Mason... ou algo do gênero. Será que ele era real? A minha razão me dizia que não, mas, sinceramente, isso não importava agora. Se fosse real e eu contasse isso a eles, pensariam que eu estava louca. Se não fosse real e eu contasse para eles, pensariam que eu estava louca do mesmo jeito. E eles estariam certos. Eu não tinha saída.

— Não, guardiã Petrov — disse eu, tentando soar dócil. — Não tenho mais nada a acrescentar.

— Muito bem, então — disse ela com ar cansado. — O que nós decidimos foi o seguinte: você teve sorte de ter o guardião Belikov advogando em sua defesa, porque essa decisão poderia ser diferente. Nós vamos conceder a você o benefício da dúvida. Você deverá voltar para a experiência de campo e continuar o seu trabalho como guardiã do senhor Ozera. Ficará apenas em estado probatório.

— Está bem — disse eu. Passei a maior parte da minha vida acadêmica em estado probatório. — Obrigada.

— E tem mais — acrescentou ela. Essa não... — Uma vez que a suspeita não foi inteiramente sanada, você passará o seu dia de folga esta semana fazendo serviço comunitário.

Eu pulei da minha cadeira.

— O quê?

A mão de Dimitri segurou o meu pulso com aqueles dedos quentes, num gesto dominador.

— Sente-se — sussurrou no meu ouvido, puxando-me para a cadeira. — Aceite o que conseguiu.

— Se isso for um problema, nós podemos estender o serviço comunitário para a próxima semana também — advertiu Celeste. — E para as cinco semanas seguintes.

Eu me sentei e balancei a cabeça.

— Desculpe-me. Obrigada.

A audiência terminou, e fiquei me sentindo cansada e derrotada. Passara-se apenas um dia? Parecia que a excitação que eu vivera antes da experiência de campo acontecera semanas atrás, e não naquela manhã. Alberta me disse para ir procurar Christian, mas Dimitri pediu permissão para ter uma conversa comigo a sós. Ela concordou, com certeza esperando que ele me passasse um belo sermão e me colocasse na linha.

A sala esvaziou, e pensei que ele fosse sentar e falar comigo ali mesmo, mas em vez disso ele foi até uma pequena mesa onde havia uma garrafa de água, outra de café e outras bebidas.

— Aceita um chocolate quente? — perguntou.

Por essa eu não esperava.

— Claro.

Ele despejou quatro pacotes de chocolate em pó instantâneo dentro de dois copos de isopor e depois acrescentou água quente.

— O segredo é dobrar a dose — disse ele, quando os copos se encheram.

Ele entregou o meu junto com uma colher pequena e depois caminhou até a porta lateral. Deduzindo que deveria segui-lo, me apressei para alcançá-lo sem derramar o chocolate quente.

— Onde nós vamos...? Ah.

Atravessei a porta e me vi numa pequena varanda fechada com janelas de vidro cheia de mesinhas de jardim. Eu não tinha a menor ideia de que aquela varanda era adjacente à sala de reuniões, mas, claro, aquele era o prédio de onde os guardiões comandavam todos os assuntos do campus. Os aprendizes raramente tinham permissão para entrar. Eu também não me dera conta de que o prédio estava construído em torno de um pequeno jardim para onde a varanda dava vista. No verão daria para abrir as janelas e ficar rodeado de verde, respirando ar fresco. Agora, cercada de vidro e neve, senti como se estivesse em algum tipo de palácio de gelo.

Dimitri passou a mão sobre uma cadeira para retirar a poeira. Eu fiz o mesmo e me sentei de frente para ele. Aparentemente a varanda não era muito usada no inverno. Por ser fechada, era mais quente do que do lado de fora, mas não possuía nenhuma fonte de calor. O ar estava frio, e eu esquentei as mãos no copo. Fez-se um silêncio entre nós. O único som que se ouvia era o meu soprando o chocolate quente. Ele tomou logo o dele. Ele matava Strigoi há anos. Um pouco de água fervendo de vez em quando não era nada para ele.

Enquanto estávamos sentados em silêncio, eu o observei por sobre a borda do meu copo. Ele não estava olhando para mim, mas eu sabia que ele sabia que eu o observava. Como quase sempre acontecia quando eu o olhava, fiquei encantada com sua aparência. O cabelo negro e macio que ele sempre colocava para trás da orelha sem nem perceber, a mecha de cabelo que cismava em soltar do elástico atrás do pescoço. Os olhos eram castanhos também, gentis e firmes ao mesmo tempo. Os lábios possuíam o mesmo aspecto contraditório. Quando ele estava lutando ou lidando com algo sombrio, aqueles lábios ficavam enrijecidos e finos. Mas quando estava mais relaxado... quando ria ou beijava... bem, aí eles ficavam macios e maravilhosos.

Hoje, não foi só a aparência dele que me afetou. Senti calor e segurança só de estar com ele. Ele me trouxe conforto depois de um dia terrível. Geralmente, quando eu estava com outras pessoas, sentia a necessidade de ser o centro das atenções, de ser engraçada e ter sempre algo inteligente para dizer. Era um hábito que eu precisava superar para ser uma guardiã, uma vez que o trabalho exigia silêncio. Mas, com Dimitri, eu nunca senti que tinha que ser mais do que eu era. Eu não tinha que diverti-lo nem inventar piadas e nem mesmo flertar. Só estar junto já era o suficiente, o conforto que sentíamos na presença um do outro — colocando de lado a tensão sexual — era suficiente para perdermos toda a noção de nós mesmos. Eu suspirei e bebi o chocolate.

— O que aconteceu lá fora? — perguntou ele finalmente, me encarando. — Você não vacila quando se vê sob pressão.

O tom de voz dele era de curiosidade, não de acusação. Percebi que ele não estava me tratando como aluna naquele momento. Estava conversando comigo de igual para igual. Ele simplesmente queria saber o que estava havendo comigo. Não ia me passar nenhum sermão nem tentar me disciplinar.

Por isso mesmo foi muito mais difícil mentir para ele.

— É claro que vacilo — disse eu, baixando os olhos para o copo. — A não ser que você acredite que eu realmente deixei Stan “atacar” Christian.

— Não. Não acredito nisso. Nunca acreditei. Eu sabia que você não ia gostar quando descobrisse para quem estaria designada, mas nunca duvidei que você faria o que fosse preciso nessa experiência. Eu sabia que você não deixaria os seus sentimentos atrapalharem o seu trabalho.

Levantei o olhar novamente e olhei para os olhos dele, tão cheios de fé e confiança absoluta em mim.

— Eu não deixei, mesmo. Eu estava com raiva... ainda estou um pouco. Mas, quando concordei em fazer isso, eu falei sério. E depois de passar algum tempo com ele... bem, eu não o odeio. Na verdade eu acho que ele é bom para Lissa, e ele gosta dela, então não posso ficar chateada por isso. Ele e eu apenas nos desentendemos de vez em quando, só isso... Mas nós nos saímos muito bem juntos contra os Strigoi. Eu me lembro que, quando eu estava com ele hoje, percebi como a minha resistência à tarefa parecia estúpida. Então decidi fazer o melhor que pudesse. — Eu não tinha a intenção de falar tanto, mas me senti bem de deixar sair o que estava dentro de mim, e o olhar de Dimitri teria me feito falar qualquer coisa. Ou melhor, quase qualquer coisa.

— O que foi que aconteceu, então? Com Stan?

Eu desviei o olhar e voltei a brincar com o meu copo. Eu detestava esconder coisas dele, mas não podia contar sobre isso. No mundo dos humanos, vampiros e dampiros são criaturas mitológicas e lendárias, figuras de histórias para assustar crianças. Os humanos não sabem que nós existimos e andamos pela superfície da terra. Mas, só porque nós somos reais, não significa que qualquer outra história de criaturas sobrenaturais também seja. Nós sabíamos disso e tínhamos nossos próprios mitos e histórias fantásticas. Lobisomens. Bicho-papão. Fantasmas.

Não acreditávamos na existência de fantasmas; eles só existiam em brincadeiras e histórias de acampamentos contadas ao redor de fogueiras. Fantasmas inevitavelmente vinham à baila no Dia das Bruxas, e algumas lendas perduravam com o passar dos anos. Mas na vida real? Nada de fantasmas. Se você morreu e voltou à vida, então você só podia ter se tornado um Strigoi.

Pelo menos foi isso que sempre me ensinaram. Eu sinceramente não fazia ideia do que estava acontecendo. A visão de Mason ser apenas fruto da minha imaginação parecia mais provável do que ele ser um fantasma de verdade, mas, caramba, isso significava que eu estava entrando no reino dos loucos. Durante todo esse tempo eu temera que Lissa pudesse perder a razão. Quem diria que aconteceria comigo?

Dimitri ainda estava me observando, esperando uma resposta.

— Eu não sei o que aconteceu naquela hora. Minhas intenções eram boas. Eu simplesmente... simplesmente... vacilei.

— Rose. Você mente muito mal.

Eu ergui o olhar.

— Eu não minto mal, não. Já inventei muitas mentiras na minha vida. E as pessoas acreditaram nelas.

Ele deu um leve sorriso.

— Não duvido. Mas comigo não funciona. Em primeiro lugar, porque você não me olha nos olhos. E, em segundo lugar, porque... não sei. Eu simplesmente sei reconhecer quando está mentindo.

Droga. Ele sabia mesmo. Ele me conhecia muito bem. Eu me levantei e me dirigi para a porta, ficando de costas para ele. Normalmente eu apreciava cada minuto com ele, mas não podia continuar ali agora. Detestava mentir, mas também não queria contar a verdade. Eu tinha que sair.

— Escute, eu agradeço a sua preocupação comigo... mas está tudo bem, de verdade. Eu só me atrapalhei. Eu me envergonho disso, e peço desculpas por ter desonrado o seu excelente treinamento, mas eu vou me recuperar. Da próxima vez, Stan não me escapa.

Eu nem o ouvira levantar, mas, de repente, Dimitri estava bem atrás de mim. Ele colocou uma das mãos no meu ombro, me fazendo congelar na frente da porta. Ele não tocou em nenhuma outra parte do meu corpo. Não tentou me puxar para perto dele. Mas, caramba, aquela mão no meu ombro tinha todo o poder do mundo.

— Rose — disse ele, e percebi que ele não estava mais sorrindo. — Não sei por que você está mentindo, mas sei que você não faria isso se não tivesse um bom motivo. E se alguma coisa estiver acontecendo, alguma coisa que você esteja com medo de contar aos outros...

Eu me virei rapidamente; dei um jeito de rodar no lugar de modo que a mão dele nem se moveu, indo parar no meu outro ombro.

— Eu não estou com medo — gritei. — Eu tenho, sim, os meus motivos, e, acredite em mim, o que aconteceu com Stan não foi nada. Mesmo. Tudo isso é só uma estupidez que ganhou proporções absurdas. Não sinta pena de mim nem pense que você tem que fazer alguma coisa. O que aconteceu foi uma droga, mas eu vou dar a volta por cima e aceitar a nota ruim. Vou cuidar de tudo. Vou cuidar de mim. — Juntei todas as minhas forças nessa hora para não tremer. Como foi que esse dia ficou tão bizarro e fora de controle?

Dimitri não disse nada. Apenas olhou para mim, e eu não reconheci a expressão que seu rosto tomou. Eu não soube interpretá-la. Será que ficara zangado? Estava condenando a minha atitude? Eu não soube dizer. Os dedos dele no meu ombro apertaram um pouco e depois relaxaram.

— Você não precisa fazer isso sozinha — disse ele, por fim. Ele parecia quase ansioso, o que não fazia sentido algum. Era ele que me dizia há tanto tempo que eu precisava ser forte. Eu tive vontade de me jogar nos braços dele naquele exato instante, mas eu sabia que não podia.

Não consegui conter um sorriso.

— Você diz isso... mas, me diga a verdade: você sai correndo para os outros quando está com problemas?

— Não é a mesma coisa...

— Responda à pergunta, camarada.

— Não me chame assim.

— E não fuja do assunto.

— Não — disse ele. — Eu tento resolver meus problemas sozinho.

Eu deslizei o ombro para longe da mão dele.

— Viu?

— Mas você tem muitas pessoas na sua vida, pessoas nas quais você pode confiar, que se preocupam com você. Isso muda as coisas.

Olhei para ele surpresa.

— Você não tem pessoas que se preocupam com você?

Ele franziu as sobrancelhas, evidentemente repensando as palavras.

— Bem, eu sempre tive bons amigos na minha vida... e pessoas que se preocuparam comigo. Mas isso não significa necessariamente que eu podia confiar nelas ou lhes contar tudo.

Eu geralmente estava tão distraída com a natureza estranha do nosso relacionamento que eu raramente pensava em Dimitri como uma pessoa com uma vida própria longe de mim. Ele era respeitado por todos no campus. Tanto os alunos quanto os professores o conheciam como um dos guardiões mais letais da escola. Sempre que encontrávamos guardiões de fora, eles também demonstravam conhecê-lo e respeitá-lo. Mas eu não me recordava de tê-lo visto alguma vez em um ambiente social. Ele não parecia ter amigos íntimos entre os outros guardiões. Eram apenas colegas de trabalho de quem ele gostava. A única pessoa que eu o vira tratar como uma amiga mesmo fora a tia de Christian, Tasha Ozera, na época em que ela visitou a escola. Eles se conheciam há muito tempo, mas nem isso fora o suficiente para que Dimitri voltasse a procurá-la depois que ela foi embora.

Eu me dei conta de que Dimitri passava mesmo muito tempo sozinho, contentando-se em ler romances de faroeste quando não estava trabalhando. Eu me sentia sozinha muitas vezes, mas, na verdade, estava quase sempre rodeada de pessoas. Como ele era meu professor, eu tinha a tendência de enxergar tudo sob um único ponto de vista: ele era aquele que sempre me dava alguma coisa, conselhos ou instruções. Mas eu também lhe dava algo, uma coisa mais difícil de definir. Eu lhe dava uma ligação com outra pessoa.

— Você confia em mim? — perguntei.

A hesitação foi breve.

— Confio.

— Então confie em mim agora, e, só desta vez, não se preocupe comigo.

Dei um passo colocando-me fora do alcance de sua mão, e Dimitri não disse mais nada para tentar me impedir. Atravessei a sala onde acontecera a minha audiência, e caminhei na direção da saída principal do prédio. Joguei os restos do meu chocolate quente na lixeira quando passei pela porta.


Seis

Apenas três outras pessoas haviam testemunhado o que se passara lá no pátio. E, ainda assim, surpreendentemente, todo mundo parecia saber daquilo quando voltei ao prédio comunitário. As aulas daquele dia haviam terminado, mas muitos alunos ainda caminhavam pelos corredores, indo estudar, refazer testes e coisas do gênero. Eles tentavam disfarçar seus olhares e sussurros, mas não eram muito bons nisso. Os que faziam contato visual comigo ou me davam um sorrisinho amarelo, ou desviavam logo o olhar. Ótimo.

Já que eu não tinha nenhum laço com Christian, eu não fazia ideia de onde poderia achá-lo. Sentia que Lissa estava na biblioteca, e imaginei que seria um bom lugar para começar a procurar. No caminho, ouvi uma voz masculina me chamando por trás:

— Dessa vez você foi longe demais, não foi?

Eu me virei e vi Ryan e Camille a alguns passos de mim. Se eu fosse homem, a resposta ideal seria: “Como assim? Com a sua mãe?” Mas como eu não sou homem, e tenho bons modos, eu apenas disse:

— Não sei do que está falando.

Ryan se apressou para me acompanhar.

— Você sabe exatamente do que estou falando. Com o Christian. Ouvi dizer que, quando Stan atacou, você o entregou de mão beijada e foi embora.

— Ai, meu Deus — resmunguei. Já era ruim o suficiente quando todo mundo estava falando sobre você, mas por que as histórias sempre acabavam evoluindo? — Não foi isso o que aconteceu.

— Ah, é? Então, por que chamaram você para falar com a Alberta?

— É o seguinte — comecei, não pensando mais em boas maneiras —, eu me atrapalhei durante o ataque, só isso... Assim como você, no hall, quando não estava prestando atenção, lembra?

— Ei! — disse ele, enrubescendo um pouco. — Eu ajudei no final. Eu fiz a minha parte.

— É assim que chamam “ser morto” hoje em dia?

— Pelo menos eu não fui a palhaça que desistiu de lutar.

Eu tinha acabado de me acalmar depois de falar com Dimitri, mas minha paciência já estava se esgotando de novo. Era como uma bomba prestes a explodir.

— Sabe, talvez, em vez de criticar os outros, você devesse prestar mais atenção aos seus próprios deveres como guardião. — Apontei com a cabeça para Camille. Ela, até agora, estava quieta, mas sua expressão me mostrou que estava de acordo com aquilo tudo.

Ryan deu de ombros.

— Eu posso fazer as duas coisas. Shane está logo atrás de nós, e a área à frente está livre. Nenhuma porta. Fácil. — Ele deu tapinhas no ombro de Camille. — Ela está a salvo.

— É um lugar fácil de monitorar. Você não se sairia tão bem no mundo real, com Strigoi de verdade.

O sorriso dele sumiu. A raiva brilhava em seus olhos.

— Claro... Pelo que eu ouvi, você também não fez um trabalho assim tão bom lá fora, pelo menos não para o Mason.

Zombar do que havia acontecido com Stan e Christian era uma coisa. Mas dar a entender que eu era culpada pela morte de Mason? Inaceitável. Fui eu que mantive Lissa a salvo durante dois anos no mundo dos humanos. Fui eu que matei dois Strigoi em Spokane. Eu era a única aprendiza nessa escola com marcas molnija, as pequenas tatuagens dadas a um guardião para marcar a quantidade de Strigoi que ele matou. Eu soube de alguns boatos sobre o que tinha acontecido com Mason, mas ninguém nunca tinha me dito nada. A ideia de que Ryan ou qualquer outra pessoa pensasse que eu era a culpada pela morte de Mason era demais. Eu já me culpava o suficiente sem eles falarem nada.

A bomba explodiu.

Em um movimento sutil, eu passei por ele, agarrei Camille e a joguei contra a parede. Eu não a havia jogado forte o suficiente para machucar, mas ela estava claramente assustada. Seus olhos se arregalaram em choque, e eu usei meu antebraço para imobilizá-la, pressionando-o contra sua garganta.

— O que você está fazendo? — exclamou Ryan, olhando para nós, de uma para a outra. Eu mudei minha posição um pouco, ainda mantendo a pressão em Camille.

— Ajudando a enriquecer sua educação — respondi, muito satisfeita. — Às vezes os lugares não são tão seguros quanto você imagina.

— Você está maluca! Você não pode machucar uma Moroi. Se os guardiões descobrirem...

— Eu não estou machucando — argumentei, olhando para ela. — Eu estou machucando você? Você está sentindo dor?

Ela hesitou; então, ela disse que não, balançando a cabeça o quanto pôde.

— Está desconfortável?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Viu? — disse eu a Ryan. — Desconforto não é a mesma coisa que dor.

— Você está louca. Afaste-se dela.

— Eu ainda não terminei, Ry. Preste atenção, porque aqui está a minha lição: o perigo pode vir de qualquer lugar. Não só Strigoi, ou guardiões vestidos de Strigoi. Continue agindo como um escroto arrogante que pensa que sabe tudo... — pressionei meu braço um pouco mais, ainda não o suficiente para afetar a respiração dela ou causar dor de verdade — ...e vai acabar não prestando atenção em algumas coisas. E isso pode matar a sua Moroi.

— Tudo bem. Tanto faz. Por favor, pare com isso — disse ele. Sua voz oscilou. Não tinha mais nenhuma atitude. — Você a está assustando.

— Eu também ficaria assustada, se minha vida estivesse em suas mãos.

O cheiro de cravo me alertou da presença de Adrian. Eu também sabia que Shane e alguns outros tinham vindo ver. Os outros aprendizes olhavam indecisos, como se quisessem intervir, mas com medo de machucarem Camille. Eu sabia que devia deixá-la ir, mas Ryan tinha me deixado muito irritada. Eu precisava lhe dar uma lição. Eu precisava me vingar do que ele havia dito. E, na verdade, eu tampouco sentia pena de Camille, porque ela certamente fizera fofoca sobre mim também.

— Isso é fascinante — disse Adrian, com a sua voz arrastada, como sempre. — Mas eu acho que você já provou a sua teoria.

— Eu não sei — disse eu. O tom da minha voz conseguia ser doce e ameaçador ao mesmo tempo. — Acho que o Ryan ainda não entendeu.

— Pelo amor de Deus, Rose! Eu entendi — implorou Ryan. — Deixe-a ir.

Adrian se moveu ao meu redor, aproximando-se de Camille. Ela e eu estávamos bem juntas, mas ele conseguiu ficar entre nós, com o rosto bem na minha frente, quase ao lado do dela. Estava com aquele sorriso bobo que ele normalmente tinha, mas havia algo sério naqueles seus olhos verde-escuros.

— Isso, dampirinha. Deixe-a ir. Você já acabou por aqui.

Quis dizer a Adrian para sair de perto de mim, que caberia a mim dizer quando aquilo deveria acabar. Mas, de alguma maneira, não conseguia achar palavras. Uma parte de mim estava com raiva por essa interferência. A outra parte achava que ele soava... razoável.

— Deixe-a ir — repetiu ele.

Meus olhos agora estavam em Adrian, não em Camille. De repente, as duas partes acharam que ele soava razoável. Completamente razoável. Eu precisava deixá-la ir. Movi meu braço e me afastei. Com um gemido, Camille correu para trás de Ryan, usando-o como escudo. Eu vi agora que ela estava quase chorando. Ryan só olhava abismado.

Adrian se endireitou e gesticulou com indiferença para Ryan.

— Eu sairia daqui... antes que você irrite a Rose de verdade.

Ryan, Camille e os outros foram se afastando de nós. Adrian colocou o braço em volta de mim e me apressou até a biblioteca. Eu me senti estranha, como se estivesse acordando, mas a cada passo as coisas iam clareando. Eu tirei o braço dele de mim e o empurrei.

— Você acabou de usar compulsão em mim! — exclamei. — Você me fez soltá-la.

— Alguém precisava fazer isso. Você parecia estar a ponto de estrangulá-la.

— Não estava, não. E eu não faria isso. — Abri a porta da biblioteca. — Você não tinha o direito de fazer isso comigo. Nenhum direito mesmo. — Compulsão, ou seja, fazer as pessoas obedecerem, era uma habilidade que todos os vampiros possuíam em algum grau. Usá-la era considerado imoral, e a maioria não conseguia controlar esse poder bem o suficiente para causar algum dano real. O espírito, no entanto, fortalecia a habilidade, tornando Adrian e Lissa muito perigosos.

— E você não tinha o direito de atacar uma pobre garota no hall só para vingar seu orgulho ferido.

— Ryan não tinha o direito de dizer aquelas coisas.

— Eu nem sei o que são “aquelas coisas”, mas, a não ser que eu tenha julgado errado a sua idade, você está muito velha para ficar tendo um ataque por causa de fofocas.

— Tendo um ataque por...

Minhas palavras sumiram quando chegamos à mesa em que Lissa estava trabalhando. A sua expressão e sentimentos me alertavam que teríamos problemas. Eddie estava a alguns metros dela, encostado numa parede e observando a sala. Seus olhos se arregalaram ao me avistarem, mas ele não disse nada quando me aproximei.

Eu me sentei na cadeira oposta à de Lissa.

— Ei.

Ela olhou para cima, suspirou e voltou sua atenção para o livro aberto na sua frente.

— Eu estava me perguntando quando você iria aparecer — disse ela. — Você foi suspensa? — Suas palavras eram calmas e educadas, mas eu podia ler os sentimentos por trás delas. Chateada. Até um pouco irritada.

— Não dessa vez — respondi. — Só vou ter que prestar serviço comunitário.

Ela não disse nada, mas a irritação que eu senti através do nosso laço continuou a mesma.

Dessa vez, eu suspirei.

— Tudo bem, pode falar comigo, Liss. Eu sei que você está brava.

Adrian olhou para mim, para ela, e depois para mim de novo.

— Acho que eu estou perdendo alguma coisa aqui.

— Ah, que ótimo — disse eu. — Você foi lá e acabou com a minha briga, e nem sabia do que se tratava.

— Briga? — perguntou Lissa, a confusão se misturando à raiva.

— O que houve? — perguntou Adrian.

Fiz sinal com a cabeça para Lissa.

— Vamos lá, diga a ele.

— Rose foi testada hoje cedo e se recusou a proteger Christian. — Ela balançou a cabeça, exasperada, e olhou para mim com um olhar acusador. — Não acredito que você ainda possa estar irritada o bastante para fazer algo assim. É infantil.

Lissa tinha chegado às mesmas conclusões que os guardiões. Eu suspirei.

— Eu não fiz isso de propósito! Acabei de passar por uma audiência interminável sobre essa besteira e disse a eles a mesma coisa.

— Então, o que aconteceu? — indagou ela. — Por que você fez aquilo?

Eu hesitei, sem saber o que dizer. Minha relutância não tinha a ver com Adrian e Eddie ouvindo também — apesar de eu não querer que eles ouvissem. O problema era outro, mais complexo.

Dimitri estava certo — havia pessoas em quem eu podia confiar, e em duas delas eu confiava incondicionalmente: nele e em Lissa. Eu já tinha deixado de contar a ele. Será que eu iria — ou poderia — fazer o mesmo com ela? Apesar de ela estar irritada, eu sabia que, sem dúvida, Lissa iria sempre me apoiar e estaria comigo quando eu precisasse. Mas assim como fiz com Dimitri, eu me neguei a contar minha história de fantasmas. Assim como naquele momento, eu me vi diante do mesmo impasse: louca ou incompetente?

Através de nosso laço, eu senti sua mente, pura e limpa. Não tinha nenhuma mancha, nenhuma escuridão ou sinal de loucura — mas, mesmo assim, algo se remexia no fundo. Uma pequena agitação. Antidepressivos demoram um tempo para entrar e sair completamente do organismo de alguém, mas a magia dela já despertava depois de um dia sem eles. Me lembrei dos meus encontros fantasmagóricos, me incomodando com as lembranças daquele translúcido e triste Mason. Como eu poderia começar a explicar isso a ela? Como poderia falar de algo tão estranho e fantástico como isso, quando ela vinha se esforçando tanto para conseguir um pouco de normalidade em sua vida, e agora ainda enfrentava o desafio de controlar sua magia?

Eu percebi que não poderia fazer isso. Não poderia contar a ela. Não ainda – principalmente quando, de repente, eu lembrei que tinha algo ainda maior para dizer a ela.

— Eu congelei — disse eu, finalmente. — É ridículo. Eu sempre me gabei tanto de ser capaz de derrotar qualquer um, e aí o Stan... — Eu dei de ombros. — Não sei. Eu só não consegui reagir. É... é realmente vergonhoso. E logo com ele.

Lissa me estudou atentamente, procurando algum sinal de desonestidade. Doeu pensar que ela não acreditou em mim, exceto por... bem, por eu estar realmente mentindo. Mas, como eu tinha dito ao Dimitri, eu podia ser uma ótima mentirosa quando queria. Lissa não saberia.

— Eu queria poder ler a sua mente — brincou ela.

— Fala sério — disse eu. — Você me conhece. Acha mesmo que eu faria isso? Abandonaria Christian e faria papel de idiota de propósito, só para me vingar dos professores?

— Não — disse ela, por fim. — Você provavelmente agiria de forma que não pudesse ser pega depois.

— Dimitri disse a mesma coisa — resmunguei. — Fico feliz que todo mundo leve tanta fé em mim.

— Nós levamos — respondeu ela. — Por isso que é tão estranho.

— Até eu cometo erros. — Eu fiz a minha cara mais petulante, superconfiante. — Sei que é difícil de acreditar, e até me assusta, mas acho que isso tem que acontecer. Deve ser uma maneira cármica de balancear o Universo. De outra forma, não seria justo ter uma pessoa tão incrivelmente perfeita.

Adrian, que estava milagrosamente calado, para variar, assistia a nós duas conversando como quem olha o ir e vir de uma bolinha de tênis. Seus olhos estavam meio fechados, e suspeitei que ele estivesse analisando nossas auras.

Lissa virou os olhos, mas felizmente a raiva que sentira nela diminuiu. Ela acreditava em mim. Seu olhar, então, pulou de mim para alguém mais atrás. Eu senti as alegres e douradas emoções que sinalizavam a presença de Christian.

— Minha leal guarda-costas retorna — declarou ele, puxando uma cadeira. Ele olhou para Lissa. — Você já terminou?

— Terminei o quê? — perguntou ela.

Ele inclinou a cabeça para mim.

— De dar uma bronca nela por ter me jogado nas garras do Alto.

Lissa enrubesceu. Ela já estava se sentindo um pouco mal por vir para cima de mim, agora que eu tinha me defendido. A observação irreverente e sábia de Christian só a fizera se sentir mais boba.

— Nós só estávamos falando sobre o assunto. Só isso.

Adrian bocejou e se esparramou na cadeira.

— Na verdade, eu acho que entendi tudo agora. Foi uma armação, não foi? Uma armação para me assustar, já que estou sempre falando que quero você como minha guardiã. Você pensou que, se fingisse que era uma guardiã ruim, eu não iria mais querê-la. Bom, isso não vai funcionar, então não precisa mais arriscar a vida de ninguém.

Me senti grata por ele não ter mencionado o incidente no hall. Ryan com certeza tinha passado dos limites, mas, quanto mais o tempo passava, mais eu achava difícil de acreditar que eu pudesse ter estourado assim. Parecia algo que havia acontecido com outra pessoa, algo ao qual eu tinha só assistido. Claro, é como se eu estivesse estourando por tudo ultimamente.

Eu tinha ficado irada por ter sido designada para o Christian, irada pelas acusações dos guardiões, irada por... Ah, claro. Já estava na hora de eu soltar a bomba.

— Então, é... tem algo que vocês deviam saber.

Os olhos de Lissa, Christian, Adrian e até os de Eddie se voltaram para mim.

— O que houve? — perguntou Lissa.

Não existia mesmo uma maneira fácil de contar a eles, então eu simplesmente soltei:

— É o seguinte: parece que Victor Dashkov nunca foi oficialmente considerado culpado por nada que fez conosco. Ele acabou de ser preso. Mas finalmente vai acontecer um julgamento oficial, na semana que vem, eu acho.

A reação de Lissa ao ouvir o nome dele foi parecida com a minha. Senti o choque através do laço, seguido de medo. Uma espécie de filme começou a passar em sua mente. O jeito como o jogo doentio de Victor a fez questionar sua própria sanidade. A tortura a que seu lacaio a havia sujeitado. O estado sangrento em que ela encontrara Christian depois do ataque dos cães de caça de Victor. Ela cerrou os punhos sobre a mesa, suas juntas ficando brancas. Christian não conseguia sentir a reação dela como eu, e nem precisava. Ele colocou suas mãos sobre as dela. Lissa mal notou.

— Mas... mas... — Ela deu um suspiro profundo, lutando para se acalmar. — Como ele ainda não foi julgado culpado? Todos sabem... Todos viram...

— É a lei. Eles supostamente têm que dar a ele uma chance de se defender.

A confusão a atravessava da cabeça aos pés, e pouco a pouco ela percebeu a mesma coisa que eu, na noite anterior, com Dimitri.

— Então... espere... você está dizendo que ainda existe uma chance de não o considerarem culpado?

Eu olhei nos olhos dela, muito abertos, assustados, e não consegui responder. Aparentemente, minha expressão disse tudo.

Christian bateu com o punho sobre a mesa.

— Isso é idiotice! — Várias pessoas de outras mesas pararam para olhar aquele ataque.

— Isso é política — disse Adrian. — As pessoas no poder nunca têm que obedecer as regras.

— Mas ele quase matou Rose e Christian! — exclamou Lissa. — E ele me sequestrou! Como pode haver alguma dúvida?

As emoções de Lissa eram um turbilhão. Medo. Tristeza. Raiva. Ofensa. Confusão. Desamparo. Eu não queria vê-la sucumbir em meio a esses sentimentos sombrios, e torci desesperadamente para que ela se acalmasse. E devagar ela se acalmou — mas então eu comecei a me irritar de novo. Parecia o que tinha havido com Ryan.

— É uma formalidade, aposto — disse Adrian. — Quando todas as evidências forem expostas, provavelmente não haverá muito que discutir.

— Mas é esse o problema — disse eu, amargamente. — Eles não terão todas as evidências. Nós não recebemos permissão para ir.

— O quê? — exclamou Christian. — Então, quem vai testemunhar?

— Os guardiões que estiveram lá. Parece que não acreditam que podemos guardar segredo do caso. A rainha não quer que todos saibam que um de seus preciosos membros reais possa ter feito algo de errado.

Lissa não pareceu ficar ofendida por eu esculhambar os membros da realeza.

— Mas nós somos a razão pela qual ele está sendo julgado — disse Lissa.

Christian se levantou, olhando ao redor, como se Victor pudesse estar na biblioteca.

— Vou resolver isso agora.

— Claro — disse Adrian. — Aposto que ir até lá e arrombar a porta com um chute vai mudar a opinião deles. Leve Rose com você e poderão causar uma impressão muito boa.

— Ah, é? — perguntou Christian, apertando o encosto da cadeira e fitando Adrian com um olhar tempestuoso. — E você tem uma ideia melhor?

A calma de Lissa começou a oscilar de novo.

— Se o Victor fosse libertado, ele viria atrás da gente de novo?

— Se ele voltar a ficar em liberdade, não vai continuar assim por muito tempo — disse eu. — Eu me encarrego disso.

— Calma aí — disse Adrian. Ele parecia achar tudo isso muito engraçado. — Nem você escaparia da acusação de assassinar um membro da realeza.

Eu ia dizer a Adrian que começaria por ele, mas aí a voz cortante de Eddie interrompeu meus pensamentos.

— Rose.

Um instinto desenvolvido após anos de treinamento instantaneamente despertou em mim. Eu ergui a vista e logo identifiquei o que ele tinha reparado. Emil acabara de entrar na biblioteca e estava analisando os aprendizes, fazendo anotações. Eu saí correndo da minha cadeira, me posicionando não muito longe de Eddie, o que me deu uma visão de Christian e de boa parte da biblioteca. Droga. Eu tinha que me controlar, ou daria motivo para pensarem que Ryan estava certo. Entre minha confusão no hall e essa história do Victor, eu estava negligenciando completamente as minhas obrigações como guardiã. Eu talvez nem fosse precisar de Mason para falhar nisso.

Emil não tinha me visto sentada fazendo uma social. Ele passou por nós, nos olhou e anotou alguma coisa antes de seguir analisando o resto da biblioteca. Aliviada por escapar dessa quase enrascada, tentei me controlar de novo. Foi difícil. Aquele mau humor me apanhou de novo, e ouvir a revolta de Lissa e Christian por causa do julgamento de Victor não estava me ajudando a relaxar. Eu queria ir até lá e me intrometer. Eu queria gritar, e discursar, e dividir minha frustração. Mas esse não era um luxo que eu tinha como guardiã. Meu primeiro dever era proteger os Moroi, e não sucumbir aos meus impulsos. De novo e de novo, eu repetia o mantra dos guardiões: Eles vêm primeiro.

Essas palavras estavam começando a me irritar de verdade.


Sete

Quando veio o primeiro aviso do toque de recolher, os Moroi arrumaram suas coisas. Adrian saiu logo, mas Lissa e Christian se encaminharam para o dormitório sem a menor pressa. Eles andavam de mãos dadas e com as cabeças bem próximas uma da outra, sussurrando algo que eu poderia “espiar” se entrasse na cabeça de Lissa. Eles ainda estavam ultrajados com as notícias sobre Victor.

Decidi dar privacidade a eles e mantive distância, vigiando enquanto Eddie andava para o lado deles. Por terem mais Moroi do que dampiros no campus, os Moroi tinham na verdade dois dormitórios lado a lado. Lissa e Christian ficavam em quartos separados. Os dois pararam quando chegaram ao ponto onde o caminho através do pátio se dividia. Eles se deram um beijo de boa-noite, e eu me esforcei para seguir aquele procedimento de ver-sem-realmente-ver típico dos guardiões. Lissa me disse tchau e então foi para o seu dormitório com Eddie. Eu segui Christian até o dele.

Se eu fosse a guardiã de Adrian, ou de alguém como ele, eu provavelmente teria que aguentar gracinhas sobre nós dormirmos perto um do outro pelas próximas seis semanas. Mas Christian me tratava de maneira casual e sucinta, como se eu fosse irmã dele. Ele esvaziou um lugar no chão para mim, e, quando terminou de escovar os dentes e voltou, eu havia preparado uma confortável cama de lençóis para mim. Ele apagou as luzes e subiu na sua cama.

Depois de um bom momento em silêncio, eu perguntei:

— Christian?

— Agora é hora de dormir, Rose.

Eu bocejei.

— Acredite, eu também quero dormir. Mas tenho uma pergunta.

— É sobre o Victor? Porque eu preciso dormir, e isso só vai me irritar de novo.

— Não, é sobre outra coisa.

— Tudo bem. Pergunte.

— Por que você não zombou de mim sobre o que aconteceu com o Stan? Todo mundo está tentando descobrir se eu estraguei tudo, ou se fiz de propósito. Lissa foi dura comigo. Adrian também, um pouco. E os guardiões... bem, melhor deixar para lá. Mas você não falou nada. Pensei que você seria o primeiro a se queixar.

Mais silêncio. Esperei que ele estivesse pensando em uma resposta, e não dormindo.

— Não tinha por que encher você com isso — disse ele, finalmente. — Sei que você não fez aquilo de propósito.

— Por que não? Não que eu esteja desmentindo o que você disse, porque eu não fiz aquilo de propósito, mas por que essa certeza toda?

— Por causa da nossa conversa na aula de ciência culinária. E pelo jeito que você é. Eu vi você em Spokane. Qualquer um que tenha feito o que você fez para nos salvar... bem, você não faria algo tão infantil.

— Nossa. Obrigada. Eu... Bem, isso significa muito para mim. — Christian acreditava em mim, mesmo quando ninguém mais acreditava. — Você é a primeira pessoa que realmente acredita que eu só estraguei tudo, sem nenhum motivo secreto.

— Bem — disse ele —, eu também não acredito nisso.

— Nisso o quê? Que eu estraguei tudo? Por que não?

— Você não está me ouvindo? Eu vi você em Spokane. Alguém como você não estraga tudo ou congela. — Eu ia lhe dizer o mesmo que havia dito aos guardiões, que matar Strigoi não me tornava invencível, mas ele me cortou: — Além do mais, eu vi a sua cara lá.

— Lá... no pátio?

— Sim. — Mais alguns momentos de silêncio. — Não sei o que houve, mas você parecia... você não parecia alguém tentando se vingar. Também não era a expressão de alguém amarelando diante de um ataque do Alto. Era algo coisa diferente... Não sei. Mas você estava completamente absorta em alguma outra coisa. E, sinceramente? A sua cara? Meio assustadora.

— E mesmo assim... você também não está me enchendo com isso.

— Não é problema meu. Se foi algo grande o suficiente para perturbar você assim, deve ser sério. Mas, quando a situação fica preta, eu me sinto protegido com você, Rose. Sei que você me protegeria se fosse um Strigoi de verdade lá. — Ele bocejou. — Pronto. Agora que já abri meu coração, será que a gente pode ir dormir? Talvez você não precise de um sono de beleza, mas alguns de nós não temos a mesma sorte.

Eu o deixei dormir, e logo sucumbi à exaustão também. Eu teria um longo dia, e ainda estava supercansada da noite anterior. Assim que caí em sono profundo, comecei a sonhar. Enquanto eu o fazia, notei os sinais de ser aquela uma das criações de Adrian.

— Ah, não — gemi.

Eu estava num jardim em pleno verão. O ar estava pesado e úmido, e os raios de sol batiam em mim como ondas douradas. Flores de todas as cores desabrochavam ao meu redor, e o ar estava tomado pelo perfume de lilases e rosas. Abelhas e borboletas dançavam de flor em flor. Eu vestia uma calça jeans e uma regata de linho. Meu nazar, um pequeno olho azul feito de vidro que, teoricamente, afastava todo o mal, estava pendurado no meu pescoço. Eu também usava um bracelete de miçangas com uma cruz, chamado chotki. Era uma relíquia da família Dragomir, que Lissa me dera. Eu raramente usava joias no meu dia a dia, mas aquela sempre aparecia nos meus sonhos.

— Onde você está? — perguntei. — Eu sei que você está aqui.

Adrian saiu de trás de uma macieira robusta e carregada de flores rosas e brancas. Ele vestia um jeans — algo que eu nunca o vira usar antes. A calça era bonita e, sem dúvida, de marca. Uma camisa de algodão verde-escura — também muito simples — cobria o seu torso, e a luz do sol mostrava mechas de cabelo douradas e amendoadas em seu cabelo castanho.

— Eu disse para você sair dos meus sonhos — comecei, levando minhas mãos à cintura.

Ele me deu aquele sorriso bobo.

— Mas, então, como iríamos conversar? Você não parecia muito amistosa mais cedo.

— Talvez, se não usasse compulsão nos outros, você teria mais amigos.

— Eu precisava salvá-la de si mesma. Sua aura estava como uma nuvem escura.

— Será que, só dessa vez, a gente pode, por favor, não falar sobre auras e a minha ruína iminente?

Seu olhar me dizia que ele estava realmente interessado naquele assunto, mas ele desistiu:

— Tudo bem. Podemos falar de outras coisas.

— Mas eu não quero nem falar! Eu quero dormir.

— Você está dormindo. — Adrian sorriu e andou para observar uma videira florida que se enrolava num poste. Tinha flores laranja e amarelas, no formato de um trompete. Ele gentilmente passou a mão sobre a borda de uma delas. — Este era o jardim da minha avó.

— Ótimo — disse eu, me ajeitando confortavelmente contra a macieira. Parecia que aquilo ia durar um bom tempo. — Vamos ouvir a história da sua família agora.

— Ei, ela era uma senhora legal.

— Tenho certeza de que sim. Posso ir agora?

Seus olhos estavam compenetrados naquelas flores.

— Você não devia fazer pouco das árvores genealógicas dos Moroi. Você não sabe nada sobre o seu pai. Nós poderíamos ser parentes, e você nem iria suspeitar.

— Assim você me deixaria em paz?

Voltando o olhar para mim, ele mudou de assunto como se nunca tivesse sido interrompido.

— Ah, não se preocupe. Eu acho que a gente vem de árvores diferentes. O seu pai não era turco?

— Sim, segundo a minha... Ei, você está olhando os meus seios?

Ele estava me estudando de perto, mas seu foco não estava mais no meu rosto. Eu cruzei os braços sobre o peito e o encarei.

— Estou olhando para a sua camisa — disse ele. — A cor não está certa.

Ele esticou o braço e tocou a alça. Como tinta se espalhando pelo papel, o tecido branco ganhou o mesmo tom de anil das flores da videira. Ele cerrou os olhos como se fosse um artista profissional analisando sua obra.

— Como você fez isso? — exclamei.

— É o meu sonho. Hum. Azul não combina com você. Bom, ao menos não nesse tom. Vamos tentar outro. — O azul se acendeu em um brilhante carmesim. — Pronto, assim. Vermelho é a sua cor. Vermelho como uma rosa, como uma doce, doce Rose.

— Ah, cara — disse eu. — Eu não sabia que você podia entrar em modo lunático também em sonhos.

Ele nunca ficou tão soturno e depressivo quanto Lissa ficara no ano passado, mas o espírito definitivamente o deixava meio estranho às vezes.

Ele se afastou e abriu bem os braços.

— Eu sempre fico louco quando estou com você, Rose. Olhe, vou compor um poema de improviso para você. — Ele jogou a cabeça para trás e gritou para o céu:

Rose de vermelho,

Mas nunca de azul,

Afiada como um espinho,

Também briga como um.


Adrian abaixou os braços e olhou para mim, esperançoso.

— Como pode um espinho brigar? — perguntei.

Ele balançou a cabeça.

— A arte não precisa fazer sentido, dampirinha. Além disso, eu teoricamente sou louco, não sou?

— Já vi gente mais louca.

— Bem — disse ele, dando um passo para analisar algumas hortênsias —, eu vou me esforçar para mudar isso.

Eu ia perguntar de novo sobre quando eu poderia “voltar” a dormir, mas nossa conversa me fez pensar numa coisa.

— Adrian... como a gente sabe se está louco ou não?

Ele deixou as flores de lado, com um sorriso no rosto. Eu sabia que ele estava prestes a fazer uma piada, mas aí ele me olhou mais de perto. O sorriso se foi, e ele ficou estranhamente sério.

— Você se acha louca? — perguntou ele.

— Eu não sei — respondi, olhando para o chão. Eu estava descalça, e a grama afiada pinicava meus pés. — Eu ando... vendo coisas.

— Pessoas loucas quase nunca se perguntam se são loucas — disse ele, argutamente.

Eu suspirei e olhei de volta para ele.

— Isso não me ajuda muito.

Ele se aproximou de mim e colocou a mão no meu ombro.

— Eu não acho que você esteja louca, Rose. Só acho que você já passou por coisas demais.

Franzi o cenho.

— O que isso significa?

— Significa que eu não acho que você esteja louca.

— Obrigada. Isso esclarece tudo. Esses sonhos estão realmente começando a me irritar, sabia?

— A Lissa não se importa com eles.

— Você visita os sonhos dela também? Você não tem nenhum limite mesmo?

— Ah, os dela são didáticos. Ela quer aprender a fazer isso.

— Ótimo. Então eu sou a sortuda que tem que aguentar esse seu assédio sexual.

Ele pareceu realmente sentido quando disse:

— Queria muito que você não agisse como se eu fosse o Mal encarnado.

— Desculpe, mas nada me tem feito acreditar que você possa fazer algo que preste.

— Claro. Ao contrário do seu mentor papa-anjo. Eu não vejo você fazer muito progresso com ele.

Eu dei um passo para trás e cerrei os olhos.

— Deixe Dimitri fora disso.

— Eu deixo, se você parar de agir como se ele fosse perfeito. Corrija-me se eu estiver errado, mas ele é um dos que esconderam o julgamento de você, não é?

Eu desviei o olhar.

— Isso não importa agora. Além disso, ele teve lá os seus motivos.

— Isso, motivos que aparentemente não envolvem ser franco com você ou brigar pela sua presença lá. Enquanto eu... — Ele encolheu os ombros. — Eu poderia colocar você no julgamento.

— Você? — perguntei com uma gargalhada. — E como vai conseguir isso? Encontrando com o juiz para fumar um cigarrinho? Usando compulsão na rainha e em metade da realeza?

— Você não devia devia descartar assim tão depressa aqueles que podem ajudá-la. Só espere. — Ele plantou um beijo suave em minha testa, do qual eu tentei fugir. — Mas, por ora, vá descansar.

O jardim desapareceu, e eu voltei para a escuridão normal do sono.


Oito

Durante os dias seguintes, acompanhei Christian sem nenhum incidente. E, enquanto eu fazia isso, percebi que estava cada vez mais impaciente.

Primeiro, porque estava descobrindo que grande parte das tarefas de uma guardiã envolvia ficar apenas esperando. Eu sempre soube disso, mas a realidade era mais dura do que eu imaginava. Guardiões eram essenciais para quando os Strigoi atacavam. Mas esses ataques? Costumavam ser raros. O tempo podia passar — anos poderiam passar — sem que um guardião tivesse que se envolver em qualquer tipo de embate. Se por um lado os instrutores não nos faziam esperar tanto nessa experiência, por outro desejavam nos ensinar paciência e a importância de não relaxarmos só porque não houvera nenhum perigo até então.

Também estávamos sendo submetidos às condições mais rigorosas possíveis para um guardião: sempre de pé, e sempre mantendo a formalidade. Era bem comum que guardiões vivendo com famílias Moroi agissem de maneira casual em suas casas e fizessem atividades normais, como ler ou ver tevê — ao mesmo tempo perfeitamente alertas a quaisquer perigos. Não era algo que podíamos sempre esperar, por isso tínhamos que treinar bastante, enquanto estávamos na escola.

Meu nível de paciência não andava muito bem com toda essa espera, mas a minha frustração era mais do que falta de descanso. Eu estava desesperada para mostrar serviço e compensar a vez em que não reagi quando Stan atacou. Eu não tivera mais nenhuma visão com Mason, e decidira que aquilo que eu tinha visto fora causado por fadiga e estresse. Isso me fazia feliz, porque eram causas muito melhores do que loucura ou incompetência.

Mas algumas coisas não estavam me fazendo feliz. Um dia, quando Christian e eu nos encontramos com Lissa depois da aula, pude sentir preocupação e raiva irradiando dela. Mas só captei isso por causa do nosso laço. Por fora, ela parecia ótima. Eddie e Christian, que conversavam sobre alguma coisa, não perceberam nada.

Eu me aproximei e coloquei meu braço ao redor dela, enquanto andávamos.

— Está tudo bem. Tudo vai ficar bem. — Eu sabia o que a estava incomodando. Victor.

Havíamos decidido que Christian — apesar de sua determinação em “resolver as coisas” — provavelmente não seria a melhor escolha para tentar nos colocar no julgamento do Victor. Então Lissa bancou a diplomata noutro dia e foi falar com Alberta sobre a possibilidade de nós testemunharmos. Alberta tinha dito a ela, tão educadamente quanto Lissa, que isso estava fora de questão.

— Pensei que, se a gente explicasse tudo, se disséssemos por que isso é tão importante, eles nos deixariam ir — murmurou ela. — Rose, eu não consigo dormir... só penso nisso. E se ele for solto? E se eles de fato o soltarem?

Sua voz vacilou, e tinha uma estranha vulnerabilidade nela que eu não via há muito tempo. Esse tom geralmente me soava como um alarme, mas dessa vez ele desencadeou uma série incomum de memórias, de tempos em que Lissa dependera de mim muito mais. Eu estava feliz em ver como ela havia ficado forte, e queria ter certeza de que continuaria assim. Puxei-a mais para perto, algo difícil de fazer enquanto andávamos.

— Ele não vai ser solto — disse eu firmemente. — Nós iremos ao julgamento. Vou me certificar disso. Você sabe que eu nunca deixaria nada acontecer a você.

Ela encostou a cabeça no meu ombro, com um pequeno sorriso.

— É isso que eu amo em você. Você não faz ideia de como nos colocar no julgamento, mas vai tentar mesmo assim, só para me fazer sentir melhor.

— Está funcionando?

— Sim.

Ainda sentia uma preocupação nela, mas sua satisfação disfarçou um pouco os efeitos. Além disso, apesar de ela ter brincado sobre a ousadia da minha promessa, aquelas palavras realmente a acalmaram.

Infelizmente, nós logo descobrimos que Lissa tinha outros motivos para estar frustrada. Ela estava esperando passar o efeito do medicamento para sua magia voltar completamente. Estava lá – nós podíamos sentir –, mas ela não conseguia usá-la. Três dias haviam se passado, e tudo continuava na mesma. Eu estava triste por ela, mas minha principal preocupação era o seu estado mental — que até então parecia bem.

— Não sei o que está acontecendo — reclamou ela. Nós estávamos quase no prédio comunitário. Lissa e Christian planejavam assistir a um filme. Eu meio que me perguntava o quão difícil seria para mim assistir ao filme e me manter alerta. — É como se eu devesse ser capaz de fazer alguma coisa, mas ainda não conseguisse. Eu estou travada.

— Pode não ser uma coisa ruim — comentei, me afastando de Lissa para analisar o caminho à frente.

Ela me lançou um olhar desanimado.

— Você se preocupa demais. Pensei que esse fosse o meu trabalho.

— Ei, é o meu trabalho me preocupar com você.

— Na verdade, é trabalho meu — disse Eddie, numa rara amostra de bom humor.

— Nenhum de vocês devia se preocupar — argumentou ela. — Não por isso.

Christian passou um dos braços pela cintura dela.

— Você é mais impaciente do que Rose. Tudo o que você precisa fazer é...

Foi como um déjà vu.

Stan pulou de trás de umas árvores e apanhou Lissa, abraçando-a por trás e puxando-a para junto de si. Meu corpo respondeu imediatamente, sem hesitação, quando parti para “salvar” Lissa. O único problema é que Eddie reagiu com a mesma prontidão e estava mais perto, o que o colocava à frente de mim. Eu circulei por eles tentando entrar na briga, mas, do jeito que os dois estavam se enfrentando, era impossível eu ser útil ali.

Eddie abordou Stan pela lateral, feroz e veloz, libertando Lissa com tanta força que quase seria capaz de arrancar o braço de Stan das articulações. Por Eddie ser esguio, ninguém esperava que ele fosse tão forte. A mão de Stan pegou o rosto de Eddie por um dos lados, cravando-lhe as unhas, mas foi o suficiente para que Lissa pudesse sair e correr para Christian, atrás de mim. Com ela fora do caminho, eu me esgueirei para o lado, tentando ajudar Eddie — mas já não havia mais necessidade. Sem pensar duas vezes, ele agarrou Stan e o jogou no chão. Em um piscar de olhos, a estaca de treinamento de Eddie estava bem em cima do coração de Stan.

Stan riu, genuinamente satisfeito.

— Bom trabalho, Castile.

Eddie guardou a estaca e ajudou seu instrutor a se levantar. Com o fim da ação, eu via agora como o rosto de Stan estava espancado e roxo. Para nós, aprendizes, os ataques podiam ser poucos e espaçados, mas nossos guardiões estavam entrando em brigas todo dia, durante essa experiência. Todos eles vinham sendo muito exigidos, mas lidavam com aquilo com graça e bom humor.

— Obrigado, senhor — disse Eddie. Ele parecia satisfeito, mas não presunçoso.

— Eu seria mais rápido e forte se fosse um Strigoi, claro, mas juro que você poderia ter lutado contra um, com essa sua velocidade. — Stan voltou a olhar para Lissa. — Você está bem?

— Sim — disse ela, radiante. Eu podia sentir que ela realmente havia gostado daquela excitação. A adrenalina estava lá em cima.

O sorriso de Stan desapareceu quando ele se virou para mim.

— E você? O que estava fazendo?

Eu o encarei, horrorizada com aquele tom rude. Foi o que ele disse da última vez também.

— Como assim? Eu não congelei nem nada dessa vez! Estava pronta para ajudá-lo, só esperando uma chance.

— Sim — concordou ele. — É exatamente esse o problema. Você estava tão ansiosa para entrar na briga que esqueceu que tinha dois Moroi atrás de você. Os tratou como se nem existissem. Você estava em um espaço aberto, e lhes deu as costas.

Eu avancei até ele e o olhei fixamente, sem ligar para as boas maneiras.

— Isso não é justo. Não venha me dizer que, se estivéssemos no mundo real e um Strigoi atacasse, o outro guardião deixaria de entrar na briga para destruí-lo o mais rápido possível.

— Você provavelmente tem razão — disse Stan. — Mas não era em eliminar logo o perigo que você estava pensando. Ou nos Moroi que você deixou expostos. Você estava era pensando em como poderia se redimir o mais depressa possível.

— Q-quê? Não acha que está sendo um pouquinho precipitado? Está me avaliando pelo que você acha que foi minha motivação. Como pode ter certeza do que eu estava pensando? — Eu mesma não sabia, muitas vezes.

— Instinto — respondeu ele, enigmaticamente. Pegou um bloquinho de papel e fez algumas anotações. Eu apertei os olhos, desejando poder enxergar através do bloquinho para saber o que ele estava escrevendo sobre mim. Quando terminou, ele devolveu o bloquinho ao bolso do casaco e cumprimentou a todos. — Vejo vocês mais tarde.

Observamos enquanto ele andou pelo chão cheio de neve até o ginásio, onde os dampiros treinavam. Eu ainda estava boquiaberta, e não conseguia nem formar palavras. O que aconteceu com essas pessoas? Eu estava levando bomba a todo momento por detalhes técnicos idiotas, que não tinham nada a ver com o mundo real.

— Não é justo. Como ele pode me julgar pelo que ele acha que eu estava pensando?

Eddie deu de ombros, enquanto continuávamos andando até o dormitório.

— Ele pode pensar o que quiser. É nosso instrutor.

— Tudo bem, mas ele vai me dar outra nota ruim! Experiência de campo não tem sentido se não podemos mostrar como nos sairíamos contra Strigoi de verdade. Não consigo acreditar. Eu sou boa, realmente boa. Como posso estar me dando mal nisso?

Ninguém esboçou uma resposta para isso, mas Lissa disse, desconfortável:

— Bem... independente de ele ter sido justo ou injusto, numa coisa ele acertou: você foi ótimo, Eddie.

Eu olhei para o Eddie e me senti mal por estar deixando o meu drama pessoal ofuscar o sucesso dele. Eu estava irritada — muito irritada —, mas a injustiça do Stan era problema meu. Eddie tinha sido brilhante, e todo mundo o elogiou tanto na volta que eu até notei suas bochechas corando. Ou talvez fosse apenas o frio. De qualquer maneira, eu estava feliz por ele.

Nós entramos no salão, felizes por ver que ninguém mais o tinha reservado e que estava quente e agradável ali. Todos os dormitórios tinham alguns desses salões, todos abarrotados de filmes, jogos e muitas cadeiras e sofás confortáveis. Eles só eram liberados aos estudantes algumas vezes. Nos finais de semana, ficavam sempre abertos, mas durante a semana o tempo de uso era limitado — provavelmente, para nos encorajar a fazer os deveres de casa.

Eddie e eu analisamos aquele local, traçamos um plano e aí assumimos nossas posições. Encostada na parede, eu via com alguma inveja o sofá em que Lissa e Christian estavam esparramados.

Achei que o filme fosse tirar minha atenção, mas, na verdade, foram os meus pensamentos que fizeram minha cabeça girar. Eu não podia acreditar no que Stan havia dito. Ele tinha até admitido que, no calor da batalha, qualquer guardião tentaria intervir para ajudar. Seu argumento sobre eu ter segundas intenções em busca de reconhecimento e glória era absurdo. Eu me perguntei se não corria um sério risco de fracassar naquela experiência de campo. Contanto que eu passasse, eles não tirariam Lissa de mim logo após a formatura, tirariam? Alberta e Dimitri falaram como se isso tudo fosse apenas uma experiência, para dar a Lissa e a mim um novo treinamento, mas, de repente, uma parte ansiosa e paranoica de mim começou a duvidar. Eddie estava fazendo um ótimo trabalho protegendo-a. Talvez eles quisessem averiguar quão bem ela trabalharia com outros guardiões. Talvez temessem que eu só soubesse protegê-la, e não a outros Moroi — eu tinha deixado Mason morrer, afinal de contas, não tinha? Talvez o verdadeiro teste seria ver se eu precisava ser substituída. Até porque quem era eu, na verdade? Uma aprendiza dispensável. Ela era a princesa Dragomir. Ela sempre teria proteção, e não necessariamente a minha. O laço seria inútil se no fim eu me provasse completamente incompetente.

A chegada de Adrian colocou minha paranoia frenética em modo de espera. Ele entrou na sala escura e me deu uma piscadela quando sentou na cadeira perto de mim. Sabia que era só uma questão de tempo até que ele aparecesse. Devíamos ser o seu único entretenimento no campus. Ou talvez não, julgando pelo cheiro de álcool que o envolvia.

— Você está sóbrio? — perguntei, quando o filme terminou.

— O suficiente. O que contam de novo?

Adrian não visitava meus sonhos desde aquele no jardim. Ele também havia parado um pouco com aqueles flertes descarados. A maioria de seus encontros conosco se resumia a praticar com Lissa ou matar um pouco do seu tédio.

Nós o atualizamos sobre o nosso encontro com o Stan, frisando o brilhantismo de Eddie e omitindo o meu fracasso.

— Bom trabalho — disse Adrian. — Parece que você também ganhou uma cicatriz de batalha. — Ele apontou para o rosto de Eddie, onde três marcas se mostravam para nós. Eu lembrei as unhas de Stan acertando Eddie durante a luta para libertar Lissa.

Eddie tocou a bochecha de leve.

— Eu mal sinto isso.

Lissa inclinou-se para frente e o analisou.

— Você arranjou isso me defendendo.

— Arranjei isso tentando passar na minha experiência de campo — brincou ele. — Não se preocupe.

E foi aí que aconteceu. Eu vi aquilo tomar conta dela, aquela compaixão e necessidade irresistível de ajudar os outros, que tão frequentemente se apoderava dela. Ela não conseguia ver dor, não suportava se abster, quando realmente podia fazer algo a respeito. Senti o poder crescendo nela, um sentimento glorioso e rodopiante que fazia meus dedos do pé formigarem. Eu estava vivenciando como isso a afetava. Era um fogo e um alívio. Intoxicante. Ela esticou o braço e tocou o rosto de Eddie...

E as marcas desapareceram.

Ela abaixou a mão, e a euforia do espírito sumiu de nós duas.

— Filha da mãe... — suspirou Adrian. — Então era verdade mesmo. — Ele olhou para a bochecha de Eddie. — Nem um vestígio das cicatrizes.

Lissa tinha levantado e agora se jogava de volta para o sofá. Ela recostou a cabeça e fechou os olhos.

— Eu consegui. Ainda posso fazer isso.

— É claro que pode — disse Adrian, despreocupado. — Agora você tem que me mostrar como se faz isso.

Ela abriu os olhos.

— Não é tão fácil assim.

— Ah, já entendi — disse ele, num tom afetado. — Você me torra a paciência sobre como ver auras e entrar em sonhos, mas não quer revelar os segredos das suas habilidades.

— Não é uma questão de “querer” — argumentou ela. — É de poder.

— Bem, prima, vamos tentar. — E de repente, ele enfiou as unhas na própria mão e a fez sangrar.

— Meu Deus! — gritei. — Você ficou louco?

A quem eu queria enganar? Era óbvio que sim.

Lissa esticou o braço, tocou a mão dele e, assim como antes, ela curou a pele. Lissa se encheu de exaltação, mas o meu humor piorou, do nada.

Os dois começaram uma discussão que eu não conseguia acompanhar, usando termos difíceis de magia, e alguns que eu tinha quase certeza haviam inventado na hora. A julgar pela cara de Christian, parecia que ele também não entendia muito, e logo se tornou claro que Adrian e Lissa haviam se esquecido de nós em meio ao entusiasmo pelos mistérios do espírito.

Christian finalmente se levantou, aparentando tédio.

— Vamos lá, Rose. Se eu quisesse ouvir isso, voltaria para as aulas. Estou com fome.

Lissa olhou para cima.

— O jantar só sai daqui a uma hora e meia.

— Fornecedor — disse ele. — Eu ainda não tive o meu hoje.

Ele beijou Lissa numa das bochechas e saiu. Eu segui logo ao lado. Voltara a nevar, e eu observava os flocos caindo ao nosso redor com um ar acusador. Quando começou a nevar, em dezembro, eu havia ficado empolgada. Mas aquela porcaria branca já estava enchendo o saco. Apesar disso, como tinha acontecido algumas noites atrás, sair nesse clima rigoroso me neutralizava; o vento frio meio que me fazia acordar. A cada passo que eu dava rumo aos fornecedores, eu me sentia mais calma.

Fornecedores é como chamamos os humanos que se voluntariam para serem as fontes de sangue dos Moroi. Diferentemente dos Strigoi, que matavam as vítimas de quem se alimentavam, os Moroi só tomavam um pouco daquele sangue por dia, sem sacrificar o doador. Esses humanos viviam para a “onda” que sentiam com as mordidas de vampiro, e pareciam perfeitamente felizes em passar suas vidas assim, separados da própria espécie. Era estranho, mas necessário para os Moroi. A escola normalmente disponibilizava um ou dois fornecedores nos dormitórios Moroi para as horas noturnas, mas em grande parte do dia os alunos tinham de ir até o prédio comunitário para conseguir suas doses.

Enquanto eu continuava andando, olhando árvores, cercas e rochas brancas, um outro elemento branco me chamou a atenção na paisagem. Bem, não era exatamente branco. Tinha cor — pálida, meio esmaecida.

Parei ab-ruptamente e senti meus olhos se arregalando. Mason estava no lado oposto do pátio, quase se misturando a uma árvore e um poste. “Não”, pensei. Eu me convencera de que aquilo tinha acabado, mas lá estava ele, me observando com aquela cara pesarosa de fantasma. Ele apontou para algo na parte de trás do campus. Me voltei para onde ele apontava sem fazer ideia do que devia procurar. Olhando de volta para ele, eu só conseguia encará-lo, o medo se revirando dentro de mim.

Uma mão gelada tocou meu pescoço, e eu me virei. Era Christian.

— Que foi? — perguntou ele.

Olhei novamente para onde eu tinha visto Mason. Ele tinha desaparecido, lógico. Apertei meus olhos um pouco e suspirei. Então, me voltando para Christian, eu segui em frente dizendo:

— Nada.

Christian sempre tinha algum tipo de comentário irônico e inteligente para fazer quando estávamos juntos, mas ele permaneceu em silêncio durante o resto do caminho. Eu estava consumida pelos meus próprios pensamentos e preocupações com Mason, então também não tinha muito o que falar. Essa visão só havia durado alguns segundos. Considerando quão difícil era enxergar lá, me parecia mais provável que tivesse sido alguma ilusão, certo? Eu tentei me convencer disso pelo resto de nossa caminhada. Quando entramos no prédio comunitário e fugimos do frio, finalmente me ocorreu que havia algo de errado com Christian.

— O que houve? — perguntei, tentando não pensar em Mason. — Você está bem?

— Sim — respondeu ele.

— O jeito como você disse isso prova que não está, não.

Ele me ignorou enquanto adentramos a sala dos fornecedores. Havia mais gente do que eu esperava, e todos os cubículos onde os fornecedores ficavam estavam cheios de Moroi. Brandon Lazar era um deles. Enquanto ele se alimentava, avistei um machucado verde meio apagado na sua bochecha e me lembrei de que eu nunca descobri quem o havia surrado. Christian apresentou-se aos Moroi na entrada e ficou esperando até ser chamado. Eu vasculhei meu cérebro, tentando descobrir o que poderia ter deixado o Christian chateado.

— O que aconteceu? Não gostou do filme?

Nenhuma resposta.

— Ficou enojado com a automutilação do Adrian? — Encher o saco de Christian era algo que, mesmo com culpa, me trazia prazer. Eu poderia fazer isso a noite toda.

Nenhuma resposta.

— Você... Ah.

Por fim, eu entendi. Fiquei surpresa por não ter pensado nisso antes.

— Está chateado porque a Lissa queria falar de magia com o Adrian?

Ele deu de ombros, e isso era tudo o que eu precisava saber.

— Sério, ela não gosta de magia mais do que gosta de você. É que isso é importante para ela, sabe? Ela passou todos esses anos achando que não poderia usar uma magia de verdade, e aí ela descobre que pode... apesar de ser esse tipo estranho e completamente imprevisível de magia. Ela só está tentando entender isso.

— Eu sei — disse ele, firmemente, olhando para a grande sala, sem prestar atenção em ninguém em específico. — Não é esse o problema.

— Então, por que... — Parei de falar quando outra revelação me veio à cabeça: — Você está com ciúmes do Adrian.

Christian fixou seus olhos azuis de gelo em mim, e agora eu sabia que tinha acertado.

— Eu não estou com ciúmes. Eu só...

— ...está inseguro porque sua namorada tem passado muito tempo com um cara rico e até bonitinho, de quem ela talvez goste. Ou, como gostamos de chamar, está com ciúmes.

Ele virou as costas para mim, claramente incomodado.

— A lua de mel pode ter acabado entre nós dois, Rose. Droga. Por que essas pessoas estão demorando tanto?

— Escute — disse eu, mudando de posição. Meus pés doíam depois de tanto tempo em pé. — Você não ouviu o meu discurso romântico no outro dia, sobre você estar no coração de Lissa? Ela é louca por você. Você é o único cara que ela quer, e, acredite em mim, eu sei disso com cem por cento de certeza. Se houvesse outra pessoa, eu saberia.

Um sorriso começou a surgir nos lábios dele.

— Você é a melhor amiga dela. Você poderia acobertá-la.

Eu zombei da ideia.

— Não se ela estivesse com Adrian. Eu garanto, ela não tem nenhum interesse nele, graças a Deus, pelo menos não interesses românticos.

— Mas ele pode ser persuasivo. Ele sabe usar compulsão...

— Mas não está usando nela. Nem sei se ele conseguiria... acho que eles se anulam. Além do mais, você não tem prestado atenção? Eu sou a infeliz que ele quer.

— Sério? — perguntou Christian, claramente surpreso. Os caras são tão tapados para essas coisas... — Eu sei que ele flerta...

— E aparece sem ser convidado nos meus sonhos. Sabendo que não tenho como escapar, ele tem a chance perfeita de me torturar com aquele suposto charme e suas tentativas de ser romântico.

Christian ficou desconfiado.

— Ele aparece nos sonhos de Lissa também.

Droga. Eu não devia ter entrado nesse assunto. O que o Adrian tinha dito mesmo?

— Os dela são didáticos. Não acho que você deva se preocupar.

— As pessoas não ficariam encarando se ela aparecesse em alguma festa com Adrian.

— Ah — disse eu. — Então era isso. Você acha que vai desmoralizá-la?

— Eu não sou muito bom... nesse tipo de coisa social — admitiu ele, numa rara amostra de vulnerabilidade. — E acho que Adrian tem uma reputação melhor do que a minha.

— Você está brincando?

— Fala sério, Rose. Beber e fumar nem se comparam às pessoas acharem que você vai virar um Strigoi. Eu vi como todo mundo reagiu quando ela me levou para aqueles jantares e coisas do gênero, na estação de esqui. Eu sou um peso. Ela é a única representante de sua família. E vai passar o resto da vida presa a assuntos políticos, tentando se dar bem com as outras pessoas. Adrian poderia ser bem melhor para ela do que eu.

Eu resisti à vontade de literalmente balançar a cabeça dele para a ficha cair.

— Eu entendo o que você está dizendo, mas existe uma falha nessa sua lógica perfeitinha. Não tem nada rolando entre ela e o Adrian.

Ele desviou os olhos e não disse mais nada. Eu suspeitava que seus sentimentos iam além da possibilidade de ela estar com outro cara. Como ele mesmo admitiu, ele cultivava um emaranhado de inseguranças a respeito de Lissa. Estar com ela havia feito maravilhas pela sua atitude e sociabilidade, mas, no fim das contas, ele ainda sofria por ter vindo de uma família estigmatizada. Ele ainda temia não ser bom o suficiente para ela.

— Rose está certa — disse uma voz desagradável atrás da gente.

Preparando a minha carranca mais devastadora, eu me virei para encarar Jesse. Naturalmente, Ralf espreitava por perto. Dean, o aprendiz que tinha sido designado para Jesse, estava parado perto da porta, só observando. Eles aparentavam ter uma relação mais formal de guarda-costas. Jesse e Ralf não estavam na fila quando chegamos, mas pelo jeito cortaram caminho e ouviram o suficiente da nossa conversa.

— Você ainda é da realeza. Tem todo o direito de estar com ela.

— Uau, por falar em reviravoltas... — disse eu. — Vocês não estavam me contando noutro dia como Christian poderia virar um Strigoi a qualquer momento? Se eu fosse vocês, cuidaria melhor do próprio pescoço. Ele parece perigoso.

Jesse deu de ombros.

— Bom, você disse que Christian estava limpo, e se tem alguém aqui que entende de Strigoi, é você. Além do mais, estamos começando a achar que essa natureza rebelde dos Ozera é na verdade uma coisa boa.

Eu olhei para ele, suspeitando que aquilo pudesse ser algum truque. Mesmo assim, ele parecia sincero, como se realmente achasse que Christian era confiável.

— Obrigado — disse Christian, com um tom irônico. — Agora que você aceitou a mim e à minha família, posso finalmente seguir com a minha vida. Era a única coisa que estava me prendendo.

— É sério — disse Jesse. — Os Ozera têm estado meio na deles ultimamente, mas costumavam ser uma das famílias mais importantes por aí. E podem voltar a ser, especialmente você. Você não tem medo de fazer o que não devia. A gente gosta disso. Se você parasse com essa história de ser antissocial, poderia fazer os amigos certos e ir longe. Você poderia parar de se preocupar tanto com a Lissa.

Christian e eu trocamos olhares.

— O que está querendo dizer? — perguntou ele.

Jesse sorriu e olhou misteriosamente ao nosso redor.

— Alguns de nós temos nos encontrado. Formamos um grupo... como uma maneira de nós, de famílias melhores, nos unirmos, sabe? As coisas andam meio loucas, com todos aqueles ataques Strigoi no mês passado e as pessoas sem saberem o que fazer. E também aquela história de nos fazer lutar e achar novas maneiras de distribuir os guardiões — disse ele com desdém, e me arrepiei ao ouvi-lo falar nos guardiões como se fossem objetos. — Muitos que não são da realeza estão tentando tomar o controle.

— Por que isso seria um problema, se as ideias deles são boas? — perguntei, incisiva.

— As ideias deles não são boas. Eles não sabem o seu lugar. Alguns de nós começamos a pensar em formas de nos protegermos disso e de cuidarmos uns dos outros. Acho que você iria gostar do que aprendemos a fazer. Afinal de contas, nós é que devemos continuar tomando as decisões, não os dampiros ou os Moroi não reais. Nós somos a elite. Os melhores. Junte-se a nós, e poderíamos ajudá-lo com a Lissa de várias maneiras.

Não pude evitar. Eu ri. Christian parecia enojado.

— Retiro o que disse antes — disse ele. — Isso é o que eu vinha esperando a minha vida inteira. Um convite para participar do seu clubinho particular.

Um Ralf grande e desengonçado veio até nós.

— Não sacaneie a gente. Isso é sério.

Christian suspirou.

— Então não me sacaneie também. Se estão achando que eu quero andar com vocês e deixar as coisas ainda mais fáceis para os Moroi, que já são mimados e egoístas, então vocês são realmente mais idiotas do que eu imaginava. E isso já era bastante idiota.

Raiva e vergonha percorreram os rostos de Jesse e Ralf, mas por sorte o nome de Christian foi chamado. Ele parecia bem feliz ao atravessarmos a sala. Nada como um confronto com dois imbecis para fazer você se sentir de bem com a sua vida amorosa.

O fornecedor de Christian daquela noite era uma mulher chamada Alice, a fornecedora mais velha do campus. A maioria dos Moroi preferia doadores jovens, mas Christian, sendo a pessoa estranha que era, gostava dela porque era meio senil. Ela não era tão velha — casa dos sessenta —, mas muita endorfina de vampiro durante vida a tinham afetado permanentemente.

— Rose — disse ela, voltando aqueles olhos confusos para mim. — Você quase nunca está com Christian. Você e Vasilisa brigaram?

— Não — respondi. — Só estou mudando um pouco de ares.

— Ares — murmurou ela, olhando para uma janela próxima. Os Moroi mantinham as janelas pintadas para bloquear a luz, e eu duvido que um humano pudesse ver algo. — Os ares estão sempre mudando. Você reparou?

— Não os nossos ares — disse Christian, sentando-se ao lado dela. — Esse frio não vai a lugar algum. Não pelos próximos meses.

Ela suspirou e olhou assustada para ele.

— Eu não estava falando dos ares.

Christian sorriu para mim, entretido, então se inclinou para a frente e cravou os dentes no pescoço de Alice. A expressão dela tornou-se relaxada, e todo aquele papo de ares ou o que ela queria dizer foi esquecido enquanto ele se alimentava. Eu passava tanto tempo ao lado de vampiros que quase não reparava mais nos seus caninos. A maioria dos Moroi os escondia muito bem. Era somente em momentos como esse que eu me lembrava dos poderes que um vampiro tinha.

Normalmente, ao observar um vampiro se alimentando, eu pensava em quando Lissa e eu fugíramos da Escola, e eu a deixava se alimentar de mim. Nunca cheguei a ficar tão viciada quanto um fornecedor, mas eu tinha curtido a onda. Gostava daquilo de uma maneira que eu nunca poderia assumir para ninguém. No nosso mundo, só os humanos doavam sangue. Os dampiros que faziam isso eram vistos como vulgares e eram humilhados.

Agora, quando eu assistia a um vampiro se alimentar, nem pensava mais em como era boa aquela onda. Em vez disso, eu pensava naquela sala em Spokane, onde Isaiah, nosso sequestrador Strigoi, havia se alimentado de Eddie. Os sentimentos que cresciam em mim eram tudo, menos bons. Eddie sofreu tanto, e eu não pude fazer nada, a não ser sentar e olhar. Com uma careta, tirei os olhos de Christian e Alice.

Quando deixamos a sala dos fornecedores, Christian parecia mais vibrante e otimista.

— O final de semana está aí, Rose. Sem aulas, e você vai ter o seu dia de folga.

— Não — disse eu, quase esquecendo. Droga. Por que ele tinha que me lembrar? Eu já havia quase superado o incidente com Stan. Suspirei. — Eu tenho serviço comunitário.


Nove

com tantos Moroi com antepassados na Europa Oriental, o cristianismo ortodoxo era a religião predominante no campus. Outras religiões eram representadas também, mas eu diria que, no final das contas, só metade dos alunos ia a algum tipo de missa regularmente. Lissa era um desses alunos. Ela ia à igreja todo domingo, porque ela acreditava. Christian também comparecia. Ele ia porque ela ia, e também porque o fazia parecer mais bonzinho e menos propenso a virar um Strigoi. Já que os Strigoi não podiam entrar em terreno sagrado, aquelas visitas regulares lhe proporcionavam uma base mínima de respeitabilidade.

Quando não dormia além da conta, eu aparecia na igreja para fazer uma social. Lissa e meus outros amigos normalmente ficavam por lá para fazer alguma coisa legal depois, então a igreja era um bom ponto de encontro. Se Deus se importava por eu usar sua capela como uma forma de incrementar minha vida social, Ele nunca me avisava. Ou isso, ou Ele só estava esperando o momento certo para me punir.

Quando a missa acabou naquele domingo, no entanto, eu tive que ficar pela capela, porque meu trabalho comunitário seria ali. Quando o lugar esvaziou, fiquei surpresa ao perceber que uma pessoa havia permanecido ali comigo: Dimitri.

— O que você está fazendo aqui? — perguntei.

— Achei que você talvez precisasse de uma ajuda. Ouvi dizer que o padre pretende fazer uma grande arrumação.

— Sim, mas não é você que está sendo punido aqui. E também é seu dia de folga. A gente... bem, todos os outros... passaram a semana lutando, mas eram vocês que entravam nas brigas o tempo todo. — Na verdade, eu notava agora que Dimitri também tinha alguns machucados, embora não tantos quanto Stan. Havia sido uma longa semana para todos, e essa ainda era a primeira de seis.

— O que mais eu faria hoje?

— Posso pensar em um monte de outras coisas — respondi, secamente. — Provavelmente está passando por aí algum filme do John Wayne que você ainda não viu.

Ele balançou a cabeça.

— Não, não está. Eu já vi todos. Olhe, o padre está esperando por nós.

Eu me virei. E, realmente, o padre Andrew estava à frente, nos observando pacientemente. Ele havia trocado os ricos trajes que usava na missa por calças folgadas e uma camisa de botão. Parecia estar pronto para trabalhar também, e eu me perguntei o que acontecera com aquela história de o domingo ser um dia de descanso.

Enquanto Dimitri e eu nos aproximávamos para receber nossas tarefas, ponderei sobre o que teria motivado Dimitri a estar ali. Com certeza ele não queria realmente trabalhar no seu dia de folga. Eu não estava acostumada a ter que ficar pensando sobre suas ações. Elas eram sempre claras e deveria haver uma explicação simples agora também. Só não sabia ainda qual era.

— Obrigado por vocês se voluntariarem para me ajudar. — O padre Andrew sorriu para nós. Tentei não esboçar nenhuma reação debochada diante desse “se voluntariarem”. Ele era um Moroi de quase cinquenta anos, com um cabelo grisalho e ralo. Mesmo sem levar muita fé em religião, eu ainda gostava dele e o respeitava. — Não faremos nada muito complicado hoje. É um pouco chato, na verdade. Vamos ter que limpar, é claro, e depois separar as caixas de suprimentos empilhadas no sótão.

— Ficaremos felizes em fazer o que o senhor precisar — disse Dimitri, solenemente. Eu contive um suspiro e tentei não pensar em tudo que eu poderia estar fazendo.

Então colocamos a mão na massa.

Minha tarefa era varrer, e Dimitri ia tirar o pó e polir os bancos de madeira. Ele parecia absorto e concentrado enquanto limpava, como se realmente sentisse orgulho por aquele trabalho. Eu ainda tentava descobrir por que ele estava ali, afinal. Não me entenda mal; eu estava feliz com aquilo. Sua presença fazia com que eu me sentisse melhor, e, é claro, eu sempre adorava ficar olhando para ele.

Pensei que talvez ele estivesse ali para conseguir mais informações minhas sobre o que acontecera naquele dia com Stan, Christian e Brandon. Ou que talvez quisesse me punir pelo outro dia, com o Stan, quando eu fora acusada de lutar por motivos egoístas. Essas pareciam ser boas explicações, ainda que ele não tenha dito nada. Mesmo quando o padre saiu do santuário para ir ao seu escritório, Dimitri continuou trabalhando em silêncio. Se ele tivesse algo a dizer, pensei, teria dito naquela hora.

Quando terminamos de limpar, o padre Andrew nos fez arrastar caixas e mais caixas do sótão para a despensa no fundo da capela. Lissa e Christian frequentemente usavam aquele sótão como um refúgio secreto, e me perguntei se torná-lo mais limpo seria bom ou ruim para os seus encontros amorosos. Talvez parassem de vez com aquilo, e eu poderia enfim dormir um pouco.

Com todas as caixas no térreo, os três nos sentamos no chão e começamos a organizá-las. O padre Andrew nos deu instruções sobre o que guardar e o que jogar fora, e era um alívio finalmente dar um descanso para os meus pés naquela semana. Ele jogou conversa fora enquanto trabalhávamos, me perguntando sobre as aulas e tal. Não foi tão ruim.

E, enquanto trabalhávamos, pensei numa coisa. Eu tinha feito um bom trabalho me convencendo de que Mason fora uma ilusão causada por falta de descanso, mas ouvir de uma autoridade que fantasmas não existiam faria eu me sentir melhor.

— Ei, o senhor acredita em fantasmas? — perguntei ao padre Andrew. — Digo, tem alguma menção a eles nessas... — Indiquei o cenário à nossa volta. — ...nessas coisas?

A pergunta obviamente o surpreendeu, mas ele não pareceu ofendido por eu ter chamado sua vocação e o trabalho de uma vida inteira de “coisas”. Ou por eu ser claramente ignorante a respeito de tudo aquilo, mesmo tendo assistido às missas por dezessete anos. Uma expressão perplexa apareceu em seu rosto, e ele interrompeu o trabalho.

— Bom... depende do que você chama de “fantasma”, eu acho.

Cutuquei um livro de teologia e disse:

— A ideia por trás disso tudo é que, quando você morre, vai para o céu ou para o inferno. Isso faz dos fantasmas apenas histórias da carochinha, não? Eles não estão na Bíblia, nem nada.

— Mais uma vez — disse ele —, tudo depende da sua definição. Nossa fé sempre defendeu que, depois da morte, o espírito se separa do corpo e por isso ainda pode permanecer no nosso mundo.

— O quê? — A tigela empoeirada que eu estava segurando me caiu das mãos. Felizmente, era de madeira e não quebrou. Eu a recolhi depressa. Essa não era a resposta que eu esperava. — Por quanto tempo? Para sempre?

— Não, não, claro que não. Isso seria uma negação à ressurreição e salvação, os pilares da nossa crença. Mas acredita-se que a alma pode permanecer na Terra de três a quarenta dias depois da morte. Ela recebe um julgamento “temporário” que a encaminha deste mundo para o céu ou o inferno, embora ninguém experimente nenhum dos dois em sua plenitude até o Dia do Juízo Final, quando a alma e o corpo se reencontram para viver a eternidade como um só.

Não cheguei a absorver aquela parte sobre salvação. A que dizia “de três a quarenta dias” é que chamou minha atenção. Eu esqueci completamente a tarefa que eu estava fazendo.

— Tudo bem, mas isso é verdade ou não? Os espíritos rondam mesmo a Terra por quarenta dias depois da morte?

— Ah, Rose. Aqueles que precisam perguntar se a fé é verdadeira estão começando uma discussão para a qual provavelmente não estão preparados.

Eu senti que ele estava certo. Dei um suspiro e me voltei para a caixa à minha frente.

— Mas, se isso a ajuda, algumas dessas ideias sobre fantasmas lembram as crenças dos povos da Europa Oriental que já existiam antes da propagação do cristianismo — disse ele bondosamente. — Essas tradições há muito tempo vêm pregando a ideia de espíritos vagando por aqui depois da morte, principalmente se ela foi violenta ou de alguém jovem.

Eu congelei. Qualquer progresso que eu tivesse feito para me convencer de que Mason apareceu por puro estresse tinha ido por água abaixo. Morte violenta ou de alguém jovem.

— Por quê? — perguntei bem baixinho. — Por que eles iriam ficar por aqui? Seria por... por vingança?

— Tenho certeza de que existem aqueles que pensam isso, e outros que pensam que é porque a alma tem problemas para encontrar a paz, depois de algo tão chocante.

— Em que o senhor acredita?

Ele sorriu.

— Acredito que a alma se separa do corpo, tal como nossos pais nos ensinaram, mas duvido que o período que elas passam a mais por aqui seja algo que nós, vivos, possamos compreender. Não é como nos filmes, com fantasmas assombrando prédios ou indo visitar antigos conhecidos. Eu entendo esses espíritos mais como energias existindo ao nosso redor, algo além de nossa percepção, enquanto esperam para seguir em frente e encontrar a paz. Em última análise, o que importa é o que acontece além deste plano, quando recebemos a vida eterna, que nosso Criador conseguiu para nós com Seu grande sacrifício. Isso é o que importa.

Eu me perguntava se o padre Andrew responderia assim tão rápido se tivesse visto o que eu vi. Morte violenta ou de alguém jovem. Esses dois tipos se aplicavam a Mason, e ele havia morrido menos de quarenta dias atrás. Aquele rosto muito, muito triste voltou à minha cabeça, e eu me perguntava o que ele simbolizava. Vingança? Ou ele realmente não conseguia encontrar paz?

E como essa teologia do padre Andrew sobre céu e inferno se aplicaria ao caso de alguém como eu, que tinha morrido e voltado à vida? Victor Dashkov disse que eu tinha ido ao mundo dos mortos e voltado depois que Lissa me curou. Que mundo dos mortos? Era o céu ou o inferno? Ou era outra forma de chamar esse estado intermediário de que o padre Andrew estava falando?

Eu não falei nada depois disso, porque a ideia de um Mason vingativo era assustadora demais. O padre Andrew sentiu essa mudança em mim, mas ele obviamente não sabia o que a tinha causado. Então tentou me distrair um pouco.

— Acabei de receber uns livros novos de um amigo de outra paróquia. Histórias interessantes sobre são Vladimir. — Ele inclinou a cabeça. — Você ainda está interessada nele? E em Anna?

Teoricamente, eu estava. Até a gente conhecer o Adrian, só sabíamos da existência de outros dois usuários do espírito. Uma era a nossa antiga professora, a senhora Karp, que tinha enlouquecido completamente por causa do espírito e virado Strigoi para acabar com aquele sofrimento. A outra pessoa era são Vladimir, de onde vinha o nome da escola. Ele vivera séculos atrás, e trouxera sua guardiã, Anna, dos mortos, como a Lissa tinha feito comigo. Anna tornou-se uma guardiã beijada pelas sombras, e passou a dividir um laço psíquico com são Vladimir.

Em geral, Lissa e eu tentávamos reunir tudo o que podíamos sobre Anna e Vlad, para aprender mais sobre nós mesmas. Mas, por mais incrível que fosse para mim admitir, eu tinha problemas maiores agora do que tentar entender esse laço estranho e onipresente entre mim e Lissa. Isso tinha sido superado por um fantasma possivelmente ressentido do meu papel em sua morte precoce.

— Arrã — disse eu, evasivamente, sem fazer contato visual. — Estou interessada... mas não acho que eu vá conseguir ler tão cedo. Ando meio ocupada com essa coisa toda de... sabe, experiência de campo.

Fiquei em silêncio de novo. Ele entendeu a indireta e me deixou trabalhar sem mais interrupções. Dimitri não disse nada durante essa conversa. Quando organizamos tudo, o padre Andrew nos falou que tínhamos mais uma tarefa antes de podermos ir. Ele apontou para algumas das caixas que tínhamos arrumado e vedado de novo.

— Preciso que vocês levem isso para o campus do primário — disse ele. — Deixem essas caixas no dormitório Moroi de lá. A professora Davis tem dado aulas dominicais a algumas das crianças e pode querer utilizá-las.

Dimitri e eu precisaríamos fazer pelo menos duas viagens, e o campus do primário era bem longe. De qualquer maneira, isso me deixaria a um passo da liberdade.

— Por que você está interessada em fantasmas? — me perguntou Dimitri na nossa primeira viagem.

— Estava só puxando assunto — respondi.

— Não consigo ver sua cara agora, mas sinto que você está mentindo de novo.

— Caramba, todo mundo tem pensado o pior de mim ultimamente. Stan me acusou de buscar reconhecimento e glória.

— Eu soube — disse Dimitri, enquanto virávamos a esquina. Os prédios do campus do primário começavam a aparecer à nossa frente. — Foi um pouco injusto da parte dele.

— Um pouco, é? — Ouvi-lo admitir isso me excitava, mas não acabava com meu ódio contra Stan. Aquele sentimento sombrio e rabugento que vinha me assombrando por esses dias voltou à vida. — Bem, obrigada, mas não estou mais levando muita fé nessa experiência de campo. Às vezes, nem no próprio sistema da escola.

— Você não está falando sério.

— Não sei. A escola parece presa a regras e questões políticas que não têm nada a ver com a vida real. Eu vi o que tem lá fora, camarada. Eu fui direto para a toca do lobo. Às vezes... eu não sei se isso aqui realmente prepara a gente.

Eu estava esperando ele argumentar, mas, para a minha surpresa, ele disse:

— Às vezes eu concordo.

Eu quase tropecei quando entramos em um dos dois dormitórios Moroi no campus do primário. A recepção parecia muito com a do campus do secundário.

— É sério? — perguntei.

— Sério — disse ele, com um sorrisinho. — Digo, eu não acho que os aprendizes devam ser jogados no mundo aos dez anos de idade ou algo do gênero, mas às vezes penso que a experiência de campo deveria ocorrer no próprio campo de batalha. Eu provavelmente aprendi mais no meu primeiro ano como guardião do que em todos os meus anos de treinamento. Bem... talvez não tudo. Mas é uma situação diferente, com certeza.

Nós trocamos olhares, satisfeitos com nossa concordância. Alguma coisa quente correu dentro de mim, colocando panos quentes naquela raiva anterior. Dimitri entendeu minha frustração com o sistema, e depois me entendeu. Ele olhou em volta, mas não havia ninguém à mesa. Alguns estudantes adolescentes estavam trabalhando ou conversando na recepção.

— Ah — disse eu, ajeitando o peso das caixas de uma das mãos para a outra. — Nós estamos no dormitório do ensino fundamental. As crianças mais novas estão no outro prédio.

— Sim, mas é aqui que a professora Davis mora. Vou tentar achá-la para descobrirmos onde ela vai querer que deixemos isso. — Ele colocou com cuidado suas caixas no chão. — Já volto.

Eu o observei ir e também pus minhas caixas no chão. Encostada numa parede, dei uma olhada ao redor e quase pulei de susto quando vi uma menina Moroi perto de mim. Ela estava tão perfeitamente imóvel que eu não tinha percebido que estava ali. Ela parecia ter uns treze ou quatorze anos, mas era alta, bem mais alta do que eu. A magreza do seu corpo Moroi acentuava sua altura. Seu cabelo era uma nuvem de cachos castanhos, e ela tinha pequenas sardas — raras entre os pálidos Moroi. Seus olhos se arregalaram quando ela percebeu que eu a olhava.

— Meu-deus-do-céu. Você é Rose Hathaway, não é?

— Sim — respondi, surpresa. — Você me conhece?

— Todo mundo conhece você. Digo, todo mundo já ouviu falar de você. Você é a menina que fugiu. E aí, você voltou e matou aqueles Strigoi. Isso foi tão maneiro. Você conseguiu marcas molnija? — As palavras saíram em uma única sequência. Ela quase não respirou.

— Sim, eu tenho duas. — Pensar nas pequenas tatuagens em minha nuca fizeram minha pele coçar.

Seus olhos verdes se arregalaram ainda mais — se é que isso era possível.

— Meu Deus. Uau.

Eu normalmente ficava irritada quando falavam das minhas marcas como se fossem grande coisa. Até porque as circunstâncias não foram lá as melhores. Mas essa menina era jovem, e algo me chamava a atenção nela.

— Qual o seu nome? — perguntei.

— Jillian... Jill. Digo, só Jill. Não os dois. Jillian é meu nome inteiro. Jill é como todos me chamam.

— Certo — disse eu, disfarçando um sorriso. — Eu imaginei.

— Eu soube que os Moroi usaram magia para lutar naquela viagem. É verdade? Eu adoraria fazer isso. Eu queria que alguém me ensinasse. Eu uso a água. Você acha que eu poderia lutar com Strigoi usando água? Todo mundo diz que sou louca. — Por séculos, um Moroi usando magia para lutar era visto como pecador. Todos acreditavam que a magia devia ser utilizada com fins pacíficos. Recentemente, algumas pessoas começaram a questionar isso, ainda mais depois que Christian nos mostrou como foi útil na fuga de Spokane.

— Não sei. Você devia falar com Christian Ozera.

Ela titubeou.

— E ele falaria comigo?

— Se você mencionar que vai lutar contra o sistema, é lógico que sim.

— Ah, legal. Aquele com você era o guardião Belikov? — perguntou ela, mudando de assunto ab-ruptamente.

— Sim.

Juro que ela ia desmaiar ali mesmo.

— Sério? Ele é ainda mais bonito do que eu ouvi. Ele é seu professor, certo? Digo, seu professor particular?

— Sim. — Eu me perguntava onde ele estava. Falar com a Jill era exaustivo.

— Uau. Sabe, vocês nem agem como professor e aluna. Parecem amigos. Vocês saem juntos quando não estão treinando?

— Hã, bem, mais ou menos. Às vezes. — Lembrei os meus pensamentos de antes, sobre como eu era uma das únicas pessoas com quem Dimitri socializava quando não estava sendo um guardião.

— Sabia! Eu nem consigo imaginar isso... eu ficaria louca perto dele. Eu ia me atrapalhar o tempo todo, mas você é tão tranquila com isso, andando com um cara maravilhoso sem dar a menor bola...

Eu ri meio a contragosto.

— Acho que você está me dando mais valor do que eu mereço.

— Que nada. E eu não acredito em nenhuma dessas histórias, sabe?

— Hã, que histórias?

— É, sobre você ter surrado o Christian Ozera.

— Obrigada — disse eu. Agora, rumores acerca da minha humilhação circulavam por todo o campus. Se eu fosse até os dormitórios do primário, provavelmente alguma criança de seis anos ia me contar que tinha ouvido que eu matara o Christian.

A expressão de Jill mudou para uma repentina incerteza.

— Mas eu não sei o que pensar daquela outra história.

— Que outra história?

— De que você e Adrian Ivashkov são...

— Não — interrompi, não querendo ouvir o resto. — O que quer que você tenha ouvido não é verdade.

— Mas era tão romântico...

— Então realmente não é verdade.

Sua cara se fechou, mas ela se recuperou alguns segundos depois.

— Ei, você pode me ensinar a socar alguém?

— Espere... O quê? Por que você quer aprender isso?

— Bem, acho que, se vou usar magia para lutar um dia, eu deveria aprender o método tradicional também.

— Eu provavelmente não sou a pessoa mais indicada para isso — disse eu. — Talvez você devesse pedir para... hum... o seu professor de educação física.

— Eu pedi! — Sua expressão parecia perturbada. — E ele disse não.

Eu não pude segurar o riso.

— Eu só estava brincando quando sugeri isso.

— É sério, isso poderia me ajudar a lutar com Strigoi um dia.

Minha risada estancou.

— Não poderia, não.

Ela mordeu o lábio inferior, ainda desesperada para me convencer.

— Bem, iria pelo menos me ajudar contra aquele louco.

— Quê? Que louco?

— As pessoas têm apanhado por aqui. Semana passada, foi Dane Zeklos, e no outro dia foi Brett.

— Dane... — Busquei em minha mente a genealogia Moroi. Tinha um zilhão de estudantes Zeklos. — Esse é o irmão mais novo do Jesse, não é?

Jill balançou a cabeça.

— Sim. Um de nossos professores ficou muito irritado, mas Dane não falou nada. Nem Brett.

— Brett do quê?

— Ozera.

Eu tive que perguntar de novo.

— Ozera?

Eu tinha a impressão de que ela estava realmente empolgada por me contar coisas que eu não sabia.

— Ele é o namorado da minha amiga, a Aimee. Estava todo machucado ontem, com umas marcas que pareciam ser de umas pancadas fortes também. Talvez queimaduras? Mas ele não estava tão mal quanto o Dane. E quando a professora Callahan perguntou o que era aquilo, Brett disse que não era nada, e ela deixou por isso mesmo, o que foi bem estranho. Ele também estava num ótimo bom humor, o que também era estranho, porque ninguém ia achar legal apanhar daquele jeito.

Em alguma zona do meu cérebro, aquelas palavras me lembravam alguma coisa. Tinha alguma conexão que eu devia estar fazendo, mas não conseguia saber qual era exatamente. Depois do Victor, fantasmas e experiências de campo, era de fato incrível que eu ainda conseguisse organizar as palavras numa frase.

— Então, você vai me ensinar a lutar para que eu não apanhe? — perguntou Jill, achando que sem dúvida havia me convencido. Ela levantou os punhos. — É só fazer isso, certo? Dedão embaixo dos dedos dobrados e balançar?

— Hã, bem, é um pouco mais complicado do que isso. Você precisa estar posicionada da maneira certa, ou vai machucar mais a si mesma do que a outra pessoa. Tem um monte de coisas que você tem que fazer com seus cotovelos e cintura.

— Me mostra, por favor? — implorou ela. — Aposto que você é ótima.

Eu era realmente muito boa, mas corromper menores era uma acusação que eu ainda não tinha na minha ficha, e eu preferia continuar assim. Felizmente, Dimitri voltou naquela hora com a professora Davis.

— Ei — disse eu a ele. — Tenho alguém aqui que quer conhecer você. Dimitri, esta é Jill. Jill, Dimitri.

Ele pareceu surpreso, mas sorriu e apertou a mão dela. Jill ficou vermelha e finalmente perdeu as palavras. Quando teve sua mão de volta, ela deu um “tchau” tremido e saiu correndo. A gente acertou tudo com a professora Davis e voltou para a capela, para a nossa segunda viagem.

— Jill sabia quem eu era — disse a Dimitri, enquanto andávamos. — Ela meio que me idolatrou.

— Surpresa? — perguntou ele. — Que estudantes mais novos se inspirem em você?

— Não sei. Eu só nunca tinha pensado nisso. Não acho que eu seja um modelo tão bom.

— Eu discordo. Você é extrovertida, dedicada e excelente em tudo o que faz. Ganhou mais respeito do que imagina.

Eu olhei para ele de rabo de olho.

— Mas não sou boa o suficiente para ir ao julgamento de Victor, ao que parece.

— Não me venha com isso de novo.

— Sim, venho, sim! Você não entende a gravidade disso? Victor é uma ameaça enorme!

— Sei que é.

— E, se ele for solto, vai voltar com aqueles planos loucos de novo.

— É muito improvável que ele seja solto, sabe? A maioria desses boatos sobre a rainha soltá-lo são apenas... boatos. Você, mais do que todo mundo, deveria saber que não se pode acreditar em tudo o que se ouve.

Eu olhava fixamente para a frente, me recusando a aceitar aquele argumento.

— Você, ainda assim, devia deixar a gente ir. Ou — e respirei fundo nessa hora — deveria no mínimo deixar a Lissa ir.

Falar aquilo era mais difícil para mim do que deveria ser, mas era algo em que eu andava pensando. Eu não me via como essa pessoa em busca de reconhecimento e glória, como Stan tinha falado, mas havia sempre uma parte minha que queria estar no meio de uma briga. Eu queria estar à frente, fazendo o que era certo e ajudando as pessoas. Por isso eu queria estar no julgamento do Victor. Eu queria olhar para a cara dele e ter certeza de que ele seria punido.

Mas, quanto mais o tempo passava, menos provável aquilo parecia. Eles realmente não nos deixariam ir. Embora, talvez, pudessem deixar que um de nós fosse, e, se fosse para escolher alguém, que fosse Lissa. Ela era o alvo de Victor, e mesmo que o fato de ela ir sozinha significasse, na minha cabeça, que ela não precisava mais de mim como guardiã, eu ainda preferia correr esse risco e vê-lo preso no final.

Dimitri, habituado à minha necessidade de me intrometer e participar da ação, parecia surpreso com esse meu comportamento atípico.

— Você está certa. Ela deveria estar lá, mas, de novo, não tem nada que eu possa fazer a respeito. Você fica achando que eu controlo essas coisas, mas eu não controlo.

— Mas você fez tudo o que podia? — Pensei de novo nas palavras de Adrian naquele sonho, sobre como Dimitri poderia ter feito mais. — Você tem muita influência. Deve ter alguma coisa. Qualquer coisa.

— Não tanta influência quanto você imagina. Eu tenho um cargo alto aqui na escola, mas no resto do mundo dos guardiões ainda sou muito novo. E, sim, eu realmente lutei por vocês.

— Talvez devesse ter lutado mais.

Eu podia senti-lo se desligando. Ele sempre discutia as coisas muito racionalmente, mas não continuaria aquilo enquanto eu agisse como uma pentelha. Então, tentei ser mais razoável:

— Victor sabe sobre a gente. Ele poderia dizer alguma coisa.

— Victor tem mais com o que se preocupar em seu julgamento do que com nós dois.

— Sim, mas você o conhece. Ele não age como uma pessoa normal. Se ele perder as esperanças de ser solto, pode resolver nos sacanear só para se vingar.

Eu nunca tivera a coragem de confessar o meu relacionamento com Dimitri a Lissa; no entanto, nosso pior inimigo sabia dele. Isso era mais estranho do que o Adrian saber. Victor tinha descoberto depois de nos observar e colher algumas informações. Imagino que, quando você é um vilão maquinador, você fica bom nisso. Ele nunca tornou nosso relacionamento público. Em vez disso, ele o usou contra a gente por meio de um feitiço de luxúria, feito com o elemento terra. Um feitiço assim não funcionaria se já não houvesse alguma atração entre nós. O feitiço só exacerbava as coisas. Dimitri e eu já tínhamos ficado várias vezes, e estivemos a um passo de fazer sexo. Fora uma maneira muito boa de Victor nos distrair sem recorrer à violência. Se alguém tivesse nos atacado, nós teríamos lutado muito bem. Mas tirar nossas inibições um com o outro? Mal conseguimos lutar contra isso.

Dimitri ficou calado por um bom tempo. Sei que ele sabia que meu argumento era bom.

— Então, nós teremos que lidar com isso da melhor maneira possível — disse ele, finalmente. — Mas se Victor for mesmo contar, vai fazê-lo com ou sem vocês por lá.

Eu me recusei a falar até chegarmos à igreja. Quando chegamos, o padre Andrew nos disse que, depois de checar algumas coisas, ele decidiu que só precisaria que mais uma caixa fosse levada até a professora Davis.

— Eu levo — disse eu a Dimitri, secamente, quando o padre virou as costas. — Você não precisa vir.

— Rose, não faça um estardalhaço por causa disso.

— Mas eu preciso fazer! — gritei. — E você parece que não entende isso.

— Eu entendo. Você realmente acha que eu quero ver Victor solto? Acha que quero que nós todos estejamos em perigo de novo? — Foi a primeira vez em muito tempo que eu o vi quase perdendo o controle. — Mas eu já disse, fiz tudo o que podia. Eu não sou como você... não posso ficar fazendo cena quando as coisas que eu quero não acontecem.

— Eu não faço isso.

— Está fazendo agora.

Ele estava certo. Uma parte de mim sabia que eu havia passado dos limites... mas assim como tudo o mais recentemente, eu não conseguia parar de falar.

— Aliás, por que você veio me ajudar hoje? — perguntei. — Por que está aqui?

— Isso é tão estranho assim? — Ele quase parecia magoado.

— Sim. Quer dizer, você está tentando me espionar? Descobrir por que eu estraguei tudo? Ter certeza de que não vou me meter em apuros?

Ele me encarou, tirando uma mecha de cabelo da frente dos olhos.

— Por que precisa haver algum motivo oculto?

Eu queria explodir em um monte de respostas. Quer dizer, se não havia um motivo, significava que ele apenas queria ficar perto de mim. O que não fazia sentido, porque nós dois sabíamos que só poderíamos ter uma relação de estudante e professor. Ele, acima de todas as pessoas, deveria saber disso. Foi ele que me avisou.

— Porque todos temos motivos.

— Sim. Mas nem sempre os motivos que você pensa. — Ele abriu a porta. — Vejo você mais tarde.

Eu o vi partir, meus sentimentos misturados entre raiva e confusão. Se a situação não fosse tão estranha, eu quase poderia dizer que acabáramos de ter um encontro.


Dez

No dia seguinte, recomeçaram as minhas obrigações de guardiã para com Christian. Mais uma vez, vi a minha vida ficar em segundo plano, depois da vida de outra pessoa.

— Como foi sua penitência? — perguntou ele, enquanto andávamos pelo campus saídos de seu dormitório.

Eu reprimi um bocejo. Não tinha conseguido dormir bem na noite passada, angustiada pelos meus sentimentos por Dimitri e pelo que o padre Andrew me dissera. De qualquer maneira, eu mantive meus olhos bem abertos. Tinha sido aqui que Stan nos atacara nas duas outras vezes, e além disso os guardiões eram cruéis e perturbados o suficiente para me atacarem num dia em que estava tão cansada.

— Foi legal. O padre nos liberou cedo.

— Nós?

— Dimitri passou para me ajudar. Acho que ele se sentiu mal por eu estar presa àquele trabalho.

— Ou isso, ou ele não tem mais nada para fazer agora que não tem as suas sessões extras.

— Talvez, mas eu duvido. Acho que não foi um mau dia, afinal de contas. — A não ser que você considere aprender sobre fantasmas insatisfeitos uma coisa ruim.

— Eu tive um dia ótimo — disse Christian, com um pouquinho de presunção na voz.

Eu reprimi minha vontade de revirar os olhos.

— Sim, eu sei.

Ele e Lissa haviam tirado proveito do seu dia sem guardiões para tirar proveito um do outro. Acho que eu devia ficar contente por eles terem se segurado até Eddie e eu não estarmos por perto, mas, de qualquer forma, não importava. A verdade era que, quando eu estava acordada, podia bloquear todos os detalhes, mas sabia o que estava acontecendo. Um pouco do ciúme e da raiva que eu sentira da última vez em que eles estavam juntos voltou. Era o mesmo problema da outra vez: Lissa podia fazer tudo o que eu não podia.

Eu estava morta de vontade de tomar o café da manhã. Eu podia sentir o cheiro de rabanada e de calda de bordo quentinha. Carboidratos embebidos em mais carboidratos. Delícia. Mas Christian queria sangue antes de comer algo sólido, e suas vontades eram mais importantes do que as minhas. Eles vêm primeiro. Aparentemente, ele tinha esquecido de tomar sua dose diária de sangue ontem — provavelmente para aproveitar ao máximo o seu momento romântico.

A sala dos fornecedores não estava lotada, mas mesmo assim tivemos que esperar.

— Ei — disse eu. — Você conhece Brett Ozera? Vocês são parentes, não são? — Depois do meu encontro com Jill, eu finalmente havia juntado as peças. Brett Ozera e Dane Zeklos me lembraram de como estava o Brandon no dia do primeiro ataque do Stan. O desastre que fora aquele ataque tinha me feito esquecer Brandon completamente, mas as coincidências reavivaram minha curiosidade. Todos os três foram surrados. Todos os três negaram isso.

Christian balançou a cabeça.

— Sim, do mesmo jeito que todos somos parentes. Eu não o conheço muito bem... ele é meio que um primo de terceiro ou quarto grau. É de uma parte da família que não tem muito mais a ver com a minha desde... bem, você sabe.

— Eu ouvi algo estranho sobre ele. — Então relatei o que a Jill tinha me dito sobre Dane e Brett.

— Isso é estranho — concordou Christian. — Mas as pessoas se metem em brigas.

— Sim, mas tem algumas conexões bizarras também. E a realeza não costuma estar no lado dos perdedores de uma luta, e esses três caras estavam.

— Bem, talvez seja isso. Você sabe como tem sido. Muitos membros da realeza estão se irritando porque os membros que não são reais querem mudar a forma como os guardiões são escolhidos e ainda aprender a lutar. É a grande ideia por trás do clube idiota do Jesse e do Ralf. Eles querem se assegurar de que a realeza irá se manter no topo. Os que não são da realeza provavelmente também estão ficando irritados e reagindo.

— O quê, então algum tipo de vingador está por aí, maltratando a realeza?

— Essa não seria a coisa mais estranha que já aconteceu por aqui — observou ele.

— Realmente.

O nome de Christian foi chamado, e ele espiou adiante.

— Veja só — disse ele, contente. — Alice, de novo.

— Não entendo seu fascínio por ela — observei, enquanto íamos até a voluntária mais velha. — Lissa sempre fica meio animada quando a vê também. Mas a Alice é louca.

— Eu sei — disse ele. — Por isso é tão legal.

Alice nos cumprimentou quando Christian se sentou ao lado dela. Eu me encostei na parede, de braços cruzados. Abusando da sorte, eu disse:

— Alice, os ares não mudaram. São exatamente os mesmos da outra vez.

Ela voltou os olhos para mim.

— Tenha paciência, Rose. Você deve ser paciente. E estar preparada. Você está preparada?

A mudança de assunto me assustou um pouco. Era como falar com Jill, mas de forma menos sensata.

— Hã, preparada como? Para os ares?

Num momento de ironia máxima, ela me olhou como se fosse eu a louca.

— Armada. Você está armada? Você vai nos proteger, não vai?

Enfiei a mão dentro do casaco e tirei a estaca de treinamento que me deram para a experiência de campo.

— Eu protejo você — disse eu.

Ela parecia extremamente aliviada, e aparentemente não percebeu que era uma estaca de mentira.

— Bom — disse ela. — Agora estaremos a salvo.

— Isso — disse Christian. — Rose estando armada, nós não temos nada com que nos preocupar. O mundo Moroi pode descansar.

Alice não percebeu seu sarcasmo.

— Sim. Bem, nenhum lugar é totalmente seguro.

Guardei a estaca de volta no bolso.

— Nós estamos seguros. Temos os melhores guardiões do mundo nos protegendo, sem falar dos escudos. Os Strigoi não entrarão aqui.

Não mencionei o que tinha descoberto recentemente, que Strigoi podiam fazer com que os humanos quebrassem os escudos de proteção. Eles eram linhas invisíveis de poder formadas pelos quatro elementos. Eram criados quando quatro Moroi, cada um muito bom em um dos elementos, andavam por uma área liberando magia em um círculo sobre o chão, criando uma barreira protetora. A magia Moroi era cheia de vida, e um grande campo disso poderia manter os Strigoi afastados, uma vez que eram isentos de vida. Então, frequentemente eram feitos escudos ao redor de ambientes Moroi. Muitos deles foram feitos ao redor dessa escola. Uma vez que as estacas também eram cheias da força dos quatro elementos, passar uma estaca por uma linha protetora no chão furava o escudo e cancelava sua proteção. Isso nunca tinha sido uma preocupação, já que os Strigoi não podiam sequer encostar nas estacas. Entretanto, em alguns ataques recentes, os humanos — e estes sim podiam encostar nelas — foram usados pelos Strigoi para quebrar alguns escudos. Nós acreditávamos que os Strigoi que eu matei eram os líderes do grupo, mas ainda não tínhamos certeza.

Alice me analisou bem, com seus olhos perturbados, quase como se soubesse o que eu estava pensando.

— Nenhum lugar é seguro. Escudos podem se desfazer. Guardiões podem morrer.

Olhei para o Christian, e ele deu de ombros, como quem diz: “O que você esperava dela?”

— Se vocês já acabaram com essa conversinha, será que posso comer, agora? — perguntou ele.

Alice ficou mais do que feliz em concordar; ele era o primeiro a se alimentar dela hoje. A fornecedora logo se esqueceu de escudos e tudo o mais, e simplesmente se perdeu no êxtase daquela mordida. Eu esqueci os escudos também. Só tinha uma coisa na cabeça: eu queria saber se Mason era real ou não. Tirando a explicação inquietante do padre, eu precisava admitir que as visitas do Mason não foram exatamente ameaçadoras, só assustadoras. Se o que ele queria era me pegar, estava fazendo um trabalho meio ruim. Novamente, eu pendia mais para a hipótese do estresse e do cansaço.

— Agora é a minha vez de comer — disse eu, quando Christian acabou. Eu podia jurar que sentia dali o cheiro do bacon. Isso provavelmente deixaria Christian feliz. Ele poderia envolver sua rabanada com isso.

Mal tínhamos saído da sala quando Lissa veio correndo até nós, seguida por Eddie. Seu rosto brilhava de excitação, embora os sentimentos que sentia pelo laço não fossem muito felizes.

— Vocês ouviram? — perguntou ela, meio sem fôlego.

— Ouvimos o quê? — perguntei.

— Vocês têm que se apressar; vão arrumar suas coisas. Estamos indo para o julgamento do Victor. Agora.

Não houvera nem um aviso de quando o julgamento de Victor iria acontecer, muito menos que alguém tinha nos deixado ir. Christian e eu trocamos breves olhares assustados e depois nos apressamos para o quarto dele, para arrumar nossas coisas.

Essa parte foi fácil. Minha bolsa já estava pronta, e Christian só levou alguns minutos para entulhar a sua. Em menos de meia hora, nós estávamos no aeroporto da escola. Lá havia dois jatinhos particulares, um deles nos esperando para sair. Um casal de Moroi se apressava, resolvendo pendências de última hora para a partida do avião.

Ninguém parecia entender o que estava acontecendo. Só tinham dito para a Lissa que ela, Christian e eu iríamos testemunhar, e que Eddie deveria vir junto para dar continuidade à sua experiência de campo. Não houvera nenhuma explicação sobre essa mudança de planos, e uma estranha mistura de ansiedade e apreensão se abatera sobre nós. Todos queríamos ver Victor preso para sempre, mas, agora que iríamos enfrentar a realidade do julgamento e do encontro com ele... bem, era muito assustador.

Alguns guardiões se demoravam perto das escadas do avião. Eu os reconheci — eram os que tinham nos ajudado a capturar Victor. Eles provavelmente estavam lá por dois motivos: para testemunhar e nos proteger. Dimitri estava por perto, e eu corri ao seu encontro.

— Desculpe — soltei. — Eu sinto muito.

Ele se virou para mim com aquela expressão neutra, característica dele.

— Pelo quê?

— Pelas coisas horríveis que eu disse ontem. Você conseguiu... você conseguiu mesmo. Agora vamos todos ao julgamento.

Apesar do meu nervosismo em ver Victor, eu estava muito contente. Dimitri tinha conseguido. Eu sempre soube que ele se importava comigo — e essa era uma prova. Se não houvesse tantas pessoas ali, eu o teria abraçado.

A expressão dele não mudou.

— Não fui eu, Rose. Não tive nada a ver com isso.

Alberta fez um sinal para entrarmos no avião, e ele se virou para se juntar aos outros. Fiquei parada por um momento, observando-o e tentando descobrir o que acontecera. Se ele não tinha intervindo, o que podia ser? Os esforços diplomáticos de Lissa haviam ido por água abaixo há muito tempo. Por que a mudança?

Meus amigos já estavam a bordo, então eu me apressei para alcançá-los. Logo que entrei na cabine, uma voz me chamou:

— Dampirinha! Já estava na hora de você chegar.

Eu olhei e vi Adrian me cumprimentando, com um drinque na outra mão. Ótimo. Nós nos acabamos de tanto implorar para ir, e Adrian tinha conseguido fácil assim. Lissa e Christian estavam sentados juntos, então eu fiquei ao lado de Eddie, tentando me safar de Adrian. Eddie me deixou sentar à janela. Adrian ficou no lugar à nossa frente, e daria na mesma se tivesse sentado do nosso lado, já que virava para trás o tempo todo para falar comigo. O fato de ele não calar a boca e suas investidas incessantes indicavam que ele já estava bebendo muito tempo antes de nós chegarmos. Eu queria ter bebido um pouco também, agora que estávamos voando. Uma dor de cabeça horrível começou logo que decolamos, e eu considerava a ideia de acalmá-la com vodca.

— Estamos indo para a Corte — disse Adrian. — Não está empolgada?

Eu fechei os olhos e esfreguei as têmporas.

— Com qual das duas? A da realeza ou a judicial?

— A da realeza. Trouxe um vestido?

— Ninguém disse que era para trazer.

— Então... isso é um não.

— Sim.

— Sim? Pensei que você tivesse dito não.

Eu abri um dos olhos e o fitei.

— Eu quis dizer não, você sabe disso. Não, eu não trouxe um vestido.

— Vamos arranjar um — disse ele, calmamente.

— Você vai me levar para fazer compras? Eu, com a cara e a coragem, e você, como minha confiável dama de companhia?

— Fazer compras? Até parece. Eles têm ótimos alfaiates lá. Vamos fazer algo especialmente para você.

— Nós nem vamos ficar tanto tempo assim por lá. E eu realmente preciso de um vestido para isso?

— Não, eu meio que só queria ver você em um.

Eu suspirei e apoiei minha cabeça na janela. A dor ainda estava alucinante. Era como se o ar estivesse me pressionando. Algo surgiu na minha visão periférica, e eu me virei surpresa, mas não havia nada além de estrelas lá fora.

— Algo da cor preta — continuou ele. — Seda, eu acho... talvez com um rendado. Você gosta de rendas? Algumas mulheres acham que coça.

— Adrian. — Era como um martelo, ribombando dentro e fora da minha cabeça.

— Você poderia arranjar algo de veludo também. Veludo não coça.

— Adrian. — Até meus olhos doíam.

— E então um corte do lado do vestido, para mostrar suas lindas pernas. Podia ir quase até os quadris e ter um laço...

— Adrian! — Alguma coisa se apossou de mim. — Você pode calar a sua maldita boca por cinco segundos? — Gritei tão alto que provavelmente até o piloto me ouviu. Adrian ficou com um olhar raro de surpresa no rosto.

Alberta, sentada na mesma fileira de Adrian, levou um susto em seu assento.

— Rose, o que houve?

Eu cerrei os dentes e esfreguei minha testa.

— Eu estou com a pior dor de cabeça do mundo, e ele não cala a porra da boca!

Eu nem reparei que tinha xingado na frente de um instrutor até alguns segundos depois. Do outro lado do meu campo visual, pensei ter visto outra coisa — outra sombra do lado do avião, me lembrando asas negras. Como um morcego, ou um corvo. Eu cobri os olhos. Não havia nada voando próximo ao avião.

— Deus, isso não vai acabar?

Eu esperava Alberta me criticar pelo meu ataque, mas, em vez disso, Christian disse:

— Ela não comeu hoje. Estava morta de fome mais cedo.

Eu reabri os olhos. A expressão de Alberta era de preocupação, e Dimitri agora estava atrás dela. Sombras e mais sombras apareciam à minha volta. A maioria era indistinta, mas eu podia jurar que tinha visto algo parecido com um crânio, misturado com a escuridão. Eu pisquei rápido, e tudo sumiu. Alberta se virou para uma das aeromoças.

— Você consegue alguma coisa para ela comer? E um analgésico?

— Onde é? — me perguntou Dimitri. — A dor?

Com toda essa atenção, minha explosão começou a parecer excessiva.

— É uma dor de cabeça... Eu sei que isso passa...

Vendo o olhar sério dele, apontei para o centro da minha testa.

— É como algo dilatando o meu crânio. E tem essa dor atrás dos olhos. Sinto como... bem, é como se eu tivesse algo nos meus olhos. Eu acho que estou vendo uma sombra, ou algo assim. Aí eu pisco, e ela some.

— Ah — disse Alberta. — Isso é um sintoma de enxaqueca... ter problemas na visão. É chamado de aura. As pessoas às vezes têm isso antes de a dor de cabeça aparecer.

— Aura? — perguntei, confusa. Fitei Adrian. Ele me observava por cima do encosto de seu assento, seus longos braços pendendo sobre ele.

— Não é desse tipo — disse ele, com um pequeno sorriso na boca. — Mesmo nome. Como Corte e corte. A aura das enxaquecas são luzes e imagens que você vê quando a enxaqueca está para vir. Não têm nada a ver com as auras que eu vejo ao redor das pessoas. Mas fique sabendo... a aura que estou vendo... ao seu redor... uau.

— Preta?

— Muito. É muito nítida, mesmo depois de eu ter bebido tanto. Nunca vi nada assim.

Eu não sabia muito bem o que responder, mas então a aeromoça voltou com uma banana, uma barrinha de cereal e um anti-inflamatório. Aquilo nem se comparava a uma rabanada, mas parecia apetitoso para o meu estômago vazio. Eu comi tudo e depois encostei meu travesseiro na janela. Fechando os olhos, descansei minha cabeça e desejei dormir um pouco para que a dor passasse antes de aterrissarmos. Graças a Deus, estavam todos em silêncio.

Eu tinha descansado um pouquinho, quando senti um toque no braço.

— Rose?

Abri os olhos e vi Lissa, no banco de Eddie. As sombras em forma de morcego pareciam estar atrás dela, e minha cabeça ainda doía. Nessas sombras, vi de novo algo como um rosto, desta vez com a boca aberta e os olhos pegando fogo. Eu hesitei.

— Você ainda está com dor? — perguntou Lissa, me olhando. Eu pisquei, e o rosto tinha sumido.

— Sim, eu... ah, não. — Percebi o que ela ia fazer. — Não faça isso. Não gaste comigo.

— É fácil — disse ela. — Nem me cansa.

— Sim, mas quanto mais você usa... mais você se prejudica. Mesmo sendo fácil agora.

— Eu me preocupo com isso depois. Agora...

Ela segurou a minha mão entre as dela e fechou os olhos. Através do nosso laço, eu senti a magia se mexendo nela, enquanto ela usava o poder restaurador do espírito. Para ela, a magia era quente e dourada. Eu já tinha sido curada antes, e a magia sempre vinha para mim variando em temperaturas: quente, fria, quente... Mas dessa vez, quando ela liberou a magia e a enviou para mim, eu não senti nada, a não ser uma coceira. Suas pálpebras se abriram.

— O... o que houve? — perguntou ela.

— Nada. A dor ainda está forte.

— Mas eu... — A confusão e o choque em seu rosto refletiam o que eu sentia nela. — Eu consegui. Eu senti a magia. Funcionou.

— Sei lá, Liss. Está tudo bem, sério. Você não parou de tomar remédio há tanto tempo assim, também.

— Sim, mas eu curei o Eddie no outro dia, sem problemas. E o Adrian — disse ela, secamente. Ele estava virado sobre seu assento de novo, observando.

— Foram arranhões — disse eu. — O que eu estou sentindo é uma dor de cabeça violenta. Talvez você ainda precise de mais tempo para se recuperar.

Lissa mordeu os lábios.

— Você não acha que os remédios prejudicaram para sempre minha magia, acha?

— Que nada — disse Adrian, com a cabeça virada para o lado. — Você acendeu como uma supernova quando a convocou. Você tem a magia. Só acho que não funcionou com a Rose.

— Por que não? — perguntou ela.

— Talvez ela tenha algo que você não possa curar.

— Uma dor de cabeça? — perguntei, incrédula.

Ele deu de ombros.

— Eu tenho cara de médico? Sei lá. Só estou relatando o que vi.

Eu suspirei e coloquei a mão na testa.

— Bem, obrigada pela ajuda, Liss, e obrigada pelo comentário idiota, Adrian. Mas acho que dormir é o melhor que posso fazer agora. Talvez seja estresse ou algo assim. — Lógico, por que não? Estresse era a resposta para tudo, ultimamente. Fantasmas, dores de cabeça incuráveis, rostos estranhos flutuando no ar... — Provavelmente não dá para curar isso.

— Talvez — disse ela, como se tivesse levado para o lado pessoal o fato de eu ter algo que ela não pudesse curar. Em sua cabeça, no entanto, as cobranças eram voltadas para ela, e não para mim. Ela achava que não era boa o suficiente.

— Está tudo bem — disse eu, calmamente. — Você ainda está se recuperando. Quando estiver cem por cento recuperada, eu quebro uma costela ou algo do tipo para você testar.

Ela suspirou.

— E o pior é que nem acho que você esteja brincando. — Depois de apertar minha mão, ela levantou. — Durma bem.

Ela saiu, e logo percebi que Eddie não iria voltar. Ele tinha ido sentar em outro lugar, para me dar mais espaço. Agradecida, eu afofei e reposicionei o travesseiro, esticando as pernas como podia nos assentos. Mais algumas nuvens-fantasmas dançaram à minha frente, e então fechei os olhos para dormir.

Eu despertei mais tarde, quando o avião pousou. O som dos motores me acordou. Para o meu alívio, a dor de cabeça tinha ido embora. Assim como as sombras ao meu redor.

— Está melhor? — perguntou Lissa, quando eu me levantei e bocejei.

Balancei a cabeça.

— Bem melhor. E melhor ainda quando eu conseguir comida de verdade.

— Bem — disse ela, rindo —, por algum motivo, duvido que vá faltar comida aqui.

Ela estava certa. Olhando pela janela, eu tentei olhar para os arredores. Nós tínhamos conseguido. Estávamos na Corte Real dos Moroi.


Onze

Saímos do avião e fomos imediatamente recebidos por um tempo úmido e tempestuoso. Chuva e neve caíam na gente, muito piores do que aqueles floquinhos em Montana. Nós estávamos na Costa Leste agora, ou pelo menos perto dela. A corte da rainha ficava na Pensilvânia, perto das montanhas Pocono, uma serra sobre a qual eu pouco sabia. Eu sabia que nós não estávamos muito perto de nenhuma das grandes cidades, como Filadélfia ou Pittsburgh, as únicas que eu conhecia no estado.

A pista onde havíamos pousado fazia parte das propriedades da Corte, então os escudos já estavam nos protegendo. Era como a pequena pista de pouso da escola. Na verdade, em muitos aspectos, a Corte Real era exatamente como a São Vladimir. Era isso, aliás, que era dito aos humanos sobre aquele complexo. A Corte era um conjunto de prédios, bonitos e vistosos, ao longo de belas terras, com árvores e flores. Ou pelo menos assim seria, na primavera. Exatamente como em Montana, a vegetação agora era escassa e sem folhas.

Fomos recebidos por um grupo de cinco guardiões, todos vestidos com calças e casacos pretos, com camisas brancas por baixo. Não eram exatamente uniformes, mas a tradição ditava que, em ocasiões formais, os guardiões deveriam usar algum conjunto elegante. Por comparação, os nossos guardiões, de jeans e camisetas, pareciam uma espécie de primos pobres. No entanto, não deixei de pensar que nós é que estaríamos mais confortáveis para enfrentar possíveis Strigoi.

Os guardiões conheciam Alberta e Dimitri — sério, aqueles dois conheciam todo mundo —, e, depois de algumas formalidades, todos relaxaram e ficaram mais amistosos. Todos ansiávamos por entrar e fugir daquele frio, e nossa escolta nos levou até os prédios. Eu sabia o suficiente sobre a Corte para adivinhar que os edifícios maiores e mais suntuosos eram onde todos os negócios oficiais dos Moroi eram conduzidos. Por fora, pareciam um tipo de palácio gótico, mas, por dentro, eu suspeitei que devia ser como qualquer departamento de governo humano dos nossos dias.

Mas não foi para lá que nós fomos levados, e sim para um prédio adjacente, igualmente glamoroso por fora, mas com a metade do tamanho. Um dos guardiões nos explicou que ali costumavam ficar todos os convidados e dignitários de passagem pela Corte. Para a minha surpresa, cada um de nós ganhou um quarto próprio.

Eddie protestou, insistindo que precisava ficar com Lissa. Dimitri sorriu e disse a ele que não seria necessário. Em um lugar assim, guardiões não precisavam ficar tão perto de seus Moroi. Na verdade, eles sempre se separavam para resolver os próprios assuntos. A Corte tinha tantos escudos quanto a Escola. E na verdade, tampouco era comum que os Moroi que visitavam a Escola fossem seguidos por seus guardiões. Só tínhamos que agir assim durante a experiência de campo. Eddie concordou, com alguma relutância, e novamente eu me surpreendia com a sua dedicação.

Alberta falou brevemente quando se virou para o resto de nós.

— Relaxem um pouco e estejam prontos para o jantar em quatro horas. Lissa, a rainha quer vê-la daqui a uma hora.

Uma sensação de surpresa correu por Lissa, e nós trocamos olhares breves e confusos. Da última vez que Lissa tinha visto a rainha, Tatiana a humilhara e envergonhara na frente da escola inteira, por ela ter fugido comigo. Nós duas nos perguntávamos por que ela queria vê-la agora.

— Claro — disse Lissa. — Rose e eu estaremos prontas.

Alberta balançou a cabeça.

— Rose não vai. A rainha foi muito clara: você vai sozinha.

Claro que tinha sido clara. Que interesse a rainha teria na sombra de Vasilisa Dragomir? Uma voz irritante sussurrava em minha cabeça, Dispensável, dispensável...

Aquele sentimento obscuro me atacou, mas eu o afastei de mim. Fui para o meu quarto, aliviada por saber que haveria um aparelho de tevê nele. A ideia de ficar sem fazer nada pelas próximas quatro horas parecia fantástica. O resto do meu quarto era bem luxuoso, bem moderno, com mesas pretas lisas e móveis de couro branco. Eu estava até com um pouco de medo de sentar neles. Ironicamente, apesar de tudo ser muito legal, o lugar não era tão decorado quanto o hotel da estação de esqui onde tínhamos ficado nas férias. Eu deduzi que, quando se ia para a Corte Real, você ia a negócios, e não para tirar férias.

Eu tinha acabado de me esparramar no sofá de couro e ligar a tevê quando senti Lissa na minha cabeça. Venha conversar, disse ela. Eu me ajeitei no sofá, surpresa pela mensagem em si e pelo seu conteúdo. Normalmente, nosso laço transmitia sentimentos e impressões. Pedidos específicos como esse eram raros. Levantei e saí do quarto, indo para o número ao lado. Lissa abriu a porta.

— Por que você não foi para o meu quarto? — perguntei.

— Desculpe — disse ela, parecendo muito sincera. Era difícil ser dura com alguém tão legal como ela. — Eu só não tive tempo. Estou tentando decidir o que vestir.

Sua mala já estava aberta sobre a cama, com peças penduradas no armário. Ao contrário de mim, ela tinha vindo preparada para todas as ocasiões, formais e casuais. Eu sentei no sofá. O dela era de veludo, não couro.

— Use a blusa estampada com a sandália preta — sugeri. — Não um vestido.

— Por que não um vestido?

— Porque você não quer parecer que está se rebaixando.

— Ela é a rainha, Rose. Se vestir bem é mostrar respeito, não é se rebaixar.

— Se você acha...

Mas Lissa acabou vestindo o que eu falei. Ela conversava comigo enquanto se arrumava, e eu olhava com inveja enquanto ela se maquiava. Eu não tinha percebido o quanto sentia falta de maquiagem. Quando ela e eu moramos com humanos, eu sempre me arrumava. Agora, nunca parecia ter tempo suficiente — ou motivo. Eu estava sempre em algum tipo de tumulto que fazia a maquiagem parecer sem sentido e que a estragaria, de qualquer maneira. O máximo que podia fazer era passar hidratante no rosto. Parecia muita coisa de manhã — como se eu estivesse de máscara —, no entanto, quando o tempo estava frio, eu ficava surpresa de ver que minha pele tinha absorvido todo o creme.

Me bateu uma pontinha de arrependimento por saber que eu teria raras oportunidades de fazer isso dali para a frente. Lissa passaria a maior parte de seus dias bem-vestida, ocupada com suas obrigações reais. Ninguém iria reparar em mim. Era estranho, já que, até o ano passado, eu era sempre notada.

— Por que você acha que ela quer me ver? — perguntou Lissa.

— Talvez para explicar por que estamos aqui.

— Talvez.

Apesar do seu exterior calmo, a insegurança tomava conta de Lissa. Ela ainda não tinha se recuperado completamente da brutal humilhação infligida pela rainha no outono. Meus ciúmes e lamentações de repente pareciam estúpidos se comparados ao que ela tinha que enfrentar. Eu mentalmente me repreendi, lembrando que eu não era só a guardiã invisível dela. Eu era, também, sua melhor amiga, e nós não tínhamos conversado muito ultimamente.

— Você não tem nada a temer, Liss. Não fez nada de errado. Na verdade, você tem feito tudo direitinho. Suas notas são perfeitas. Seu comportamento é perfeito. Lembra todas aquelas pessoas que você impressionou na estação de esqui? Aquela imbecil não tem nada para reclamar de você.

— Você não devia dizer isso — respondeu Lissa automaticamente. Ela colocou rímel nos cílios, analisou-os e depois passou outra camada.

— Eu só digo o que penso. Se ela lhe causar algum desconforto, vai ser só porque tem medo de você.

Lissa riu.

— Por que ela teria medo de mim?

— Porque as pessoas sentem muita empatia por você, e pessoas como ela não gostam quando alguém rouba os seus holofotes. — Fiquei um pouco assustada por estar soando tão sábia. — Além disso, você é a última Dragomir. Você sempre vai estar sob os holofotes. E quem é ela? Só mais uma Ivashkov. Tem um monte deles por aí. Provavelmente porque todos os homens da família são como Adrian e têm um monte de filhos ilegítimos.

— Adrian não tem filhos.

— Que a gente saiba — disse eu, desconfiada.

Ela deu uma risada e se afastou do espelho, satisfeita com seu rosto.

— Por que você é sempre tão malvada com Adrian?

Olhei para ela com uma cara de surpresa fingida.

— Você está defendendo o Adrian agora? Não era você que ficava me alertando sobre ele? Você praticamente me esgoelou da primeira vez que me viu com ele, e isso não foi nem escolha minha.

Ela tirou uma correntinha dourada fina da sua mala e tentou colocá-la no pescoço.

— Bom, sim... Eu não o conhecia bem, antes. Ele não é tão mau. E estou falando sério... Quer dizer, ele não é um grande exemplo nem nada, mas acho que aquelas histórias dele com outras garotas são exageradas.

— Eu não acho — rebati, me levantando. Ela ainda não tinha conseguido prender a correntinha, então eu a ajudei.

— Obrigada — disse ela, passando os dedos pela joia. — Acho que Adrian gosta muito de você. Até para querer namorar.

Eu balancei a cabeça e me afastei.

— Que nada. Ele quer é tirar as roupas da dampira bonitinha.

— Eu não acho isso.

— É porque você sempre pensa o melhor das pessoas.

Ela parecia cética, e começou a pentear os cabelos por cima dos ombros.

— Disso eu já não tenho tanta certeza. Mas realmente acho que ele não é tão mau quanto você pensa. Eu sei que não tem tanto tempo assim desde Mason, mas você devia sair com outra pessoa...

— Prenda o cabelo no alto. — Dei a ela o prendedor de cabelo. — Mason e eu nunca saímos direito. Você sabe.

— Sim. Bem, eu acho que essa é mais uma razão para você pensar em sair com alguém. O ensino médio não acabou ainda. Você devia estar se divertindo.

Diversão. Era irônico. Meses atrás, eu tinha discutido com Dimitri sobre como era injusto que, como uma guardiã em treinamento, eu tinha que cuidar da minha reputação e não perder muito a linha. Ele havia concordado que era injusto eu não poder fazer o tipo de coisa que garotas da minha idade faziam, mas que era o preço a se pagar pelo meu futuro. Eu ficara chateada, mas, depois dessa história do Victor, eu tinha entendido o que Dimitri queria dizer — e levei tão a sério que depois ele até sugeriu que eu não me prendesse tanto assim. Agora, depois de Spokane, eu me sentia uma garota completamente diferente daquela que conversara com Dimitri sobre diversão. Estava quase me formando. Coisas do ensino médio... bailes... namorados... o que isso importava num contexto mais amplo? Tudo na São Vladimir parecia trivial demais — a não ser por aquilo que fazia de mim uma guardiã melhor.

— Eu sinceramente não acho que preciso de um namorado para completar minhas experiências de colégio — disse eu a ela.

— Eu também não — concordou ela, ajeitando seu rabo de cavalo. — Mas você costumava flertar e sair às vezes. Eu acho que isso seria bom para você. Não precisa ter algo realmente sério com o Adrian.

— Bem, você não precisa nem pedir isso a ele. A última coisa que ele quer é algo sério, esse é o problema.

— Bem, de acordo com algumas histórias, ele é bem sério. Eu ouvi, no outro dia, que vocês estavam noivos. Alguém também me disse que ele tinha sido deserdado porque contou ao pai que nunca amaria outra garota.

— Ahhhh. — Realmente não havia outra resposta mais adequada para aqueles boatos. — O mais assustador é que essas histórias também estão correndo pelo campus do primário. — Eu olhei para o teto. — Por que coisas assim acontecem comigo o tempo todo?

Ela andou até o sofá e olhou para mim.

— Porque você arrasa, e todo mundo ama você.

— Que nada. É você que todos amam.

— Bem, então eu acho que nós duas arrasamos e somos amadas. E qualquer dia desses — um brilho malicioso apareceu em seus olhos — vamos achar um cara que você ame também.

— Pode esperar sentada. Nada disso me importa. Não agora. É com você que eu preciso me preocupar. Nós vamos nos formar, você irá para a faculdade, e isso vai ser ótimo. Nada de regras, só nós duas.

— É meio assustador — disse ela, pensativa. — Pensar que vai ser tudo por minha conta. Mas você estará comigo. E Dimitri também. — Ela suspirou. — Não consigo me imaginar sem você. Eu nem me lembro direito de um momento em que você não estava comigo.

Eu me estiquei e dei um soquinho no braço dela.

— Ei, tome cuidado. Vai deixar Christian com ciúmes. Ah, droga. Acho que ele vai estar com a gente também, não vai? Não importa para onde formos?

— Provavelmente. Eu, você, ele, Dimitri e os guardiões que Christian tiver. Uma grande família feliz.

Eu brinquei, mas dentro de mim crescia um sentimento caloroso e agradável. As coisas andavam loucas em nosso mundo agora, mas eu tinha todas essas pessoas boas na minha vida. Contanto que ficássemos juntos, tudo estaria bem.

Ela olhou para o relógio, e o medo voltou.

— Tenho que ir. Você... você vai comigo?

— Você sabe que não posso.

— Eu sei... não pessoalmente... mas você não pode meio que fazer aquela coisa? De ficar vendo tudo pelos meus olhos? Isso vai me fazer sentir como se não estivesse sozinha.

Era a primeira vez que Lissa me pedia para entrar na cabeça dela de propósito. Normalmente, ela odiava a ideia de eu enxergar pelos olhos dela. Isso era um sinal do quanto ela estava nervosa.

— Claro — respondi. — Deve ser melhor do que qualquer coisa passando na tevê mesmo.

Voltei para o meu quarto e para o meu sofá. Limpando os pensamentos, eu me abri para a mente de Lissa, de forma mais intensa do que simplesmente sentir o que ela sentia. Era algo que o laço daqueles beijados pelas sombras me permitia fazer, e era a parte mais poderosa de nossa conexão. Não era só conhecer seus pensamentos — era realmente estar dentro dela, olhando pelos seus olhos, dividindo as experiências. Eu só aprendera a controlar isso recentemente. Eu costumava entrar na mente dela sem querer, assim como não conseguia deixar de captar suas emoções. Eu era capaz de controlar minhas experiências extracorporais agora, e até de convocá-las quando queria — como estava prestes a fazer.

Lissa tinha acabado de chegar no salão onde a rainha a esperava. Os Moroi podem usar termos como “real” e até se ajoelhar às vezes, mas não havia nenhum trono ali, nem nada do gênero. Tatiana estava sentada numa cadeira normal, vestida com uma saia azul-marinho e um blazer, parecendo mais uma mulher de negócios do que algum tipo de monarca. Ela não estava sozinha.

Uma Moroi alta e séria com cabelos loiros presos por um laço prateado estava sentada ao seu lado. Eu a reconheci: Priscilla Voda, a amiga e conselheira da rainha. Nós a conhecemos na viagem à estação de esqui, e ela havia se impressionado com Lissa. Eu considerei sua presença um bom sinal. Guardiões, vestidos de preto e branco, estavam encostados na parede em silêncio. Para a minha surpresa, Adrian estava lá também. Estava jogado em um pequeno sofá, parecendo não ligar para o fato de que estava na presença da líder suprema dos Moroi. O guardião que estava com Lissa a anunciou:

— Princesa Vasilisa Dragomir.

Tatiana balançou a cabeça, cumprimentando-a.

— Bem-vinda, Vasilisa. Por favor, sente-se.

Lissa se sentou perto de Adrian, sua apreensão crescendo mais e mais. Um criado Moroi veio oferecendo chá ou café, mas Lissa dispensou. Enquanto isso, Tatiana bebia de uma xícara de chá e analisava Lissa dos pés à cabeça. Priscilla Voda quebrou aquele silêncio constrangedor.

— Lembra do que eu disse dela? — perguntou Priscilla, alegremente. — Ela foi impressionante em nosso jantar de Estado, em Idaho. Discutiu com muita elegância a questão sobre os Moroi lutando ao lado dos guardiões. E até conseguiu acalmar o pai de Adrian.

Um sorriso gélido apareceu nas feições frias de Tatiana.

— Isso é impressionante. Na maior parte do tempo, ainda acho que Nathan possui doze anos.

— Eu também — disse Adrian, bebendo de uma taça de vinho.

Tatiana o ignorou e se focou em Lissa.

— Todo mundo parece se impressionar com você, de fato. Não ouço nada que não sejam elogios, apesar de suas transgressões passadas... as quais, conforme compreendi mais tarde, não foram totalmente desprovidas de razões. — A expressão de surpresa de Lissa fez a rainha rir, embora fosse uma risada sem muito calor ou humor. — Sim, sim... Eu sei tudo sobre seus poderes, e, é claro, sobre o que houve com Victor. Adrian tem me contado também a respeito do espírito. É tão estranho! Me diga... você pode... — Ela olhou para uma mesa que estava próxima. Em cima dela, havia um vaso de plantas, com brotos começando a despontar na terra. Era algum tipo de vegetal bulboso que alguém tinha semeado e vinha cultivando. Assim como as plantas lá fora, esta esperava a primavera.

Lissa hesitou. Usar seus poderes na frente dos outros era algo estranho para ela. Mas Tatiana aguardava, excitada. Depois de um tempo, Lissa esticou o braço e tocou os brotos. Eles avançaram para fora da terra, ficando mais altos — quase um metro. Grandes vagens se formaram dos lados, abrindo e mostrando flores brancas muito cheirosas. Lírios. Lissa afastou sua mão dali.

Tatiana estava claramente impressionada, e murmurou algo em uma língua que não consegui entender. Ela não nascera nos Estados Unidos, mas escolhera sediar sua Corte ali. Ela falava sem sotaque, mas, assim como Dimitri, momentos de surpresa traziam sua língua nativa à tona. Em questão de segundos, sua expressão gélida tinha voltado.

— Hmm. Interessante — disse ela, forçando menosprezo.

— Isso pode ser bem útil — disse Priscilla. — Vasilisa e Adrian talvez não sejam os únicos com tal poder. Se conseguíssemos encontrar outros assim, aprenderíamos tanto... A cura por si só é uma dádiva, sem contar tudo o que esses usuários são capazes de conjurar. Pense só no que poderíamos fazer com isso.

Lissa ficou otimista. Por algum tempo, ela havia se desviado do seu objetivo de achar outros como ela. Adrian fora o único que ela tinha descoberto, e isso por pura sorte. Se a rainha Moroi investisse nisso, não havia dúvidas de que encontrariam outros usuários do espírito. Mas algo nas palavras de Priscilla a incomodava.

— Me desculpe, princesa Voda... Não tenho certeza se deveríamos estar assim tão ansiosas para usar os meus poderes de cura, ou os de outras pessoas.

— Por que não? — perguntou Tatiana. — Pelo que sei, você pode curar qualquer coisa.

— Eu posso... — disse Lissa, devagar. — E quero. Eu gostaria de ajudar todo mundo, mas não consigo. Não me entenda mal, eu com certeza vou ajudar algumas pessoas. Mas eu sei que acabaríamos nos deparando com gente como Victor, que quer abusar do meu poder. E, depois de um tempo... quer dizer, como a gente escolhe quem vive? Parte da vida é que... bem, algumas pessoas têm que morrer. Meus poderes não são uma prescrição que pode ser usada a torto e a direito, e, honestamente, eu tenho medo de eles serem usados somente por, hã, um tipo específico de gente. Assim como é feito com os guardiões.

Uma pequena tensão se instalou no aposento. O que Lissa estava insinuando raramente era mencionado em público.

— Do que você está falando? — perguntou Tatiana, com olhos cerrados. Eu podia ver que ela já sabia a resposta.

Lissa receava dizer suas próximas palavras, mas falou mesmo assim.

— Todos sabem que existe um certo, hã, sistema segundo o qual os guardiões são distribuídos. Só a elite os recebe. A realeza. Pessoas ricas. Pessoas no poder.

Um arrepio percorreu a sala. Os lábios de Tatiana pareciam uma linha reta. Ela não falou por um longo momento, e eu tinha a impressão de que todos ali seguravam a respiração. Eu, pelo menos, segurava a minha.

— Você não acha que nossos membros reais merecem proteção especial? — perguntou ela, finalmente. — Você, a última Dragomir, não acha que merece?

— Eu acho que manter nossos líderes em segurança é importante, sim. Mas também acho que devíamos parar às vezes e prestar atenção no que estamos fazendo. Talvez esse seja o momento de repensarmos a nossa maneira de agir.

Lissa parecia tão inteligente e segura... Eu estava orgulhosa dela. Observando Priscilla Voda, eu podia ver que ela também estava. Ela já gostou de Lissa desde o começo. Mas eu vi também que Priscilla estava nervosa. Ela servia à rainha e sabia que Lissa havia tocado num tema perigoso.

Tatiana tomou seu chá. Acho que era uma estratégia para ganhar tempo e formular seus pensamentos.

— Você também é a favor de Moroi lutarem contra Strigoi lado a lado com os guardiões?

Outro tópico polêmico, e Lissa seguiu em frente.

— Acho que, se é o que alguns Moroi querem, eles não deviam ser impedidos. — Jill de repente me veio à memória.

— Vidas Moroi são preciosas. Eles não devem correr esse risco.

— As vidas dos dampiros também — rebateu Lissa. — Se eles lutassem com a ajuda dos Moroi, isso podia salvar a todos. E, insisto, se é o que os Moroi querem, por que negar isso a eles? Eles merecem saber como se defender. E pessoas como Tasha Ozera estão desenvolvendo formas de lutar com magia.

A menção à tia de Christian fez a rainha franzir o cenho. Tasha fora atacada por Strigoi quando era criança, e passou o resto da vida aprendendo a se defender.

— Tasha Ozera... Ela é uma criadora de problemas. E está reunindo uma porção de outros criadores de problemas.

— Ela está tentando nos trazer novas ideias. — Notei que Lissa não estava mais com medo. Ela era confiante em suas crenças e queria expressá-las. — Ao longo da história, pessoas com ideias novas, que pensam diferente e anseiam por mudanças sempre foram chamadas de criadoras de problemas. Mas quer saber qual é a verdade?

Uma expressão contorcida surgiu no rosto de Tatiana, quase um sorriso.

— Sempre.

— Nós precisamos de uma mudança. Por um lado, as nossas tradições são importantes. Nós não deveríamos mudá-las. Mas, às vezes, acho que estamos perdendo o rumo.

— Perdendo o rumo?

— Com o passar do tempo, nós também vamos passando por mudanças. Nós evoluímos. Computadores. Eletricidade. A tecnologia, enfim. Todos concordamos que isso melhora as nossas vidas. Por que o mesmo não pode acontecer com o nosso modo de agir? Por que continuamos apegados ao passado se há maneiras melhores de fazer as coisas?

Lissa estava sem ar, agitada e excitada. Suas bochechas estavam quentes, e seu coração, acelerado. Todos observávamos Tatiana, procurando por alguma pista em sua dura expressão.

— É muito interessante conversar com você — disse ela, finalmente. Ela fazia interessante parecer uma palavra muito ruim. — Mas eu tenho assuntos a tratar agora. — Ela se ergueu, e em seguida todos fizeram como ela, inclusive Adrian. — Não comparecerei ao jantar, mas você e seus acompanhantes terão tudo do que precisarem. Eu os verei amanhã, no julgamento. Não importa quanto as suas ideias sejam radicais e ingenuamente idealistas, me alegra saber que você estará lá para completar a sentença dele. Sua prisão, ao menos, é algo com que todos concordamos.

Tatiana saiu, acompanhada por dois guardiões. Priscilla a seguiu também, deixando Lissa e Adrian sozinhos.

— Muito bom, prima. Não são muitos os que conseguem desconcertar a rainha assim.

— Ela não parecia muito desconcertada.

— Ah, ela estava. Pode acreditar. A maioria das pessoas com quem ela lida diariamente não a trataria assim, ainda mais alguém da sua idade. — Ele se levantou e estendeu a mão para Lissa. — Vamos. Vou lhe mostrar o lugar. Distraí-la um pouco.

— Eu já vim aqui antes — disse ela. — Quando era mais nova.

— É? Bem, as coisas parecem diferentes para a gente quando somos crianças. Você sabia que tem um bar 24 horas aqui? Vamos pegar algo para você beber.

— Eu não quero beber.

— Mas vai querer, antes de essa viagem terminar.

Eu me desliguei de Lissa e voltei para o meu quarto. A reunião com a rainha tinha acabado, e Lissa não precisava mais do meu apoio. Além disso, eu realmente não queria estar perto do Adrian agora. Ao me sentar, percebi que me sentia surpreendentemente alerta. Estar na cabeça de Lissa foi como tirar um cochilo.

Resolvi explorar um pouco o lugar por conta própria. Eu nunca tinha ido à Corte Real. Ela realmente parecia uma pequena cidade, e eu me perguntava o que mais haveria para se ver ali, além do bar em que o Adrian provavelmente vivia quando a visitava.

Eu desci, imaginando que primeiro teria de sair. Até onde eu sabia, aquele prédio só possuía quartos de hóspede. Era como o hotel particular daquele palácio. Quando cheguei à entrada, no entanto, vi Christian e Eddie conversando com alguém que eu não conseguia identificar. Eddie, sempre alerta, me viu e sorriu.

— Ei, Rose. Veja só quem nós achamos.

Ao me aproximar, Christian se afastou um pouco para me mostrar quem era a pessoa misteriosa. Eu estaquei, e ela falou comigo.

— Oi, Rose.

Um momento depois, eu senti um sorriso se abrindo em meu rosto.

— Oi, Mia.


Doze

Se você me perguntasse seis meses atrás, eu teria dito que nunca ficaria feliz em esbarrar com Mia Rinaldi na Corte Real. Ela era um ano mais nova do que eu e tinha uma enorme implicância com a Lissa desde o nosso primeiro ano — uma implicância tão grande que Mia chegou a tomar medidas extremas, só para arruinar nossas vidas. Ela tinha feito um ótimo trabalho. Os boatos de Jesse e Ralf eram resultado de seus esforços.

Até que Mia foi conosco para Spokane e depois capturada pelos Strigoi. E, assim como aconteceu com Christian e Eddie, isso mudou tudo. Ela presenciou os mesmos horrores que todos nós. Na verdade, ela foi a única dos meus amigos que viu quando Mason foi assassinado e eu matei aqueles Strigoi. Ela até salvou a minha vida, usando sua magia de água para asfixiar temporariamente um dos Strigoi. Na grande polêmica Moroi quanto a lutar ou não ao lado dos guardiões, ela estava decidida a se juntar à batalha.

Eu não via Mia há quase um mês, desde o enterro de Mason. Parando para analisá-la, parecia que tinha passado um ano. Eu sempre vi a Mia como uma boneca. Ela era baixa, comparada à maioria dos Moroi, e tinha um rostinho jovem e bochechudo. O fato de ela sempre enrolar o cabelo em cachos perfeitos reforçava essa imagem. Mas hoje ela não tinha se arrumado tanto. Seus cabelos dourados estavam presos em um rabo de cavalo e só um pouco ondulados — naturalmente. Ela não estava de maquiagem, e seu rosto mostrava sinais de ter passado um bom tempo ao ar livre. Sua pele parecia rachada pelo vento, e ela trazia um bronzeado bem fraquinho — algo bastante raro entre os Moroi, avessos como são à luz do Sol. Pela primeira vez, ela aparentava a idade que tinha.

Ela riu do meu choque.

— Sério, não faz tanto tempo assim. Você parece nem me reconhecer.

— E eu quase não reconheço. — Nos abraçamos e, de novo, parecia inacreditável ela um dia ter armado contra mim. Ou eu já ter quebrado o nariz dela, uma vez. — O que está fazendo aqui?

Ela nos mostrou a porta.

— Nós já estávamos de saída. Eu vou explicar tudo.

Fomos para um prédio vizinho. Não parecia um shopping nem nada, mas havia um pequeno comércio para os Moroi que trabalhavam ou estavam alojados nas dependências da Corte Real — um punhado de restaurantes, algumas lojinhas e escritórios que ofereciam todo tipo de serviço. Havia também um café, e foi para lá que Mia nos levou.

Um café parece algo trivial, mas eu raramente conseguia ir a um. Sentar num lugar público, ou quase isso, com amigos, sem me preocupar com a escola... era ótimo. Isso me lembrou de quando Lissa e eu estivemos por nossa própria conta, quando nossas vidas não se resumiam à escola e às suas regras.

— Meu pai trabalha aqui agora — nos contou Mia. — E, por isso, nós moramos aqui agora.

Filhos de Moroi raramente viviam com os pais. Eles eram enviados para lugares como a São Vladimir, onde podiam crescer em segurança.

— E a escola? — perguntei.

— Não existem tantos jovens por aqui, mas tem alguns. A maioria é rica e possui professores particulares. Meu pai mexeu alguns pauzinhos e arranjou de eu estudar diferentes matérias com eles. Então eu ainda aprendo as mesmas coisas, mas de uma forma diferente. É bem legal, na verdade. Menos tempo com os professores, e mais deveres de casa.

— Você tem feito mais do que isso — apontou Eddie. — A não ser que as suas aulas sejam do lado de fora. — Ele tinha reparado o mesmo que eu, e, vendo as mãos dela que agora seguravam o café, reparei que tinham calos.

Ela mexeu os dedos.

— Eu fiquei amiga de alguns guardiões daqui. Eles têm me mostrado algumas coisas.

— Isso é arriscado — disse Christian, apesar de soar como se aprovasse. — Com todo o debate sobre os Moroi lutarem ou não.

— Você quis dizer lutar com magia — corrigiu ela. — Por isso é controverso. Ninguém falou nada sobre Moroi lutarem com as próprias mãos.

— Bem, eles falam — disse eu. — Só que fica ofuscado pela questão mágica.

— Não é ilegal — disse ela, se defendendo. — E até que seja, eu vou continuar treinando. Você acha que, com todos os eventos e reuniões que ocorrem por aqui, alguém repara no que eu faço?

A família de Mia, além de não pertencer à realeza, era também de uma classe bem baixa — não que houvesse algo de errado nisso, mas ali ela devia sentir os efeitos disso.

No entanto, eu achava a sua situação animadora. Mia parecia mais feliz e à vontade do que nunca. Ela parecia... livre. Christian expressou meus pensamentos antes de mim.

— Você mudou — disse ele.

— Nós todos mudamos — corrigiu ela. — Especialmente você, Rose. Eu não sei explicar.

— Não vejo como nós cinco poderíamos não ter mudado — disse Christian. Logo depois, ele se corrigiu: — Nós quatro.

Nós nos calamos, e todos pensamos em Mason. Estar com Christian, Eddie e Mia aumentava aquele pesar que eu sempre tentava esconder, e eu podia ver em seus rostos que eles também sentiam o mesmo.

Retomamos a conversa, nos atualizando sobre o que estava acontecendo ali e na Escola. No entanto, eu continuava a pensar no que Mia dissera sobre eu ter mudado mais do que os outros. A única coisa em que eu podia pensar era como me sentia fora de controle ultimamente — como na maioria das vezes minhas ações e sentimentos não pareciam ser meus. Sentadas ali, parecia que Mia era controlada por seus impulsos positivos, e eu, pelos meus impulsos negativos. Eu repassava as conversas com Adrian em minha cabeça, lembrando como a minha aura era negra, muito negra.

Talvez pensar nele fosse capaz de convocá-lo, porque, no fim das contas, ele e Lissa acabaram se juntando a nós. Deduzi que o bar em que eles estiveram provavelmente ficava no mesmo prédio. Eu vinha bloqueando o nosso laço sem prestar muita atenção. Adrian não conseguira embebedá-la, ainda bem, mas ela havia aceitado dois drinques. Pude sentir uma leve euforia através do laço, e tive que bloqueá-la cuidadosamente.

Ela ficou tão surpresa por encontrar Mia quanto nós, mas lhe deu um abraço caloroso e quis saber das novidades. Eu já tinha escutado a maior parte da história, então só ouvi e bebi meu chá. Nada de café para mim. A maioria dos guardiões bebia tanto café quanto os Moroi bebiam sangue, mas eu nem chegava perto.

— Como foi o seu encontro com a rainha? — perguntou Christian a Lissa, em determinado momento.

— Não foi tão ruim — disse ela. — Digo, também não foi tão bom. Mas ela não gritou comigo, nem me humilhou... já é um começo.

— Pare de ser modesta — disse Adrian, abraçando-a. — A princesa Dragomir se manteve de pé até o fim. Vocês deviam ter visto.

Lissa riu.

— Ela não mencionou por que decidiu nos deixar vir ao julgamento, mencionou? — perguntou Christian secamente. Ele não parecia muito feliz com a cumplicidade que estava se formando ali, ou com o braço de Adrian.

A risada de Lissa sumiu, mas ela continuou sorrindo.

— Foi por causa do Adrian.

— O quê? — perguntamos juntos, Christian e eu.

Adrian, parecendo muito satisfeito consigo mesmo, ficou quieto, para variar um pouco, e deixou Lissa falar.

— Ele convenceu a rainha de que nós precisávamos estar aqui. Ao que parece, ele a importunou até que aceitasse.

— Chamo isso de “persuadir”, e não “importunar” — disse Adrian. Lissa riu de novo.

Minhas próprias palavras sobre a rainha voltaram à minha mente. “E quem é ela? Só mais uma Ivashkov. Tem um monte deles por aí.” E tem mesmo. Eu olhei para Adrian.

— Qual o grau de parentesco entre vocês? — A resposta saiu da cabeça de Lissa direto para a minha: — Ela é sua tia.

— Tia-avó. E eu sou seu sobrinho-neto favorito. Bem, eu sou seu único sobrinho-neto, mas isso não importa. Eu ainda seria o favorito.

— Inacreditável — disse Christian.

— Eu que o diga — acrescentei.

— Nenhum de vocês me dá valor. Por que não conseguem acreditar que eu poderia ser de grande ajuda nesses tempos difíceis? — Adrian se levantou. Ele queria parecer ultrajado, mas o sorrisinho em seu rosto indicava que ele ainda achava tudo aquilo muito engraçado. — Meus cigarros e eu vamos dar uma volta. Pelo menos eles me respeitam.

Logo que ele saiu, Christian perguntou à Lissa:

— Você estava enchendo a cara com ele?

— Eu não estou bêbada. Só bebi dois drinques — disse ela. — Desde quando você é tão conservador?

— Desde que Adrian virou uma má influência.

— Espere aí! Ele nos ajudou a chegar aqui. Ninguém mais conseguiu. Ele não precisava, mas fez. E você e Rose estão aqui, ainda agindo como se ele fosse a pior pessoa do planeta. — Essa era uma meia verdade. Eu estava sentada ali mais como se tivesse sido acertada na cabeça, ainda atordoada demais para reagir.

— Sim, e eu tenho certeza de que ele fez isso pela bondade que existe em seu coração — resmungou Christian.

— Por que mais ele faria isso?

— Ó, céus, não sei...

Lissa arregalou os olhos.

— Você acha que ele fez isso por mim? Acha que existe algo entre nós?

— Vocês bebem juntos, praticam magia juntos e vão juntos aos eventos da elite. O que você pensaria?

Mia e Eddie pareciam querer estar em outro lugar. Eu começava a me sentir assim também.

A raiva queimava dentro de Lissa, e me atacava como uma onda de calor. Ela estava profundamente ultrajada. Sua fúria não tinha tanto a ver com Adrian, na verdade. Ela estava mais chateada com a ideia de Christian não confiar nela. E quanto a ele, eu não precisava de poderes psíquicos para entender como se sentia. Christian não estava com ciúmes só porque ela vinha andando bastante com o Adrian. Estava com ciúmes porque Adrian possuía o tipo de influência capaz de proporcionar aquela viagem a ela. Era como Jesse e Ralf haviam explicado, sobre como os contatos certos poderiam abrir as portas certas — contatos de que Christian não dispunha.

Bati com o joelho na perna de Christian esperando que ele entendesse que realmente deveria parar com aquilo, antes que as coisas piorassem. A raiva de Lissa estava se intensificando, juntando-se ao embaraço quando ela começou a se perguntar se estava de fato se aproximando demais de Adrian. Era tudo bastante ridículo.

— Christian, pelo amor de Deus. Se Adrian fez isso por alguém, foi por mim e por sua ridícula obsessão. Ele se gabou de que podia fazer isso, e eu não acreditei. — Me voltei para Lissa. Eu precisava que ela se acalmasse e controlasse aqueles sentimentos sombrios e que tantos problemas poderiam lhe causar, em caso contrário. — Liss, você pode não estar exatamente cansada, mas é melhor esfriar um pouco a cabeça antes de ter essa conversa. Você vai dizer algo tão estúpido quanto Christian, e eu é que vou ter que arrumar a bagunça, como sempre.

Eu havia me empolgado um pouco, e já esperava que alguém fosse me dizer o quão escrota eu soara. Em vez disso, Lissa relaxou e sorriu para Christian.

— Sim, nós definitivamente devíamos conversar sobre isso mais tarde. Aconteceu muita coisa hoje.

Ele hesitou, e então balançou a cabeça.

— É. Desculpe por esse sermão todo. — Ele sorriu de volta, e a briga havia terminado.

— Então, Mia, quem você já conhece por aqui? — perguntou Lissa.

Eu os encarei boquiaberta, mas ninguém notou. Eu tinha acabado com a briga deles, e não houve nenhum reconhecimento. Nenhum Obrigado, Rose, por nos mostrar quão idiotas estamos sendo. Já era ruim o suficiente ter de aguentar o romance deles, dia após dia, sem nenhuma consideração pelo que eu sentia. Agora eu estava salvando aquele relacionamento, e eles nem sequer perceberam.

— Já volto — disse eu, interrompendo a descrição de Mia sobre alguns dos outros adolescentes dali. Eu estava com medo de continuar ali e dizer algo de que eu pudesse me arrepender depois, ou talvez quebrar uma cadeira. De onde vinha aquela raiva?

Saí do prédio esperando que um pouco de ar fresco pudesse me acalmar. Em vez disso, fui recebida por uma baforada com aroma de cravo.

— Não me venha reclamar sobre a fumaça — avisou Adrian. Ele estava encostado na parede de tijolos do prédio. — Você não precisava vir aqui fora. Sabia que eu estava aqui.

— Na verdade, é por isso que estou aqui. Bem, por isso, e porque eu sentia que ia enlouquecer se ficasse lá dentro por mais um minuto.

Ele virou a cabeça para me encarar. Suas sobrancelhas se arquearam.

— Você não está brincando, está? O que houve? Você parecia bem pouco tempo atrás.

Caminhei até ficar de frente para ele.

— Não sei. Eu estava bem. Até que Christian e Lissa começaram essa discussão ridícula sobre você. Foi estranho. Eles é que estavam irritados, mas acabei saindo dessa história mais irritada que os dois juntos.

— Espere. Eles estavam discutindo sobre mim?

— Sim. Eu acabei de dizer isso. Não está prestando atenção?

— Ei, não desconte em mim. Eu não fiz nada para você.

Eu cruzei os braços sobre o meu peito.

— Christian está com ciúmes porque você tem andado muito com a Lissa.

— Nós estamos estudando o espírito — disse Adrian. — Ele pode se juntar a nós.

— É, bem, ninguém nunca disse que o amor é racional. Ver vocês voltando juntos meio que disparou isso nele. E aí ele se chateou porque você arranjou esse encontro com a rainha, para a Lissa.

— Eu não fiz isso por ela. Fiz isso por todos vocês... bem, por você, principalmente.

Eu parei em frente a ele.

— Eu não acreditei em você. Que você podia fazer isso.

Ele deu um largo sorriso.

— Acho que você não devia ter ignorado a história da minha família naquele sonho, devia?

— Acho que não. É que eu pensei...

Não consegui terminar. Eu pensara que Dimitri seria aquele que iria lutar por mim, aquele que — apesar de dizer o contrário — poderia fazer qualquer coisa acontecer. Mas não desta vez.

— Pensou o quê? — perguntou Adrian.

— Nada. — Com muito esforço, eu consegui soltar minhas próximas palavras. — Obrigada por nos ajudar.

— Ah, meu Deus — disse ele. — Palavras gentis vindas de Rose Hathaway. Posso morrer um homem feliz, agora.

— O que você está querendo dizer? Que normalmente eu sou uma escrota ingrata?

Ele só me olhou.

— Ei! Isso não foi legal.

— Talvez você pudesse se redimir com um abraço.

Eu o olhei fixamente.

— Um bem pequeno? — implorou ele.

Com um suspiro, me aproximei e passei um dos braços ao redor de Adrian, encostando minha cabeça de leve no seu braço.

— Obrigada, Adrian.

Nós ficamos assim por um segundo. Eu não senti nada parecido com a louca energia ou conexão que experimentava com Dimitri, mas eu tinha que admitir que Lissa estava certa. Adrian era irritante e arrogante às vezes, mas ele realmente não era o idiota que eu pintava.

As portas se abriram, e Lissa e os outros saíram. Eles, compreensivelmente, pareciam surpresos, mas eu não liguei. Além do mais, se eles já pensavam que eu esperava um filho do Adrian, por que me importar? Eu me afastei.

— Saindo? — perguntei.

— Sim, Mia tem coisas mais importantes a fazer do que ficar com a gente — brincou Christian.

— Ei, eu acabei de dizer ao meu pai que ia me encontrar com ele. Vejo vocês antes de ir embora. — Ela começou a andar, mas parou ab-ruptamente. — Deus, eu tinha até esquecido. — Ela vasculhou um dos bolsos e me deu um pedaço de papel dobrado. — Essa foi uma das razões pelas quais eu vim atrás de vocês. Um dos funcionários da Corte queria que eu lhe entregasse isso.

— Obrigada — agradeci, confusa. Ela continuou seu caminho para encontrar o pai, enquanto o resto de nós voltou para os quartos.

Eu diminuí meu passo enquanto abria o papel, pensando em quem poderia querer me contatar.


Rose,

Fiquei tão feliz em saber da sua chegada... Tenho certeza de que isso tornará o processo amanhã muito mais interessante. Há muito tempo tenho ansiado por notícias sobre Vasilisa, e as suas escapadas românticas são sempre diversão garantida. Mal posso esperar para compartilhá-las no julgamento de amanhã.

Lembranças,

V.D.


— De quem é? — perguntou Eddie, pondo-se ao meu lado. Dobrei o papel depressa e o guardei no bolso.

— Ninguém — respondi.

Ninguém mesmo.

V.D.

Victor Dashkov.


Treze

Quando voltamos aos quartos, inventei uma desculpa para Lissa sobre como eu ainda tinha uns assuntos de guardiã para resolver. Ela ansiava por esclarecer aquela discussão com Christian — provavelmente tirando as roupas — e nem me fez qualquer pergunta. Havia um telefone no meu quarto, e, depois de ligar para a recepção, descobri onde Dimitri estava instalado.

Ele ficou surpreso em me ver à sua porta — e um pouco desconfiado. Da última vez que isso tinha acontecido, eu estava sob a influência do feitiço da luxúria do Victor, e havia me comportado de forma... um pouco agressiva.

— Preciso falar com você — disse eu.

Ele me deixou entrar, e imediatamente lhe entreguei o bilhete.

— VD...

— Sim, eu sei — disse ele, devolvendo-me o bilhete. — Victor Dashkov.

— O que vamos fazer? Quer dizer, nós já conversamos sobre isso, mas agora ele realmente disse que vai nos dedurar.

Dimitri não respondeu, e eu podia perceber que ele estava analisando todas as perspectivas, como faria numa luta. Finalmente, ele apanhou o celular, o que era bem melhor do que confiar no telefone do quarto.

— Só um segundo.

Eu ia me sentar em sua cama, mas achei perigoso demais, então fui para o sofá. Não sabia para quem ele tinha ligado, mas a conversa era em russo.

— E então? — perguntei, quando ele terminou.

— Logo mais eu respondo. Por ora, teremos que esperar.

— Ótimo. A coisa que mais gosto de fazer.

Ele arrastou uma cadeira e sentou de frente para mim. Parecia muito pequena para alguém tão alto quanto ele, mas, como sempre, ele fez sua mágica e pareceu lindo no fim das contas.

Ao meu lado estava um dos romances de faroeste que ele sempre lia. Eu o peguei em minhas mãos, pensando em quão solitário Dimitri era. Mesmo agora, na Corte, ele preferia ficar em seu quarto.

— Por que você lê isso?

— Algumas pessoas leem por prazer — disse ele.

— Ei, veja como fala. E eu leio também. Leio para resolver mistérios que ameaçam a sanidade e a vida da minha melhor amiga. Eu não acho que ler esses livros de caubói vai salvar o mundo do jeito que eu salvo.

Ele tirou o livro de mim e o folheou, com um rosto pensativo e não tão intenso como de costume.

— Como qualquer livro, este é uma fuga. E tem algo... hmm. Não sei. Algo que me atrai no Velho Oeste. Nenhuma lei. Todos vivendo segundo as próprias regras. Você não precisa estar preso às ideias de alguém sobre o que é certo ou errado para fazer justiça.

— Espere. — Eu ri. — Pensei que fosse eu quem queria quebrar as regras.

— Eu não disse que queria. Só disse que me atrai.

— Você não me engana, camarada. Você quer colocar um chapéu de caubói e pôr os malvados ladrões de banco na linha.

— Não teria tempo. Já passo o suficiente tentando colocar você na linha.

Eu sorri, e de repente parecia como quando estávamos arrumando a igreja — antes da briga, é claro. Fácil. Confortável. Na verdade, parecia como nos velhos tempos, quando começamos a treinar juntos, bem antes de tudo ficar tão complicado. É, tudo bem... as coisas sempre foram complicadas, mas, por um tempo, já estiveram melhores. Isso me deixou triste. Eu queria reviver aqueles dias. Nenhum Victor Dashkov, nenhum sangue em minhas mãos.

— Desculpe — disse Dimitri, de repente.

— Pelo quê? Por ler romances cafonas?

— Por não ter trazido você aqui. Sinto que a desapontei. — Percebi uma sombra de preocupação em seu rosto, como se houvesse cometido um erro irreparável.

O pedido de desculpas me pegou desprevenida. Por um momento, eu me perguntei se ele estava com ciúmes da influência de Adrian, tal como acontecera com Christian. Então me toquei de que se tratava de algo bem diferente. Eu tornara a vida de Dimitri um inferno porque acreditara que ele podia fazer qualquer coisa. Em algum lugar — lá no fundo — ele pensava da mesma forma, pelo menos quando eu estava envolvida. Ele não queria me negar nada. Meu mau humor de antes desapareceu, e agora eu só me sentia cansada. E péssima.

— Não — disse eu. — Eu agi como uma pirralha. Você nunca me desapontou. E também não me desapontou agora.

A gratidão que ele me ofereceu com os olhos fez parecer que eu tinha ganhado asas. Se mais um tempinho tivesse passado, ele sem dúvida teria falado algo tão fofo que eu sairia voando dali. Em vez disso, o telefone tocou.

Outra conversa em russo, e aí ele levantou.

— Certo, vamos lá.

— Para onde?

— Ver Victor Dashkov.


Parecia que Dimitri tinha um amigo que tinha um amigo, e que, de alguma maneira, apesar da melhor segurança do mundo Moroi, nós conseguimos entrar nas dependências da prisão da Corte Real.

— Por que estamos fazendo isso? — sussurrei, enquanto atravessávamos o corredor onde ficava a cela de Victor. Eu realmente achei que haveria pedras e tochas ali, mas o lugar parecia moderno e eficiente, com chão de mármore e sólidas paredes brancas. Pelo menos não havia janelas. — Você acha que conseguiremos convencê-lo a não dizer nada?

Dimitri balançou a cabeça.

— Se Victor quisesse se vingar de nós, falaria sobre aquilo sem aviso prévio. Ele não faz nada sem um propósito. O fato de ele tê-la avisado antes significa algo, e nós vamos descobrir o que é.

Chegamos à cela de Victor. Ele era o único prisioneiro lá. Tal como o resto daquele lugar, sua cela me lembrava um hospital. Era tudo limpo, claro e esterilizado — e bem vazio. Era um local sem nenhum tipo de estímulo ou distração, algo que me enlouqueceria em meia hora. A cela tinha barras prateadas que pareciam difíceis de quebrar, o que, para mim, era a parte mais importante.

Victor estava sentado numa cadeira, observando as unhas com tédio. Três meses haviam se passado desde o nosso último encontro, e revê-lo fez meu corpo todo se arrepiar. Sentimentos que eu não sabia que trazia escondidos dentro de mim de repente vieram à tona.

Uma das coisas mais insuportáveis para mim era vê-lo tão saudável e jovem. Ele recuperara tais atributos torturando Lissa, e eu o odiava por isso. Se sua doença tivesse seguido o curso normal, ele estaria morto agora.

Ele tinha cabelos pretos penteados para trás, apenas levemente grisalhos. Estava na casa dos quarenta e ostentava uma cicatriz suntuosa, quase bela, no rosto. Ele levantou a vista quando chegamos. Olhos da mesma cor pálida e jade de Lissa me fitaram. Os caminhos das famílias Dragomir e Dashkov se cruzavam em muitas histórias, e era estranho ver aquela cor de olhos em outra pessoa. Um sorriso iluminou seu rosto.

— Ah, Deus. Só pode ser brincadeira. A adorável Rosemarie, praticamente uma adulta agora. — Seus olhos se voltaram para Dimitri. — Claro, algumas pessoas já vêm tratando você assim há um tempinho.

Eu pressionei minha cara nas barras.

— Chega de sacanagem, seu filho da... O que você quer?

Dimitri colocou gentilmente a mão no meu ombro e me puxou.

— Calma, Rose.

Soltei um longo suspiro e calmamente dei um passo para trás. Victor se ajeitou na cadeira e riu.

— Depois de tanto tempo, a sua aluninha ainda não aprendeu a se controlar. Ou talvez fosse essa a sua intenção.

— Não estamos aqui para brincar — disse Dimitri, devagar. — O senhor queria chamar a atenção de Rose, e agora queremos saber por quê.

— Precisa haver algum motivo sinistro? Eu só queria saber como ela estava, e algo me diz que amanhã nós não teremos tempo para conversas amigáveis. — Aquele sorriso enorme e irritante continuava em seu rosto, e concluí que ele tinha era sorte por estar atrás das grades e fora do meu alcance.

— Não será agora que teremos essa conversa — rosnei.

— Você acha que eu estou brincando, mas não estou. Eu realmente queria saber como você está. Você sempre foi um assunto fascinante para mim, Rosemarie. A única pessoa beijada pelas sombras que nós conhecemos. Eu já lhe disse, não é o tipo de coisa da qual se escapa ileso. Não há como você se diluir na rotina regrada da Escola como se nada houvesse. Pessoas como você não deviam se misturar.

— Eu não sou uma espécie de experimento científico.

Ele agiu como se eu não tivesse dito nada.

— Como tem sido? O que você tem reparado?

— Não temos tempo para isso. Se o senhor não for direto ao ponto, nós vamos embora — alertou Dimitri.

Eu não entendia como Dimitri podia estar tão calmo. Eu me inclinei para a frente e dei o meu sorriso mais frio para Victor.

— Eles não vão soltar você amanhã. Espero que goste da prisão. Aposto que será ótimo quando sua doença voltar, porque ela vai voltar, sabia?

Victor me estudou de cima a baixo, ainda com aquele olhar de divertimento que me fazia querer esganá-lo.

— Tudo morre, Rose. Bem, exceto você, eu suponho. Ou talvez você esteja morta. Eu não sei. Aqueles que visitam o mundo dos mortos provavelmente nunca conseguem se separar bem dele.

Eu já tinha uma resposta na ponta da língua, mas algo me conteve. Aqueles que visitam o mundo dos mortos. E se minhas visões de Mason não estavam ocorrendo porque eu era louca, ou porque ele procurava vingança? E se fosse algo em mim — algo que aconteceu quando eu morri e voltei à vida — que me conectava a Mason? Victor fora o primeiro a me explicar o que era uma pessoa beijada pelas sombras. Eu me perguntava se ele teria alguma resposta para o que eu queria saber agora.

Minha expressão deve ter me entregado, porque Victor me lançou um olhar curioso.

— Sim? Há algo que você queira dizer?

Eu odiava perguntar algo a ele. Isso fazia meu estômago se revirar. Engolindo meu orgulho, eu disse:

— O que é o mundo dos mortos? É o céu ou o inferno?

— Nenhum dos dois — respondeu ele.

— O que vive lá? Fantasmas? Eu vou voltar? Algo sai de lá?

Como eu temia, Victor estava adorando o fato de eu ter de recorrer a ele para tirar minhas dúvidas. Vi aquele enorme sorriso se alargando.

— Bem, é evidente que algumas coisas saem de lá, porque aqui temos você.

— Ele está enrolando você — disse Dimitri. — Deixe isso para lá.

Victor deu um rápido olhar de esguelha para Dimitri.

— Eu a estou ajudando. — Ele se virou para mim de novo. — Sinceramente? Não sei muito sobre o assunto. Você é quem esteve lá, Rose. Não eu. Não ainda. Um dia, você provavelmente vai me ensinar. Tenho certeza de que, quanto mais você entende a morte, mais se aproxima dela.

— Já chega — disse Dimitri, com a voz firme. — Vamos indo.

— Calma, calma — disse Victor, numa voz agradável. — Vocês ainda não me contaram sobre Vasilisa.

Voltei para perto da grade.

— Fique longe dela. Ela não tem nada a ver com isso.

Victor me olhou secamente.

— Preso como estou aqui, não tenho escolha a não ser ficar longe dela, querida. E você está errada: Vasilisa tem tudo a ver com tudo.

— Então era isso — disse eu, compreendendo. — Por isso você mandou o bilhete. Você me queria aqui porque queria saber dela, e sabia que ela não viria. Você não tinha nada para poder chantageá-la.

— Chantagem é uma palavra feia.

— Você não pode vê-la, pelo menos não fora do tribunal. Ela nunca vai curá-lo. Eu já lhe disse: você vai ficar doente de novo, e vai morrer. É você quem vai ficar me mandando cartões-postais do outro lado.

— Você acha que se trata disso? Acha que minhas necessidades são tão pequenas assim? — O tom zombeteiro havia sumido, e fora substituído por um olhar doentio e quase fanático em seus olhos verdes. Sua boca comprimida e rígida esticava um pouco aquele rosto, e percebi que ele havia emagrecido desde o nosso último encontro. Talvez a prisão tenha sido mais dura para ele do que eu imaginara. — Vocês se esqueceram de tudo, por que eu fiz o que fiz. Vocês se prenderam tanto ao seu mundinho limitado que não repararam na minha visão de um quadro mais amplo.

Eu quebrei a cabeça, lembrando do último outono. Ele tinha razão. Meu foco estava mesmo nos erros que ele cometeu contra Lissa e mim. Me esqueci das outras conversas, das explicações insanas sobre o seu grande esquema.

— Você queria fazer uma revolução, e ainda quer. Isso é loucura. Não vai acontecer — declarei.

— Já está acontecendo. Você pensa que não sei o que se passa com o mundo lá fora? Eu ainda possuo contatos. As pessoas podem ser compradas... Como acha que lhe enviei aquela mensagem? Eu sei da agitação, sei sobre o movimento de Natasha Ozera para que os Moroi lutem ao lado dos guardiões. Você toma o partido dela e me faz vilão, Rosemarie, mas eu defendi a mesma causa no outono passado. Ainda assim, de alguma forma, você parece não igualá-la a mim.

— A forma como Tasha Ozera está lutando é um pouco diferente da sua — observou Dimitri.

— E é por isso que ainda não chegou a lugar algum — rebateu Victor. — Tatiana e seu conselho estão engessados por séculos de tradições arcaicas. Enquanto esse tipo de poder ainda nos dominar, nada vai mudar. Nós nunca aprenderemos a lutar. Os Moroi de fora da realeza nunca terão voz. Dampiros como vocês continuarão sendo enviados para as linhas de frente.

— Dedicamos nossas vidas a isso — disse Dimitri. Eu conseguia sentir a tensão crescendo nele. Ele podia parecer mais controlado do que eu, mas eu sabia que ele estava ficando igualmente frustrado.

— E perdem sua vida por isso. Vocês são escravizados e nem percebem. E por quê? Para nos protegerem?

— Porque... precisamos de vocês — gaguejei. — Para a nossa raça sobreviver.

— Não precisam ir a uma guerra para isso. Fazer filhos não é assim tão complicado.

Eu ignorei o sarcasmo.

— E porque os Moroi... os Moroi e suas magias são importantes. Eles podem fazer coisas incríveis.

Victor levantou as mãos, exasperado.

— Nós costumávamos fazer coisas incríveis. Os humanos costumavam nos venerar, mas, com o tempo, ficamos preguiçosos. A tecnologia deixou nossa magia mais e mais obsoleta. Agora, tudo o que fazemos são truques.

— Já que o senhor possui tantas ideias — disse Dimitri, com um brilho perigoso em seus olhos negros —, então faça algo de útil na cadeia e escreva um manifesto.

— E o que isso tem a ver com Lissa, afinal? — perguntei.

— Acontece que Vasilisa é um veículo para a mudança.

Eu o encarei, incrédula.

— Você acha que ela vai liderar a sua revolução?

— Bem, eu preferiria que fosse eu a liderá-la, um dia. Mas, em todo o caso, acho que ela fará parte disso. Eu ouvi sobre ela também. Vasilisa é uma estrela em ascensão, ainda jovem, certamente, mas as pessoas têm reparado. Sabe, a realeza não é criada de forma homogênea. O símbolo Dragomir é um dragão, o rei das feras. Da mesma maneira, o sangue Dragomir sempre foi poderoso, e por isso sempre foram alvo dos Strigoi. Um Dragomir voltar ao poder não é pouca coisa, ainda mais alguém como ela. A impressão que tive através dos meus informantes é que ela deve ter aprendido muito bem sua magia. Se for isso mesmo... com seus dons... não há dúvidas do que ela pode fazer. As pessoas a apreciam sem quase esforço algum da parte dela. E, quando ela realmente tentar influenciar alguém... bem, eles farão o que ela quiser.

Seus olhos se arregalaram enquanto ele falava, admiração e felicidade estampadas no rosto enquanto imaginava Lissa realizando os sonhos dele.

— Inacreditável — disse eu. — Antes, você queria guardá-la consigo para continuar vivo. Agora você realmente espera que ela ande pelo mundo afora usando a compulsão para concretizar os seus planos psicóticos.

— Eu lhe disse, ela tem potencial para a mudança. E, assim como no seu caso, ela é a única em seu tipo que nós conhecemos. Isso a torna perigosa, e muito valiosa.

Bem, essa era uma novidade. Ele não era tão sabe-tudo assim. Não sabia do poder do espírito de Adrian.

— Lissa nunca fará isso — afirmei. — Ela não abusará de seus poderes.

— E Victor não dirá nada a nosso respeito — completou Dimitri, me puxando pelo braço. — Ele atingiu seu objetivo. Nos trouxe aqui porque queria saber de Lissa.

— Ele não descobriu muito — disse eu.

— Você ficaria surpresa... — disse Victor. Ele sorriu para Dimitri. — E o que faz você ter a certeza de que não contarei a todos sobre suas indiscrições românticas?

— Porque isso não o salvará da prisão. E, se o senhor destruir Rose, vai destruir qualquer mínima chance de fazer Lissa cooperar com a sua fantasia. — Victor hesitou um pouco; Dimitri estava certo. Ele foi para a frente, encostando bem na grade, como eu fizera antes. Eu achava que minha voz podia ser assustadora, mas, quando ele disse aquelas palavras seguintes, percebi que ela não chegava nem perto disso. — E tudo isso terá sido em vão no final, porque não sobreviverá muito tempo na prisão para arquitetar seus grandes planos. O senhor não é o único com contatos aqui.

Minha respiração parou por um instante. Dimitri trouxe tanto para a minha vida: amor, conforto e instrução. Estava tão acostumada com ele que às vezes esquecia o quanto podia ser perigoso. Com ele parado ali, alto e ameaçador, encarando Victor de cima, senti um arrepio percorrer minha espinha. Lembrei como havia me sentido no meu primeiro dia na Escola, quando me disseram que Dimitri era um deus. Naquele momento, ele parecia mesmo.

Se Victor se sentiu ameaçado por Dimitri, ele não demonstrou. Seus olhos verde-jade olhavam para nós dois.

— Vocês são um casal feito nos céus. Ou em algum outro lugar.

— Nos vemos na corte — disse eu.

Dimitri e eu saímos. No caminho, ele falou algo em russo para o guardião dali. Imaginei que Dimitri estava agradecendo.

Chegamos ao lado de fora, cruzando um espaço amplo e lindo como o de um parque para voltarmos aos nossos quartos. A neve tinha parado de cair, deixando tudo — prédios e árvores — coberto de gelo. Era como se o mundo fosse feito de vidro. Olhando para Dimitri, notei que ele mirava o horizonte fixamente. Era difícil dizer ao certo porque estávamos andando, mas eu podia jurar que ele estava tremendo.

— Você está bem? — perguntei.

— Sim.

— Tem certeza?

— Tão bem quanto possível.

— Você acha que ele contará a todos sobre nós?

— Não.

Nós andamos em silêncio um pouco. Até que finalmente perguntei o que eu queria tanto saber.

— Você falou sério sobre... Se o Victor contasse... Você ia... — Eu não consegui terminar. Não consegui reunir forças para soltar as palavras arranjar alguém para matá-lo.

— Eu não tenho muita influência nos altos círculos reais dos Moroi, mas tenho bastante entre os guardiões que cuidam dos trabalhos sujos em nosso mundo.

— Você não respondeu à minha pergunta. Se você realmente ia fazer aquilo.

— Eu faria uma porção de coisas para proteger você, Roza.

Meu coração bateu rápido. Ele só me chamava de “Roza” quando queria me tratar de forma particularmente carinhosa.

— Isso não seria exatamente me proteger. Seria depois do acontecido... a sangue-frio. Você não faz esse tipo de coisa. Vingança é mais o meu departamento. Eu teria que matar o Victor.

Eu falei de brincadeira, mas ele não achou graça.

— Não fale assim. E, de qualquer maneira, não importa. Victor não vai dizer nada.

Ele me deixou e foi para o seu quarto. Quando eu estava abrindo a porta do meu, Lissa apareceu no corredor.

— Aí está você. O que houve? Você perdeu o jantar.

Eu tinha esquecido completamente.

— Desculpe... me distraí com alguns assuntos de guardiões. Longa história.

Ela trocara de roupa para o jantar. O cabelo ainda estava preso no alto, e agora ela usava um vestido justo de pura seda prateada. Estava linda, legitimamente parte da realeza. Pensei nas palavras de Victor e me perguntei se ela realmente tinha esse poder de mudança do qual ele estava tão certo. Tal como estava agora, tão glamorosa e confiante, eu podia imaginar pessoas seguindo-a para qualquer lugar. Eu certamente o faria — mas, também, a minha imparcialidade já estava comprometida.

— Por que está me olhando assim? — me perguntou ela com um sorrisinho.

Eu não podia contar que tinha acabado de visitar o homem que mais a aterrorizava. Não podia contar que, enquanto ela aproveitava a vida, eu a estava protegendo nas sombras, como sempre.

Em vez disso, eu sorri de volta.

— Gostei do seu vestido.


catorze

Mais ou menos meia hora antes de o meu despertador tocar, na manhã seguinte, eu ouvi alguém batendo na porta. Pensei que fosse Lissa, mas uma checagem sonolenta pelo nosso laço me indicou que ela ainda dormia profundamente. Intrigada, me arrastei da cama e abri a porta. Uma menina Moroi que eu não reconheci me entregou algumas roupas dobradas e um bilhete. Eu me perguntei se devia lhe dar uma gorjeta ou algo do gênero, mas ela partiu antes de qualquer reação minha.

Sentei de novo em minha cama e desdobrei as roupas. Calças largas, uma camisa branca e uma jaqueta preta. Era o mesmo uniforme que os outros guardiões usavam ali, e era do meu tamanho. Uau. Eu ia fazer parte da equipe deles. Um pequeno sorriso começou a surgir no meu rosto, e eu abri o bilhete. Era a letra de Dimitri: Use o cabelo preso.

O sorriso continuou no meu rosto. Muitas guardiãs cortavam os cabelos para exibir suas marcas molnija. Uma vez considerei a ideia com alguma relutância, mas Dimitri me dissuadiu. Ele amava o meu cabelo e me dissera para fazer um rabo de cavalo. O jeito como ele tinha dito desta vez era o mesmo de antes, e me deixou arrepiada.

Uma hora mais tarde, eu estava indo para o julgamento com Lissa, Christian e Eddie. Alguém havia entregado uma muda preta e branca para o Eddie também, e nós dois meio que nos sentimos como crianças brincando com as roupas dos pais. Minha jaqueta e blusa estavam lindas, e eu me perguntei se poderia levá-las para casa.

A corte ficava no grande e suntuoso prédio por onde passáramos na chegada. Andando pelos corredores, eu via uma mistura do velho com o novo. Por fora, havia janelas arqueadas e pináculos de pedra por toda a parte. Por dentro, era um moderno centro de atividade. Pessoas trabalhando diante de monitores de tela plana. Elevadores conduzindo aos andares superiores. Mesmo assim, alguns toques antigos ainda podiam ser encontrados. Esculturas em pedestais. Candelabros nos corredores.

A corte possuía lindos murais que cobriam as paredes do chão ao teto, e em frente à sala do julgamento havia escudos de todas as famílias reais pendurados. Lissa parou enquanto nós entrávamos, repousando os olhos sobre o dragão dos Dragomir. Rei das feras. Um mar de emoções conflitantes a atravessou ao olhar para aquele brasão e sentir o peso de ser a única a carregar aquele nome. Orgulho de fazer parte daquela família. Medo de que não fosse boa o bastante para o nome. Cutucando-a de leve, eu a conduzi aos nossos assentos.

Os assentos eram separados por um corredor que ia até o meio da sala. Nós nos sentamos na frente, na seção do lado direito. Ainda faltavam alguns minutos para o processo começar, mas o lugar não estava muito cheio. E suspeitei de que assim continuaria, por causa do sigilo a respeito do real paradeiro de Victor. Um juiz se sentou na frente, mas não havia júri. Um assento elevado, a um canto da sala, indicava onde a rainha iria sentar quando chegasse. Dela seria a palavra final. Era assim que funcionava com casos envolvendo a realeza.

Eu mencionei isso a Lissa:

— Vamos esperar que ela esteja contra Victor. Ao que parece, a decisão é só dela.

Lissa franziu o cenho.

— Não ter um júri é estranho.

— Isso é porque nós passamos muito tempo com os humanos.

Ela sorriu.

— Talvez. Não sei. Parece haver espaço de sobra para a corrupção desse jeito.

— Bem, sim. Mas é do Victor que estamos falando. — Momentos depois, o príncipe Victor Dashkov entrou na corte. Ou, melhor, só Victor Dashkov. Ele perdeu o título quando foi preso, o qual foi repassado para a próxima pessoa mais velha de sua família.

O medo invadiu Lissa, e a corzinha que havia em seu rosto sumiu. Misturado a esse medo estava uma emoção pela qual eu não esperava: arrependimento. Antes de ele a sequestrar, Victor tinha sido como um tio para ela — era até assim que ela o chamava. Ela o amara, e ele a traíra. Pus a minha mão sobre a dela.

— Calma. Vai ficar tudo bem.

Os olhos dele, cerrados e astutos, correram pela corte como se estivesse numa festa. Ele trazia a mesma aparência despreocupada de quando falou comigo e com Dimitri. Senti meus lábios se curvarem em sinal de desprezo. Uma névoa vermelha tingia o meu campo visual, e eu me esforcei para ficar tão serena quanto os outros guardiões no recinto. Victor por fim identificou Lissa, e ela estremeceu ao ver a mesma cor de olhos de sua família. Quando ele a cumprimentou com um aceno de cabeça, me senti perdendo o controle. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, surgiram novas palavras em minha mente — palavras de Lissa. Respire, Rose. Só respire. Teríamos que confiar uma na outra para passarmos por aquilo. Um milésimo de segundo depois, Victor retomava o seu caminho, rumo ao seu lugar, no lado esquerdo da sala.

— Obrigada — disse eu a Lissa, quando ele se distanciou. — É como se você pudesse ler minha mente.

— Não — disse ela, gentilmente. — Eu só consigo sentir a sua mão.

Eu olhei para baixo, para nossas mãos. Eu havia segurado a mão dela para confortá-la, mas o que fiz foi espremê-la.

— Nossa — disse eu, largando sua mão e torcendo para não ter quebrado nenhum dedo. — Desculpe.

Logo depois de Victor entrou a rainha Tatiana, o que me desanuviou e ajudou a pacificar os meus sentimentos negros. Todos nos levantamos quando ela entrou, e depois nos ajoelhamos. Era bem arcaico, mas era um costume que os Moroi traziam há muitos anos. Não nos levantamos até ela se sentar, e então nos sentamos também.

O julgamento começou. Um por um, aqueles que haviam testemunhado os eventos com Victor contavam o que viram. Tratava-se basicamente dos guardiões que saíram em busca de Lissa quando Victor a sequestrara e que mais tarde viriam a encontrar o seu esconderijo.

Dimitri foi o último guardião a depor. No geral, seu testemunho não foi tão diferente dos demais. Todos fizeram parte do mesmo grupo de resgate, mas sua parte na história havia começado um pouco antes.

— Eu estava com a minha aluna, Rose Hathaway — disse ele. — Ela partilha um laço com a princesa e foi a primeira a sentir que algo tinha acontecido.

O advogado de Victor — eu mal podia imaginar como conseguiram alguém para representá-lo — olhou para alguns papéis e, depois, de volta para Dimitri.

— Com base nos eventos descritos, parece ter havido um intervalo considerável entre a descoberta de Rose e o seu sinal de alerta aos outros guardiões.

Dimitri consentiu, sua máscara de compostura nunca caindo.

— Rose não pôde fazer nada a respeito, porque o sr. Dashkov havia colocado um feitiço nela, um feitiço que a fez me atacar.

Falou tão calmamente que me surpreendeu. Nem mesmo o advogado parecia ter percebido coisa alguma.

Só eu percebia — talvez porque o conhecesse — quão doloroso era para Dimitri mentir. Sim, ele queria nos proteger — queria me proteger, principalmente —, e era por isso que ele mentia. Mas o machucava estar ali, sob juramento, e ter de mentir. Dimitri não era perfeito, por mais que eu achasse isso às vezes, mas ele sempre tentava ser honesto. Hoje, ele não podia.

— O sr. Dashkov trabalha com a magia da terra, e alguns usuários desse poder que são bons em compulsão possuem meios de influenciar nossos instintos básicos — continuou Dimitri. — Nesse caso, ele afetou o humor e a agressividade de Rose utilizando um objeto.

À minha esquerda, eu ouvi um som — como se alguém estivesse abafando uma risada. A juíza, uma Moroi idosa porém severa, armou uma carranca.

— Sr. Dashkov, por favor, respeite o decoro desta corte.

Victor, ainda sorrindo, balançou a mão se desculpando.

— Desculpe-me, Meritíssima e Vossa Majestade. Algo no testemunho do guardião Belikov me causou humor, só isso. Não vai acontecer de novo.

Segurei minha respiração, esperando a bomba cair. Não caiu. Dimitri terminou seu depoimento, e foi a vez de Christian. Sua parte foi curta. Ele estava com Lissa quando ela fora levada, e tinham-no deixado desacordado. Sua contribuição foi ser capaz de identificar os sequestradores entre alguns dos guardiões de Victor. Quando Christian voltou para o seu lugar, eu fui chamada. Andei até lá, esperando me acalmar diante de todos aqueles olhares — e diante de Victor. Na verdade, eu até me desviei de meu caminho, para nem olhar para ele. Quando disse meu nome e jurei dizer a verdade, eu, de repente, senti com força total o que Dimitri devia ter sentido. Eu estava na frente de toda aquela gente, prometendo ser honesta, mas não hesitaria em mentir se me perguntassem sobre o feitiço da luxúria.

Minha versão foi bem sucinta. Eu tinha alguns detalhes a oferecer sobre a noite anterior ao sequestro, como as armadilhas doentias que Victor havia posicionado aqui e ali para testar os poderes de Lissa. De resto, minha história batia com a de Dimitri e a dos outros guardiões.

Eu disse há pouco que podia mentir bem, e passei pela parte do feitiço de “ataque” tão tranquilamente que ninguém desconfiou de nada. A não ser o Victor. Apesar da minha recusa em encará-lo, eu inadvertidamente olhei em sua direção quando mencionei o feitiço. Seus olhos me atravessaram, e um pequeno sorriso sarcástico despontava em seus lábios. Percebi que aquela presunção era mais do que apenas por saber que eu estava mentindo. Era também por saber a verdade exata — e o olhar que ele me devolveu me dizia que ele tinha poder sobre mim e sobre Dimitri, o poder de arruinar tudo para nós dois, na frente de todos ali — não importando a ameaça anterior de Dimitri. Mesmo assim, eu mantive a minha expressão calma o suficiente para orgulhar Dimitri, mas dentro do peito meu coração batia acelerado.

Parecia que aquilo ia durar para sempre, mas eu sabia que só estaria sob juramento por alguns minutos. Eu terminei, morta de alívio por Victor não ter dito nada, e então foi a vez de Lissa. Como vítima daqueles crimes, ela ofereceu as primeiras novas perspectivas até o momento, e todos se detiveram em sua história. Era irresistível; ninguém tinha ouvido nada parecido antes. Eu também percebi que, mesmo sem ter a intenção, Lissa estava usando seu carisma induzido pelo espírito. Imagino que vinha do mesmo lugar que a compulsão. As pessoas ficavam arrebatadas e mais receptivas. Quando Lissa descreveu a tortura que Victor infligira para forçá-la a curá-lo, eu vi os rostos das pessoas ficarem pálidos e em choque. Até a expressão rígida de Tatiana se alterou um pouco, embora eu não soubesse dizer se era por pena ou apenas surpresa.

O mais incrível, no entanto, era a calma com que Lissa conseguia contar aquela história. Na aparência, ela estava segura e linda. Mas, conforme ia falando e relatando como exatamente o lacaio de Victor a havia torturado, ela reavivou a dor e o terror daquela noite. O sujeito era um usuário do ar, e ele brincava com esse elemento, ora privando-a dele, para que não conseguisse respirar, ora insuflando-a até o limite. Tinha sido horrível, e eu sofri aquilo junto com ela. Na verdade, ela e eu sofríamos uma vez mais enquanto ela relatava os eventos daquela noite. Cada detalhe doloroso ainda permanecia intacto em sua mente, a dor ecoando em nós duas. Ambas ficamos aliviadas quando o testemunho terminou.

Finalmente, era a vez do Victor. Pela expressão em seu rosto, nem se podia desconfiar que era ele quem estava sendo julgado. Ele não estava irritado nem ultrajado. Não estava arrependido. E nem implorava. Agia como se estivéssemos todos num lugar qualquer, nos divertindo, como se ele não tivesse nada com o que se preocupar. De alguma maneira, aquilo conseguia me irritar ainda mais.

Mesmo ao responder, ele falava como se tudo aquilo fosse perfeitamente razoável. Quando a acusação perguntou por que ele tinha feito o que fez, ele encarou a advogada como se ela estivesse louca.

— Ora, eu não tive escolha — disse ele, divertidamente. — Eu estava morrendo. Ninguém me permitiria experimentar os poderes da princesa abertamente. O que você teria feito no meu lugar?

A advogada ignorou a pergunta. Estava sendo difícil para ela ocultar a expressão de nojo.

— E o senhor também achou necessário transformar sua filha numa Strigoi?

Todos na corte se remexeram, desconfortáveis. Uma das coisas mais horríveis a respeito dos Strigoi era que eles eram transformados, e não concebidos. Um Strigoi podia forçar um humano, um dampiro ou um Moroi a se tornar um deles se bebesse o sangue da vítima e depois a alimentasse com sangue Strigoi. Não importava se essa era a vontade da vítima ou não, e, uma vez Strigoi, ela perdia todo o seu antigo senso moral. Ela aceitava virar um monstro e matar os outros para continuar sobrevivendo. Os Strigoi convertem novos membros quando encontram alguém capaz de fortalecer suas linhas de frente. Às vezes, o faziam só por maldade.

A outra forma de se transformar num Strigoi era se um Moroi escolhesse matar alguém enquanto se alimentava, destruindo toda a magia dentro de si. Os pais de Christian fizeram isso porque queriam ser imortais, não importando o preço. A filha de Victor, Natalie, havia feito o mesmo porque ele a convencera. A força e a velocidade extra que ela adquirira virando uma Strigoi ajudaram-na a salvá-lo, e ele sentira que seus objetivos valeram o sacrifício.

Mais uma vez, Victor não mostrou remorso. Sua resposta foi simples.

— Natalie decidiu isso.

— O senhor poderia dizer o mesmo de todos os que utilizou para atingir os seus propósitos? O guardião Belikov e a senhorita Hathaway não tiveram escolha, por exemplo.

Victor gargalhou.

— Bem, essa é uma questão de ponto de vista. Sinceramente, não creio que tenham se importado. Mas, se a senhora tiver um tempo depois deste caso, Meritíssima, talvez queira ouvir sobre um caso de estupro contra uma menor de idade.

Eu congelei. Ele fez. Ele realmente fez aquilo. Eu esperava que todos na sala se virassem e apontassem para mim e para Dimitri. Ninguém sequer nos dirigiu o olhar, no entanto. A maioria estudava Victor empalidecida. Percebi que era exatamente o que ele esperava que acontecesse. Tudo o que ele queria era nos provocar; ele não esperava que alguém o levasse a sério. Os sentimentos transmitidos por Lissa em nosso laço confirmavam isso. Ela concluiu que Victor queria criar uma distração, inventando histórias sobre mim e Dimitri. Ela estava horrorizada pela forma como Victor podia se rebaixar.

A juíza também se sentia assim e criticou Victor por se desviar do assunto. Àquela altura, a maior parte do interrogatório já havia sido feita. Os advogados encerraram suas argumentações, e era chegado o momento de a rainha dar o veredicto. Segurei mais uma vez a respiração, pensando no que ela diria. Victor não havia negado nenhuma das acusações. As evidências eram contundentes, graças ao testemunho dos meus amigos, mas, como o próprio Victor tinha apontado, havia muita corrupção entre os membros da realeza. A rainha podia muito bem decidir que não queria um escândalo envolvendo alguém tão conhecido. Ainda que ninguém soubesse dos detalhes, sua prisão provocaria um burburinho. Talvez ela não quisesse lidar com isso. Talvez Victor a tivesse comprado também.

Mas, no final das contas, ela o sentenciou à prisão perpétua — uma prisão diferente, e não aquela, na Corte Real. Eu ouvira histórias sobre as prisões Moroi, e elas eram lugares terríveis. Suspeitei de que sua nova cela seria bem diferente da que havíamos visitado. Victor continuou calmo e entretido durante todo o processo, assim como fez ontem. Eu não gostava daquilo. A conversa que eu tivera com ele me levava a crer que ele não aceitaria a prisão assim, de forma tão serena. Eu esperava que eles o vigiassem de perto.

Um gesto da rainha encerrou as formalidades. O resto de nós levantou e começou a conversar, enquanto ela sondava a sala com olhos de águia, provavelmente fazendo anotações. A escolta de Victor começou a levá-lo para fora. Ele voltou a passar por nós. Dessa vez, ele parou e falou:

— Vasilisa, você me parece ótima.

Ela não respondeu. Ela ainda o odiava e temia, mas, após o veredicto, ela finalmente acreditou que ele não podia mais machucá-la. Era como o fim de um capítulo no qual ela tivesse empacado por meses. Ela enfim poderia seguir em frente, e, se tudo desse certo, aquelas terríveis lembranças desapareceriam.

— Lamento não termos tido uma chance de conversar, mas sei que conseguiremos da próxima vez — acrescentou ele.

— Em frente — disse um dos guardiões a seu lado. E o levaram dali.

— Ele é louco — sussurrou Lissa, depois que ele saiu. — Não acredito que falou aquilo sobre você e o Dimitri.

Dimitri estava atrás dela. Eu ergui os olhos e encontrei os dele, ao passar por nós. Seu alívio era igual ao meu. Nós havíamos brincado com fogo hoje — e saímos vitoriosos.

Christian foi até Lissa e a abraçou, segurando-a por um bom tempo. Eu os observei com carinho, surpresa com os meus sentimentos bons por eles. Quando uma mão tocou meu braço, eu dei um pulo. Era Adrian.

— Você está bem, dampirinha? — perguntou, calmo. — Dashkov fez alguns... hã... comentários bem sugestivos.

Eu cheguei mais perto, mantendo a voz baixa.

— Ninguém acreditou nele. Acho que está tudo bem. Obrigada por perguntar.

Ele sorriu e encostou um dedo no meu nariz.

— Dois agradecimentos seus em dois dias. Será que vou receber algum tipo de, digamos, recompensa especial?

Resolvi brincar.

— Não. Você vai ter que imaginar.

Ele me deu um meio abraço e me soltou.

— É justo. Mas eu tenho boa imaginação.

Nós começamos a sair, e Priscilla Voda correu até Lissa.

— A rainha gostaria de vê-la antes de partirem. Em particular.

Espiei para onde a rainha estava sentada. Seu olhar recaía sobre nós, e me perguntei sobre o que poderia ser aquela conversa.

— Claro — disse Lissa, tão confusa quanto eu. Participa de novo?, me perguntou ela por meio do laço.

Eu dei um pequeno aceno com a cabeça antes que Priscilla a levasse. Voltei para o meu quarto, me ligando a Lissa enquanto arrumava as minhas coisas. Levou um tempo porque Tatiana ainda precisava cumprir com algumas formalidades da corte, mas por fim ela veio, para o mesmo aposento do dia anterior. Lissa e Priscilla se curvaram quando ela entrou, esperando a rainha sentar.

Tatiana se acomodou confortavelmente.

— Vasilisa, você logo deixará este lugar, então serei breve. Gostaria de lhe propor uma oferta.

— Que tipo de oferta, Majestade?

— Logo você irá para a faculdade. — Ela falou como se tudo já estivesse decidido. E, sim, Lissa planejava ir para a faculdade, mas eu não gostava daquela presunção. — Eu soube que você não está satisfeita com as suas opções.

— Bem... não é que eu esteja insatisfeita. É só que todos os lugares reservados aos Moroi são pequenos. Quer dizer, eu entendo que é por motivos de segurança, mas não sei, não. Eu gostaria de ir a algum lugar maior. Algum lugar de prestígio. — Guardiões monitoravam um punhado de universidades espalhadas pelo país, para que os Moroi pudessem frequentá-las sossegados. Como Lissa havia observado, no entanto, tratava-se de pequenas faculdades.

Tatiana concordou, impaciente, como se já soubesse disso.

— Vou lhe dar uma oportunidade que ninguém mais teve, até onde sei. Depois de se formar, eu gostaria que você viesse morar aqui, na Corte Real. Você não tem família, e acredito que aprenderia mais sobre as questões políticas diretamente no coração de nosso governo. Além disso, nós providenciaríamos para que você fosse para a Universidade de Lehigh. Fica a menos de uma hora daqui. Você já ouviu falar?

Lisa fez que sim com a cabeça. Eu nunca ouvira falar naquela instituição, mas Lissa era nerd o suficiente para já ter pesquisado a respeito de cada universidade existente nos Estados Unidos.

— É uma boa universidade, Majestade. Mas... ainda pequena.

— É maior do que aquelas que os Moroi costumam frequentar — argumentou a rainha.

— Verdade. — Em sua cabeça, Lissa tentava entender o que estava acontecendo ali. Por que Tatiana estava fazendo aquela oferta? Ainda mais considerando o quanto discordara de Lissa mais cedo. Tinha algo estranho acontecendo, e ela decidiu descobrir até que ponto poderia insistir. — A Universidade da Pensilvânia também não fica tão longe, Majestade.

— Essa universidade é enorme, Vasilisa. Nós não conseguiríamos garantir a sua segurança lá.

Lissa deu de ombros.

— Bem, então não me importa se vou para a Lehigh ou qualquer uma das outras.

A rainha parecia chocada. Priscilla também. Elas não conseguiam acreditar que Lissa parecia tão indiferente à oferta. Na verdade, não era assim que Lissa se sentia. A Lehigh era uma opção que superava as suas expectativas, e ela queria ir. Mas ela também queria saber por que a rainha desejava tanto aquilo.

Tatiana franziu o cenho, e aparentava estar pesando as palavras.

— Dependendo das suas notas e experiências na Lehigh, poderíamos conseguir uma transferência para você em alguns anos. Mais uma vez, a logística de segurança seria bastante complicada.

Uau. A rainha a queria mesmo por perto. Mas por quê? Lissa decidiu simplesmente perguntar.

— Eu fico lisonjeada, Majestade. E grata. Mas por que está me oferecendo isso?

— Como a última Dragomir, você é preciosa. Quero ter certeza de que o seu futuro estará a salvo. E eu também odeio ver mentes brilhantes desperdiçadas. Além disso... — Ela fez uma pausa, hesitando em falar. — Você tem razão até certo ponto. Os Moroi possuem dificuldade em mudar. Poderia ser útil ter uma voz discordante por aqui.

Lissa não respondeu de imediato. Ainda estava analisando a proposta por todos os ângulos possíveis. Ela queria que eu estivesse lá para ajudá-la, mas eu não sabia ao certo se teria uma opinião formada. Dividir os meus deveres de guardiã entre a Corte e uma boa universidade seria fantástico. Por outro lado, teríamos mais liberdade em outros lugares. No final, Lissa se decidiu em favor de sua educação.

— Está bem — disse ela, enfim. — Eu aceito. Obrigada, Majestade.

— Excelente — disse Tatiana. — Cuidaremos para que todas as providências sejam tomadas. Pode ir agora.

A rainha não esboçou qualquer movimento, então Lissa fez uma nova reverência e foi até a porta, ainda atônita com as novidades. Subitamente, Tatiana a chamou de volta.

— Vasilisa? Pode chamar sua amiga para vir falar comigo? A jovem Hathaway?

— Rose? — perguntou ela, assustada. — Por que a senhora...? Sim, claro. Vou chamá-la.

Lissa correu em direção ao prédio dos hóspedes, mas eu a encontrei no caminho.

— O que houve? — perguntei.

— Não faço ideia — respondeu Lissa. — Você ouviu o que ela disse?

— Ouvi. Talvez ela queira me explicar como terei que ser mais cuidadosa, com você naquela faculdade.

— Talvez. Não sei. — Lissa me deu um rápido abraço. — Boa sorte. Vejo você logo mais.

Fui para aquele mesmo aposento e encontrei Tatiana com as mãos juntas, empertigada e impaciente. Estava novamente vestida como uma mulher de negócios, num conjuntinho marrom impecável de blazer e saia. Aquela cor não teria sido a minha primeira escolha para combinar com seu cabelo cinza-escuro, mas isso era problema do consultor de moda dela, e não meu.

Eu lhe fiz uma reverência como a de Lissa, e analisei aquele lugar. Priscilla não estava mais lá; só alguns guardiões permaneciam. Eu esperava que Tatiana fosse me pedir para sentar, mas, em vez disso, ela levantou e veio até mim. Sua expressão não parecia feliz.

— Senhorita Hathaway — disse ela, num ímpeto. — Eu me farei breve. Você deve pôr um fim a esse caso abominável que está tendo com o meu sobrinho-neto. Imediatamente.


Quinze

— Eu... o quê?

— Você me ouviu. Desconheço até que ponto as coisas chegaram e, sinceramente, não desejo saber de qualquer detalhe. Não é essa a ideia. A ideia é que isso não deve seguir adiante.

A rainha me olhava de nariz empinado, com as mãos nos quadris, claramente esperando que eu jurasse fazer o que ela pedisse. Só que eu meio que não podia. Espiei o aposento à minha volta, certa de que aquela era uma brincadeira. Eu olhei para os dois guardiões quase acreditando que eles poderiam explicar o que estava acontecendo, mas estavam usando aquela tática de “olhar sem realmente ver”. Contato visual zero. Eu me voltei para a rainha.

— Hã, Majestade... houve algum engano. Não existe nada rolando entre mim e Adrian.

— Você acha que eu sou idiota? — perguntou ela.

Uau. Que oportunidade.

— Não, Majestade.

— Bem, já é um começo. Não tem por que mentir para mim. As pessoas já viram vocês juntos, aqui e na escola. Eu vi vocês na corte. — Droga. Por que Adrian escolhera justo aquele momento para bancar o engraçadinho e roubar outro abraço? — Já ouvi todos os detalhes ilícitos sobre o que está acontecendo, e isso acaba aqui e agora. Adrian Ivashkov não vai fugir com uma dampira vulgar, então é melhor começar a se convencer disso agora mesmo.

— Eu nunca pensei que ele fosse fazer isso, porque não estamos envolvidos. Quer dizer, nós somos amigos, só isso. Ele gosta de mim. Ele gosta de flertar. E, se vamos falar de coisas ilícitas, então... sim, eu tenho certeza de que Adrian possui uma lista de coisas ilícitas que ele gostaria de fazer comigo. Muitas coisas ilícitas. Mas não estamos praticando nenhuma delas, Majestade.

Logo que as palavras saíram da minha boca, eu me senti uma idiota. Pelo olhar no rosto dela, no entanto, não parecia que a situação pudesse ficar pior para mim.

— Eu sei sobre você — disse ela. — Tudo o que falam de você agora são os seus prêmios e louvores recentes, mas ainda não me esqueci de que foi você quem fugiu com Vasilisa. Sei também das confusões em que você se metia... sei das bebedeiras, dos homens... Se dependesse de mim, eu já a teria despachado para alguma comunidade de prostitutas de sangue. Você provavelmente se encontraria, por lá.

Bebedeiras e homens? Ela me fazia parecer uma prostituta alcoólatra, quando, na verdade, eu provavelmente não bebia mais do que outros adolescentes nas festas do colégio. No entanto, dizer isso a ela parecia inútil. Contar que eu ainda era virgem também não faria muita diferença.

— Mas suas recentes... conquistas tornaram esse meu projeto impossível — continuou ela. — Todos acreditam que você tem um tipo de futuro glorioso à frente. Talvez você tenha. Não obstante, se não posso impedi-la de ser uma guardiã, posso influir em quem você irá proteger como guardiã.

Eu me retesei.

— O que está dizendo? Está me ameaçando? — Eu disse aquelas palavras num tom hesitante, e não de desafio. Ela não podia estar falando sério. Me tirar de Lissa durante a experiência de campo era uma coisa, mas agora estávamos falando de algo completamente diferente.

— Só estou dizendo que nutro um grande interesse pelo futuro de Vasilisa, só isso. E, se eu tiver que protegê-la de influências corruptoras, eu irei. Nós podemos encontrar outro guardião para ela. Podemos encontrar outro Moroi para você.

— Você não pode fazer isso! — Pude ver pela expressão da rainha que ela estava feliz por finalmente arrancar de mim uma reação legítima. Eu estava enraivecida e com medo, e lutei bravamente contra os meus instintos explosivos usuais. Diplomacia e honestidade eram tudo o que eu precisava agora. — Adrian e eu não estamos fazendo nada. De verdade. Não pode me punir por algo que eu não estou fazendo. — E me lembrei rapidamente de acrescentar: — Majestade.

— Eu não desejo puni-la, Rose. Só quero ter a certeza de que nós nos entendemos. Homens Moroi não se casam com dampiras. Eles brincam com elas. Toda garota pensa que será diferente com ela, e até a sua mãe pensou, no caso de Ibrahim, mas ela também se enganou.

— De quem? — perguntei, o nome me acertando no rosto como um tapa. Ibrahim? Nunca nem tinha ouvido falar nesse nome, quanto mais alguém chamado assim. Quis perguntar quem ele era e qual a sua conexão com a minha mãe, mas Tatiana continuou falando.

— Elas sempre se enganam. E você pode fazer o seu melhor para mudar isso, mas é uma perda de tempo. — Ela balançou a cabeça, como se sentisse pena por essas dampiras tão jovens, mas seu ar esnobe traía qualquer compaixão verdadeira. — Pode usar seu rostinho bonito e seu corpo o quanto quiser, mas, no final, você será a usada. Ele pode dizer que a ama, agora, mas no final ele se cansará de você. Poupe-se dessa dor. Eu estou lhe fazendo um favor.

— Mas ele não diz que me...

Não fazia sentido. O mais irônico era que eu estava quase certa de que o Adrian só queria me levar para a cama, mesmo. Eu não tinha nenhuma ilusão quanto a isso. Mas, como eu não estava de fato dormindo com ele, não havia problema algum, exceto que, bom, Tatiana parecia achar que aquilo tudo representava um problema. Eu suspirei, suspeitando de que nenhum argumento iria convencê-la de que eu não estava interessada em Adrian.

— Então, se está tão certa de que nós não teremos um futuro juntos, por que está me dizendo isso? De acordo com a senhora, ele vai me jogar fora de qualquer maneira... Majestade.

Ela hesitou por um instante, e eu quase ri. Apesar de seu discurso ultrajante sobre mim, minha mãe e as outras dampiras, uma parte sua ainda receava que eu pudesse de fato ser charmosa e bonita o bastante para seduzir Adrian a assumir um casamento vergonhoso. Ela rapidamente ocultou essa incerteza.

— Gosto de cuidar das coisas antes que saiam do controle, só isso. Além do mais, será mais fácil para ele e Vasilisa se não tiverem que carregar nenhuma bagagem sua.

Uou, uou. Meu breve momento de satisfação passara — e se transformara em confusão. Eu estava perdida, agora, como da primeira vez em que fui acusada de estar com o Adrian.

— Ele e... Vasilisa? Lissa? Do que você está falando? — Me esqueci de dizer “Majestade”, mas não acho que àquela altura ela estivesse se importando.

— Os dois formam um ótimo casal — disse ela, como se estivesse pronta para comprar uma obra de arte. — Apesar de sua influência negativa, Vasilisa se tornou uma jovem muito promissora. Ela tem uma natureza muito séria e dedicada, o que deve sanar um pouco da negligência de Adrian. E, estando juntos, poderão continuar analisando a... situação mágica incomum em que se encontram.

Cinco minutos atrás, me casar com Adrian parecia a ideia mais louca que eu já tinha ouvido. Isso acabara de ser superado, no entanto, pela ideia de Lissa se casar com Adrian.

— Lissa e Adrian. Juntos. Não pode estar falando sério. Majestade.

— Se eles ficarem juntos aqui, acho que vão se entender. Eles já têm empatia um pelo outro. Além do mais, as duas avós de Adrian vêm da família Dragomir. Ele possui mais do que o suficiente em seu sangue para ajudá-la a continuar a linhagem dos Dragomir.

— Christian Ozera também.

Em um de seus momentos fofos mais patéticos, Lissa e Christian tinham olhado a árvore genealógica dele para ver se havia ali genes Dragomir o suficiente para dar continuidade à linhagem do clã. Quando descobriram que sim, eles começaram a pensar em nomes para os seus filhos. Foi horrível. Saí de lá depois que Lissa mencionou que daria o meu nome ao terceiro filho deles.

— Christian Ozera? — Aquele sorriso condescendente dela se contraiu. — Não há possibilidade de Vasilisa Dragomir se casar com ele.

— Bem, é verdade. Não por enquanto. Digo, eles ainda vão para a faculdade e...

— Nem agora, nem nunca — interrompeu Tatiana. — Os Dragomir são uma linhagem real celebrada e anciã. Seu último descendente não vai se prender a alguém como ele.

— Ele é da realeza — disse eu, numa voz baixa, que era quase a minha voz assustadora. Por alguma razão, o insulto dela ao Christian me deixou com mais raiva do que quando ela me insultou. — A linhagem dos Ozera é tão importante quanto a dos Dragomir ou a dos Ivashkov. Ele é tão membro da realeza quanto Lissa, Adrian ou você.

Ela riu.

— Ele não é como nós. Sim, os Ozera são uma família real, e, sim, ele possui muitos primos distantes respeitáveis. Mas não é deles que estamos falando. Estamos falando do filho de alguém que virou Strigoi intencionalmente. Quer saber quantas vezes vi isso acontecer? Nove. Nove em cinquenta anos de vida. E os pais dele foram dois.

— Sim, os pais dele — disse eu. — Não ele.

— Não importa. A princesa Dragomir não pode ser associada a alguém assim. A posição é muito prestigiosa.

— E seu sobrinho é a escolha perfeita — disse eu, friamente. — Majestade.

— Se você se acha tão esperta, me diga: na São Vladimir, como eles são tratados? Como seus colegas de classe veem Christian? Como veem Christian e Lissa juntos? — Seus olhos brilhavam como se já soubessem a resposta.

— Bem. Eles têm muitos amigos.

— E Christian é aceito por todos?

Imediatamente pensei em Jesse e Ralf me interrogando sobre Christian. E sim, ainda havia muita gente que evitava Christian como se ele já fosse um Strigoi. Era por isso que ele não tinha uma dupla na aula de culinária. Tentei dissimular meus pensamentos, mas a hesitação me entregou.

— Viu? — exclamou ela. — E isso é apenas um microcosmo da sociedade. Imagine em uma escala maior. Imagine agora como será quando ela participar do governo e procurar alguém para apoiá-la. Ele será um entrave. Ela fará inimigos por causa dele. Quer mesmo que isso aconteça?

Era exatamente o que Christian temia, e eu neguei, tanto quanto tinha negado a ele.

— Isso não vai acontecer. Você está errada.

— E você é muito jovem, srta. Hathaway. E também está atrasando o seu voo. — Ela foi até a porta. Num piscar de olhos, os guardiões já estavam ao seu lado. — Não tenho mais nada a dizer, e espero que esta tenha sido a última vez que travamos uma discussão assim.

“Ou qualquer outra discussão”, pensei.

Ela saiu, e, tão logo a etiqueta permitiu, eu disparei para pegar meu avião. Minha cabeça girava. Quão louca era aquela mulher? Não só ela se convencera de que eu estava prestes a fugir com Adrian, ela também acreditava que podia arranjar um casamento entre ele e Lissa. Era quase impossível decidir qual parte daquela conversa tinha sido mais ridícula.

Eu mal podia esperar para contar aos outros o que tinha acontecido e rir de tudo aquilo. Mas, quando voltei ao quarto para apanhar minha mochila, eu reconsiderei a ideia. Já haviam espalhado muita fofoca sobre mim e o Adrian; concluí que não precisava colocar mais lenha na fogueira. Também concluí que Christian não precisava saber sobre isso. Ele já estava muito inseguro sobre seu futuro com Lissa. Como se sentiria se descobrisse que a rainha já fazia planos para se livrar dele?

Então, decidi arquivar aquelas informações por um tempo, o que foi difícil, já que Lissa estava esperando na minha porta quando voltei.

— Ei — disse eu —, pensei que você estaria no avião.

— Não. Eles atrasaram algumas horas.

— Ah. — Voltar para casa, de repente, parecia a melhor ideia do mundo.

— O que a rainha queria? — perguntou Lissa.

— Me parabenizar — disse eu, sem hesitar. — Por ter matado os Strigoi. Eu não esperava isso dela; foi meio estranho.

— Não tão estranho — disse ela. — O que você fez foi incrível. Tenho certeza de que ela só quis demonstrar reconhecimento pelo que você fez.

— É, acho que sim. Mas, e agora? O que vamos fazer com o tempo extra?

Havia uma excitação em seus olhos e em seus sentimentos, e eu agradeci pela mudança de assunto.

— Bem... eu estava pensando. Já que estamos na Corte Real... você não quer dar uma volta? Deve haver mais coisas aqui do que um café. Se vamos morar neste lugar, nós devíamos conhecê-las. Além disso, temos muito o que comemorar.

A realidade daquela situação me apanhou com força total. Eu estive tão distraída com Victor que nem me toquei que estávamos na Corte Real, o centro da liderança Moroi. Era quase tão grande quanto a Escola, e tinha de haver algo além de negócios acontecendo por ali. Além disso, ela estava certa. Nós tínhamos muito o que comemorar. Victor tinha sido preso. Ela tinha conseguido uma ótima proposta universitária. Só o meu suposto caso com Adrian é que representava o lado ruim, mas eu consegui tirar isso da cabeça graças à euforia contagiante de Lissa.

— Onde está Christian? — perguntei.

— Fazendo as coisas dele — respondeu ela. — Acha que precisamos que ele venha com a gente?

— Bem, ultimamente, ele tem vindo com a gente.

— Sim — admitiu ela —, mas eu meio que queria sair só com você. — Eu senti os pensamentos dela por trás dessa decisão. Nossa rápida conversa de antes de ela falar com a rainha a deixara com saudade dos velhos tempos, quando éramos só nós duas.

— Nem vou reclamar — disse eu. — O que dá para a gente ver em três horas?

Um sorriso malicioso apareceu em seu rosto.

— O essencial. — Eu sabia que ela tinha algo específico em mente, mas ela queria fazer segredo. Não podia me excluir do laço, mas havia aprendido que, se não pensasse muito em determinadas coisas, eu não conseguiria captá-las. Ela gostava de pensar que podia me surpreender, às vezes. Mas tentar esconder grandes problemas ou acontecimentos de mim nunca funcionou.

Voltamos a encarar o tempo frio, com Lissa indicando o caminho. Ela me guiou para longe dos prédios administrativos, rumo a outro conjunto de edifícios no final das terras da Corte.

— A rainha mora naquele primeiro prédio — explicou Lissa. — Não é exatamente um palácio, mas é o mais próximo disso que temos. Quando a Corte ficava na Europa, a realeza Moroi costumava viver em castelos.

Eu fiz uma careta.

— Você faz isso parecer uma coisa sensacional.

— Paredes de pedra? Torres? Até você tem que admitir que isso é muito legal.

— É, mas aposto que eles tinham um péssimo acesso à internet.

Lissa balançou a cabeça, sorrindo, e não se deu ao trabalho de responder ao meu comentário. Passamos por outros prédios com as mesmas paredes esculpidas em pedra, mas eram altos e construídos num estilo que lembrava o de apartamentos. Ela me confirmou isso.

— São como as casas da cidade. São onde as pessoas que passam o ano aqui vivem.

Olhei para eles imaginando como seriam por dentro, e um pensamento feliz me ocorreu.

— Você acha que é aqui que vamos morar?

O pensamento a pegou desprevenida, mas logo ela ficou tão excitada quanto eu. Ela também gostava da ideia de termos um canto só nosso, livres para decorar e irmos e virmos quando quiséssemos. Eu gostava da ideia de Dimitri morando com a gente também, mas, ali na Corte, ele não ficaria com Lissa o tempo todo. Aliás, nem eu precisaria ficar com ela o tempo todo. Será que me deixariam viver com ela? Ou essa seria mais uma chance de me mostrarem que eu não era essencial?

— Espero que sim — disse ela, sem saber das minhas preocupações. — Na cobertura, com vista.

Eu consegui abrir mais um sorriso.

— E uma piscina.

— Como você pode pensar em piscina com esse tempo?

— Ei, se é para fantasiar, vamos pensar no pacote completo. Aposto que a Tatiana tem uma. Aposto que ela usa um biquíni e tem caras lindos passando protetor solar nela.

Eu esperava uma nova expressão de desprezo, mas Lissa riu, enquanto adentrávamos o edifício próximo aos prédios residenciais.

— Engraçado você dizer isso.

— O quê? — Ela estava quase contando o seu segredo. Eu estava muito perto de arrancá-lo de sua cabeça. E eu teria conseguido, se não estivesse tão deslumbrada com aquele ambiente. Era uma overdose de sensações: música fina, fontes, plantas, pessoas de roupões brancos, tudo brilhante e prateado...

Era um spa, um grande e luxuoso spa, escondido num antigo prédio de pedras, ali na Corte. Quem iria imaginar? Uma grande mesa de granito fazia a guarda na recepção, então só tínhamos uma vista parcial, mas o que eu conseguia distinguir já parecia ótimo. Mulheres enfileiradas de costas para a parede, fazendo os pés e as mãos. Homens e mulheres Moroi recebendo cortes de cabelo e tintura. Um verdadeiro labirinto de corredores podia ser avistado no fundo do salão, com setas apontando as várias sessões: massagem, sauna, limpeza de pele etc.

Lissa sorriu para mim.

— Que tal?

— Acho que Adrian tinha razão quando disse que a Corte tinha todo o tipo de segredos. — Soltei um suspiro, fingindo cansaço. — E eu odeio ter que admitir quando ele tem razão.

— Você tem andado tão mal com essa experiência de campo e com... outras coisas. — Ela não precisava mencionar a morte de Mason e a luta contra os Strigoi. Eu li isso na mente dela. — Imaginei que você podia querer um agradinho. Eu chequei os horários deles enquanto você estava com a rainha, e eles conseguiram nos encaixar.

Lissa foi até a recepcionista e disse quem nós éramos. A mulher imediatamente reconheceu nossos nomes, mas parecia surpresa por deixar uma dampira entrar. Eu nem me importei. Estava fascinada demais com as visões e os sons ao meu redor. Comparado ao estilo de vida rígido e prático que eu normalmente levava, aquele tipo de luxo era quase inacreditável.

Depois de confirmar nossos nomes, Lissa se virou para mim com o rosto feliz e radiante.

— Eu consegui que a gente recebesse massagem com esses...

— Unhas — interrompi.

— O quê?

— Quero fazer minhas unhas. Eu posso pedir uma manicure?

Foi o pedido mais exótico e completamente inútil que eu pude imaginar. Bem, não era inútil para mulheres normais. Mas para mim? Do jeito que eu usava minhas mãos e as submetia a nevascas, arranhões, sujeira e vento? Sim. Inútil. Eu não pintava as unhas há anos. Não tinha por quê. Metade do esmalte ia sair depois de uma sessão de aula prática. Uma aprendiza como eu não podia se dar a esse tipo de luxo. E era por isso que eu queria tanto fazer aquilo. Ver Lissa maquiada acordara em mim esse desejo de me embelezar. Eu aceitava que aquela prática nunca se tornaria um hábito na minha vida, mas, já que eu estava num lugar como aquele hoje, então, por Deus, que eu fizesse as minhas unhas.

Lissa vacilou um pouco. Aparentemente, ela tinha grandes planos para aquela massagem. Eu insisti e insisti com ela, e por fim Lissa voltou para falar com a recepcionista. Acho que a funcionária teve que mexer um pouco nos horários, mas ela disse que tudo daria certo.

— Claro, princesa. — Ela sorria, contente, contagiada pelo carisma natural de Lissa. Na metade do tempo, Lissa nem precisava do espírito para conseguir que as pessoas a ajudassem.

— Eu não quero ser inconveniente — disse Lissa.

— Não, não. De forma alguma!

Nós logo estávamos em mesas adjacentes, enquanto mulheres Moroi mergulhavam nossas mãos em água quente e começavam a esfregá-las com estranhas misturas de açúcar e algas.

— Por que manicure? — quis saber Lissa.

Expliquei minhas razões a ela, sobre a dificuldade em arranjar tempo até para me maquiar, e como o uso pesado das mãos transformara qualquer luxo em algo impraticável. Ela ficou com uma expressão pensativa.

— Eu nunca tinha pensado nisso. Só achei que você não tivesse mais vontade de fazer essas coisas. Ou, bem, que você não precisasse. Não com a sua aparência.

— Tanto faz — disse eu. — É você que os caras adoram.

— Por causa do meu nome. Você é quem os caras querem por outras razões, como esse cara que nós conhecemos, por exemplo.

Nossa, a quem ela poderia estar se referindo?

— Sim, mas essas outras razões não são muito nobres.

Ela deu de ombros.

— Dá na mesma. Você não precisa de maquiagem para eles babarem por você.

Nessa hora, eu senti algo muito estranho vindo através do laço. Eu me vi pelos olhos dela. Era como se olhar num espelho, com a diferença de que tudo o que ela tinha era uma vista do meu perfil. Mas, quando ela me olhou, ela realmente me achou linda. Com o meu bronzeado e cabelo marrom-escuro, eu parecia exótica para ela. Ela se sentia pálida e apagada diante de mim, magricela diante das minhas curvas. Era surreal, considerando a frequência com que eu me sentia horrível diante da incrível beleza dela. Sua inveja não era maliciosa; isso não seria de sua natureza. Era mais melancólica, uma admiração por uma aparência que ela nunca teria.

Quis reconfortá-la, mas tive a impressão de que ela não ia gostar de saber que eu andei bisbilhotando suas inseguranças. Além disso, meus pensamentos foram interrompidos quando a mulher que fazia as minhas unhas perguntou que cor eu queria. Escolhi uma que parecia um glitter dourado. Meio gritante, talvez, mas eu realmente achei que ficou legal, e não era como se fosse durar assim tanto tempo, também. Lissa escolheu um rosa-claro, uma cor tão refinada e elegante quanto ela. Ainda assim, suas unhas foram pintadas bem mais rápido do que as minhas, porque minha manicure teve de passar um bom tempo suavizando minhas mãos e ajeitando as unhas. Lissa terminou bem antes de mim.

Quando as duas ficamos de mãos lindas, nós as levantamos orgulhosas, lado a lado.

— Você está divina, querida — declarou ela, fingindo um ar sofisticado.

Rindo, partimos para a área de massagem. A princípio, Lissa havia conseguido uma longa sessão para nós, mas a manicure tomara a maior parte daquele tempo. Então, trocamos uma massagem corporal por outra apenas nos pés, o que foi ótimo, já que não poderíamos vestir os roupões e coisas do gênero com as unhas ainda frescas. Tudo o que tivemos que fazer foi tirar os sapatos e enrolar as pernas das calças. Sentei numa cadeira e pus os pés dentro de água quente. Alguém despejou alguma coisa dentro da bacia que cheirava a violetas, mas eu não prestei muita atenção. Estava entretida demais com as minhas mãos. Elas estavam perfeitas. A manicure as havia tratado e hidratado para ficarem delicadas como seda, e minhas unhas agora eram formas ovais, brilhantes e douradas.

— Rose — ouvi Lissa chamar.

— Hmm?

A mulher também tinha passado uma camada de esmalte transparente por cima do dourado. Eu me perguntei se isso daria às minhas unhas um tempo de vida mais longo.

— Rose.

Percebendo que Lissa desejava a minha total atenção, finalmente desviei os olhos de minhas mãos. Ela estava sorrindo de orelha a orelha. Eu podia sentir aquela novidade queimando nela de novo, o segredo que ela trazia desde que entramos ali.

— O que foi? — perguntei.

Ela apontou para baixo com a cabeça.

— Rose, este é o Ambrose.

Eu olhei distraída para o massagista aos meus pés.

— Ei, Ambrose, como vai... — Parei de falar antes que um “Nossa mãe” ou um “Opa” me fugisse dos lábios.

O cara massageando os meus pés não era muito mais velho do que eu. Ele tinha cabelo escuro encaracolado e músculos por toda a parte. Eu sabia disso com tanta certeza porque ele estava sem camisa e nos oferecia uma boa visão dos seus ombros e bíceps. Sua pele dourada e escura era uma cor que só se conseguia ficando muito tempo ao sol, indicando que ele era humano. As marcas de mordida no pescoço confirmavam isso. Um lindo fornecedor. Muito lindo.

Mas sua beleza era quase irreal. Dimitri era lindo, mas tinha alguns defeitos que o tornavam bem mais bonito. Ambrose era muito perfeito, como uma obra de arte. Eu não queria me jogar nos seus braços nem nada, mas ele era ótimo de se olhar.

Lissa, ainda preocupada com a minha vida amorosa, devia ter pensado que era exatamente disso que eu precisava. Sua massagista era uma mulher.

— Muito prazer em conhecê-la, Rose — disse Ambrose. Ele tinha uma voz musical.

— Prazer em conhecer você também — respondi, percebendo de repente que ele havia retirado os meus pés da bacia e secado. Reparei principalmente na aparência deles. Não estavam nojentos nem nada, porque não foram expostos aos mesmos fatores que minhas mãos. Eu só queria que estivessem mais bonitinhos, já que aquele modelo masculino estava prestes a manuseá-los tanto.

Lissa, astuta o suficiente para sentir o meu embaraço, não conseguia parar de rir. Eu ouvia os seus pensamentos em minha cabeça: Lindo, não é? Eu olhei para ela, me recusando a verbalizar o que estava pensando. Ele é o massagista pessoal de Tatiana. Isso faz de você praticamente da realeza. Eu suspirei alto, para que ela soubesse que aquilo não era tão engraçado quanto ela pensava. E quando digo pessoal, quero dizer pessoal MESMO.

Eu engasguei de surpresa, levantando um dos pés sem querer. As mãos ágeis de Ambrose o apanharam antes que acertasse seu lindo rosto, ainda bem. Posso não ter sido capaz de me comunicar telepaticamente, mas eu tinha certeza de que Lissa havia entendido muito bem a expressão que eu fiz, como que dizendo: Você não pode estar falando sério, porque, se estiver, está muito encrencada comigo.

Seu sorriso ficou maior. Pensei que você gostaria da ideia. Ser paparicada pelo amante secreto da rainha.

“Paparicada” não era exatamente a palavra que me vinha à mente. Olhando para as feições belas e jovens de Ambrose, eu simplesmente não conseguia imaginá-lo fazendo algo com aquela velha. Claro, essa negação pode ter sido só o jeito de a minha cabeça se recusar a acreditar que alguém que tenha encostado nela estava agora encostando em mim. Eca.

As mãos de Ambrose estavam analisando minhas panturrilhas, depois meus pés, e então ele começou uma conversa sobre as pernas elegantes que eu tinha. Seu sorriso branco e encantador nunca abandonava o rosto, mas a maioria das minhas respostas foi curta. Eu ainda não conseguira superar a ideia de vê-lo junto com Tatiana.

Silenciosamente, Lissa gemeu. Ele está flertando com você, Rose!, pensou ela para mim. O que você está fazendo? Você pode fazer melhor do que isso. Eu tive o maior trabalho para achar o cara mais gato daqui, e é isso que recebo?

Essa história de conversa unilateral já estava ficando um saco. Eu queria dizer a ela que eu não tinha pedido para ela me alugar esse cara. Na verdade, eu comecei de repente a imaginar a rainha me chamando para outra conversa, gritando comigo por ter um caso imaginário também com Ambrose. Não seria perfeito?

Ambrose continuou sorrindo enquanto esfregava a sola do meu pé com os polegares. Doía — mas de um jeito bom. Eu não havia percebido como aquela área estava dolorida.

— Fazem tanta questão de que vocês usem as roupas pretas e brancas certas, mas ninguém nunca pensa nos seus pés — disse ele. — Como vocês conseguem ficar de pé o dia inteiro e ainda fazer roundhouse kicks e cat stances com sapatos ruins?

Eu estava prestes a dizer que ele não precisava se incomodar com os meus pés, quando algo estranho me ocorreu. Roundhouse kicks e cat stances não eram termos supersecretos de guardiões. Qualquer um podia digitar “artes marciais” no Google e encontrar essas coisas. Ainda assim, não era exatamente o tipo de assunto sobre o qual um Moroi falaria casualmente, que dirá um fornecedor. Analisei Ambrose mais de perto, notando que seus olhos escuros observavam em todas as direções, sem perder nada. Me lembrei de seus reflexos rápidos ao conter aquele meu chute.

Senti o queixo começar a cair, e o fechei antes que parecesse uma idiota.

— Você é um dampiro — disse eu, baixinho.


Dezesseis

— Tanto quanto você — brincou ele.

— Sim, mas eu pensei...

— Que eu era humano? Por causa das marcas de mordida?

— Sim — admiti. Não tinha por que mentir.

— Nós todos temos que sobreviver — disse ele. — E nisso os dampiros podem ser bem criativos.

— Sim, mas a maioria de nós vira guardião — argumentei. — Principalmente os homens. — Eu ainda não conseguia acreditar que ele era um dampiro, ou que eu não tivesse percebido logo de cara.

Há muito tempo, dampiros nasciam do relacionamento entre humanos e Moroi. Nós éramos meio humanos, meio vampiros. Com o passar do tempo, os Moroi passaram a se afastar dos humanos. Os humanos foram se aprimorando de tal forma que logo não precisaram mais da magia Moroi. Agora os Moroi temiam virar alvo das experiências humanas caso fossem descobertos. Então, os dampiros deixaram de nascer dessa forma, e por causa de uma mutação genética bizarra, também não podiam nascer da união entre dois dampiros.

O único meio de a minha raça continuar se reproduzindo foi com a ajuda dos Moroi. A simples lógica faria você pensar que dampiros e Moroi gerariam bebês que eram três quartos vampiro, não é? Nada disso. Nós saíamos com genes dampiros perfeitos, meio a meio, combinando as melhores características das duas raças. A maioria dos dampiros vinha da relação entre dampiras e homens Moroi. Por séculos, essas mães enviavam seus filhos para serem criados em outros lugares, para que elas pudessem voltar a ser guardiãs. Era o que a minha mãe tinha feito.

Com o passar do tempo, algumas dampiras decidiram criar os filhos por conta própria. Elas se recusavam a continuar como guardiãs e, em vez disso, se organizavam em comunidades. Era o que a mãe de Dimitri tinha feito. Muitos boatos maldosos eram espalhados sobre essas mulheres, porque os homens Moroi sempre visitavam as comunidades em busca de sexo fácil. Dimitri me contou que muitas dessas histórias eram exageradas, e que a maioria das dampiras não era tão fácil assim. Os boatos vinham do fato de que essas mulheres eram mães solteiras em sua maioria, sem contato com os pais de suas crianças — e de que algumas até deixavam os Moroi beberem do seu sangue durante o ato sexual. Era considerada uma prática pervertida e suja em nossa cultura, e daí surgira o apelido dessas dampiras que não eram guardiãs: prostitutas de sangue.

Mas eu nunca tinha sequer imaginado que existissem prostitutos de sangue.

Minha mente estava dando voltas.

— A maioria dos caras que não querem ser guardiões apenas foge — disse eu. Era raro, mas acontecia. Eles fugiam da escola de guardiões e desapareciam no mundo dos humanos. Era mais um ato vergonhoso em nossa cultura.

— Eu não queria fugir — disse Ambrose, parecendo bem satisfeito com aquilo tudo. — Mas também não queria lutar contra Strigoi. Então fiz isso.

Ao meu lado, Lissa estava chocada. As prostitutas de sangue viviam nos rincões do nosso mundo. Ter uma dessas pessoas bem na sua frente — um homem, ainda por cima — era incrível.

— E é melhor do que ser guardião? — perguntei, descrente.

— Bom, vejamos. Os guardiões passam o tempo todo cuidando de outras pessoas, arriscando suas vidas e usando sapatos desconfortáveis. Já eu? Eu tenho ótimos sapatos, estou massageando uma garota bonita agora mesmo e durmo numa cama incrível.

— Vamos evitar falar sobre onde você dorme, está bem? — comentei, fazendo uma careta.

— E doar sangue não é tão ruim quanto você imagina. Não doo tanto quanto um fornecedor, mas a onda é muito boa.

— Vamos evitar esse assunto também — acrescentei. Eu não ia admitir que sabia que as mordidas de Moroi eram mesmo “muito boas”.

— Tudo bem. Mas, diga o que quiser, a minha vida é ótima. — Ele me deu um sorrisinho.

— Mas as pessoas não, hã... Bem, elas não são ruins com você? Devem dizer coisas...

— Ah, sim — concordou ele. — Coisas horríveis. Eu sou chamado dos piores nomes. Mas sabe com quem eu fico mais chateado? Com os outros dampiros. Os Moroi tendem a não me perturbar tanto.

— É porque não entendem como é ser guardião, como é importante. — Percebi, com algum desconforto, que eu parecia até a minha mãe falando. — É o destino reservado aos dampiros.

Ambrose se levantou, descruzando as pernas e me dando uma visão completa de seu tórax musculoso.

— Tem certeza? Você gostaria de descobrir qual é o seu destino de verdade? Conheço uma pessoa que pode lhe dizer.

— Ambrose, não faça isso — advertiu a manicure de Lissa. — Aquela mulher é louca.

— Ela é uma vidente, Eve.

— Ela não é vidente, e você não pode levar a princesa Dragomir para vê-la.

— A própria rainha vai até ela se aconselhar — argumentou ele.

— O que também é um erro — resmungou Eve.

Lissa e eu nos entreolhamos. Ela fora fisgada pela palavra vidente. Videntes e adivinhos costumavam ser tão desacreditados quanto fantasmas — porém, Lissa e eu aprendêramos recentemente que as habilidades psíquicas que antes víamos como fictícias eram na verdade uma parte do espírito. A esperança de ter encontrado outra usuária daquele elemento nasceu em Lissa.

— Nós adoraríamos conhecer uma vidente. Podemos ir? Por favor? — Lissa olhou para um relógio que estava ali perto. — E rápido? Temos um avião para pegar.

Eve claramente achava aquilo uma perda de tempo, mas Ambrose mal podia esperar para nos levar. Calçamos os nossos sapatos e fomos conduzidas para fora da área de massagem. As salas do spa eram um labirinto de corredores atrás do salão, e logo nos vimos em outro labirinto, ainda mais atrás.

— Não tem placas de direção aqui — disse eu, ao andarmos por um corredor com as portas fechadas. — Para que servem esses lugares?

— Para toda e qualquer atividade por que possam pagar — disse ele.

— Como o quê?

— Ah, Rose. Você é tão ingênua...

Acabamos chegando a uma porta no final do corredor. Entramos numa pequena sala, onde só havia uma mesa, e uma porta fechada atrás dela. Uma Moroi atrás da mesa nos olhou, obviamente reconhecendo Ambrose. Ele andou até ela, e os dois iniciaram uma discreta discussão na qual ele tentava convencê-la a nos receber.

Lissa se virou para mim, mantendo a voz baixa.

— O que você acha?

Meus olhos estavam em Ambrose.

— Que todos aqueles músculos são um desperdício.

— Esqueça essa história de prostituto de sangue. Estou falando dessa mulher. Acha que nós encontramos outra usuária do espírito? — perguntou ela, ansiosa.

— Se um festeiro como o Adrian pode ser um usuário do espírito, então uma mulher capaz de prever o futuro também pode.

Ambrose se voltou para nós, sorridente.

— Suzanne ficou feliz em nos arranjar um horário antes do voo. Rhonda deve terminar a consulta com a cliente que está lá dentro em um minuto.

Suzanne não parecia assim tão feliz em nos arranjar um horário, mas eu não tive tempo de ponderar, porque a porta se abriu e um velho Moroi saiu, extasiado. Ele deu dinheiro a Suzanne, nos cumprimentou e foi embora. Ambrose se levantou e apontou para a porta com um largo gesto.

— Sua vez.

Lissa e eu entramos na outra sala. Ambrose nos seguiu e fechou a porta atrás de nós. Era como entrar no coração de alguém. Tudo era vermelho. Tapete de pelúcia vermelho, sofá de veludo vermelho, papel de parede de brocado vermelho e almofadas de cetim vermelho no chão. Sentada sobre algumas almofadas estava uma Moroi de uns quarenta anos, com cabelo encaracolado preto e olhos também pretos. Havia um matiz de oliva bem fraco em seu tom de pele, mas sua aparência geral era pálida, como a de todo Moroi. Suas roupas pretas contrastavam com a sala vermelha, e joias da cor das minhas unhas brilhavam em suas mãos e pescoço. Eu esperava que ela tivesse uma voz assombrosa e estranha — com um sotaque exótico —, mas suas palavras soaram bem americanas.

— Por favor, sentem-se. — Ela apontou para algumas almofadas diante dela. Ambrose sentou no sofá. — Quem foi que você trouxe? — perguntou a ele, enquanto Lissa e eu nos acomodávamos.

— A princesa Vasilisa Dragomir e sua futura guardiã, Rose. Elas precisam de uma sorte rápida.

— Por que você quer sempre apressar as coisas? — perguntou Rhonda.

— Ei, não sou eu. Elas têm um avião para pegar.

— Seria o mesmo se não tivessem. Vocês estão sempre com pressa.

Interrompi um pouco o meu momento de admiração por aquela sala para prestar atenção na implicância descontraída e no cabelo parecido dos dois.

— Vocês são parentes?

— Ela é minha tia — disse Ambrose, feliz. — Ela me adora.

Rhonda virou os olhos.

Por essa eu não esperava. Os dampiros raramente tinham contato com a parte Moroi de sua família — mas, pensando bem, o Ambrose fugia bastante da normalidade. Lissa estava intrigada com tudo aquilo também, mas seu interesse era diferente do meu. Ela estava analisando Rhonda, tentando descobrir alguma pista de que ela fosse uma usuária do espírito.

— Você é cigana? — perguntei.

Rhonda fez uma careta e começou a embaralhar as cartas.

— Eu sou do povo rom — disse ela. — Muitos nos chamam de ciganos, mas não é um termo muito preciso. E, na verdade, eu sou Moroi antes de tudo. — Ela embaralhou as cartas mais um pouco e as entregou a Lissa. — Corte, por favor.

Lissa ainda a estava encarando, meio que esperando conseguir ver uma aura. Adrian podia sentir outros usuários do espírito, mas ela ainda não tinha essa habilidade. Ela cortou as cartas e as devolveu. Rhonda juntou as cartas de novo e deu três cartas à Lissa.

Eu me inclinei para a frente.

— Legal. — Eram cartas de tarô. Eu não conhecia muito sobre elas, só que, teoricamente, tinham poderes místicos e podiam dizer o futuro. Eu não acreditava naquilo muito mais do que já acreditei em religião, mas, até recentemente, eu também não acreditava em fantasmas.

As três cartas eram a Lua, a Imperatriz e o ás de copas. Ambrose se inclinou sobre meu ombro para olhar as cartas.

— Opa — disse ele. — Muito interessante.

Rhonda olhou para ele.

— Silêncio. Você não sabe do que está falando. — Ela olhou para as cartas e apontou o ás de copas. — Você está diante de um novo começo, um renascimento de grande poder e emoção. Sua vida vai mudar, mas essa mudança a levará por um caminho que, embora difícil, acabará por iluminar o mundo.

— Caramba — comentei.

Rhonda, então, indicou a carta da Imperatriz.

— Poder e liderança estão à sua frente, com os quais você lidará com graça e inteligência. As sementes já estão plantadas, mas existe uma linha de incerteza, uma gama enigmática de influências pairando ao seu redor, como uma névoa. — Sua atenção estava voltada para a carta da Lua quando acrescentou: — Mas a minha impressão geral é a de que tais fatores desconhecidos não vão afastá-la do seu destino.

Lissa estava de olhos arregalados.

— Você é capaz de dizer isso tudo só pelas cartas?

Rhonda deu de ombros.

— Está nas cartas, sim, mas eu também tenho o dom de perceber forças que estão além do que as pessoas normais conseguem ver.

Ela embaralhou as cartas de novo e me deu, para cortá-las. Eu o fiz, e ela virou mais três cartas. O nove de espadas, o Sol e o ás de espadas. A carta do Sol estava de cabeça para baixo.

Bom, eu não conhecia nada dessas coisas, mas eu imediatamente senti que não receberia um tratamento igual ao de Lissa. A carta da Imperatriz trouxera uma mulher com um vestido longo, com estrelas sobre a cabeça. A carta da Lua mostrara uma lua cheia, com dois cachorros embaixo, e a do ás de copas mostrara um cálice de joias, cheio de flores.

Enquanto isso, meu nove de espadas trazia uma mulher chorando em frente a uma parede de espadas, e o ás de espadas era uma mão sem graça segurando uma simples espada de ferro. O Sol, pelo menos, parecia alegre. Tinha algo parecido com um anjo cavalgando um cavalo branco, com um sol brilhando acima dele.

— Isso não devia estar de cabeça para cima? — perguntei.

— Não — disse ela, com os olhos nas cartas. Depois de um longo momento de silêncio, ela comentou: — Você vai destruir aquilo que está morto-vivo.

Eu esperei uns trinta segundos para ela continuar, e nada.

— Calma aí, é só isso?

Ela balançou a cabeça.

— É o que as cartas me dizem.

Eu apontei para elas.

— Parece que elas dizem um pouco mais do que isso. Você deu a Lissa uma enciclopédia inteira de informações! E eu já sei que vou matar os mortos-vivos. É o meu trabalho. — Já era ruim o suficiente eu ter conseguido uma adivinhação tão curta. Mas ela também era completamente óbvia.

Rhonda deu de ombros, como se com isso estivesse dando uma explicação satisfatória.

Eu ia começar a dizer que era melhor ela nem pensar em me cobrar por aquela merreca de adivinhação, quando bateram na porta. Ela se abriu, e, para a minha surpresa, Dimitri colocou a cabeça para dentro. Seus olhos fitaram a mim e à Lissa.

— Ah, disseram que vocês estavam aqui.

Ele entrou e avistou Rhonda. Novamente para a minha surpresa, Dimitri deu a ela um discreto aceno em sinal de respeito e disse, de maneira educada:

— Desculpe-me por interromper, mas eu preciso levar essas duas para apanhar um voo.

Rhonda analisou Dimitri — mas não como se estivesse dando em cima dele. Era mais como se ele fosse um mistério que ela queria desvendar.

— Não precisa se desculpar. Mas quem sabe você tenha tempo para tirarmos umas cartas antes?

Com uma visão similar à minha sobre a religião, eu esperava que Dimitri fosse lhe dizer que não tinha tempo para aquela charlatanice de adivinhação. No entanto, sua expressão continuou séria, e ele finalmente fez que sim com a cabeça, sentando ao meu lado e me deixando sentir o seu doce cheiro de couro e pós-barba.

— Obrigado. — Suas palavras ainda soavam perfeitamente educadas.

— Serei breve.

Rhonda já estava embaralhando aquelas minhas cartas inúteis. Em tempo recorde, ela as deixou prontas para o corte e pôs as três cartas à frente de Dimitri. O cavaleiro de paus, a Roda da Fortuna e o cinco de copas. Essas eu não consegui deduzir. O cavaleiro de paus era o que o nome sugeria, um homem cavalgando com uma longa lança de madeira. A Roda da Fortuna era um círculo com símbolos estranhos flutuando nas nuvens. O cinco de copas mostrava cinco taças viradas, derramando algum tipo de líquido, enquanto um homem lhes dava as costas.

Os olhos de Rhonda passaram pelas cartas, depois repousaram sobre Dimitri, e sobre as cartas de novo. Seu rosto estava inexpressivo.

— Você irá perder aquilo que mais estima, então aproveite enquanto pode. — Ela apontou para a Roda da Fortuna. — A roda está girando, sempre girando. — A leitura não era tão completa quanto a de Lissa, mas era bem melhor do que a minha.

Lissa me deu uma cotovelada, numa tentativa silenciosa de me pedir para ficar quieta, o que me irritou a princípio. Sem perceber, eu tinha aberto a boca para protestar. Eu fechei a boca e me acalmei.

O rosto de Dimitri estava pesado e pensativo, enquanto olhava as cartas. Eu não sabia se ele entendia alguma coisa disso, mas ele encarava aquelas imagens como se contivessem os segredos do mundo. Por fim, ele deu à Rhonda mais um cumprimento respeitoso.

— Obrigado.

Ela acenou de volta, e então os três fomos pegar nosso avião. Ambrose disse que pagaria as leituras, e que acertaria tudo mais tarde com Suzanne.

— Valeu a pena — me disse ele. — Por fazer você pensar duas vezes sobre o seu destino.

Eu zombei.

— Sem ofensas, mas as cartas não me fizeram pensar muito sobre nada. — Como todo o resto, isso só o fez rir.

Estávamos prestes a deixar a pequena recepção em que Suzanne trabalhava quando Lissa, de repente, voltou para a porta de Rhonda. Fui atrás dela.

— Hã, com licença — disse Lissa.

Rhonda olhou para cima, novamente embaralhando as cartas. Ela parecia confusa.

— Sim?

— Isso vai parecer estranho, mas... hã, poderia me dizer em que elemento você se especializou?

Eu podia sentir Lissa segurando a respiração. Ela queria tanto, tanto que Rhonda dissesse que ela não era especializada, o que geralmente era um sinal de que a pessoa manejava o espírito. Ainda havia muito a aprender, e Lissa adorava a perspectiva de encontrar outros que pudessem ajudá-la — e adorou especialmente a perspectiva de alguém ensinando-a a prever o futuro.

— Ar — respondeu Rhonda. Uma leve brisa passou pelos nossos cabelos, para provar o que ela dizia. — Por quê?

Lissa soltou a respiração, com uma frustração passando para mim através do laço.

— Por nada. Obrigada de novo.


Dezessete

Na pista de embarque, Christian estava perto da entrada do avião, ao lado de outros guardiões. Lissa correu para falar com ele, deixando a mim e Dimitri a sós. Ele não tinha falado nada no caminho de volta do spa. Força e silêncio eram comportamentos típicos dele, mas dessa vez algo em seu humor me pareceu estranho.

— Ainda está pensando no que a Rhonda disse? Aquela mulher é uma tratante.

— Por que diz isso? — perguntou ele, parando não muito longe de onde os outros estavam. Um vento forte passou por nós, e torci para que pudéssemos entrar logo.

— Porque ela não nos disse nada! Você devia ter ouvido o meu futuro. Era como uma frase que dizia o óbvio. Lissa tirou uma sorte melhor — admiti —, mas também não era nada muito profundo. Rhonda previu que ela seria uma grande líder. Quer dizer, falando sério, é tão difícil descobrir isso?

Dimitri sorriu para mim.

— Você acreditaria se ela tivesse lhe dado informações mais interessantes?

— Talvez, se fossem boas. — Quando ele riu, eu perguntei: — Mas você está levando isso a sério. Por quê? Você acredita de verdade nessas coisas?

— Não é que eu acredite... ou deixe de acreditar. — Ele usava um capuz preto de tricô naquele dia, e o puxou para cobrir melhor as orelhas. — Só respeito pessoas como ela. Elas têm acesso a informações que outras pessoas não têm.

— Mas ela não é usuária do espírito, então não tenho muita certeza de que tenha essas informações. Ainda acho que ela é uma golpista.

— Na verdade, ela é uma vrajitoare.

— Uma... — Eu nem tentei pronunciar aquilo. — Uma o quê? Isso é russo?

— Romeno. Significa... bem, não tem uma tradução exata. “Bruxa” chega perto, mas não é isso. A noção que eles têm de bruxa não é a mesma dos americanos.

Eu nunca esperei ter uma conversa dessas com ele. Eu não imaginava que ele fizesse o tipo supersticioso. Por um curto momento, achei que, se ele era capaz de acreditar em bruxas e adivinhos, também entenderia os fantasmas que eu estava vendo. Pensei em lhe dizer alguma coisa, mas logo mudei de ideia. Eu nem teria mesmo chance de contar o que fosse, porque ele continuou falando.

— Minha avó era como Rhonda — explicou. — Quer dizer, ela praticava o mesmo tipo de arte. Mas a personalidade era bem diferente.

— Sua avó era uma... v-alguma-coisa?

— O nome é outro na Rússia, mas, sim, eles possuem o mesmo significado. Ela costumava ler as cartas e também dar conselhos. É como ela ganhava a vida.

Eu detive todos os meus comentários sobre fraudes.

— Ela acertava? Nas previsões dela?

— Às vezes. Não me olhe assim.

— Assim como?

— Você está com aquela expressão no rosto que diz que eu estou pirando, mas você é muito boazinha para dizer algo a respeito.

— “Pirando” é um pouco demais. Eu estou surpresa, só isso. Nunca pensei que você acreditasse nessas coisas.

— Bom, eu cresci nesse ambiente, por isso não me parece tão estranho. E, como eu disse, não sei se acredito cem por cento.

Adrian tinha se juntado ao grupo perto do avião e protestava bem alto sobre não podermos embarcar logo.

— Eu também nunca pensei em você com uma avó — comentei com Dimitri. — Digo, é óbvio que você tinha uma. Mas, mesmo assim... é estranho pensar que você cresceu com ela. — Ter contato com a minha mãe já era bem raro, e eu nunca conheci outros parentes. — Era estranho ter uma avó bruxa? Ou assustador? Ela ameaçava enfeitiçar você se não se comportasse?

— Na maior parte do tempo, ela só ameaçava me mandar para o meu quarto.

— Não parece tão assustador.

— É porque você ainda não a conheceu.

Eu reparei na sua escolha de palavras.

— Ela ainda está viva?

Ele balançou a cabeça.

— Sim. Vai ser preciso mais do que a velhice para matá-la. Ela é dura na queda. Foi até guardiã por um tempo.

— Sério? — Assim como aconteceu com Ambrose, os conceitos que eu tinha sobre dampiros, guardiões e prostitutas de sangue estavam se embaralhando. — Então ela desistiu de ser guardiã para se tornar uma... hã, para ficar com os filhos?

— Ela tinha valores muito fortes sobre a família, valores que provavelmente pareceriam machistas para você. Ela acredita que todos os dampiros tinham que treinar e ser guardiões por um tempo, mas que no fim as mulheres deveriam voltar para casa para criar os filhos.

— E os homens, não?

— Não — disse ele, sem jeito. — Ela acha que os homens precisam continuar lutando por aí, matando Strigoi.

— Uau. — Me lembrei de quando Dimitri me contou sobre sua família. O pai aparecia de vez em quando, e essa era a única figura masculina em sua vida. Ele só tinha irmãs. E, sinceramente, a ideia não parecia assim tão machista. Eu pensava o mesmo sobre os homens indo lutar, por isso encontrar Ambrose tinha sido tão estranho.

— Então foi você quem teve que ir embora. As mulheres da sua família o expulsaram.

— Não foi bem assim — disse ele, rindo. — Minha mãe me aceitaria de volta em um segundo, se eu quisesse voltar. — Ele ria como se aquilo fosse uma piada, mas eu vi em seus olhos algo parecido com saudades de casa. Mas a sensação passou no instante em que Dimitri se virou, quando Adrian começou a urrar que poderíamos finalmente embarcar.

Quando nos acomodamos no avião, Lissa mal podia esperar para contar as novidades aos nossos amigos. Ela começou a história da parte em que eu fora chamada para ver a rainha. Não era um assunto sobre o qual eu quisesse conversar, mas ela seguiu em frente, animada porque a rainha quisera me “elogiar”. Todos pareciam impressionados, exceto Adrian. Sua expressão indicava que ele sabia que não fora para isso que ela havia me chamado. No entanto, havia muita confusão em seus olhos, o que me fez pensar que ele na verdade não sabia o motivo. Já estava na hora de eu saber algo que ele não soubesse. Tinha a impressão de que ele ficaria tão chocado com a ideia dele ficando com Lissa quanto eu tinha ficado.

Lissa, então, contou a eles sobre a oferta para viver na Corte e ir para a faculdade em Lehigh.

— Ainda não consigo acreditar — disse ela, deslumbrada. — Parece bom demais para ser verdade.

Adrian bebeu um copo do que parecia ser uísque. Como ele tinha arranjado aquilo tão cedo?

— Vindo da minha tia-avó? Isso é bom demais para ser verdade.

— Como assim? — perguntei. Depois de ser acusada por Tatiana de ter um romance fictício e descobrir que ela tinha um fornecedor-amante dampiro, nada sobre ela me surpreendia mais. — Lissa corre algum risco?

— O quê, de vida? Não. É só que minha tia-avó não faz nada unicamente pela bondade em seu coração. Bom — amenizou Adrian —, às vezes, sim. Ela não é assim tão má. E acho que ela realmente se preocupa com os Dragomir. Ouvi dizer que ela gostava de seus pais. Mas, quanto a fazer isso por bondade... eu não sei. Você tem ideias muito radicais. Talvez ela queira ouvir opiniões diferentes. Ou talvez queira vigiá-la, evitar que você arrume problemas.

“Ou talvez ela queira casar a Lissa com você”, disse eu, mentalmente.

Christian não gostou nada disso.

— Ele está certo. Podem estar tentando controlá-la. Você devia ir morar com a tia Tasha. Não precisa ir a uma escola Moroi.

— Mas ela estará mais segura lá — admiti.

Eu era completamente a favor de lutar contra o sistema — e manter Lissa longe dos planos da realeza —, mas, se ela frequentasse uma faculdade que não fosse protegida pelos Moroi, ela estaria em perigo, e eu com certeza não queria isso também. Eu ia continuar o que estava dizendo, mas então nosso avião decolou. Assim que ele subiu, minha dor de cabeça de ontem voltara. Era como se todo o ar ao nosso redor pressionasse meu crânio.

— Que droga! — gemi, colocando a mão na testa.

— Você está mal de novo? — perguntou Lissa, preocupada. Eu fiz que sim com a cabeça.

— Você sempre tem esses problemas quando voa? — perguntou Adrian, gesticulando para que alguém reenchesse o seu copo.

— Nunca — respondi. — Droga. Não quero passar por isso de novo.

Eu trinquei os dentes e tentei ignorar a dor, bem como aquelas manchas pretas de novo. Me custava um pouco, mas, se eu me concentrasse bastante, eu conseguia que tudo aquilo ficasse um pouco melhor. Estranho. Mesmo assim, eu não estava muito a fim de conversar depois daquilo, e todos me deixaram em paz. A conversa sobre a faculdade havia terminado.

Horas se passaram. Em breve aterrissaríamos na Escola. Uma das aeromoças Moroi atravessou o corredor até o nosso grupo, com o cenho franzido. Alberta logo percebeu.

— O que houve?

— Uma tempestade de gelo acabou de cair na região — disse a aeromoça. — Não podemos pousar na São Vladimir porque a pista está inacessível, por causa da neve e dos ventos. No entanto, precisamos de combustível, então iremos para o Aeroporto Regional de Martinville. Fica a algumas horas de carro da Escola, mas o lugar não foi tão afetado. Nosso plano é aterrissar lá, reabastecer e voar para a Escola assim que tiverem limpado a pista. É menos de uma hora pelo ar.

Eram notícias perturbadoras, mas não parecia tão ruim. Além do mais, o que podíamos fazer? Ao menos eu teria um alívio em breve. Se essa minha dor de cabeça fosse exatamente como a anterior, assim que pousássemos ela passaria. Voltamos aos nossos lugares e colocamos os cintos, prontos para o pouso. O tempo estava horrível lá fora, mas o piloto era bom e conseguiu pousar sem dificuldades.

E foi aí que aconteceu.

Assim que chegamos ao chão, o meu mundo explodiu. A dor de cabeça não passou; ela ficou pior. Muito pior — e eu nem imaginava que isso fosse possível. Parecia que o meu crânio estava sendo aberto.

Mas isso foi apenas o começo. Porque, de repente, havia vários rostos à minha volta. Rostos fantasmagóricos, translúcidos, e também corpos — como o de Mason. E, ai, meu Deus, eles estavam por toda a parte. Eu não conseguia sequer ver os assentos, ou meus amigos. Apenas aqueles rostos — e suas mãos.

Mãos pálidas e brilhantes tentavam me alcançar. Bocas se abriam, como se fossem falar, e todos aqueles rostos pareciam querer algo de mim.

E, quanto mais se aproximavam, mais rostos eu começava a reconhecer. Vi os guardiões de Victor, aqueles que haviam morrido quando resgatamos Lissa. Seus olhos estavam arregalados e horrorizados — por quê? Será que estavam revivendo suas mortes? Misturados entre eles, estavam crianças que eu não reconheci de cara. Então — eu lembrei. Eram as crianças que Dimitri e eu tínhamos encontrado mortas depois do massacre Strigoi. Elas traziam a mesma expressão vazia de Mason, mas o pescoço delas estava coberto de sangue, tal como os vi naquela casa. Sua cor escarlate brilhava em contraste com seus corpos luminescentes e sombrios.

Os rostos ficavam mais e mais nítidos. Ainda que nenhum deles estivesse de fato falando, havia um zumbido nos meus ouvidos que ficava mais alto à medida que se aproximavam. Três novas imagens se juntaram às outras. Em vez de se misturarem a elas, esses rostos apareciam tão nitidamente quanto o sangue no pescoço das crianças.

Era a família de Lissa.

A mãe, o pai e o irmão dela, Andre. Estavam exatamente como da última vez que eu os vira, um pouco antes do acidente de carro. Loiros. Lindos. Majestosos. Como Mason, não traziam nenhuma marca de suas mortes, embora eu soubesse que o acidente fizera coisas horríveis a eles. E, como Mason, eles apenas ficavam me encarando com aqueles olhares tristes, sem dizer nada, mas claramente querendo falar alguma coisa. Só que, diferentemente do Mason, eu sabia o que eles queriam dizer.

Havia uma mancha negra enorme atrás de Andre que crescia mais e mais. Ele apontou para mim e, então, apontou para a mancha. Eu sabia, mesmo sem entender como, que aquela era a entrada para o mundo dos mortos, o mundo para o qual eu tinha ido e do qual eu tinha voltado. Andre — que era da minha idade quando morreu — apontou para lá de novo. Seus pais também. Eles não precisavam falar para eu entender o que diziam: Você não deveria estar viva. Precisa voltar conosco...

Eu comecei a gritar. E gritar.

Pensei que alguém no avião estava falando comigo, mas era impossível saber ao certo, porque eu não conseguia enxergar nada a não ser aqueles rostos, mãos e a escuridão atrás de Andre. De vez em quando, o rosto de Mason aparecia por perto, solene e triste. Eu pedi ajuda a ele.

— Faça eles irem embora! — gritei. — Faça eles irem embora!

Mas não havia nada que ele quisesse — ou pudesse — fazer. Freneticamente, me soltei do cinto de segurança e tentei me levantar. Os fantasmas não me tocavam, mas estavam muito perto de mim, ainda tentando me tocar e apontando com aqueles dedos esqueléticos. Eu sacudi os braços, tentando tirá-los da minha frente, gritando para alguém me ajudar e fazer aquilo tudo acabar.

Mas não havia ajuda possível. Não diante de todas aquelas mãos e olhos vazios, ou da dor que me consumia. Estava tão mal que vários pontos negros e brilhantes começaram a dançar no meu campo de visão. Eu sentia que ia desmaiar, e eu queria isso. Faria a dor sumir, e me salvaria daqueles rostos. Os pontos cresciam mais e mais, e logo não consegui ver mais nada. Os rostos sumiram, e a dor também, conforme doces águas negras me arrastaram para o fundo.


Dezoito

Tudo ficou confuso depois disso. Eu tinha uma vaga impressão de perder e depois recuperar minha consciência, de ouvir pessoas dizendo o meu nome, de estar ao ar livre de novo. Acabei acordando na enfermaria da escola, com a dra. Olendzki me observando.

— Oi, Rose. — Ela era uma Moroi de meia-idade e sempre brincava dizendo que eu era a paciente número um dela. — Como está se sentindo?

Os detalhes do que tinha acontecido voltaram. Os rostos. Mason. Os outros fantasmas. A terrível dor de cabeça. Tudo ficou para trás.

— Ótima — respondi, meio surpresa por estar dizendo aquilo. Por um momento, eu me perguntei se talvez tudo não tivesse sido um sonho. Então olhei para trás dela e vi Dimitri e Alberta aguardando. A expressão deles me disse que o que acontecera no avião fora real.

Alberta pigarreou, e dra. Olendzki olhou para trás.

— Podemos? — perguntou Alberta. A doutora consentiu, e eles se aproximaram.

Dimitri, como sempre, era um bálsamo para mim. Não importava o que acontecesse, eu sempre me sentia mais segura perto dele. No entanto, nem mesmo ele tinha sido capaz de dar um fim ao que ocorreu no aeroporto. Quando ele me olhava como agora, com uma expressão de preocupação e ternura, sentimentos diversos despertavam em mim. Uma parte amava que ele se importasse tanto. A outra queria se mostrar forte para não preocupá-lo.

— Rose... — começou Alberta, hesitante. Percebi que ela não tinha ideia de como proceder. O que tinha acontecido estava além das suas experiências. Dimitri continuou.

— Rose, o que aconteceu? — Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele me cortou: — E não diga que não foi nada desta vez.

Bom, se eu não podia evitar o assunto com essa resposta, eu não sabia o que dizer.

A dra. Olendzki ajeitou os óculos.

— Nós só queremos ajudá-la.

— Eu não preciso de ajuda — afirmei. — Estou bem. — Parecia exatamente o discurso de Brandon e Brett. Eu devia estar a um passo de dizer: “Eu caí.”

Alberta finalmente se recompôs.

— Você estava bem enquanto estávamos no ar. Quando pousamos, você não estava bem, não mesmo.

— Estou bem agora — respondi, fugindo de seus olhares.

— O que aconteceu, então? — perguntou ela. — Por que a gritaria? O que quis dizer quando nos pediu para “fazê-los” irem embora?

Eu considerei brevemente a minha outra resposta pronta, a do estresse. O que parecia completamente idiota, agora. Então, mais uma vez, eu não disse nada. Para a minha surpresa, senti lágrimas se formando em meus olhos.

— Rose — murmurou Dimitri, com uma voz que se derramava como seda em minha pele. — Por favor.

Algo naquele pedido havia me dobrado. Era muito difícil resistir ao Dimitri. Eu virei o rosto e encarei o teto.

— Fantasmas — sussurrei. — Eu vi fantasmas.

Nenhum deles esperava aquilo, mas, sinceramente, como poderiam? Um enorme silêncio se instalou. Por fim, a dra. Olendzki falou, insegura:

— C-como assim?

Eu engoli em seco.

— Ele tem me seguido nas últimas semanas. Mason. No campus. Eu sei que parece loucura, mas é ele. Ou o fantasma dele. Foi o que aconteceu com Stan. Eu travei porque Mason estava lá, e eu não sabia o que fazer. No avião... acho que ele estava lá também... e havia outros. Mas eu não podia vê-los muito bem quando estávamos no ar. Apenas visões... e a dor de cabeça. Mas, quando pousamos em Martinville, ele estava lá, de corpo inteiro, não só o rosto. E... e ele não estava sozinho. Havia outros com ele. Outros fantasmas.

Uma lágrima saiu de um dos meus olhos, e eu a sequei rapidamente, torcendo para que ninguém a tivesse visto. Então aguardei, sem saber o que viria a seguir. Alguém iria rir? Me chamar de louca? Me acusar de mentir e mandar que eu contasse o que tinha acontecido de verdade?

— Você os conhecia? — perguntou Dimitri, finalmente.

Eu me virei e olhei nos seus olhos. Eles ainda estavam sérios e preocupados, sem um rastro de deboche.

— Sim... eu vi alguns dos guardiões de Victor, e as pessoas que morreram naquele massacre. E a... a família de Lissa também estava lá.

Ninguém disse nada depois disso. Eles só ficaram se entreolhando, esperando talvez algum dos outros comentar algo a respeito.

A dra. Olendzki suspirou.

— Posso falar com vocês dois, em particular?

Os três saíram da enfermaria, fechando a porta. Mas ela não se fechou totalmente. Me arrastando da cama, eu cruzei o quarto e fiquei perto da porta. Uma brecha era o suficiente para a minha audição de dampira acompanhar a conversa. Me senti mal por bisbilhotar a conversa alheia, mas eles estavam falando de mim, e não consegui ignorar o pressentimento de que o meu futuro estava em jogo ali.

— ...óbvio o que está acontecendo — sibilou a dra. Olendzki. Era a primeira vez que eu a via tão irada. Com os pacientes, ela era a imagem perfeita da serenidade. Era difícil imaginá-la tão irritada, mas ela sem dúvida estava furiosa agora. — Pobre garota. Está passando por um transtorno de estresse pós-traumático, o que não é nenhuma surpresa depois do que aconteceu.

— Tem certeza? — indagou Alberta. — Talvez seja outra coisa... — Mas, conforme ela falava, vi que ela não fazia ideia do que mais poderia explicar aquilo.

— Analise os fatos: uma menina adolescente testemunha um de seus melhores amigos sendo assassinado, e depois tem de matar seu assassino. Você não acha traumático? Não acha que pode ter causado algum mínimo efeito nela?

— A tragédia é algo que todos os guardiões têm de enfrentar — disse Alberta.

— Talvez não haja muito o que fazer pelos guardiões em campo, mas Rose ainda é uma estudante aqui. Temos meios de ajudá-la.

— Que meios? — perguntou Dimitri. Ele soou curioso e preocupado, e não como se a desafiasse.

— Orientação educacional. Falar com alguém sobre o que aconteceu pode fazer muito bem. Vocês deveriam ter feito isso assim que ela voltou. E deveriam fazer isso com os outros que estiveram lá também. Por que ninguém pensa nessas coisas?

— É uma boa ideia — disse Dimitri. Eu reconhecia aquele tom em sua voz; sua mente trabalhava furiosamente. — Ela pode fazer isso em seu dia de folga.

— Dia de folga? Por que não todo dia? Vocês deveriam afastá-la dessa experiência de campo. Simulações de ataques Strigoi não vão fazê-la esquecer um ataque real.

— Não! — Eu tinha aberto a porta antes que me desse conta. Todos me encararam, e imediatamente me senti idiota. Eu tinha acabado de me entregar.

— Rose — disse a dra. Olendzki, retomando a sua conduta de médica preocupada, mas um pouco repreensiva —, você devia ir se deitar.

— Eu estou bem. E vocês não podem me obrigar a deixar a experiência de campo. Não vou me formar se eu fizer isso.

— Você não está bem, Rose, e não tem do que se envergonhar depois do que lhe aconteceu. Achar que você vê o fantasma de alguém que morreu não é nada de mais, considerando tudo.

Eu ia corrigi-la na parte do “achar que você vê”, mas desisti. Argumentar que eu realmente tinha visto um fantasma não ia me ajudar, ainda que eu estivesse começando a acreditar que era isso mesmo o que eu tinha visto. Desesperadamente, tentei pensar numa razão convincente para me manterem na experiência de campo. Eu costumava ser muito boa em escapar de situações difíceis.

— A não ser que você me ponha no aconselhamento durante as 24 horas diárias, só vai me fazer piorar. Eu preciso de alguma coisa para fazer. A maioria das minhas aulas está em recesso agora. O que eu faria? Ficaria parada? Pensando mais e mais no que aconteceu? Eu iria enlouquecer, de verdade. Não quero me prender ao passado para sempre. Eu preciso me mexer e cuidar do meu futuro.

Isso deu início a uma discussão sobre o que fazer comigo. Eu ouvi, me segurando para não falar nada, porque sabia que tinha que ficar fora daquilo. Finalmente, depois de algumas reclamações da doutora, todos concordaram que eu poderia participar da experiência de campo durante metade do dia.

Para todos, parecia a solução ideal — bom, exceto para mim. Eu só queria que a vida continuasse exatamente como estava. Ainda assim, eu sabia que aquele era o melhor acordo que eu conseguiria. Eles decidiram que eu faria três dias de experiência de campo por semana, sem plantões noturnos. Nos outros dias, eu teria que treinar um pouco e fazer os trabalhos escritos que eles me passassem.

Eu também teria um orientador, o que não me animava muito. Não que eu tivesse algo contra orientadores. Lissa estava vendo um, e estava sendo realmente bom para ela. Colocar as coisas para fora ajudava. O problema era que... bom, eu não queria falar sobre aquilo.

Mas, se as opções era fazer isso ou ser afastada da experiência de campo, eu estava mais do que feliz com aquela solução. Alberta achou que de experiência conseguiriam me aprovar mesmo com apenas a metade do tempo. Ela também gostava da ideia de a orientação educacional ocorrer ao mesmo tempo que eu lidava com as simulações de ataques Strigoi — só para prevenir, caso eles fossem realmente traumatizantes.

Após mais alguns exames, a dra. Olendzki me deu alta e disse que eu podia voltar para o meu quarto. Alberta foi embora depois disso, mas Dimitri continuou lá, para me acompanhar de volta.

— Obrigada por pensar nessa coisa de metade do tempo — agradeci a ele.

Os caminhos estavam molhados hoje, porque o tempo tinha esquentado depois da tempestade. Não chegava a ser um clima para sair de biquíni e se bronzear, mas muito do gelo e da neve estavam derretendo. A água pingava das árvores, e a gente tinha que desviar de poças.

Dimitri parou ab-ruptamente e virou de frente para mim, bloqueando minha passagem. Eu parei rápido também, quase trombando com ele. Ele pegou o meu braço e me puxou para perto dele, tão perto quanto eu jamais imaginei que ele faria em público. Seus dedos me seguravam com força, mas não machucavam.

— Rose — disse ele, com a dor em sua voz quase fazendo meu coração parar —, não acredito que só estou sabendo dessas coisas agora! Por que não me contou? Tem ideia de como foi aquilo para mim? Tem ideia de como foi para mim ver você daquele jeito e não saber o que estava acontecendo? Tem ideia do quanto me deixou assustado?

Eu estava surpresa, tanto pela reclamação quanto pela proximidade. Eu engoli em seco, sem conseguir responder de imediato. Havia tanto em sua expressão, tantas emoções... Eu não conseguia me lembrar da última vez que o vira se abrir assim. Era incrível e assustador ao mesmo tempo. Eu, então, disse a coisa mais idiota possível.

— Você não tem medo de nada.

— Tenho medo de muitas coisas. Eu temi por você. — Ele me soltou, e eu recuei. Ainda havia paixão e preocupação transparecendo nele. — Eu não sou perfeito. Não sou invulnerável.

— Eu sei, é que... — Eu não sabia o que dizer. Ele estava certo. Eu sempre vira Dimitri como maior do que tudo. Sabe-tudo. Invencível. Era difícil para mim acreditar que ele podia se preocupar tanto comigo.

— E isso já está acontecendo há algum tempo — continuou ele. — Já estava acontecendo na época do Stan, quando você falou com o padre Andrew sobre fantasmas... Você estava lidando com isso esse tempo todo! Por que não contou a ninguém? Por que não contou para a Lissa... ou... para mim?

Eu olhei dentro daqueles olhos tão, tão escuros, aqueles olhos que eu amava.

— Você teria acreditado?

Ele franziu o cenho.

— Acreditado em quê?

— Que estou vendo fantasmas.

— Bem... eles não são fantasmas, Rose. Você só acha que eles são porque...

— Por isso — interrompi. — Por isso eu não podia contar a você, nem a ninguém. Vocês não acreditariam em mim, não sem acharem que fiquei louca.

— Não acho que você esteja louca — disse ele. — Mas acho que você passou por muita coisa.

Adrian me dera a mesma resposta quando perguntei a ele como eu poderia saber se estava louca ou não.

— É mais do que isso — disse eu. E retomei o meu caminho.

Sem dar um passo a mais, ele segurou o meu braço de novo. Ele me puxou para si, e estávamos mais próximos do que antes. Voltei a olhar em volta, me perguntando se alguém podia nos ver, mas o campus estava deserto. Era cedo, não necessariamente o pôr do sol, mas tão cedo que a maioria das pessoas nem tinha levantado ainda para a escola. Não veríamos movimento ali por pelo menos mais uma hora. Mesmo assim, eu estava surpresa em ver Dimitri se arriscando assim.

— Então me conte — pediu ele. — Me conte como pode ser mais do que isso.

— Você não vai acreditar. Entendeu? Ninguém vai. Nem mesmo você... entre todos os outros. — Algo naquele pensamento fez a minha voz enfraquecer. Dimitri entendia tanto de mim... Eu queria... precisava... que ele entendesse isso também.

— Eu vou... tentar. Mas ainda acho que você não entende realmente pelo que está passando.

— Eu entendo — insisti, com firmeza. — É isso o que ninguém entende. Escute, você tem que decidir de uma vez por todas se confia mesmo em mim. Se pensa que eu sou uma criança, muito ingênua para entender o que está acontecendo com a minha mente frágil, então siga o seu caminho. Mas se você confia em mim o suficiente para lembrar que eu vi e sei coisas que pessoas da minha idade nem imaginam... bom, então você também devia perceber que eu posso saber um pouco sobre o que estou falando.

Uma brisa morna, com cheiro de neve derretida, passou por nós.

— Eu confio em você, Roza. Mas... eu não acredito em fantasmas.

Lá estava a seriedade. Ele queria me estender a mão, me entender... mas, ainda que o fizesse, isso batia de frente com crenças que ele não estava preparado para aceitar ainda. Era irônico, considerando que, aparentemente, cartas de tarô o impressionavam.

— Você vai tentar? — perguntei. — Ou, pelo menos, tentar não encaixar isso dentro de alguma psicose?

— Sim. Isso eu posso fazer.

Então, contei a ele sobre as minhas primeiras visões de Mason, e como eu tinha ficado com medo de explicar o incidente com Stan a todos. Falei sobre as formas que eu tinha visto no avião, e descrevi com mais detalhes o que eu tinha visto quando aterrissamos.

— Isso não parece, hã, muito específico para ser uma simples reação ao estresse? — perguntei, quando terminei.

— Não sei se podemos esperar que “reações ao estresse” sejam específicas ou aleatórias. Elas são naturalmente imprevisíveis. — Ele trazia uma expressão preocupada que eu conhecia muito bem, aquela que dizia que ele estava vasculhando tudo em sua cabeça. Também percebi que ele ainda não acreditava nessa história de fantasmas, mas que tentava com muito afinco manter a mente aberta. Ele confirmou isso logo depois: — Por que você está tão certa de que isso não é coisa da sua imaginação?

— Bem, a princípio pensei nisso. Mas agora... não sei. Existe algo nisso que parece real... mesmo sabendo que essa sensação não prova nada. Mas você ouviu o que o padre Andrew disse, sobre fantasmas perambulando quando eles morrem jovens ou de forma violenta.

Dimitri mordeu um dos lábios. Estava prestes a me dizer para não interpretar o que o padre falara literalmente. Em vez disso, ele perguntou:

— Então você acha que Mason voltou para se vingar?

— Também pensei nisso, mas agora não tenho tanta certeza. Ele nunca tentou me machucar. Só parece querer alguma coisa. E depois... todos os outros fantasmas pareciam querer algo também, até os que eu não conhecia. Por quê?

Dimitri me olhou, com um olhar sábio.

— Você tem uma teoria.

— Tenho, sim. Eu estava pensando sobre o que o Victor disse. Ele mencionou que, por eu ter sido beijada pelas sombras... porque eu morri... eu tenho essa conexão com o mundo dos mortos. E que nunca vou poder me desligar completamente dele.

Sua expressão endureceu.

— Eu não poria muita fé no que Victor Dashkov diz para você.

— Mas ele sabe das coisas! Você sabe que ele sabe, não importa o quanto ele seja cretino.

— Tudo bem, supondo que isso seja verdade, que ser beijada pelas sombras permita que você veja fantasmas, por que só está acontecendo agora? Por que não aconteceu logo depois do acidente de carro?

— Já pensei sobre isso — respondi, impaciente. — Era outra coisa que Victor dissera... que, agora que eu estava lidando com a morte, estava muito mais perto do outro lado. E se causar a morte de outra pessoa fortalecesse a minha conexão e tornasse tudo isso possível? Eu acabei de fazer a minha primeira vítima. Vítimas, aliás.

— E por que isso é tão aleatório? — perguntou Dimitri. — Por que acontece quando acontece? Por que no avião? Por que não na Corte?

Meu entusiasmo diminuiu um pouco.

— O que você é, agora, um advogado? — repreendi. — Você questiona tudo o que digo. Pensei que você fosse ficar de mente aberta.

— Eu estou. Mas você também precisa abrir a sua. Pense bem. Por que esse padrão nas visões?

— Não sei — admiti. Eu cedi à derrota. — Você ainda acha que fiquei louca.

Ele esticou a mão e amparou meu queixo, levantando o meu rosto para olhar para ele.

— Não. Nunca. Nenhuma dessas teorias me faz achar que você enlouqueceu. Mas eu sempre acreditei que as explicações mais simples fazem mais sentido. A da dra. Olendzki faz. A teoria sobre os fantasmas possui alguns furos. Mas, se você descobrir mais... então nós podemos pensar direito nisso.

— Nós? — perguntei.

— Claro. Eu não vou deixá-la sozinha, não importa o que aconteça. Você sabe que eu nunca iria abandoná-la.

Havia algo muito fofo e nobre em suas palavras, e eu senti a necessidade de retribuí-las, mesmo que eu acabasse falando alguma idiotice.

— E eu nunca vou abandonar você, sabe? Digo... não que essas coisas aconteçam com você, claro, mas, se você começar a ver fantasmas ou sei lá, eu vou ajudar também.

Ele deu uma pequena e leve risada.

— Obrigado.

Nossas mãos se encontraram, os dedos se entrelaçando. Nós ficamos assim por quase um minuto, sem nenhum dos dois dizer nada. As únicas partes que se tocavam eram as nossas mãos. A brisa passou de novo, e, embora a temperatura não passasse dos quinze graus, parecia primavera para mim. Eu esperava que flores desabrochassem à nossa volta. Como se tivéssemos pensado a mesma coisa, nós nos soltamos ao mesmo tempo.

Fomos ao meu dormitório logo depois, e Dimitri perguntou se estaria tudo bem se eu fosse para o meu quarto sozinha. Eu disse que sim, e que ele devia ir cuidar dos próprios assuntos. Ele se foi, mas, assim que eu cheguei na porta da antessala, lembrei que minha bolsa de viagem ficara na enfermaria. Resmungando coisas que poderiam me dar uma detenção, eu virei e voltei por onde vim.

A recepcionista da dra. Olendzki me levou para os quartos de exame depois que lhe contei por que eu estava lá. Peguei a bolsa no meu leito recém-desocupado e dobrei o corredor, para ir embora. De repente, no quarto oposto ao que eu estava, vi alguém deitado na cama. Não tinha ninguém da equipe da clínica por perto, e minha curiosidade — sempre levando a melhor — me fez dar uma olhada.

Era Abby Badica, uma Moroi veterana. Fofa e alegre eram os adjetivos que normalmente me vinham à cabeça quando eu a descrevia, mas desta vez ela era tudo menos isso. Ela estava machucada e arranhada, e quando ela virou o rosto para mim, eu vi hematomas vermelhos.

— Deixe-me adivinhar — disse eu. — Você caiu.

— O-o quê?

— Você caiu. Percebi que é a desculpa padrão: Brandon, Brett e Dane. Mas vou lhe dizer a verdade: vocês precisam inventar algo novo. Acho que a doutora já está suspeitando de algo.

Seus olhos se arregalaram.

— Você sabe?

Foi aí que eu percebi meu erro com o Brandon. Eu tinha ido até ele exigindo respostas, o que o fizera relutar em cooperar. Os que questionaram Brett e Dane tiveram o mesmo resultado. Com Abby, notei que eu só precisava agir como se já soubesse as respostas, e aí ela me daria as informações.

— Claro que sim. Eles me contaram tudo.

— O quê? — gemeu ela. — Eles prometeram não dizer nada. É parte das regras.

Regras? Do que ela estava falando? O grupo de vigilantes espancadores da realeza que eu estava imaginando não parecia muito o tipo que seguia regras. Tinha algo mais acontecendo.

— Bem, eles não tiveram muita escolha. Não sei por quê, mas eu sempre acabo esbarrando com um de vocês. Tive que ajudar a acobertá-los. E, preciso lhe dizer, não sei por quanto tempo isso vai poder continuar sem que façam mais perguntas. — Disse aquilo como se eu fosse uma simpatizante, querendo ajudar se eu pudesse.

— Eu devia ter sido mais forte. Eu tentei, mas não foi o bastante. — Ela parecia cansada e com dor. — Só fique na sua até que tudo se ajeite, está bem? Por favor?

— Claro — disse eu, doida para saber o que ela tinha “tentado” fazer. — Não vou arrastar mais ninguém para isso. Como você veio parar aqui, aliás? Você não devia ficar chamando a atenção. — Ou assim eu presumi. Eu estava inventando aquilo tudo enquanto tentava entrar na história.

Ela fez uma careta.

— A inspetora do dormitório percebeu e me fez vir. Se o resto da Mâna descobrir, vou estar em apuros.

— Com sorte, a doutora vai liberar você antes que algum deles perceba. Ela está meio ocupada. Você tem as mesmas marcas que Brett e Brandon, e com nenhum deles foi tão sério. — Assim eu esperava. — As... hã, queimaduras foram um pouco traiçoeiras, mas eles não tiveram problemas.

Eu estava blefando ali. Não só eu não fazia ideia das especificidades dos machucados de Brett, como também não sabia se as marcas que Jill havia descrito eram de queimaduras. Se não fossem, eu teria acabado de destruir a minha atuação. Mas ela não me corrigiu, e seus dedos tocaram aleatoriamente uma de suas marcas.

— Sim, eles disseram que os danos não iam durar. Só vou ter que inventar algo para a dra. Olendzki. — Uma pequena esperança brilhou em seus olhos. — Eles falaram que não, mas, talvez... talvez me deixem tentar de novo.

Foi nesse momento que a boa doutora voltou. Ela estava surpresa em me ver ainda por lá e me disse para voltar ao meu quarto e descansar. Eu me despedi delas e caminhei de volta, no frio. No entanto, eu mal reparava no clima enquanto andava. Finalmente, finalmente eu tinha uma pista desse mistério. Mâna.


Dezenove

Lissa tem sido a minha melhor amiga desde o primário, por isso o fato de eu estar escondendo tantos segredos dela ultimamente me doía tanto. Ela sempre foi aberta comigo, sempre querendo dividir tudo o que tinha na cabeça — talvez porque não tivesse outra escolha. Eu costumava ser assim com ela, mas a partir de algum momento comecei a guardar meus segredos, sem ser capaz de contar-lhe sobre Dimitri, ou a verdadeira razão por ter estragado tudo com Stan. Eu odiava estar agindo assim. Isso me consumia e me fazia sentir culpada quando estava com ela.

Hoje, no entanto, não tinha como não explicar a ela o que havia ocorrido no aeroporto. Mesmo que eu inventasse alguma coisa, o fato de agora eu estar só metade do tempo cuidando de Christian seria uma grande dica de que algo estava acontecendo. Sem desculpas dessa vez.

Então, por mais que doesse, contei para ela e Christian — bem como para Eddie e Adrian, que também estavam junto — a versão resumida do ocorrido.

— Você acha que viu fantasmas? — exclamou Christian. — Sério? — Sua expressão indicava que ele já estava pensando em vários comentários idiotas para fazer.

— É o seguinte — repreendi —, eu contei para vocês o que está acontecendo, mas não quero ficar me estendendo nisso. Isso está sendo trabalhado, então deixem para lá.

— Rose... — começou Lissa, inquieta. Um furacão de sentimentos vinha dela para mim. Medo. Preocupação. Choque. Sua compaixão me fez sentir ainda pior.

Eu balancei a cabeça.

— Não, Liss. Por favor. Vocês podem achar o que quiserem sobre mim, ou criar suas próprias teorias, mas nós não vamos falar sobre isso. Não agora. Só me deixem em paz.

Esperava que Lissa fosse me encher, por causa da sua persistência natural. Esperei isso de Adrian e Christian também, por suas naturezas irritantes. Mas, embora tenha usado palavras simples, eu percebi que os tratei com dureza tanto na voz quanto na atitude. Foi a surpresa na mente de Lissa que me alertou disso, e então só precisei olhar o rosto dos garotos para perceber que eu devia estar parecendo incrivelmente estúpida.

— Desculpem — balbuciei. — Eu agradeço a preocupação de vocês, mas não estou no clima.

Lissa me olhou. Mais tarde, disse ela em minha mente. Eu fiz que sim com a cabeça, secretamente me perguntando como poderia evitar essa conversa.

Ela e Adrian haviam se encontrado para praticar magia de novo. Eu ainda gostava de ficar perto dela, mas eu só podia fazer isso quando Christian estava junto. E, sinceramente, eu não conseguia entender por que ele ficava. Acho que era porque ele ainda estava um pouco enciumado, apesar de tudo o que acontecera. Claro, se ele soubesse dos planos casamenteiros da rainha, ele teria razões de sobra. No entanto, era claro que aquelas lições de magia estavam começando a entediá-lo. Estávamos na sala da professora Meissner hoje, e ele juntou duas carteiras e deitou em cima elas, com um braço sobre os olhos.

— Me acorde quando isso ficar interessante — pediu.

Eddie e eu ficamos numa posição central, que nos permitia ver a porta e as janelas e continuar perto dos Moroi.

— Você viu mesmo o Mason? — sussurrou Eddie para mim. Ele ficou mal depois. — Desculpe... você disse que não queria falar sobre isso...

Eu ia responder que sim, que foi exatamente o que eu tinha falado... mas então vi sua expressão. Ele não estava me perguntando aquilo movido por alguma curiosidade perversa. Ele me perguntou por causa de Mason, por serem próximos, e porque Eddie não tinha se recuperado da morte de seu melhor amigo, assim como eu. Imagino que ele tenha achado essa ideia do Mason voltando do túmulo para se comunicar muito reconfortante, mas, também, não foi ele quem teve que ver aquele fantasma.

— Eu acho que era ele — murmurei de volta. — Não sei. Todo mundo acha que eu imaginei isso.

— Como ele estava? Ele parecia chateado?

— Ele parecia... triste. Bem triste.

— Se foi realmente ele... quer dizer, sei lá. — Eddie olhou para o chão, esquecendo momentaneamente de vigiar a sala. — Sempre me perguntei se ele teria ficado chateado porque não o salvamos.

— Não havia nada que pudéssemos fazer — respondi a ele, reiterando exatamente o que todos haviam me dito. — Mas eu me perguntei isso também, porque o padre Andrew mencionou que às vezes os fantasmas voltam por vingança. Mas Mason não parecia querer isso. Era só como se ele quisesse me dizer alguma coisa.

Eddie olhou para trás, de repente, percebendo que ainda estava em serviço. Ele não disse mais nada depois disso, mas eu podia imaginar seus pensamentos.

Enquanto isso, Adrian e Lissa estavam fazendo progresso. Pelo menos Adrian estava. Os dois pegaram umas plantas amassadas que tinham morrido ou adormecido no inverno e as colocaram em pequenos vasos, agora alinhados numa mesa comprida. Lissa tocou em uma, e eu senti a euforia mágica queimando dentro dela. Um momento depois, a plantinha estava verde e com folhas.

Adrian encarou aquele vegetal como se ele encerrasse os segredos do Universo, e então expirou longamente.

— Tudo bem. Pronto para nada acontecer.

Ele colocou o dedo calmamente sobre outra planta. Nada era bem o que acontecia, mesmo. Mas então, alguns momentos depois, a planta cresceu um pouco. Um pingo de verde começou a aparecer, e parou.

— Você conseguiu — disse Lissa, impressionada. Eu também podia sentir que ela estava com um pouco de ciúmes. Adrian tinha aprendido um dos truques dela, mas ela não aprendera nenhum dos dele.

— Mais ou menos — disse ele, olhando a planta. Ele estava completamente sóbrio, sem nenhum de seus vícios para enfraquecer seu poder. O espírito não tinha nada a oferecer para deixá-lo menos irritado. Com nosso humor, nós realmente tínhamos algo em comum naquela noite. — Droga.

— Está brincando? — perguntou ela. — Foi ótimo. Você fez uma planta crescer com a sua mente. Isso é incrível.

— Mas não tão bem quanto você — rebateu ele, parecendo ter dez anos de idade.

Não consegui deixar de me intrometer.

— Então pare de reclamar e tente de novo.

Ele olhou para mim com um sorriso no rosto.

— Ei, nada de conselhos, Garota Fantasma. Guardiões devem ser vistos, e não ouvidos. — Mostrei o dedo para ele por causa do “Garota Fantasma”, mas Adrian não percebeu, porque Lissa já estava lhe dizendo:

— Ela está certa. Tente de novo.

— Faça você mais uma vez — disse ele. — Quero observar você... eu meio que posso sentir o que você faz com isso.

Ela usou o poder em outra planta. Senti, de novo, a magia resplandescendo, bem como a alegria que vinha com ela — e então ela vacilou. Um pouco de medo e instabilidade apareceram junto à magia, enfraquecendo-a um pouco, como quando seu estado mental estava deteriorado. “Não, não”, implorei, silenciosamente. “Está acontecendo. Eu sabia que isso ia acontecer se ela continuasse a usar a magia. Por favor, não deixe acontecer de novo.”

E de repente a mancha negra em sua magia desapareceu. Todos os seus pensamentos e sentimentos voltaram ao normal. Notei, então, que ela também fizera a planta crescer. Eu acabei perdendo isso, porque tinha me distraído com aquele lapso dela. Adrian tinha deixado de ver a magia também, porque estava olhando para mim. Sua expressão era estranha e muito, muito confusa.

— Muito bem — disse Lissa, feliz. Não percebeu que ele não tinha prestado atenção. — Tente de novo.

Adrian se focou novamente em seu exercício. Suspirando, ele foi para uma nova planta, mas ela o fez voltar para a antiga.

— Não, continue trabalhando na que você já começou. Talvez você só consiga fazer aos poucos.

Aceitando a ideia, ele voltou a atenção para a primeira planta. Por alguns minutos, ele não fez nada além de encará-la. Um silêncio reinou na sala. Eu nunca o vira tão concentrado em nada, tinha até suor em sua testa. Finalmente, a planta cresceu mais um pouco. Ficou mais verde, e pequenos botões apareceram. Olhando para ele, percebi que cerrava os olhos e trincava os dentes, sem dúvida se concentrando o máximo que podia. Os botões se abriram. Folhas e pequenas flores brancas surgiram.

Lissa deu o que só podia ser considerado um grito de alegria.

— Você conseguiu! — Ela o abraçou, e sentimentos de prazer vieram dela para mim. Ela estava sinceramente feliz por ele ter sido capaz de fazer aquilo. E, se por um lado ela ainda estava chateada pela sua falta de progresso, o fato de Adrian ter conseguido replicar as habilidades dela lhe deu esperanças. O que significava que eles realmente podiam aprender um com o outro.

— Mal posso esperar até ser capaz de fazer algo novo — disse ela, ainda um pouco enciumada.

Adrian bateu com o dedo em um caderno.

— Bem, existe um monte de outros truques no mundo do espírito. Você deve ser capaz de aprender pelo menos um deles.

— O que é isso? — perguntei.

— Lembra aquela pesquisa que eu fiz sobre pessoas que tinham mostrado comportamentos estranhos? — perguntou ela. — Fizemos uma lista de tudo o que apareceu de diferente. — Eu lembrava, de fato. Em sua busca por outros usuários de espírito, ela descobrira relatos em que Moroi demonstravam habilidades que ninguém tinha visto antes. Poucos acreditavam na veracidade de tais histórias, mas Lissa estava convencida de que aqueles vampiros eram usuários do espírito.

— Junto com o poder de curar, ver auras e entrar nos sonhos dos outros, nós parecemos ter uma espécie de supercompulsão.

— Você já sabia disso — comentei.

— Não, isso é ainda mais poderoso. Não é só dizer às pessoas o que fazer. É também fazê-las ver e sentir coisas que não existem.

— Algo como alucinações?

— Algo assim — disse Adrian. — Existem histórias de pessoas usando compulsão para fazer os outros viverem seus piores pesadelos, pensarem que estão sendo atacados, ou algo do gênero.

Eu tremi.

— Isso é meio assustador, na verdade.

— E incrível — disse Adrian.

Lissa concordou comigo.

— Não sei. A compulsão comum é uma coisa, mas isso parece muito errado.

Christian bocejou.

— Agora que a vitória foi atingida, podemos encerrar esta noite por aqui?

Olhando atrás de mim, vi que Christian estava sentado ereto e alerta. Seus olhos estavam em Lissa e Adrian, e ele não parecia nada feliz com aquele abraço da vitória. Lissa e Adrian se afastaram, mas não porque perceberam a reação de Christian. Estavam distraídos demais pela própria excitação para isso.

— Você pode fazer isso de novo? — perguntou Lissa, ansiosa. — Fazer crescer?

Adrian balançou a cabeça.

— Não agora. Isso acabou comigo. Acho que preciso de um cigarro. — Ele gesticulou para Christian. — Vai fazer alguma coisa com o seu namorado. Ele foi incrivelmente paciente esse tempo todo.

Lissa andou até Christian, seu rosto brilhando de alegria. Estava linda e radiante, e eu imaginava que era muito difícil para ele ficar chateado com ela. A expressão dura em seu rosto amoleceu, e vi a rara gentileza que só Lissa conseguia despertar nele.

— Vamos voltar ao dormitório — disse ela, segurando sua mão.

Nós fomos. Eddie ficou mais próximo de Lissa e Christian, o que me deixou como a guardiã distante. Também me deixou com Adrian, que tinha escolhido ficar mais afastado, comigo. Ele estava fumando, então eu tinha que suportar aquela fumaça tóxica. Sinceramente, eu não conseguia entender por que nenhum superior o havia repreendido ainda. Eu torci o nariz por causa do cheiro.

— Sabe, você podia ser o nosso guardião bem, bem distante e ficar lá atrás com essa coisa — provoquei.

— Hmm, já tive o bastante. — Ele largou o cigarro e pisou nele, deixando-o para trás. Eu odiava aquilo tanto quanto vê-lo fumar. — O que você acha, dampirinha? Eu fui bem sinistro com aquela planta, não fui? Claro que eu teria sido ainda mais se, sei lá, eu fizesse um membro amputado crescer de volta. Ou, talvez, se separasse gêmeos siameses. Mas isso vem com a prática.

— Se quiser um conselho, e sei que você não quer, vocês deviam parar com isso. Christian ainda acha que você está dando em cima da Lissa.

— O quê? — perguntou ele, fingindo surpresa. — Ele não sabe que meu coração pertence a você?

— Não pertence. E não, ele ainda se preocupa com isso, mesmo eu tendo conversado com ele a respeito.

— Sabe, aposto que ele ficaria mais tranquilo se você e eu começássemos a nos beijar agora.

— Se você encostar em mim — disse eu, gentilmente —, vou lhe dar a oportunidade de conferir se consegue se curar. E então vamos descobrir se você é assim, tão sinistro.

— Eu teria a Lissa para me curar — disse ele, convencido. — Seria fácil para ela. No entanto... — Seu sorriso cínico se fechou. — Algo estranho aconteceu quando ela usou a magia pela segunda vez.

— Sim. Eu sei. Você conseguiu sentir também?

— Não. Mas eu vi. — Ele franziu o cenho. — Rose... lembra quando me perguntou se você estava louca e eu disse que não?

— Sim...

— Acho que posso ter me enganado. Acho que você está louca.

Eu quase parei de andar.

— O que diabos isso quer dizer?

— Então... bom, é que, quando Lissa tentou a segunda planta... a aura dela diminuiu um pouco.

— Isso bate com o que eu senti — concordei. — Era como se ela... não sei, tivesse ficado mentalmente frágil por um momento, como ela esteve um tempo atrás. Mas depois desapareceu.

Ele acenou com a cabeça.

— Isso, é isso mesmo... a escuridão na aura dela foi embora, direto para a sua. Eu já tinha percebido que vocês tinham uma grande diferença de auras, mas dessa vez eu vi acontecer. Era como se aquela mancha de sombras fosse dela direto para você.

Algo naquela ideia me fez tremer.

— O que isso significa?

— Bem, é por isso que eu disse que você está maluca. Lissa não tem mais nenhum efeito colateral da magia, certo? E você, bem... você tem andado irritada e ainda... vendo fantasmas. — Ele disse aquelas palavras casualmente, como se ver fantasmas fosse algo que acontecesse sempre. — Acho que o que tem de ruim no espírito e faz as pessoas enlouquecerem está vazando dela para você. Está fazendo ela ficar estável, e você, bem... como eu disse, você está vendo fantasmas.

Era como se eu tivesse levado um soco. Uma nova teoria. Não era um trauma. Não tinha nada a ver com fantasmas. Eu estava “sugando” a loucura da Lissa. Eu me lembrei de como ela estivera péssima, deprimida e autodestrutiva. Lembrei a nossa antiga professora, a senhorita Karp, que também era uma usuária do espírito — e louca o suficiente para virar Strigoi.

— Não — disse eu, numa voz fina. — Isso não está acontecendo comigo.

— E o laço de vocês? Vocês têm essa conexão. Os pensamentos e sentimentos dela vão para você... por que não a loucura, também? — O jeito de Adrian era tipicamente descontraído e curioso. Ele não percebia o quanto aquilo estava começando a me assustar.

— Porque isso não faz nenhum...

E aí, eu percebi. A resposta que eu vinha procurando esse tempo todo. São Vladimir lutou a vida inteira contra os efeitos colaterais do espírito. Ele tinha sonhos e ilusões, experiências que ele descrevera como “demônios”. Mas ele não tinha ficado completamente louco ou tentado se matar. Lissa e eu tínhamos certeza de que era porque ele tinha uma guardiã beijada pelas sombras, Anna, e de que partilhar um laço com ela o tinha ajudado.

Presumimos que era simplesmente o fato de ter uma amiga tão próxima por perto, alguém que o apoiasse e ajudasse nos tempos difíceis, numa época em que ainda não haviam desenvolvido drogas contra a depressão ou a ansiedade.

Mas e se... e se...

Eu não conseguia respirar. Não conseguiria fazer mais nada até saber a resposta. Que horas eram, afinal? Mais ou menos uma hora antes do toque de recolher? Eu tinha que descobrir. Parei ab-ruptamente, quase escorregando naquele chão liso.

— Christian!

O grupo na nossa frente estancou e olhou para mim e Adrian.

— Sim? — perguntou Christian.

— Preciso passar em um lugar, ou melhor, nós precisamos, já que não posso ir a lugar nenhum sem você. Precisamos ir à igreja.

Suas sobrancelhas levantaram, em surpresa.

— O quê? Você precisa se confessar ou algo do gênero?

— Não pergunte nada. Por favor. Só vai levar alguns minutos.

A preocupação surgiu no rosto de Lissa.

— Bom, nós todos podemos ir...

— Não, não vai demorar nada. — Eu não a queria lá. Não queria que ela ouvisse a resposta que eu sabia que ia ouvir. — Vá para o dormitório. Nós já vamos. Por favor, Christian?

Ele me analisou, sua expressão oscilando entre querer me sacanear e querer me ajudar. Ele não era assim tão idiota. A última emoção ganhou.

— Tudo bem, mas, se tentar me fazer rezar com você, eu vou embora.

Ele e eu fomos para a capela. Eu andava tão rápido que ele teve que apertar o passo para me acompanhar.

— Você não vai me contar o que está acontecendo, vai? — perguntou.

— Não. Mas agradeço a sua cooperação.

— Sempre feliz em ajudar — disse ele. Eu sabia que ele estava virando os olhos para cima, mas estava mais preocupada com o caminho.

Nós chegamos à capela, e a porta estava fechada, como era de esperar. Bati na porta, olhando ansiosamente para ver se alguma luz se acendia nas janelas. Não parecia que isso ia acontecer.

— Sabe, eu já arrombei essa porta antes — comentou Christian. — Se você precisa mesmo entrar...

— Não, é mais do que isso. Eu preciso ver o padre. Merda, ele não está aqui.

— Ele deve estar na cama.

— Merda — repeti, me sentindo só um pouco mal por xingar na porta da igreja. Se o padre estava na cama, devia estar no alojamento dos Moroi e, portanto, inacessível. — Preciso...

A porta se abriu, e o padre Andrew olhou para nós. Ele parecia surpreso, mas não chateado.

— Rose? Christian? Há algo de errado?

— Eu preciso perguntar uma coisa — respondi. — Não vou demorar.

Sua surpresa aumentou, mas ele abriu o caminho para que passássemos. Nós todos paramos e ficamos na entrada da igreja, fora do santuário principal.

— Estava me aprontando para ir para casa — nos contou o padre Andrew. — Fechando tudo.

— Você me disse que são Vladimir viveu uma longa vida e morreu velho. É verdade?

— Sim — disse ele, devagar. — Pelo que sei. Todos os livros que li, inclusive estes últimos, dizem isso.

— Mas e a Anna? — perguntei. Eu parecia prestes a ficar histérica. E eu estava, de fato.

— O que tem ela? — O que aconteceu com ela? Como ela morreu?

Todo esse tempo. Todo esse tempo, Lissa e eu nos preocupamos com a vida de Vlad. E nunca consideramos a de Anna.

— Ah, bom. — O padre Andrew suspirou. — Temo que o fim dela não tenha sido tão afortunado. Ela passou a vida toda protegendo-o, embora se diga que, quando ela envelheceu, começou a ficar instável também. E então...

— E então...? — perguntei. Christian olhava o padre e a mim, completamente perdido.

— E então, bom, alguns meses depois que são Vladimir morreu, ela se suicidou.

Eu apertei os olhos por meio segundo e os abri de novo. Era o que eu vinha temendo.

— Desculpe — disse o padre Andrew. — Sei como você acompanha a história deles de perto. Eu mesmo não sabia disso até ter lido recentemente. Tirar a própria vida é um pecado, claro... mas, bem, considerando como eles eram próximos, não é tão difícil de imaginar como ela deve ter se sentido quando ele se foi.

— E você disse também que ela estava ficando louca.

Ele consentiu com a cabeça e abriu os braços.

— É difícil dizer o que aquela pobre mulher pensava. Havia muitos fatores envolvidos. Por que esse assunto era tão urgente?

Eu balancei a cabeça.

— É uma longa história. Obrigada pela ajuda.

Christian e eu estávamos a meio caminho do dormitório quando ele finalmente perguntou:

— O que foi aquilo? Eu lembro quando vocês estavam pesquisando sobre esse assunto. Vladimir e Anna eram como você e Lissa, certo?

— Sim — disse eu, de cara fechada. — Escute, eu não quero me meter entre vocês, mas, por favor, não conte a Lissa sobre isso. Não até eu descobrir mais. Só diga a ela... não sei. Vou dizer a ela que entrei em pânico de repente, porque pensei que tivesse mais trabalho voluntário para fazer.

— Nós dois mentindo para ela, hein?

— Eu odeio isso, acredite. Mas é o melhor para ela agora.

Porque, se Lissa descobrisse que poderia acabar me enlouquecendo... sim, ela não enfrentaria isso muito bem. Iria querer largar a sua magia. Claro, era o que eu sempre desejei... mas, mesmo assim, eu me alegrava quando ela a usava. Eu poderia tirar isso dela? Poderia me sacrificar?

Não havia uma resposta fácil para isso, e eu não podia apressar nenhuma conclusão. Não até eu saber mais. Christian concordou em manter tudo em segredo, e, quando encontramos os outros, já era quase hora do toque de recolher. Só tínhamos mais uma meia hora juntos, e logo nos separaríamos para irmos dormir — inclusive eu, já que o acordo de meio expediente em participar da experiência de campo dizia que eu não podia trabalhar à noite. De qualquer forma, o risco de Strigoi costumava ser baixo, e meus instrutores estavam mais preocupados com a qualidade do meu sono.

Então, quando chegou a hora do toque de recolher, andei até o dormitório dos dampiros sozinha. E quando eu estava quase lá, ele apareceu de novo.

Mason.

Eu estanquei e olhei em volta, esperando que tivesse mais alguém ali para testemunhar aquilo e decidir de uma vez por todas se eu estava maluca ou não. Sua figura perolada estava lá, com as mãos nos bolsos do casaco, quase casualmente, o que tornava a experiência muito mais estranha.

— Bom — disse eu, me sentindo surpreendentemente calma, mesmo com a tristeza que se apossava de mim quando o via. — Estou feliz por encontrar você sozinho de novo. Não gostei muito dos extras no avião.

Ele me encarou, com o rosto inexpressivo e os olhos tristes. Fez com que eu me sentisse pior, com a culpa revirando meu estômago. Quebrei aquele silêncio.

— O que você é? — exclamei. — Você é real? Eu estou enlouquecendo?

Para a minha surpresa, ele balançou a cabeça.

— Sim o quê? Sim, você é real?

Ele fez que sim com a cabeça.

— Sim, eu sou louca?

Ele fez que não.

— Bom — disse eu, forçando uma piada naquela torrente de emoções —, isso é um alívio, mas, sinceramente, o que mais você diria se fosse uma alucinação?

Mason só me encarou. Eu olhei em volta de novo, esperando que alguém aparecesse.

— Por que você está aqui? Está irritado com a gente e quer se vingar?

Ele fez que não com a cabeça, e algo relaxou em mim. Até aquele momento, eu não tinha percebido o quanto estava preocupada com aquilo. A culpa e a tristeza estavam entranhadas em mim. Parecia inevitável que ele me culpasse — assim como Ryan tinha feito.

— Você está... está com dificuldades para encontrar a paz?

Mason balançou a cabeça afirmativamente e pareceu ficar mais triste. Eu me lembrei de seus momentos finais e segurei as lágrimas. Eu provavelmente teria dificuldade em encontrar paz também, se tivesse morrido antes de a minha vida começar de verdade.

— É mais do que isso, então? Alguma outra razão pela qual você continua me visitando?

Ele fez que sim com a cabeça.

— O quê? — Havia perguntas demais ultimamente. Eu precisava de respostas. — O que é? O que eu preciso fazer?

Mas qualquer resposta além de “sim” ou “não” parecia impossível. Ele abriu a boca, como se fosse dizer algo. Parecia estar tentando com muita força, como Adrian fez com a planta. Mas não saiu som algum.

— Desculpe — sussurrei. — Desculpe, eu não entendo... e... desculpe por todo o resto.

Mason me deu mais uma olhada saudosa e desapareceu.


Vinte

— Vamos falar sobre a sua mãe.

Eu suspirei.

— O que tem ela?

Era o meu primeiro dia de orientação educacional, e, até agora, eu não estava impressionada. A visão de Mason na noite anterior provavelmente era algo que eu devia ter falado logo de cara, mas eu não queria que a direção do colégio tivesse mais razões para achar que eu estava pirando — ainda que eu estivesse.

E sinceramente, eu não sabia ao certo se estava mesmo pirada. A análise que Adrian fizera da minha aura e a história de Anna certamente corroboravam a ideia de eu estar indo para o País dos Loucos. No entanto, não era assim que eu me sentia. As pessoas loucas sabiam que eram loucas? Adrian dissera que não. Loucura já era por si só um termo esquisito. Eu conhecia o suficiente de psicologia para saber que essa era uma classificação bem abrangente. Grande parte das doenças mentais era, na verdade, bem específica e tinha sintomas específicos — ansiedade, depressão, mudanças de humor etc. Eu não sabia onde eu me encaixava, se é que eu me encaixava.

— Como você se sente em relação a ela? — continuou a orientadora. — A sua mãe?

— Acho que ela é uma ótima guardiã, e uma mãe razoável.

A orientadora, que se chamava Deirdre, escreveu algo em seu caderninho. Ela era loira e magra, bem ao estilo Moroi, e usava um casaco de caxemira verde-azulado. Não parecia muito mais velha do que eu, mas os certificados em cima da mesa mostravam que ela tinha todos os tipos de graduação em psicoterapia. Seu escritório era no prédio administrativo, o mesmo lugar onde ficava a sala da diretora, e onde todas as decisões da Escola eram tomadas. Eu meio que esperava encontrar um divã para me deitar, como todos os terapeutas tinham na tevê, mas o melhor que havia ali era uma cadeira. Era confortável, pelo menos. As paredes estavam cobertas por fotos da natureza, coisas como borboletas e narcisos. Imagino que foram colocadas ali para pacificar o clima.

— Gostaria de elaborar um pouco o seu “razoável”? — perguntou Deirdre.

— É um avanço. Um mês atrás, eu teria dito “horrível”. O que isso tem a ver com Mason?

— Você quer falar sobre Mason?

Reparei que ela tinha o hábito de responder às minhas perguntas com mais perguntas.

— Não sei — admiti. — Acho que é por isso que estou aqui.

— Como você se sente em relação a ele? Em relação à sua morte?

— Triste. Como mais eu poderia me sentir?

— Com raiva?

Pensei nos Strigoi, em seus rostos maquiavélicos e em sua tranquilidade e casualidade ao matar.

— Sim, um pouco.

— Culpada?

— Sim, claro.

— Por quê, “claro”?

— Porque foi minha culpa ele estar lá. Eu o chateei... e ele precisava provar algo. Eu disse a ele onde estavam os Strigoi, algo que eu não devia ter feito. Se ele não soubesse disso, não teria feito o que fez. E ainda estaria vivo.

— Não acha que ele foi responsável pelos próprios atos? Que ele escolheu fazer tudo o que fez?

— Bom... sim. Acho que sim. Eu não o obriguei.

— Alguma outra razão para você se sentir culpada?

Eu desviei o olhar dela e me foquei na foto de uma joaninha.

— Ele gostava de mim... digo, de um jeito romântico. Nós meio que saímos, mas eu não consegui entrar no clima. E isso o machucou.

— Por que você não conseguia entrar no clima?

— Não sei. — A imagem de seu corpo, deitado no chão, apareceu de relance na minha mente, e eu a fiz desaparecer. Eu não podia chorar na frente de Deirdre. — Essa é a questão. Eu devia ter entrado. Ele era legal. Era engraçado. Nós nos dávamos muito bem... mas eu não me sentia à vontade. Até mesmo beijá-lo e coisas do gênero... depois de um tempo, eu simplesmente não consegui mais.

— Você acha que tem problemas com contato íntimo?

— Como ass... Ah. Não! Claro que não.

— Já fez sexo com alguém?

— Não. Está dizendo que eu já devia ter feito?

— Você acha que já devia?

Droga. Pensei que a tinha apanhado. Eu jurava que ela não ia ter uma pergunta para aquilo.

— Mason não era a pessoa certa.

— Existe uma outra pessoa? Alguém que você considere a pessoa certa?

Hesitei. Eu não fazia ideia de como aquilo tinha a ver com o fato de estar vendo fantasmas. De acordo com a papelada que eu assinara, tudo o que diríamos seria confidencial. Ela não podia contar a ninguém, a não ser que eu estivesse fazendo algo ilegal, ou que me prejudicasse. Eu não tinha certeza sobre em qual categoria um relacionamento com um cara mais velho se enquadraria.

— Sim... mas não posso dizer quem é.

— Há quanto tempo você o conhece?

— Há quase seis meses.

— Sente-se próxima dele?

— Sim, claro. Mas nós não estamos... — Como alguém descreveria isso? — Nós não estamos realmente envolvidos. Ele está meio... indisponível. — Ela poderia concluir o que quisesse a partir daí, como eu estar interessada em um cara comprometido.

— Ele foi a razão pela qual você não conseguiu se envolver com Mason?

— Sim.

— E ele a está impedindo de sair com outras pessoas?

— Bem... ele não está fazendo nada de propósito.

— Mas, enquanto você se importar com ele, não vai se interessar por mais ninguém?

— Isso. Mas não importa. Eu provavelmente nem devia estar de caso com ninguém, mesmo.

— Por que não?

— Porque não tenho tempo. Estou treinando para ser guardiã. Tenho que voltar toda a minha atenção para Lissa.

— E você acha que não pode fazer isso e se envolver com alguém ao mesmo tempo?

Balancei a cabeça.

— Não. Eu tenho que estar disposta a dar minha vida por ela. Não posso ser distraída por mais ninguém. Nós temos esse lema entre os guardiões: “Eles vêm primeiro.” Vocês. Moroi.

— Então você acha que terá sempre que colocar as necessidades de Lissa antes das suas?

— Claro. — Eu franzi o cenho. — O que mais eu faria? Vou ser a guardiã dela.

— E como isso faz você se sentir? Desistindo do que quer por ela?

— Ela é minha melhor amiga. E é a última da família dela.

— Não foi isso o que eu perguntei.

— É, mas... — Eu parei. — Ei, você não fez pergunta nenhuma agora.

— Você acha que eu sempre faço perguntas?

— Esqueça. Escute, eu amo a Lissa. Estou feliz de passar a vida protegendo ela. Fim de conversa. Além do mais, como você, uma Moroi, pode dizer para mim, uma dampira, que eu não deveria colocar os Moroi em primeiro lugar? Você sabe como o sistema funciona.

— Sei, sim — disse ela. — Mas não estou aqui para analisar o sistema. Eu estou aqui para ajudar você a melhorar.

— Parece que você não vai conseguir fazer uma coisa sem a outra.

Os lábios de Deirdre formaram um sorriso, e então seus olhos miraram o relógio.

— Estamos sem tempo hoje. Teremos que continuar essa discussão no próximo encontro.

Eu cruzei meus braços sobre o peito.

— Pensei que você fosse me dar algum conselho maravilhoso ou me dizer o que fazer. Mas você só fica me fazendo falar.

Ela riu, descontraída.

— Terapia não tem tanto a ver com a minha opinião, e sim com a sua.

— Então, para que fazer?

— Porque nós não sabemos sempre o que estamos pensando ou sentindo. Quando você tem um guia, é mais fácil de decifrar essas coisas. Você logo vai descobrir que já sabe o que fazer. Eu posso ajudá-la a se fazer perguntas e chegar a lugares que você não conseguiria sozinha.

— Bem, você é boa na parte das perguntas — notei, secamente.

— Se por um lado não possuo nenhum “conselho maravilhoso”, tenho umas coisas sobre as quais gostaria que você pensasse para quando nos encontrarmos de novo. — Ela olhou para o caderninho e bateu nele com um lápis, enquanto pensava. — Primeiro, gostaria que você pensasse mais sobre o que eu perguntei a respeito de Lissa, sobre como você realmente se sente dedicando sua vida a ela.

— Eu já disse.

— Eu sei. Apenas pense mais sobre isso. Se a sua resposta for a mesma, tudo bem. Então, gostaria que você considerasse uma outra coisa. Gostaria que pensasse se o motivo pelo qual está atraída por esse cara indisponível é porque ele é indisponível.

— Isso é loucura. Não faz sentido.

— É? Você acabou de me dizer que não pode se envolver com ninguém. Será que desejar alguém que você não pode ter não seria o seu subconsciente cooperando com essa ideia? Se tê-lo é impossível, então você nunca vai precisar confrontar seus sentimentos a respeito de Lissa, porque nunca poderá ter quem você quer. Nunca vai ter que escolher.

— Que confuso — resmunguei.

— É para ser. É por isso que eu estou aqui.

— E o que isso tem a ver com Mason?

— Tem a ver com você, Rose. Isso é que importa.

Saí da terapia sentindo como se meu cérebro tivesse derretido. Meio que senti também como se tivesse ido a julgamento. Se Deirdre estivesse lá na Corte para interrogar o Victor, eles provavelmente teriam terminado tudo na metade do tempo.

Também pensei que Deirdre havia ido na direção errada. É claro que eu não me ressentia por Lissa. E a ideia de ter me apaixonado por Dimitri porque eu não poderia tê-lo era ridícula. Eu nunca nem pensara que nosso relacionamento poderia ser um obstáculo até ele mencionar. Tinha me apaixonado por ele porque... bem, porque ele era o Dimitri. Porque ele era doce, forte, engraçado, feroz e lindo. Porque ele me entendia.

E, ainda assim, enquanto eu andava de volta para o prédio comunitário, me encontrei pensando no questionamento dela. Eu podia não ter me dado conta de que um relacionamento entre nós nos distrairia de nossas funções de guardiões, mas eu sabia desde o início que sua idade e seu trabalho eram enormes barreiras. Teria isso contribuído para a minha atração? Será que algum pedaço de mim já sabia que não poderíamos ter nada — me fazendo assim estar sempre dedicada a Lissa? Decidi que não. Isso era ridículo. Deirdre podia ser boa em fazer perguntas, mas ela sem dúvida estava fazendo as perguntas erradas.

— Rose!

Virei para a minha direita e avistei Adrian, vindo pela grama em minha direção, ignorando os efeitos da neve derretida em seus sapatos de grife.

— Você acabou de me chamar de “Rose”? — perguntei. — E não “dampirinha”? Você nunca fez isso antes.

— Eu faço o tempo todo — argumentou ele, me acompanhando.

Nós entramos no prédio. A escola estava em horário de aula, então os corredores estavam vazios.

— Onde está a sua cara-metade? — perguntou ele.

— Christian?

— Não; Lissa. Você pode saber onde ela está, certo?

— Sim, eu posso, porque este é o último tempo, e ela está na aula, como todos os outros. Você sempre esquece que, para o resto de nós, isso aqui é uma escola.

Ele parecia desapontado.

— Eu queria falar com ela sobre alguns casos que encontrei nos arquivos. Mais coisas sobre essa supercompulsão.

— Caramba, você andou fazendo algo produtivo? Estou impressionada.

— Olha só quem fala — disse ele. — Especialmente porque a sua existência inteira se resume a bater nos outros. Vocês, dampiros, não são civilizados, mas, ainda assim, é por isso que amamos vocês.

— Na verdade — refleti —, nós não somos os únicos batendo em alguém por aqui, ultimamente. — Eu tinha quase me esquecido do clube da luta da realeza. Havia coisas demais com que me preocupar. Era como tentar pegar a água com as mãos. Era um tiro no escuro, mas eu tinha que perguntar: — A palavra Mâna significa algo para você?

Ele encostou na parede e procurou os cigarros.

— É lógico.

— Você está dentro da escola — avisei a ele.

— Do que... Ah, sim. — Com um suspiro, ele colocou o maço de volta no casaco. — Metade dos alunos daqui não aprende romeno? Significa “mão”.

— Eu estudo inglês. — Mão. Aquilo não fazia o menor sentido.

— Por que o interesse na tradução?

— Não sei. Acho que entendi errado. Eu achava que tinha algo a ver com o que está acontecendo aqui com a realeza.

A compreensão brilhou em seus olhos.

— Ó, Deus. Não acredito. Estão fazendo isso aqui também?

— Fazendo o quê?

— A Mâna. A Mão. É uma sociedade secreta ridícula que costuma aparecer nas escolas. Nós tivemos um caso assim lá em Alder. Em suma, é um monte de membros reais se encontrando e tendo reuniões secretas para falar como eles são melhores do que todos os outros.

— Então é isso — disse eu. As peças se encaixaram. — É o grupinho do Jesse e do Ralf, no qual eles queriam que Christian entrasse. É isso que essa Mâna é.

— Christian? — Adrian riu. — Devem estar desesperados, e não digo isso como afronta ao Christian. Ele só não tem nada a ver com quem participa desse tipo de coisa.

— Pois é, ele recusou o convite de maneira bem fria. Qual seria a ideia por trás dessa sociedade secreta?

Ele deu de ombros.

— A mesma que a de qualquer outra. É uma maneira de fazer as pessoas se sentirem bem consigo mesmas. Todos gostam de se sentir especiais. Fazer parte de um grupo de elite é uma maneira de obter isso.

— E você não fazia parte disso?

— Eu não precisava. Já sei que sou especial.

— Jesse e Ralf fizeram parecer como se a realeza tivesse que se unir, com todas as controvérsias que estão por aí, sobre lutar, guardiões e tudo o mais. Eles falavam como se pudessem fazer algo a respeito.

— Não nessa idade — disse Adrian. — Basicamente, tudo o que eles podem fazer é falar. Quando envelhecem, os membros da Mâna às vezes se reunem para fazer acordos e continuam se encontrando às escondidas.

— Então é isso? Eles só ficam andando juntos e falando pelo prazer de ouvir a própria voz?

Adrian ficou contemplativo.

— Bom, sim, é claro que eles fazem isso um bocado. Mas o que eu quis dizer foi que, quando essas sociedades locais se formam, elas têm algo específico para fazer secretamente. Então, cada grupo meio que tem a sua particularidade, e este aqui da escola provavelmente possui algum plano, esquema ou qualquer coisa assim. — Um plano ou esquema. Eu não gostava nada disso. Especialmente com Jesse e Ralf no meio.

— Você sabe bastante para alguém de fora.

— Meu pai fazia parte. Ele nunca fala muito no assunto, por causa do voto de silêncio, mas eu pescava algumas coisas, e então ouvi mais a respeito na minha época de escola.

Me apoiei na parede. O relógio do outro lado do corredor me dizia que as aulas estavam quase acabando.

— Você ouviu algo sobre estarem espancando as pessoas? Eu sei de pelo menos quatro Moroi que foram atacados. E eles não querem falar sobre isso.

— Quem? São de fora da realeza?

— Não, outros membros da realeza.

— Isso não faz sentido algum. A ideia por trás disso tudo era que a elite real se unisse para se proteger das mudanças. A não ser que estejam atrás da parcela da realeza que se opõe às suas ideias ou que apoie aqueles que não pertencem à realeza.

— Talvez. Mas um deles era o irmão de Jesse, e o Jesse parece ser um dos membros fundadores. Parece que a decisão caberia a ele. E eles não fizeram nada depois que o Christian recusou a oferta.

Adrian abriu os braços.

— Nem eu sei tudo, e, como eu disse, esse grupo provavelmente tem as próprias motivações. — Suspirei, frustrada, e ele me olhou de forma curiosa. — Por que você se importa tanto?

— Porque isso não está certo. As pessoas que eu vi estavam mal. Se algum grupo resolveu sair por aí fazendo vítimas, ele precisa ser detido.

Adrian riu e brincou com uma mecha do meu cabelo.

— Você não pode salvar a todos, mas Deus sabe que você tenta.

— Só quero fazer o que é certo. — Lembrei o comentário de Dimitri sobre os romances de faroeste e não pude evitar um pequeno sorriso. — Preciso levar justiça a quem precisa.

— O mais louco de tudo, dampirinha, é que você fala de coração. Eu vejo pela sua aura.

— O quê? Está dizendo que ela não está mais negra?

— Não, continua escura, definitivamente. Mas está com uma luzinha nela, raios de ouro. Como a luz do sol.

— Talvez a sua teoria sobre eu ter pegado essa escuridão da Lissa esteja errada, então. — Vinha tentando não pensar sobre a noite anterior, quando fiquei sabendo sobre Anna. Mencionar isso agora mexeu com todos aqueles medos novamente. Insanidade. Suicídio.

— Depende — disse ele. — Quando foi a última vez que você a viu?

Eu o soquei de leve.

— Você não tem a menor ideia, não é? Está improvisando enquanto tudo vai acontecendo.

Ele me pegou pelo pulso e me puxou para perto.

— Não é assim que você age normalmente?

Eu ri, meio a contragosto. Assim tão perto dele eu via como o verde em seus olhos era adorável. Na verdade, apesar de zombar dele o tempo todo, eu não podia negar que o restante dele era muito bonito também. Seus dedos estavam quentes no meu pulso, e meio que havia algo sexy na forma como ele o segurava. Lembrando as palavras de Deirdre, tentei avaliar como aquilo tudo me fazia sentir. Apesar dos avisos da rainha, Adrian era um cara tecnicamente disponível. Eu me sentia atraída por ele? Ficava empolgada com aquilo tudo?

A resposta: não. Não da mesma forma que ficava com Dimitri. Adrian era sexy do jeito dele, mas não me deixava louca como o Dimitri fazia. Seria porque Adrian estava disponível? Teria Deirdre razão em dizer que eu procurava relacionamentos impossíveis?

— Sabe — disse ele, interrompendo os meus pensamentos —, sob qualquer outra circunstância isso seria excitante. Em vez disso, você está me olhando como se eu fosse algum tipo de projeto de feira de ciências.

Era exatamente assim que eu estava tratando aquilo, na verdade.

— Por que você nunca usou compulsão em mim? — perguntei. — E eu não falo só de me fazer parar de entrar em brigas.

— Porque metade da sua graça é que você é tão difícil.

Uma nova ideia me veio à cabeça.

— Faça isso.

— Fazer o quê?

— Use a compulsão em mim.

— O quê? — Foi um daqueles raros momentos em que o Adrian ficava chocado.

— Use a compulsão para me fazer querer beijar você... mas vai ter que prometer que não vai realmente me beijar.

— Isso é bem estranho... e quando eu digo que algo é estranho, você sabe que é sério.

— Por favor.

Ele suspirou e então focou os olhos em mim. Foi como se eu estivesse me afogando, me afogando num mar de verde. Não havia mais nada no mundo, a não ser aqueles olhos.

— Eu quero beijar você, Rose — disse ele, suavemente. — E quero que você também me queira.

Todos os aspectos do seu corpo — seus lábios, suas mãos, seu cheiro — subitamente me dominaram. Eu me senti ardendo. Eu queria beijá-lo com cada fibra do meu ser. Não havia nada na vida que eu quisesse mais do que aquele beijo. Eu inclinei meu rosto para cima na direção do dele, e ele se inclinou para baixo. Eu podia praticamente sentir o gosto de seus lábios.

— Você quer? — perguntou ele, com uma voz ainda de veludo. — Quer me beijar?

Se eu queria? Tudo ao meu redor era um borrão. Só os lábios dele estavam com foco.

— Sim — respondi. Seu rosto se moveu mais para perto, sua boca a apenas um sopro da minha. Estávamos tão, tão perto, e então...

Ele parou.

— Terminamos — disse ele, dando um passo para trás.

Eu desencantei instantaneamente. A névoa de sonho tinha dissipado, assim como o desejo em meu corpo. Mas eu descobri algo. Sob compulsão, eu definitivamente desejava que ele me beijasse. No entanto, mesmo sob compulsão, não fora aquele sentimento elétrico e arrebatador que eu tinha com Dimitri, aquele sentimento de que éramos praticamente a mesma pessoa e que estávamos ligados por forças maiores que nós dois. Com Adrian, fora algo simplesmente mecânico.

Deirdre estava errada. Se minha atração por Dimitri fosse apenas uma reação do inconsciente, ela seria tão superficial quanto a atração forçada por Adrian. No entanto elas eram totalmente diferentes. Com o Dimitri era amor — não apenas uma peça que a minha mente estava me pregando.

— Hum — comentei.

— Hum? — perguntou Adrian, com um ar divertido nos olhos.

— Hum.

O terceiro “Hum” não veio de nenhum de nós dois. Olhei para o outro lado do corredor e vi Christian nos observando. Eu me afastei de Adrian, no mesmo momento em que o sinal tocou. O som dos estudantes saindo das salas ressoava pelo corredor.

— Agora eu posso ver a Lissa — disse Adrian, feliz.

— Rose, você me acompanha até os fornecedores? — perguntou Christian de forma neutra, com uma expressão indecifrável.

— Não sou sua guardiã hoje.

— Eu sei, mas sinto falta da sua agradável companhia.

Me despedi de Adrian e atravessei o refeitório com Christian.

— O que foi? — perguntei.

— Me diga você — disse ele. — Você é que estava prestes a dar uns amassos no Adrian.

— Era uma experiência — disse eu. — Parte da minha terapia.

— Que diabo de terapia é essa que você está fazendo?

Chegamos à sala dos fornecedores. De alguma forma, mesmo ele tendo saído cedo da aula, ainda havia algumas pessoas na fila à nossa frente.

— Por que você se importa? — perguntei a ele. — Você devia estar feliz. Isso significa que ele não está dando em cima da Lissa.

— Ele poderia estar dando em cima de vocês duas.

— O que você pensa, agora? Que é meu irmão mais velho?

— Estou irritado — disse ele. — É nisso que eu penso agora.

Olhei para além dele e vi Jesse e Ralf entrarem.

— Bom, guarde isso para si mesmo, ou nossos queridos amigos vão escutar.

Jesse, no entanto, estava ocupado demais para ouvir, porque estava discutindo com a coordenadora dos fornecedores.

— Não tenho tempo para esperar — disse ele. — Tenho que estar em outro lugar.

Ela apontou para nós e para os outros na fila.

— Aquelas pessoas estão na sua frente.

Jesse a encarou e sorriu.

— Você pode abrir uma exceção dessa vez.

— É, ele está com muita pressa — acrescentou Ralf, com uma voz que nunca o vi usar antes. Era suave e menos irritante do que de costume. — Escreva o nome dele no topo da lista e pronto.

A coordenadora pareceu prestes a criticá-los, mas então um olhar engraçado e distraído surgiu em seu rosto. Olhou rapidamente para sua prancheta e escreveu algo. Alguns segundos depois de ela desviar o olhar, sua cabeça se ergueu novamente, olhos apertados mais uma vez. Ela franziu o cenho.

— O que eu estava fazendo?

— A senhora estava me incluindo na lista — disse Jesse. Ele apontou para a lista. — Viu?

Ela olhou para baixo, surpresa.

— Por que o seu nome é o primeiro? Você não acabou de chegar aqui?

— Estivemos aqui mais cedo e nos inscrevemos. Você disse que não haveria problema.

Ela olhou para baixo mais uma vez, claramente confusa. Não lembrava de eles terem vindo mais cedo — porque não tinham vindo —, mas, aparentemente, ela não conseguia entender por que o nome de Jesse estava no topo agora. Um pouco depois, ela deu de ombros e deve ter decidido que não valia a pena pensar demais.

— Fique aí com os outros, e eu o chamarei em seguida.

Assim que Jesse e Ralf se aproximaram de nós, eu os encarei.

— Você acabou de usar compulsão nela — sibilei.

Jesse pareceu em pânico por uma fração de segundo; então sua típica presunção assumiu o controle.

— Que seja. Eu apenas a convenci, só isso. Qual o problema? Vai tentar me dedurar ou algo parecido?

— Sem comentários — desdenhou Christian. — Essa foi a pior compulsão que eu já vi.

— Como se você já tivesse visto compulsão — disse Ralf.

— E muita — disse Christian. — De pessoas mais bonitas que você. Claro, talvez por isso a sua não tenha sido tão boa.

Ralf pareceu bastante ofendido por não ser considerado bonito, mas Jesse apenas o cutucou e começou a se virar.

— Esqueça. Ele teve sua chance.

— Sua chance de... — Lembrei como o Brandon havia usado uma compulsão fraca para me convencer de que seus hematomas não eram nada. Jill dissera que Brett Ozera tinha de fato convencido a professora disso. A professora encerrou o assunto, para a grande surpresa de Jill. Brett deve ter usado compulsão. Lâmpadas se acendiam em diferentes partes do meu cérebro. As conexões estavam todas à minha volta. O problema é que eu ainda não conseguia desembaraçar os fios direito. — É disso que se trata, não é? Sua Mâna estúpida e essa necessidade de espancar os outros. Tem a ver com compulsão...

Não entendi como tudo se encaixou, mas o olhar surpreso no rosto de Jesse me sinalizou que eu estava no caminho certo, apesar de ele ter dito:

— Você não sabe do que está falando.

Eu insisti, esperando que algo o provocasse e o deixasse irritado, fazendo-o dizer algo que não devia.

— Qual é o sentido disso? Ficar usando esses truques baratos dá alguma onda de poder em vocês? É isso o que eles são, sabiam? Vocês realmente não sabem nem o básico de compulsão. Já vi compulsões que os fariam plantar bananeira e se jogar de uma janela.

— Nós estamos aprendendo mais do que você pode imaginar — disse Jesse. — E, quando eu descobrir quem disse...

Ele não teve a chance de terminar sua ameaça, porque naquele momento foi chamado para ir até o fornecedor. Ele e Ralf se retiraram, e Christian imediatamente me encarou.

— O que está acontecendo? O que é Mâna?

Eu rapidamente recapitulei a explicação de Adrian.

— Era a isso que eles queriam que você se juntasse. Devem estar praticando compulsão em segredo. Adrian disse que esses grupos são sempre de gente da realeza que planeja mudar e controlar as coisas em tempos difíceis. Eles devem achar que compulsão é a resposta. Foi o que quiseram dizer quando lhe fizeram aquela proposta e falaram que tinham maneiras de ajudá-lo a conseguir o que queria. Se eles soubessem como a sua compulsão é ruim, eles provavelmente nem teriam feito o convite.

Ele me olhou feio, descontente por eu tê-lo lembrado da única vez em que ele tentou — e não conseguiu — usar compulsão, na estação de esqui.

— Então, onde entra a parte de espancar as pessoas?

— É esse o mistério — admiti. Christian foi chamado para se alimentar naquele instante, e deixei minhas teorias de lado até que pudesse reunir mais informações e agir. Percebi para qual fornecedor estavam nos levando. — É a Alice de novo? Como você sempre fica com ela? É você que a solicita?

— Não, mas acho que algumas pessoas pedem especificamente para não ficar com ela.

Alice estava feliz em nos ver, como sempre.

— Rose. Você ainda está nos protegendo?

— Se me deixarem... — disse a ela.

— Não seja tão precipitada — alertou ela. — Conserve sua força. Se ansiarem demais para lutar contra os mortos-vivos, podem acabar se juntando a eles. Então vocês nunca nos veriam de novo, e ficaríamos muito tristes.

— Sim — disse Christian. — Eu choraria no meu travesseiro toda noite.

Resisti ao ímpeto de chutá-lo.

— Bem, eu com certeza não poderia visitá-la se eu fosse uma Strigoi, mas torço para um dia ter uma morte normal. Assim, eu poderia aparecer como um fantasma.

Que triste, pensei, estar agora fazendo piadas com aquilo que mais vinha me atormentando ultimamente. Alice também não achou graça nenhuma. Ela balançou a cabeça.

— Não, não poderia. Os escudos a impediriam.

— Os escudos afastam somente os Strigoi — lembrei a ela, delicadamente.

Um olhar desafiador substituiu a distração em seu rosto.

— Os escudos impedem qualquer coisa que não esteja viva. Morta ou morta-viva.

— Agora você conseguiu — disse Christian.

— Os escudos não afastam os fantasmas — afirmei. — Eu os vi.

Considerando a instabilidade de Alice, não vi problema em discutir a minha própria com ela. Na verdade, me trazia um certo alívio falar sobre isso com alguém que não iria me julgar. De fato, ela encarava aquilo como uma conversa perfeitamente natural.

— Se você viu fantasmas, então não estamos mais seguros.

— Eu lhe disse da última vez: a segurança é muito boa.

— Talvez alguém tenha cometido um erro — argumentou ela, soando bastante coerente. — Talvez alguém tenha deixado algo passar. Os escudos são feitos de magia. A magia é viva. Fantasmas não podem cruzá-los pela mesma razão que os Strigoi não podem. Eles não estão vivos. Se você viu um fantasma, os escudos falharam. — Ela fez uma pausa. — Ou você está louca.

Christian deu uma gargalhada.

— Muito bom, Rose. Direto da fonte. — Eu lhe lancei um longo e raivoso olhar. Ele sorriu para Alice. — Em defesa de Rose, no entanto, acho que ela está certa sobre os escudos. A escola os verifica o tempo todo. O único lugar mais bem-protegido do que aqui é a Corte Real, e ambos estão transbordando de guardiões. Deixe de ser tão paranoica.

Ele começou a se alimentar, e desviei o olhar. Eu devia saber que não podia dar ouvidos à Alice. Ela nem era uma fonte de informação confiável, ainda que estivesse por aqui há um tempo. Mas, mesmo assim... sua lógica esquisita fazia sentido. Se os escudos mantinham os Strigoi do lado de fora, por que não faria o mesmo com os fantasmas? É verdade que os Strigoi eram mortos que voltaram para andar pela terra, mas o raciocínio de Alice era: todos eles estavam mortos. Ainda assim, o que Christian e eu dizíamos também fazia sentido: os escudos ao redor da escola eram firmes. Precisava-se de muita energia para construir um. Nem toda casa Moroi podia dispor de um, mas locais como escolas e a Corte Real mantinham os seus impecáveis.

A Corte Real...

Nenhum encontro sobrenatural se deu enquanto estive por lá, e ainda assim havia sido muito desgastante. Se minhas visões eram causadas por estresse, a Corte e os encontros com o Victor e a rainha não seriam ótimas oportunidades para elas ocorrerem? O fato de eu não ter visto nada por lá ia contra a teoria do estresse pós-traumático. Eu não vi fantasmas até chegarmos ao aeroporto de Martinville.

O qual não dispunha de escudos.

Eu quase engasguei. A Corte tinha escudos resistentes. Eu não tinha visto fantasmas. O aeroporto, que fazia parte do mundo dos humanos, não possuía guardas. Eu fora bombardeada por fantasmas lá. Também vi flashes deles no avião — que não tinha escudo enquanto estávamos no ar.

Olhei para Alice e Christian. Já estavam terminando. Será que ela estava certa? Os escudos deveriam manter os fantasmas do lado de fora? Se sim, o que estava acontecendo com a São Vladimir? Se os escudos estavam intactos, eu não devia estar vendo nada — assim como aconteceu na Corte. Se os escudos estivessem quebrados, eu devia estar sendo bombardeada — assim como aconteceu no aeroporto. Em vez disso, a Escola parecia encontrar-se num meio-termo. Era somente às vezes que eu tinha visões. Não fazia sentido.

A única certeza que eu tinha era a de que, se havia algo de errado com os escudos da escola, eu não era a única em perigo.


Vinte e um

Eu mal podia esperar para o meu dia acabar. Eu havia prometido à Lissa que ficaria com ela e os outros depois da aula. Era para ter sido divertido, mas o tempo se arrastou. Eu estava inquieta demais. Quando deram o toque de recolher, eu me separei deles e fui para o meu dormitório. Assim que cheguei, perguntei à mulher na recepção se ela podia ligar para o quarto do Dimitri — cujo acesso era proibido aos estudantes —, porque eu tinha uma questão “urgente” para tratar com ele. Ela acabara de pegar o telefone quando Celeste passou por nós.

— Ele não está lá — informou ela. Celeste trazia um hematoma enorme num dos lados do rosto. Algum aprendiz a tinha vencido, algum aprendiz que não era eu. — Acho que ele foi para a capela. Você terá que vê-lo amanhã, não vai conseguir ir até lá e voltar antes do toque de recolher.

Concordei suavemente com a cabeça e fingi que estava indo para a ala dos estudantes. Em vez disso, assim que ela sumiu de vista, eu saí de novo e corri para a capela. Ela estava certa. Eu não ia conseguir ir e voltar antes do toque de recolher, mas eu esperava que Dimitri me ajudasse a voltar sem problemas.

As portas da capela estavam fechadas quando eu cheguei. Entrei e vi todas as velas acesas, fazendo os ornamentos dourados brilharem. O padre ainda devia estar trabalhando. Mas, quando eu entrei, ele não estava mais lá. Dimitri, por sua vez, estava.

Estava sentado no último banco. Não estava rezando nem ajoelhado, nem nada do gênero. Só estava sentado, ali, parecendo bem relaxado. Embora ele não fosse um membro ativo da igreja, ele uma vez me contou que encontrava paz lá dentro. Isso lhe dava uma chance de pensar sobre a vida e sobre o que ele havia conseguido.

Eu sempre o achei bonito, mas, ali, alguma coisa nele quase me fez congelar. Talvez fosse culpa do cenário, toda aquela madeira polida e as imagens dos santos coloridos. Talvez fosse por causa do jeito como a luz das velas brilhava em seu cabelo escuro. Talvez fosse só porque ele parecia distraído, quase vulnerável. Ele estava sempre alerta, sempre no limite... mas mesmo ele precisava de um momento ou outro de descanso. Ele parecia brilhar nos meus olhos, meio como a Lissa sempre brilhou. Sua tensão habitual retornou quando ele me ouviu entrar.

— Rose, está tudo bem? — Ele começou a levantar, e eu gesticulei para que ele sentasse de novo, porque eu já estava sentando ao seu lado. O cheiro fraco do incenso estava espalhado pelo ar.

— Sim... bom, está tudo mais ou menos. Nenhuma recaída, se é o que preocupa você. Eu só tinha uma pergunta. Ou, melhor, uma teoria.

Expliquei a conversa com Alice e o que eu tinha deduzido a partir dela. Ele ouviu, pacientemente, com uma expressão pensativa.

— Eu conheço a Alice. Não sei ao certo se ela pode ter alguma credibilidade — disse ele, quando eu terminei. Era quase igual ao que ele dissera sobre Victor.

— Eu sei. Pensei a mesma coisa. Mas muito disso faz sentido.

— Não tanto. Como você mesma disse, por que suas visões são tão inconstantes aqui? Isso não contribui para a teoria dos escudos. Você devia estar se sentindo como no avião.

— E se os escudos enfraqueceram? — perguntei.

Ele balançou a cabeça.

— Isso é impossível. Os escudos demoram meses para se desgastarem. São trocados aqui de duas em duas semanas.

— Com tanta frequência assim? — perguntei, sem conseguir esconder meu desapontamento. Eu sabia que a manutenção era frequente, mas não tão frequente. A teoria de Alice quase oferecera uma explicação satisfatória, uma que não envolvia a minha possível insanidade. — Talvez estejam sendo quebrados por estacas — sugeri. — Com a ajuda de humanos, ou algo assim, como nós vimos antes.

— Os guardiões percorrem o terreno várias vezes por dia. Se houvesse estacas nos limites do campus, nós saberíamos.

Eu suspirei.

Dimitri colocou sua mão sobre a minha, e eu recuei. Mas ele não a retirou e, como fazia tão frequentemente, adivinhou o que eu pensava.

— Você achou que, se ela estivesse certa, isso explicaria tudo.

Consenti.

— Eu não quero ser louca.

— Você não é louca.

— Mas você não acredita que eu esteja realmente vendo fantasmas.

Ele desviou o olhar, seus olhos fixos nas chamas das velas no altar.

— Não sei. Ainda estou tentando manter a mente aberta. E estar estressada não é a mesma coisa que ser maluca.

— Eu sei — admiti, ainda muito consciente de como sua mão era quente. Eu não devia ter esses pensamentos numa igreja. — Mas... bom... tem mais uma coisa...

Contei a ele sobre a história de a Anna possivelmente ter “sugado” a loucura de Vladimir. Expliquei também sobre a observação de Adrian a respeito das nossas auras. Ele olhou de volta com uma expressão especulativa.

— Você contou a mais alguém sobre isso? À Lissa? À sua orientadora?

— Não — disse eu, baixinho, sem conseguir encará-lo. — Fiquei com medo do que pensariam.

Ele apertou minha mão.

— Você precisa parar com isso. Você não tem medo de se atirar contra o perigo, mas tem pavor de deixar qualquer um ajudar.

— Eu... Eu não sei — respondi, olhando para ele. — Talvez eu seja assim mesmo.

— Então, por que você me contou?

Eu sorri.

— Porque você me disse que eu devia confiar nas pessoas. Eu confio em você.

— E não confia na Lissa?

Meu sorriso vacilou.

— Eu confio nela, com certeza. Mas não quero lhe contar nada que possa preocupá-la. Acho que é uma forma de protegê-la, como faço contra os Strigoi.

— Ela é mais forte do que você pensa — disse ele. — E ela abriria mão de algumas coisas para ajudá-la.

— O quê, então? Você quer que eu me abra com ela, e não com você?

— Não, eu quero que você se abra com nós dois. Acredito que lhe faria bem. O que aconteceu com Anna preocupa você?

— Não. — Desviei o olhar mais uma vez. — Isso me assusta.

Acho que a confissão chocou a nós dois. Eu certamente não esperava dizer aquilo. Nós congelamos por um momento, mas então Dimitri me envolveu com os braços e me puxou para o seu peito. Um soluço apareceu quando eu descansei o rosto em seu casaco de couro e ouvi a forte batida de seu coração.

— Não quero ser assim — disse a ele. — Quero ser como as outras pessoas. Quero que minha mente seja... normal. Quer dizer, normal dentro dos meus padrões. Não quero perder o controle. Não quero ser como a Anna e me matar. Eu amo viver. Eu morreria para salvar os meus amigos, mas espero que isso não tenha que acontecer. Espero que todos tenhamos uma vida longa e feliz. Como a Lissa disse, uma grande família feliz. Há tantas coisas que eu quero fazer, mas tenho tanto medo... medo de ser como ela... medo de não conseguir me segurar...

Ele me segurou com ainda mais força.

— Isso não vai acontecer — murmurou ele. — Você é selvagem e impulsiva, mas, no final das contas, é uma das pessoas mais fortes que eu conheço. Mesmo que você seja como a Anna, o que eu duvido, vocês duas não vão ter o mesmo destino.

Era engraçado. Eu sempre dizia a Lissa a mesma coisa, sobre ela e Vladimir. Ela nunca acreditava de fato, e agora eu a entendia. Dar conselhos era bem mais fácil do que segui-los.

— Você também se esquece do seguinte — continuou ele, passando a mão no meu cabelo —: se você está em perigo por causa da magia de Lissa, pelo menos você conhece o motivo. Ela pode parar de usar a magia, e isso resolverá o problema.

Eu me afastei um pouco dele, para poder encará-lo. Mais do que depressa eu passei a mão no rosto, para não mostrar nenhuma lágrima.

— Mas será que eu posso pedir isso dela? — perguntei. — Sei como ela se sente quando usa a magia. Não sei se posso lhe tirar isso.

Ele me olhou com surpresa.

— Mesmo que custe a sua própria vida?

— Vladimir realizou grandes feitos... Ela também pode. Além disso, eles sempre vêm primeiro, certo?

— Nem sempre.

Eu o encarei. A ideia de que eles sempre vêm primeiro me era inculcada desde que eu era criança. Era no que todos os guardiões acreditavam. Só os dampiros que fugiam de suas obrigações negavam aquilo. O que Dimitri tinha acabado de dizer era quase uma traição.

— Às vezes, Rose, nós temos que saber nos colocar em primeiro lugar.

Eu balancei a cabeça.

— Não com Lissa.

Parecia que eu estava com Deirdre ou Ambrose de novo. Por que todo mundo resolveu questionar as verdades absolutas que carreguei a vida inteira?

— Ela é sua amiga. Ela vai entender. — Para provar o que dizia, ele buscou o chotki debaixo da minha manga, massageando meu punho com as pontas dos dedos.

— É mais do que isso — insisti, apontando para a cruz. — Se existe alguma prova, é esta. Eu estou presa a ela, para proteger os Dragomir a todo custo.

— Eu sei, mas... — Ele não terminou, e, sinceramente, o que ele poderia ter dito? Isso estava se tornando uma discussão repetitiva e sem solução.

— Preciso voltar — disse eu, ab-ruptamente. — Já passou da hora do toque de recolher.

Um sorriso irônico surgiu no rosto de Dimitri.

— E você precisa que eu volte com você, ou vai arranjar problemas.

— Bom, sim, eu estava esperando que...

Ouvimos um ruído perto da porta do santuário, e o padre Andrew entrou, o que realmente pôs um fim à nossa discussão. Ele ia fechar a capela. Dimitri lhe agradeceu, e voltamos para o dormitório dos dampiros. Ninguém falou durante o caminho, mas era um silêncio confortável. Era estranho, mas desde aquela “explosão” dele na clínica eu sentia algo se intensificando entre nós, por mais impossível que parecesse.

Dimitri conseguiu que eu passasse despercebida pela mulher na recepção, e, quando eu estava prestes a ir para a minha ala, um guardião chamado Yuri apareceu. Dimitri o chamou.

— Você tem trabalhado com a segurança, certo? Quando foi a última vez que eles ergueram novos escudos?

Yuri pensou um pouco.

— Há alguns dias. Por quê?

Dimitri me lançou um olhar significativo.

— Curiosidade, só isso.

Balancei a cabeça para Dimitri para mostrar que eu já tinha entendido, e então fui para a cama.


Depois disso, a semana seguinte e a outra foram bem monótonas. Eu vigiava Christian três vezes por semana, tinha as minhas sessões de orientação e treinava com Dimitri. Nessas horas, eu via como ele estava preocupado. Ele sempre me perguntava como eu estava, mas não me forçava a falar nada. Na maioria das vezes, era só treino físico, o que eu preferia, porque não exigia que eu pensasse muito.

O melhor de tudo é que não vi Mason durante esse tempo.

Também não testemunhei nenhum ataque — nem da Mâna, nem dos guardiões.

Estávamos agoniados com aquela experiência de campo, e todos os outros aprendizes da minha turma estavam entrando em brigas com regularidade. Elas ficavam mais intensas e difíceis, e todos tinham que ficar atentos. Eddie precisava defender Lissa quase diariamente de algum guardião se passando por Strigoi — mas isso nunca acontecia quando eu estava por perto. Na verdade, absolutamente nenhum ataque acontecia quando eu estava por perto. Depois de algum tempo, a ficha começou a cair. Eles estavam me poupando. Receavam que eu não fosse aguentar.

— Era mais fácil terem me tirado logo de uma vez da experiência de campo — resmunguei para Christian, certa tarde. — Eu não tenho feito nada.

— Sim, mas, se você for aprovada mesmo assim, por que se preocupar? Quer dizer, você quer mesmo brigar todo dia? — Ele então virou os olhos. — Esqueça. É claro que você quer.

— Você não entende — disse eu a ele. — Não se trata de passar da forma mais fácil. Eu quero mostrar o que posso fazer, para eles e para mim mesma. E praticar nunca é demais. Quer dizer, é a vida de Lissa que está em jogo. — E provavelmente o meu futuro como guardiã dela também. Eu já temia que eles fossem me substituir, e isso foi antes de eles pensarem que eu estava louca.

Estava quase na hora do toque de recolher, e eu o estava levando ao seu quarto. Ele balançou a cabeça.

— Rose, não sei se você está louca ou não, mas estou começando a achar que você pode ser a melhor guardiã daqui, ou futura guardiã.

— Você acabou de me elogiar de forma séria?

Ele virou as costas e entrou no seu dormitório.

— Boa noite.

Minha vida ainda estava um caos, mas eu não consegui evitar um sorrisinho enquanto voltava para o meu quarto. A caminhada sempre me deixava nervosa, agora que eu vivia perpetuamente sob a ameaça de me deparar com Mason. No entanto, havia ali outras pessoas correndo por causa do toque de recolher, e ele só aparecia quando eu estava sozinha, ou porque preferia a privacidade, ou talvez porque era fruto da minha imaginação.

Falar sobre a Lissa me lembrou que eu mal a vira hoje. Confortável e contente, deixei a minha mente escorregar para a dela enquanto meu corpo seguia seu caminho.

Ela estava na biblioteca, tentando terminar umas anotações o mais rápido que podia. Eddie estava perto dela, olhando ao redor.

— Melhor se apressar — recomendou ele, brincando. — Ela está dando outra volta.

— Quase terminando — disse Lissa, rabiscando mais umas palavras.

Ela fechou o livro exatamente quando a bibliotecária se aproximou e falou que eles tinham de sair. Com um suspiro de alívio, Lissa jogou os papéis na mochila e seguiu Eddie. Ele apanhou a mochila e a carregou nos ombros enquanto se retiravam.

— Você não precisa fazer isso — disse ela. — Não é meu criado.

— Eu devolvo assim que você ajeitar isso. — Ele apontou para o casaco dela, que estava enrolado. Ela o tinha colocado de qualquer maneira ao saírem apressados da biblioteca. Ela riu de sua aparência desarrumada e ajeitou a manga.

— Obrigada — disse ela, quando Eddie devolveu a mochila.

— Sem problemas.

Lissa gostava de Eddie — não de um jeito romântico, é claro. Ela só o achava legal. Ele agia assim o tempo todo, ajudando-a, e ainda cumprindo as suas funções de maneira excelente. As motivações dele também não eram românticas. Ele era só um desses raros sujeitos que podiam ser cavalheiros e feras ao mesmo tempo. Lissa tinha alguns planos para ele.

— Você já pensou em chamar a Rose para sair?

— O quê? — perguntou ele.

“O quê?”, pensei.

— Vocês têm tanto em comum... — continuou ela, tentando parecer casual. Por dentro, ela estava empolgada. Ela achava que essa era a melhor ideia do mundo. Para mim, era um daqueles momentos em que estar em sua cabeça era estar perto demais dela. Seria melhor se eu estivesse ao seu lado, para colocar um pouco de bom senso em sua cabeça.

— Ela é só minha amiga — riu ele, seu rosto mostrando uma timidez fofa. — E não acho que teríamos tanto em comum. Além disso... — Sua expressão se fechou. — Eu nunca poderia sair com a namorada do Mason.

Lissa ia começar a repetir o que eu sempre disse a ela, que eu não fora exatamente namorada do Mason. Espertamente, ela preferiu, em vez disso, deixar que Eddie continuasse a pensar dessa forma.

— Todos têm que seguir em frente uma hora ou outra.

— Não faz tanto tempo assim, não mesmo. Um pouco mais de um mês. E não é algo do qual você se recupera fácil. — Seus olhos tinham uma expressão triste, sem foco, que machucou a mim e à Lissa.

— Desculpe — disse ela. — Não pretendi dizer que teve pouca importância. O que você viu... eu sei que foi terrível.

— Sabe o que é mais estranho? Não me lembro muito do que aconteceu. E isso é terrível. Eu estava tão tonto que nem tinha ideia do que se passava ali de verdade. Eu odeio isso, você nem imagina. Ser inútil daquele jeito... é a pior coisa do mundo.

Eu me sentia assim também. Acho que era algo típico de um guardião. No entanto, Eddie e eu nunca conversamos sobre isso. Nós nem falávamos muito sobre Spokane.

— Não foi culpa sua — disse Lissa. — A endorfina que a mordida Strigoi libera é pesada. Você não poderia lutar contra isso.

— Eu devia ter me esforçado mais — respondeu Eddie, abrindo a porta do dormitório dela. — Se eu estivesse um pouco mais consciente... sei lá. Mason poderia estar vivo ainda.

Percebi que Eddie e eu devíamos ter entrado na terapia assim que voltamos das férias de inverno. Finalmente entendi por que todo mundo dizia que era irracional eu me culpar pela morte do Mason. Eddie e eu estávamos os dois nos culpando por coisas que estavam além do nosso controle. Vínhamos nos torturando com uma culpa que não era nossa.

— Ei, Lissa. Venha aqui.

Esse assunto sério foi adiado porque Jesse e Ralf estavam acenando para ela do outro lado da recepção do dormitório. Minhas defesas logo reaparecerem. As dela também. Ela não gostava deles mais do que eu.

— O que será que eles querem? — perguntou Eddie, cauteloso.

— Não sei — sussurrou Lissa, indo até eles. — Espero que seja rápido.

Jesse lançou para ela um sorriso deslumbrante, que um dia eu achei lindo. Agora eu o via como a grande porcaria que ele era.

— E aí? Como você está? — perguntou ele.

— Cansada. Preciso ir dormir. O que houve?

Jesse olhou para Eddie.

— Você pode nos dar um pouco de privacidade?

Eddie olhou para Lissa. Ela assentiu, e ele se distanciou o suficiente para não conseguir ouvir a conversa, mas ainda de olho neles. Quando ele já estava longe, Jesse disse:

— Nós temos um convite para você.

— Para o quê, uma festa?

— Mais ou menos. É um grupo... — Ralf não era tão bom com palavras, e Jesse assumiu a partir dali:

— Mais do que um grupo. É só para a elite. — Ele fez um largo gesto. — Você, eu, Ralf... nós não somos como tantos outros Moroi. Não somos sequer como muitos da realeza. Temos preocupações e problemas dos quais precisamos cuidar. — Achei engraçado ele incluir o amigo naquilo. A realeza de Ralf vinha da mãe, uma Voda, de modo que ele nem ao menos possuía o nome de uma família real, ainda que carregasse o sangue.

— Parece meio... esnobe — disse ela. — Sem ofensas. Mas obrigada pela oferta. — Lissa era assim. Sempre educada, mesmo com idiotas como eles.

— Você não entende. Nós não estamos parados, esperando. Estamos trabalhando para as coisas acontecerem. Estamos... — Ele hesitou e disse, mais devagar: — ...trabalhando para conseguir que ouçam a nossa voz, para fazer as pessoas nos entenderem, não importa o preço.

Lissa riu, desconfortável.

— Parece compulsão.

— E?

Eu não podia ver o rosto dela, mas podia sentir que se esforçava para manter a calma.

— Vocês estão loucos? Compulsão é proibida. É errado.

— Somente para algumas pessoas. E, aparentemente, não para você, já que é muito boa nisso.

Ela endureceu.

— Por que diz isso?

— Porque uma pessoa... algumas pessoas, na verdade... deram a entender.

Pessoas? Tentei me lembrar do que Christian e eu dissemos na sala dos fornecedores. Nós não mencionamos o nome dela, embora tenhamos nos vangloriado de termos visto alguém usando compulsão. E, pelo jeito, Jesse havia percebido outras coisas sobre ela.

— Além do mais, é meio óbvio. Todos amam você. Você escapou de tantas confusões, e eu finalmente entendi como. Você tem jogado com as pessoas o tempo todo. Fiquei observando você na sala no outro dia, quando convenceu o professor Hill a deixar Christian ser a sua dupla num projeto. Ele nunca teria deixado outra pessoa fazer isso.

Eu estava na sala com eles naquele dia. Lissa tinha realmente usado compulsão no professor para ajudar Christian. E estava tão concentrada no seu pedido que impeliu o professor Hill sem sequer perceber. Comparada a outras coisas que eu já testemunhara, aquela era na verdade uma demonstração bem fraca de compulsão. Ninguém tinha percebido. Bom, quase ninguém.

— Escute — disse Lissa, incomodada —, eu realmente não faço ideia do que você está falando. Tenho que ir dormir.

O rosto de Jesse mostrava excitação.

— Não, tudo bem. Não tem problema. Nós só queremos ajudar, ou, melhor, queremos que você nos ajude. Não acredito que eu não tinha percebido antes. Você é realmente boa nisso, e nós precisamos que você nos mostre como se faz. Além do mais, nenhum dos outros grupos Mâna tem um Dragomir. Seríamos os primeiros a ter todas as famílias reais representadas.

Ela suspirou.

— Se eu pudesse usar compulsão, faria vocês irem embora. Já disse, não estou interessada.

— Mas nós precisamos de você! — exclamou Ralf.

Jesse deu um olhar raivoso para ele, e voltou seu sorriso para Lissa. Eu tinha a estranha sensação de que ele tentava usar compulsão, mas não surtia nenhum efeito sobre ela — ou sobre mim, já que eu assistia a tudo pelos seus olhos.

— Não é apenas para nos ajudar. Existem grupos Mâna em todas as escolas — disse Jesse. Ele estava se aproximando mais, e, de repente, não parecia mais tão amistoso. — Os membros estão espalhados pelo mundo todo. Faça parte disso, e terá contatos para fazer tudo o que quiser na vida. E, se todos aprendermos a compulsão, poderemos evitar que o governo Moroi continue pisando na bola... Teremos a certeza de que a rainha e todos os outros farão a coisa certa. Tudo isso é bom para você!

— Eu estou bem sozinha, obrigada — disse ela, se afastando. — E eu realmente não sei se vocês sabem o que é melhor para os Moroi.

— “Bem”? Com o seu namorado Strigoi e a futura guardiã vadia? — exclamou Ralf. Ele falou alto o suficiente para chamar a atenção de Eddie, que não parecia nada feliz.

— Cale a boca — repreendeu Jesse, com raiva. Ele se virou para Lissa. — Ele não devia ter dito isso... mas não deixa de ter razão. A reputação da sua família depende só de você, e, do jeito que está, ninguém vai levá-la a sério. A rainha já está tentando colocá-la nos trilhos e afastá-la de Christian Ozera. Você está indo de mal a pior.

Lissa estava ficando cada vez mais zangada.

— Você não tem ideia do que está falando. E... — Ela franziu o cenho. — Que história é essa de ela querer me afastar de Christian?

— Ela quer que você se case... — começou Ralf, mas Jesse o interrompeu:

— Era exatamente disso que eu estava falando. Nós sabemos de coisas que poderiam afetar e ajudar você... você e Christian.

Percebi que Ralf quase mencionou o plano da rainha de casar Lissa com Adrian. Eu estava confusa, tentando descobrir como ele sabia disso, até lembrar que Ralf era da família Voda. Priscilla Voda era a melhor amiga e conselheira da rainha. Ela sabia de todos os seus planos e provavelmente os contara ao Ralf. A relação entre eles devia ser muito mais próxima do que eu imaginava.

— Me diga — exigiu Lissa. A ideia de usar compulsão tinha lhe passado pela cabeça, mas ela não quis. Não iria se rebaixar àquilo. — O que você sabe sobre Christian?

— Não dou informação de graça — disse Jesse. — Venha a uma reunião, e nós lhe contaremos tudo.

— Não importa. Eu não estou interessada nos seus contatos elitistas, e não sei nada sobre compulsão. — Apesar daquelas palavras, ela estava louca de curiosidade para descobrir o que ele sabia.

Ela começou a se virar, mas Jesse segurou seu braço.

— Droga! Você tem que...

— Lissa está indo para a cama agora — avisou Eddie. Ele correra até lá assim que Jesse encostou em Lissa. — Tire a sua mão, ou eu o farei.

Jesse olhou para Eddie. Como na maioria das comparações entre Moroi e dampiros, Jesse tinha altura, e Eddie tinha músculos. Claro, Jesse teria a ajuda de Ralf também, mas não importava. Todos ali sabiam que ele não ganharia de Eddie. A beleza disso era que Eddie provavelmente não teria problemas depois, se falasse que havia brigado para ajudar Lissa.

Jesse e Ralf se afastaram lentamente.

— Nós precisamos de você — disse Jesse. — Você é única. Pense nisso.

Quando eles se foram, Eddie perguntou:

— Você está bem?

— Sim... obrigada. Nossa, isso foi muito estranho.

Eles se encaminharam para as escadas.

— O que foi aquilo tudo?

— Eles estão obcecados com essa tal de sociedade real e querem que eu participe, para que tenham todas as famílias reais. Me soaram meio fanáticos com a ideia. — Eddie sabia sobre o espírito, mas ela não se sentia bem por lembrá-lo como era boa em compulsão.

Ele abriu a porta para ela.

— Bem, eles podem perturbá-la o quanto quiserem, mas não podem fazê-la participar de algo contra a sua vontade.

— É, eu acho que não. — Uma parte dela ainda se perguntava o que eles sabiam sobre Christian, ou se aquilo tinha sido um blefe. — Só espero que eles não me encham muito.

— Não se preocupe — assegurou ele, com uma voz firme. — Vou me certificar de que não farão isso.

Eu voltei para o meu corpo e abri a porta do meu dormitório. Subindo as escadas, percebi que sorria. Eu certamente não queria Jesse e Ralf importunando Lissa, mas se isso levasse Eddie a quebrar-lhes a cara? Aí, sim. Eu não me importaria de vê-los recebendo o troco pelo que fizeram aos outros.


Vinte e dois

Deirdre, a orientadora, não devia ter muito o que fazer, porque havia marcado nossa próxima reunião para domingo. Eu não estava muito animada, já que não só aquele era o meu dia de folga como também era a folga dos meus amigos. Mas ordens eram ordens, então compareci, contrariada.

— Você está errada — disse-lhe, assim que sentei. Nós ainda não havíamos retomado as questões da minha primeira sessão. Tínhamos usado os últimos encontros para falar sobre a minha mãe e sobre o que eu achava da experiência de campo.

— Sobre o quê? — perguntou ela. Ela usava um vestido florido sem mangas que parecia muito fresco para um dia como aquele. O vestido também se parecia muito com as fotos que pendiam das paredes da sala.

— Sobre aquele cara. Eu não gosto dele só porque não posso tê-lo. Gosto dele porque... bem, porque ele é ele. Eu provei isso.

— Provou como?

— É uma longa história — respondi, evasivamente. Eu não queria mesmo entrar nos detalhes do meu experimento com o Adrian e a compulsão. — Você vai ter que acreditar em mim.

— E a outra coisa sobre a qual conversamos? — indagou ela. — Sobre seus sentimentos com respeito a Lissa?

— Essa ideia também estava errada.

— Você conseguiu provar?

— Não, mas esse não é o tipo de coisa que eu poderia testar da mesma maneira.

— Então, como tem certeza?

— Porque eu tenho. — Essa era a melhor resposta que ela receberia.

— Como estão as coisas com ela, ultimamente?

— Ultimamente quanto?

— Vocês têm passado muito tempo juntas? Você acompanha as atividades dela?

— Sim, mais ou menos. Eu não a vejo muito. Mas ela tem feito as mesmas coisas de sempre. Ficando com Christian. Passando em todos os testes. Ah, e ela praticamente decorou o conteúdo do site da Lehigh.

— Lehigh?

Expliquei a Deirdre a oferta da rainha.

— Ela só vai para lá no próximo outono, mas já está repassando a grade horária e tentando pensar no mestrado.

— E você?

— O que tem eu?

— O que vai fazer enquanto ela for às aulas?

— Eu irei com ela. É o que costuma acontecer quando um Moroi tem um guardião da mesma idade. Eles provavelmente vão me inscrever lá também.

— Você vai fazer as mesmas aulas que ela?

— Sim.

— Existem outras disciplinas que você poderia preferir?

— Como eu vou saber? Lissa ainda nem escolheu as que ela vai fazer, então eu não sei se quero ou não. Mas não importa. Eu tenho que ir com ela.

— E você não vê problema nisso?

Minha calma começou a se esvair. Era exatamente sobre isso que eu não queria falar.

— Não — respondi, com firmeza.

Eu sabia que Deirdre desejava que eu elaborasse mais a resposta, mas eu me neguei. Nós nos encaramos um pouco, quase como se uma desafiasse a outra a desviar o olhar. Ou talvez eu estivesse imaginando demais. Ela olhou para baixo, para o caderninho misterioso que ela sempre carregava, e voltou algumas páginas. Reparei que suas unhas estavam bem-feitas e pintadas de vermelho. O esmalte das minhas tinha começado a sair.

— Você prefere não falar sobre a Lissa hoje? — perguntou ela, por fim.

— Podemos falar sobre qualquer coisa que você ache útil.

— O que você acha que é útil?

Droga. Ela estava me questionando de novo. Me perguntei se algum dos certificados naquela parede lhe dera alguma qualificação especial para fazer isso.

— Acho que seria útil se você parasse de falar comigo como se eu fosse uma Moroi. Você age como se eu tivesse escolhas, como se eu tivesse o direito de me chatear com essas coisas, ou de escolher as aulas que eu quisesse. Quer dizer, vamos supor que eu pudesse escolher. E daí? O que vou fazer com essas aulas? Ser uma advogada ou uma bióloga marinha? Não tem por que eu ter o meu próprio horário. Tudo já foi decidido para mim.

— E você está bem com isso. — Poderia ter sido uma pergunta, mas aquela foi uma afirmação.

Eu dei de ombros.

— Estou bem em mantê-la a salvo, e é isso que você vive esquecendo. Todo trabalho tem as suas partes ruins. Eu quero ficar com ela nas aulas de cálculo? Não. Mas eu tenho que ficar, porque a outra parte é mais importante. Você quer ouvir adolescentes raivosas que tentam frustrar os seus esforços? Não. Mas você tem que ouvir, porque o resto do seu trabalho é mais importante.

— Na verdade — disse ela, inesperadamente —, essa é a parte favorita do meu trabalho.

Não consegui entender se ela estava brincando ou não, mas eu decidira deixar aquilo para lá, até porque ela não tinha feito nenhuma pergunta. Suspirei.

— É só que eu odeio que todo mundo fique agindo como se eu estivesse sendo obrigada a ser guardiã.

— Quem é “todo mundo”?

— Bom, você e esse cara que eu conheci na Corte... um dampiro chamado Ambrose. Ele é... bom, ele é um prostituto de sangue. Como uma prostituta de sangue, só que do sexo masculino. — Como se isso não fosse óbvio. Esperei para ver se ela reagiria ao termo, mas ela não o fez. — Pelo modo como ele dizia, parecia que eu estava presa a essa vida e tudo o mais. Mas eu não estou. Isso é o que eu quero. Eu sou boa nisso. Eu sei lutar e sei defender os outros. Você já viu um Strigoi?

Ela balançou a cabeça.

— Bom, eu já. E quando eu digo que quero passar a minha vida protegendo Moroi e matando Strigoi, eu falo sério. Os Strigoi são perversos e precisam ser extintos. Eu fico feliz por fazer isso, e se ainda puder ficar com a minha melhor amiga no processo, tanto melhor.

— Eu entendo isso, mas e se você também quiser outras coisas, coisas que você não pode ter se escolher essa vida?

Eu cruzei os braços.

— Mesma resposta de antes. Existem prós e contras em tudo. Nós só temos que pesá-los da melhor forma. Quer dizer, você por acaso vai tentar me dizer que a vida não é assim? Que, se eu não consigo ter tudo perfeito, então tem algo de errado comigo?

— Não, é claro que não — respondeu ela, recostando-se na cadeira. — Eu quero que você tenha uma vida maravilhosa, mas não posso esperar uma vida perfeita. Ninguém pode. Mas o que eu acho interessante aqui é como você responde e lida com essas peças contraditórias da sua vida, quando ter uma coisa significa não ter a outra.

— Todo mundo passa por isso. — Eu me senti repetitiva.

— Sim, mas nem todo mundo vê fantasmas como consequência disso.

Demorou alguns segundos para eu perceber aonde ela queria chegar.

— Espere aí. Está me dizendo que a razão pela qual estou vendo Mason é que secretamente culpo Lissa por tudo o que não posso ter em minha vida? E o que aconteceu com todo aquele trauma que eu atravessei? Pensei que essa fosse a razão pela qual eu via o Mason, não?

— Acho que você o vê por muitas razões — disse ela. — E é isso que estamos explorando.

— E, mesmo assim — disse eu —, nós nunca falamos sobre ele.

Deirdre sorriu, serenamente.

— Não?

Nossa sessão terminou.

— Ela sempre responde as suas perguntas com mais perguntas? — perguntei a Lissa mais tarde. Eu estava andando com ela pelo pátio, a caminho do jantar no prédio comunitário.

Depois disso, iríamos nos encontrar com os outros para ver um filme. Fazia tempo desde a última vez em que ela e eu tínhamos ficado a sós, e percebi o quanto eu sentia falta da sua companhia.

— Nós não temos a mesma orientadora. — Ela riu. — Seria um conflito de interesses.

— Bem, mas a sua faz isso?

— Não que eu tenha percebido. Quer dizer que a sua faz?

— Sim... Na verdade, é bem interessante de assistir.

— Quem diria que um dia nós estaríamos comparando opiniões sobre nossa terapia?

Nós duas rimos. Alguns momentos se passaram, e então ela entrou num novo assunto. Ela queria me contar sobre o que tinha acontecido com Jesse e Ralf, sem perceber que eu já sabia de tudo. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, no entanto, alguém se juntou à gente. Dean Barnes.

— Ei, Rose. Tem gente tentando descobrir por que você só está na experiência de campo por meio expediente.

Ótimo. Eu sabia que alguém ia perguntar aquilo mais cedo ou mais tarde. E sinceramente, eu até me surpreendi que tivesse demorado tanto. Todos estavam ocupados demais com a sua própria experiência de campo para perceber esse detalhe, até agora. Eu tinha uma desculpa pronta.

— Eu estava doente. A dra. Olendzki não queria que eu me esforçasse demais.

— Sério? — perguntou ele, especulando um pouco. — Pensei que eles sempre dissessem que no mundo real nós não teríamos folgas nem por motivo de doença. Ou algo do gênero.

— Bem, esse não é o mundo real, e a palavra da dra. Olendzki é o que importa.

— Fiquei sabendo que era porque você era uma ameaça para o Christian.

— Não, acredite, não foi isso. — O cheiro de álcool vindo dele me deu uma ideia conveniente para mudar de assunto. — Você andou bebendo?

— Sim, Shane arrumou umas coisas e chamou alguns de nós em seu quarto. Ei.

— Ei, o quê?

— Não me olhe assim.

— Assim como?

— Como se você desaprovasse.

— Não estou fazendo nada — argumentei.

Lissa deu uma risadinha.

— Na verdade, está, sim.

Dean parecia ofendido.

— Ei, é o meu dia de folga, e mesmo sendo domingo, não significa que eu não...

Algo se mexeu ao nosso lado.

Eu nem hesitei. Era muito rápido, muito dissimulado para ser algo amigável. E estava todo de preto. Eu me coloquei à frente de Lissa e parti para cima do atacante. No clamor da ação, reconheci vagamente a guardiã que costumava dar aulas aos aprendizes mais novos. Seu nome era Jane, ou Joan, algo assim. Jean, era isso. Ela era mais alta do que eu, o que não impediu o meu punho de encontrar seu rosto. Ela foi para trás, e então eu notei uma outra figura surgindo ao seu lado. Yuri. Eu pulei de forma a deixá-la entre ele e mim. Eu a chutei na barriga. Jean caiu sobre ele, e os dois tropeçaram. Nesse breve momento, eu já empunhava a minha estaca de treinamento e mirava em seu coração. Eu acertei o lugar indicado, e ela imediatamente se retirou, já que estava tecnicamente “morta”.

Então, Yuri e eu nos enfrentamos. Atrás de mim, ouvi um som abafado, que eu suspeitei que fosse Dean enfrentando seu próprio atacante, ou atacantes. Eu não tivera tempo de checar ainda. Eu precisava acabar com Yuri, o que seria mais complicado, já que ele era mais forte do que a Jean. Nós dois nos cercávamos, fazendo fintas e desferindo golpes. Até que ele executou o seu movimento final, mas eu fui mais rápida e saí de sua mira. Fiquei longe o suficiente para cravar-lhe a estaca.

Assim que ele se afastou, derrotado, eu me voltei para Dean. Lissa estava longe, de fora, observando Dean lutar. Era patético, para dizer o mínimo. Eu dera bastante trabalho ao Ryan, mas seus erros não eram nada comparados àquilo. A estaca de treinamento de Dean estava no chão, e seus movimentos eram irregulares e instáveis. Decidi, então, que ele atrapalharia se continuasse na luta. Eu me lancei à frente e o tirei do caminho, jogando-o na direção de Lissa. O empurrei com tanta força que ele caiu, mas não me importei. Eu precisava que ele saísse do caminho.

Olhando o meu oponente, eu vi: Dimitri.

Foi inesperado. Algo na minha cabeça dizia que eu não podia enfrentar Dimitri. O resto de mim lembrou que eu já fazia isso há seis meses, e, além do mais, ele não era o Dimitri agora. Era meu inimigo.

Pulei para cima dele com a estaca, esperando apanhá-lo de surpresa. Mas Dimitri era difícil de ser pego desprevenido. E ele era rápido. Ah, tão rápido. Era como se ele soubesse o que eu ia fazer antes que eu fizesse. Ele aparou o meu ataque com um golpe no lado da minha cabeça. Eu sabia que ia doer mais tarde, mas minha adrenalina estava muito alta para eu me preocupar agora.

Ao longe, notei que algumas pessoas tinham se juntado para nos assistir. Dimitri e eu éramos celebridades à nossa própria maneira ali, e nossa relação de mentor e aprendiza aumentava o drama. Era como entretenimento no horário nobre.

Meus olhos estavam apenas em Dimitri, apesar da movimentação ao redor. Enquanto nos testávamos, atacando e bloqueando, tentei me lembrar de tudo o que ele havia me ensinado. E também tentei me lembrar de tudo o que eu sabia sobre ele. Treinávamos juntos há meses. Eu o conhecia, conhecia seus movimentos, assim como ele sabia os meus. Eu podia antecipar seus golpes da mesma forma. Assim que comecei a utilizar esse conhecimento, a luta ficou mais traiçoeira. Nós éramos muito parecidos, os dois muito rápidos. Meu coração palpitava em meu peito, e o suor cobria minha pele.

Então, Dimitri conseguiu. Ele partiu para um ataque, vindo para cima com toda a força de seu corpo. Eu bloqueei a maior parte do impacto, mas ele era tão forte que fui eu quem tropeçou. Ele não perdeu a oportunidade e me arrastou até o chão, tentando me prender. Ser presa daquele jeito por um Strigoi teria resultado, provavelmente, em um pescoço mordido ou quebrado. Eu não podia deixar aquilo acontecer.

Então, embora ele tivesse praticamente me imobilizado no chão, consegui mexer o cotovelo para cima e bater em sua cara. Ele hesitou, e foi só disso que eu precisei. Rolei para cima dele e o segurei no chão. Ele tentou me afastar, e eu empurrei mais, enquanto tentava apanhar minha estaca. Mas ele era muito forte. Eu tinha certeza de que não conseguiria segurá-lo. Então, quando achava que não ia mais conseguir, peguei a minha estaca. E num piscar de olhos ela foi direto para o coração dele. Tinha terminado.

Atrás de mim, as pessoas estavam aplaudindo, mas tudo o que eu conseguia ver era Dimitri. Nossos olhares estavam presos. E eu ainda o estava agarrando, minhas mãos pressionando seu peito. Nós dois estávamos suados e ofegávamos. Seus olhos me viam com orgulho — e muito mais. Ele estava tão perto, e meu corpo inteiro ansiava por ele, como se fosse um pedaço de mim do qual eu precisava desesperadamente para me sentir completa. O ar entre nós estava quente e pesado, e eu daria tudo naquele momento para deitar ali e ser abraçada por ele. Sua expressão me mostrava que ele sentia o mesmo. A briga tinha acabado, mas aquela adrenalina e intensidade animal continuavam presentes.

Então, uma mão se estendeu, e Jean me ajudou a levantar. Ela e Yuri estavam explodindo de alegria, assim como os espectadores que estavam ali. Até Lissa parecia impressionada. Dean, compreensivamente, parecia triste. Eu esperava que as notícias dessa minha vitória incrível se espalhassem pelo campus com a mesma velocidade das notícias ruins. O que provavelmente não aconteceria.

— Muito bem — disse Yuri. — Você acabou com nós três. Isso foi perfeito.

Dimitri também estava de pé agora. Eu não tirava os olhos dos outros guardiões, porque eu tinha certeza de que, se eu olhasse para ele, minha expressão iria entregar tudo.

Minha respiração ainda estava ofegante.

— Espero... Espero que não tenha machucado nenhum de vocês — comentei.

Isso fez todos rirem.

— É o nosso trabalho — disse Jean. — Não se preocupe conosco, nós somos durões. — Ela olhou para Dimitri. — Ela pegou você direitinho com o cotovelo.

Dimitri esfregou o rosto, perto do olho, e eu esperei que eu não o tivesse machucado muito.

— A aluna supera o professor — brincou ele. — Ou, melhor, o acerta com a estaca.

Yuri lançou um olhar sério para Dean.

— Bebidas alcoólicas não são permitidas no campus.

— É domingo! — exclamou ele. — Nós não devíamos estar trabalhando.

— Não existem regras no mundo real — disse Jean, de uma maneira bem “professoral”.

— Considerem isso um teste surpresa. Você passou, Rose. Muito bem.

— Obrigada. Eu queria dizer o mesmo para as minhas roupas. — Eu estava molhada e enlameada. — Tenho que me trocar, Lissa. Encontro você no jantar.

— Combinado. — Seu rosto estava brilhando. Ela estava tão orgulhosa de mim que mal podia se conter. Eu também senti que ela guardava algum segredo, e me perguntei se haveria alguma comemoração surpresa quando eu a visse mais tarde. Eu não sondei muito, para não estragar tudo.

— E você — disse Yuri, ajeitando a manga de Dean — vai dar uma volta conosco.

Meus olhos encontraram os de Dimitri. Eu queria que pudéssemos nos encontrar e conversar. Minha adrenalina estava alta, e eu queria comemorar. Eu tinha conseguido. Finalmente. Depois de toda a vergonha dos meus erros e da minha alegada incompetência, eu finalmente tinha provado do que eu era capaz. Eu queria dançar. Dimitri tinha que ir com os outros, no entanto, e um simples cumprimento seu com a cabeça me mostrou que ele tinha outros planos em mente. Eu suspirei e os vi indo embora, e então voltei para o meu dormitório, sozinha.

De volta ao quarto, descobri que a situação tinha sido bem pior do que eu imaginara. Quando tirei aquelas roupas enlameadas, percebi que ia precisar de um banho e umas boas esfregadas antes de ficar apresentável. Quando fiquei pronta, havia passado quase uma hora. Eu já tinha perdido a maior parte do jantar.

Voltei para o prédio comunitário, me perguntando por que Lissa não tinha me mandado nenhum daqueles pensamentos incômodos. Ela tinha mania de fazer isso quando eu estava atrasada. Provavelmente, decidira que eu merecia um descanso depois da minha vitória. Ao lembrar disso, um grande sorriso apareceu no meu rosto, que desapareceu quando cheguei na recepção do refeitório.

Um grande grupo de pessoas formava uma roda, algo mundialmente reconhecido como o indício de uma briga. Considerando como o grupo de Jesse gostava de conduzir suas brigas em segredo, concluí que aquilo não tinha nada a ver com eles. Passando pelas pessoas, eu fui à frente e tentei ver por entre algumas cabeças, curiosa para saber quem reunira aquela multidão.

Eram Adrian e Christian.

E Eddie. Mas Eddie estava claramente no papel de juiz. Ele estava entre os dois, tentando afastá-los. Deixando minhas boas maneiras de lado, tirei as últimas pessoas da minha frente e me coloquei ao lado de Eddie.

— Que diabos está acontecendo? — perguntei.

Ele parecia aliviado em me ver. Ele conseguia afastar nossos instrutores em um combate, mas aquela situação era algo que realmente o deixava confuso.

— Não faço ideia.

Eu olhei para os dois combatentes. Felizmente, ninguém parecia ter atacado ninguém... ainda. Também parecia que Christian era o atacante.

— Por quanto tempo você pensou que poderia se livrar disso? — exclamou ele. Seus olhos eram como fogo azul. — Achava mesmo que todos iam continuar acreditando em você?

Adrian parecia lacônico, como sempre, mas eu podia ver ansiedade debaixo daquele sorriso. Ele não queria estar nessa situação e, como Eddie, ele não tinha certeza de como aquilo tinha acontecido.

— Sinceramente — disse Adrian, com uma voz preocupada —, não tenho ideia do que você está falando. Será que não poderíamos sentar e discutir isso direito, por favor?

— Claro. Claro que você iria querer isso. Tem medo que eu faça algo assim.

Christian levantou a mão, uma bola de fogo dançando em sua palma. Mesmo debaixo de luzes fluorescentes, ela ainda brilhava laranja, com o meio azul-escuro. Ouvi uma comoção entre os espectadores. Eu já tinha me acostumado à ideia de Moroi usando magia para lutar, principalmente Christian, mas para a maioria isso ainda era tabu. Christian gargalhou.

— Com o que pretende revidar? Plantas?

— Se você quer começar brigas sem motivo, pelo menos poderia fazer isso à moda antiga e me socar — disse Adrian. Sua voz era leve, mas ele ainda estava apreensivo. Imagino que ele pensava que poderia lutar melhor no braço do que competir contra fogo.

— Não — interrompeu Eddie. — Ninguém vai colocar fogo em ninguém. Ninguém vai socar ninguém. Houve um grande engano aqui.

— O que houve? — perguntei. — O que aconteceu?

— Seu amiguinho acha que estou planejando me casar com Lissa e conduzi-la em direção ao pôr do sol — disse Adrian. Ele falava comigo, mas seus olhos estavam em Christian.

— Não aja como se não fosse verdade — rugiu Christian. — Eu sei que é. É parte do seu plano... com a rainha. Ela tem ajudado esse tempo todo. De repente você volta aqui... com essa história de estudar... era um plano para tirar Lissa de mim e juntá-la à sua família, isso, sim.

— Você tem ideia de como isso soa paranoico? — perguntou Adrian. — Minha tia-avó tem que gerenciar todo o governo Moroi! Acha que ela realmente se preocupa com quem está namorando quem na escola, ainda mais com as questões de Estado atuais? Olhe, desculpe por todo o tempo que eu passei com Lissa... Vamos encontrá-la e esclarecer tudo. Eu realmente não queria me meter entre vocês. Não tem nenhuma conspiração acontecendo.

— Tem, sim — disse Christian. Ele me encarou com um olhar furioso. — Não tem? A Rose sabe. A Rose sabe há um bom tempo, já. Ela até conversou com a rainha a respeito.

— Isso é ridículo — disse Adrian, surpreso o suficiente para também me encarar. — Não é mesmo?

— Bom... — comecei, percebendo que as coisas estavam piorando rápido demais. — Sim e não.

— Viu? — perguntou Christian, triunfante.

O fogo saiu de sua mão, mas Eddie e eu pulamos ao mesmo tempo. As pessoas gritaram. Eddie segurou Christian, forçando o fogo a ir para o alto. Enquanto isso, eu segurei Adrian e o joguei no chão. Foi uma divisão de tarefas afortunada. Não queria pensar no que teria acontecido se Eddie e eu tivéssemos pulado sobre a mesma pessoa.

— Que bom que você se importa — murmurou Adrian, sorrindo quando levantou a cabeça do chão.

— Use a compulsão nele — murmurei, enquanto o ajudava a se levantar. — Precisamos resolver isso sem que ninguém entre em combustão espontânea.

Eddie tentava conter o Christian, para ele não saltar para a frente. Eu peguei um dos braços, para ajudar. Adrian não parecia ansioso para se aproximar, mas acabou me obedecendo. Christian tentou se soltar, mas não conseguiu lutar contra mim e Eddie. Com dificuldade, provavelmente por medo de ter seu cabelo em chamas, Adrian chegou perto de Christian e fez contato visual.

— Christian, pare com isso. Vamos conversar.

Christian lutou um pouco contra ele, mas, aos poucos, sua expressão se aquietou e os olhos se acalmaram.

— Vamos conversar sobre isso — repetiu Adrian.

— Tudo bem — disse Christian.

Houve um grande suspiro de desapontamento entre os espectadores. Adrian usou a compulsão de forma tão casual que ninguém tinha percebido. Parecia que Christian tinha simplesmente voltado à razão. Com a multidão dispersada, Eddie e eu soltamos Christian para irmos até um canto, onde poderíamos conversar em paz. Assim que o contato visual foi quebrado, a expressão de Christian se encheu de fúria, e ele tentou pular em Adrian. Eddie e eu já o segurávamos. Ele não se mexeu.

— O que você acabou de fazer? — exclamou Christian. Várias pessoas na recepção olharam para trás, ansiosas, esperando que a briga fosse acontecer. Eu mandei ele se calar. Ele gemeu. — Au.

— Fique quieto. Tem alguma coisa errada aqui, e nós precisamos resolver isso antes que você faça algo estúpido.

— O que está errado — disse Christian, olhando para Adrian — é que estão tentando tirar a Lissa de mim, e você sabia de tudo, Rose.

Adrian olhou para mim.

— Isso é verdade?

— É, longa história. — Me virei para Christian. — Escute, o Adrian não tem nada a ver com isso. Não diretamente. Foi ideia da Tatiana, e ela nem fez nada ainda. É só o plano dela para o futuro... só dela, não dele.

— Então, como você sabia? — perguntou Christian.

— Porque ela me disse. Ela pensou que eu quisesse o Adrian.

— Sério? Você defendeu o nosso amor? — perguntou Adrian.

— Cale a boca — disse eu. — O que eu quero saber, Christian, é quem lhe contou isso.

— Ralf — respondeu ele, parecendo inseguro pela primeira vez.

— Você devia saber que não pode dar ouvidos ao que ele diz — confirmou Eddie, com o rosto se fechando ao ouvir aquele nome.

— Só que, pelo menos desta vez, Ralf falou a verdade, tirando o fato de que Adrian não estava envolvido. Ralf é parente da melhor amiga da rainha — expliquei.

— Ótimo — disse Christian. Ele parecia mais calmo, então Eddie e eu o soltamos. — Nós todos caímos nessa.

Eu olhei à nossa volta, percebendo uma coisa de repente.

— Onde está a Lissa? Por que ela não separou essa briga?

Adrian levantou uma sobrancelha para mim.

— Me diga você. Onde está Lissa? Ela não apareceu para jantar.

— Eu não... — Franzi o cenho. Eu já a bloqueava tão bem que passava longos períodos sem captar nenhuma emoção dela. Dessa vez, eu não a senti, porque nada vinha dela. — Não consigo senti-la.

Três pares de olhos se viraram para mim.

— Ela está dormindo? — perguntou Eddie.

— Eu sei quando ela está dormindo... Isso é outra coisa... — Devagar, bem devagar, eu percebi onde ela estava. Ela estava me bloqueando de propósito, tentando se esconder de mim, mas eu a encontrei, como sempre. — Achei. Ela está... Meu Deus!

Meu grito ecoou na recepção, junto com os gritos de Lissa, que, bem longe dali, estava sentindo dor.


Vinte e três

Outros no salão pararam e me encararam. Eu sentia como se tivesse levado uma pancada no rosto. Só que não tinha sido no meu rosto. Tinha sido no de Lissa. Eu fui para a mente dela, e instantaneamente descobri onde ela se encontrava e tudo que estava acontecendo — como pedras saindo do chão para acertarem-na. Estavam sendo guiadas por um calouro sobre o qual eu nada sabia a respeito, só que era um Drozdov. As pedras machucavam a nós duas, mas eu segurei o grito dessa vez e trinquei os dentes, voltando a atenção para o salão onde estavam meus amigos.

— Lado noroeste do campus, entre aquele lago estranho e a cerca — disse-lhes.

Com isso, eu me separei deles e fui para a porta, correndo o mais rápido que pude em direção ao lugar onde Lissa estava. Eu não podia ver todos que estavam lá através dos seus olhos, mas reconheci alguns rostos. Jesse e Ralf. Brandon. Brett. O tal Drozdov. Alguns outros. As pedras ainda batiam nela, ainda cortavam seu rosto. No entanto, ela não chorava ou gritava — só pedia insistentemente que eles parassem, enquanto outros dois a seguravam.

Enquanto isso, Jesse mandava que ela os fizesse parar. Não o ouvi muito bem pela cabeça de Lissa. As razões não importavam, e eu já as adivinhara. Eles a estavam torturando para que entrasse no grupo deles. Devem ter forçado Brandon e os outros da mesma forma.

Um sentimento sufocante me atingiu de repente, e eu tropecei, sem conseguir respirar, com água na minha cara. Lutando bravamente, eu me separei de Lissa. Aquilo estava acontecendo com ela, não comigo. Alguém a estava torturando com água agora, tirando o ar dela. Quem quer que fosse, fazia isso tranquilamente, enchendo-a de água, depois retirando, e tudo de novo. Ela tentava respirar e cuspia água, ainda pedindo que parassem, quando conseguia.

Jesse continuava assistindo, com frieza nos olhos.

— Não peça a mim. Obrigue-os.

Tentei correr mais rápido, mas havia atingido o meu limite. Eles estavam num dos pontos mais distantes do campus. Era um longo caminho a percorrer, e a cada passo agonizante, eu sentia mais a dor de Lissa e com mais raiva ficava. Que tipo de guardiã eu seria para ela, se nem conseguia mantê-la a salvo no campus?

Um usuário do ar começou o serviço, e, de repente, era como se ela estivesse sendo torturada pelo lacaio de Victor mais uma vez. O ar era retirado dela, deixando-a arfando, e depois insuflado de volta, apertando seu rosto. Era uma agonia, e trazia de volta todas as memórias do seu sequestro, todo o terror e horror que ela vinha tentando esquecer. O usuário de ar parou, mas era tarde demais. Alguma coisa tinha acordado dentro dela.

Quando Ralf apareceu para usar o fogo, eu estava tão perto que pude ver a chama acendendo em sua mão. Mas ele não me viu.

Nenhum deles estava prestando atenção nos arredores, e faziam muito barulho para poderem me ouvir. Acertei o Ralf antes que o fogo saísse de sua mão, jogando-o no chão e socando sua cara uma única vez num movimento preciso. Alguns dos outros — incluindo Jesse — correram para ajudá-lo e tentaram me afastar. Ou, pelo menos, eles tentaram até perceberem quem eu era.

Aqueles que me reconheceram se afastaram imediatamente. Os que não saíram logo perceberam quem eu era quando fui atrás deles. Eu tinha vencido três guardiões bem-treinados mais cedo. Um grupo de Moroi mimados não me exigia esforço algum. Era irônico — e um sinal de como alguns Moroi não queriam mexer um músculo para se defenderem — que, se por um lado aquele grupo usou magia sem pensar duas vezes para torturar Lissa, ninguém sequer cogitou usá-la contra mim.

A maioria foi embora antes de eu conseguir encostar neles, e eu não me importava tanto assim para persegui-los. Eu só queria afastá-los de Lissa. Admito que dei alguns socos a mais em Ralf, mesmo depois que ele já tinha caído, porque o culpava por aquilo tudo. Eu o deixei em paz no fim, deitado no chão e gemendo, e me levantei para ir atrás de Jesse — o outro culpado. Eu o achei rapidamente. Só ele permanecera ali.

Eu corri em sua direção, e de repente parei, confusa. Ele estava imóvel ali, encarando o nada, boquiaberto. Eu olhei para ele, para a direção em que ele estava olhando e depois para ele de novo.

— Aranhas — disse Lissa. Sua voz me sobressaltou. Ela estava a um canto, com o cabelo molhado, machucada e cortada, mas no todo estava bem. Sob a luz da lua, sua pele clara fazia com que parecesse um fantasma, como Mason. Seus olhos não desgrudaram de Jesse enquanto falávamos. — Ele acha que está vendo aranhas. E que elas estão subindo por ele. O que você acha? Será que eu devia ter usado cobras?

Olhei para Jesse mais uma vez. A expressão em seu rosto me dava calafrios. Era como se ele estivesse preso em seu próprio pesadelo. Mais assustador do que isso era o que eu sentia através do laço. Normalmente, quando Lissa usava magia, havia uma sensação dourada, quente e maravilhosa. Desta vez era diferente. Era negro, pegajoso e pesado.

— Acho que você devia parar — sugeri. Longe de nós, eu ouvia as pessoas vindo depressa em nossa direção. — Acabou.

— Era um ritual de iniciação — disse ela. — Bom, mais ou menos. Eles pediram que eu me juntasse a eles alguns dias atrás, e eu me recusei. Mas eles me importunaram de novo hoje e ficaram dizendo que tinham coisas importantes sobre Christian e Adrian para me contar. Comecei a ficar curiosa, então... eu finalmente lhes disse que viria a um de seus encontros, mas que eu não sabia nada sobre compulsão. Era mentira. Eu só queria saber o que eles sabiam. — Ela inclinou um pouco a cabeça, mas algo aconteceu com Jesse. Seus olhos se arregalaram mais, enquanto ele gritava silenciosamente. — Ainda que teoricamente eu não tivesse aceitado nada, eles me puseram para participar do ritual de iniciação. Queriam saber o que eu poderia fazer de verdade. É um jeito de descobrir o quanto as pessoas são habilidosas em compulsão. Eles as torturam até que não aguentem mais, e então, no auge daquilo tudo, as vítimas se desesperam e tentam fazer com que os torturadores parem, por meio da compulsão. Se tiverem sucesso, elas entram para o grupo. — Ela olhou Jesse com cuidado. Ele parecia estar em seu próprio mundo, e era um mundo muito, muito ruim. — Acho que isso me faz presidente do clube, não faz?

— Pare — disse eu. O sentimento dessa magia ruim estava me deixando enjoada. Ela e Adrian tinham mencionado algo sobre isso antes, essa ideia de fazer as pessoas verem coisas que não estavam lá. Eles brincaram chamando aquilo de supercompulsão, e era horrível. — O espírito não devia ser usado assim. Essa não é você. Isso é errado.

Ela estava com a respiração pesada, com suor saindo da testa.

— Não consigo parar — disse ela.

— Consegue, sim — disse eu, tocando seu braço. — Passe para mim.

Ela olhou brevemente de Jesse para mim, assustada, antes de encará-lo de novo.

— O quê? Você não pode usar magia.

Eu me foquei ao máximo no laço, em sua mente. Eu não podia exatamente fazer magia, mas podia pegar a escuridão que ela gerava. Era o que eu fazia já há algum tempo, percebi. Toda vez que eu me preocupava e desejava que ela se acalmasse e lutasse contra esses sentimentos obscuros, ela conseguia, porque eu estava tirando isso dela. Eu estava absorvendo tudo, como Anna fazia com são Vladimir. Era o que Adrian tinha visto quando percebeu a escuridão saltando da aura dela para a minha. E isso, esse abuso do espírito, usar esse poder para, maliciosamente, ferir os outros e não para autodefesa, estava trazendo os piores efeitos colaterais para ela. Era corrupto e errado, e eu não podia deixá-la absorver essas coisas ruins. Todos os meus sentimentos de loucura ou ira eram irrelevantes naquele momento.

— Não — concordei. — Eu não posso. Mas você pode me usar para deixar isso ir embora. Foque-se em mim. Solte essa raiva dentro de mim. É errado. Você não quer isso.

Ela me olhou de novo, com olhos arregalados e desesperados. Mesmo sem contato visual direto, ela ainda conseguia torturar Jesse. Eu vi e senti a luta dentro dela. Ele a tinha machucado tanto — ela queria fazê-lo pagar. Ele tinha que pagar. E mesmo assim, ao mesmo tempo, ela sabia que eu estava certa. Mas era difícil. Muito difícil para ela se livrar disso...

De repente, o fogo daquela magia negra desapareceu do laço, junto com aquela sensação doentia. Algo me atingiu como um sopro de vento no rosto, e eu fui para trás. Estremeci quando uma sensação estranha embrulhou meu estômago. Era como faíscas, como se um pouco de eletricidade corresse dentro de mim. Depois isso desapareceu também. Jesse caiu ajoelhado, livre do pesadelo.

Lissa agachou, com alívio visível. Ela ainda estava assustada e machucada pelo que tinha acontecido, mas não estava mais consumida por aquela raiva terrível e destrutiva que a levara a punir Jesse. Aquela necessidade tinha sumido dela.

O problema é que agora ela estava em mim.

Eu me virei para Jesse, e era como se mais nada no mundo existisse no Universo, a não ser ele. Ele tinha tentado me arruinar no passado. Tinha torturado Lissa e muitos outros. Era inaceitável. Eu me lancei na direção dele. Seus olhos só tiveram alguns segundos para se arregalarem aterrorizados antes de meu punho acertar sua cara. Sua cabeça foi para trás, e o sangue escorreu de seu nariz.

Eu ouvi Lissa gritando para que eu parasse, mas eu não conseguia. Ele tinha que pagar pelo que tinha feito a ela. Eu o peguei pelos ombros e o joguei com força no chão. Ele também gritava agora — implorando — para eu parar. Ele se calou quando eu o acertei de novo.

Senti as mãos da Lissa me segurando, tentando me afastar, mas ela não era tão forte. Eu continuei surrando Jesse. Não havia nenhum sinal da estratégia e luta precisa que eu tinha usado antes com ele e os amigos, ou mesmo contra o Dimitri. Aquilo era irracional e selvagem. Aquela era eu sendo controlada pela loucura que eu tinha tirado de Lissa.

Então, outras mãos me tiraram dali. Essas mãos eram mais fortes, mãos de dampiro, com músculos vindos de muito treinamento. Era Eddie. Eu tentei me livrar dele. Nós quase nos equiparávamos, mas ele era mais pesado do que eu.

— Me solte! — gritei.

Para o meu terror completo e profundo, Lissa agora estava ajoelhada ao lado de Jesse, analisando-o com preocupação. Não fazia sentido. Como ela podia fazer aquilo? Depois do que ele tinha feito? Eu vi compaixão em seu rosto, e um momento depois, o fogo de sua magia de cura se acendeu em nosso laço, enquanto ela removia alguns dos piores ferimentos dele.

— Não! — gritei, me debatendo contra as mãos de Eddie. — Você não pode!

Foi então que os outros guardiões apareceram, Dimitri e Celeste liderando o grupo. Christian e Adrian não estavam por perto; eles provavelmente não conseguiram acompanhar o ritmo dos outros.

Se seguiu um caos organizado. Os membros daquela sociedade que ainda restavam foram reunidos e levados para serem interrogados. Lissa também foi levada, para tratar de seus machucados. Uma parte de mim que estava enterrada sob toda aquela sanguinolência queria ir atrás dela, mas algo chamou minha atenção: também estavam levando Jesse para cuidados médicos. Eddie ainda me segurava, seu abraço nunca cedendo, mesmo com a minha luta e os meus apelos. A maioria dos adultos estava muito ocupada com os outros para reparar em mim, mas eles perceberam quando recomecei a gritar.

— Vocês não podem deixá-lo ir! Não podem deixá-lo ir!

— Rose, calma — disse Alberta, com a voz tranquila. Como ela não conseguia entender o que estava acontecendo? — Acabou.

— Isso não acabou! Não até eu colocar as mãos no pescoço dele e estrangulá-lo até a morte!

Alberta e alguns outros pareciam perceber que algo sério estava acontecendo ali — mas pelo jeito não achavam que Jesse estava envolvido. Eles todos me olhavam como se eu fosse louca, o que já tinha virado um costume.

— Tirem-na daqui — disse Alberta. — Limpem-na e façam com que se acalme. — Ela não deu mais instruções, mas de alguma maneira eu sabia que era Dimitri que ia cuidar de mim.

Ele veio e me tirou de Eddie. Nessa breve passagem, eu tentei me libertar, mas Dimitri era muito rápido e forte. Ele segurou meu braço e começou a me afastar do lugar.

— Nós podemos fazer isso da maneira fácil ou difícil — disse Dimitri, enquanto andávamos pela floresta. — Não vou deixar você ir atrás de Jesse de jeito algum. Além disso, ele está na clínica, então você não poderia pegá-lo. Se você aceitar isso, eu vou soltá-la. Se sair correndo, vou segurá-la de novo.

Eu pesei minhas opções. A necessidade de fazer Jesse sofrer ainda estava pulsando no meu sangue, mas Dimitri estava certo. Por enquanto.

— Tudo bem — disse eu. Ele hesitou um pouco, talvez se perguntando se eu estava sendo honesta, e aí me soltou. Quando ele viu que não corri, senti que ele pôde relaxar um pouquinho.

— Alberta disse para você me limpar — disse eu, equilibrada. — Quer dizer que estamos indo para a clínica?

Dimitri zombou.

— Boa tentativa. Não vou deixar você chegar perto dele. Nós vamos pegar um kit de primeiros socorros em algum outro lugar.

Ele me levou para longe do local do ataque, para uma área ainda próxima dos limites do campus. Logo percebi para onde ele estava indo. Era uma cabana. Antigamente, quando havia mais guardiões no campus, alguns ficavam nesses lugares afastados, dando uma proteção contínua nos limites da escola. Elas tinham sido abandonadas há muito tempo, mas essa tinha sido limpa quando a tia de Christian visitara a escola. Ela preferira ficar lá ao alojamento dos visitantes, onde outros Moroi a viam como uma Strigoi em potencial.

Ele abriu a porta. Estava escuro, mas enxerguei bem o suficiente para observá-lo enquanto ele achava fósforos e acendia um lampião. Não produzia muita luz, mas era bom para nossos olhos. Olhando em volta, eu vi que Tasha tinha feito um bom trabalho no lugar. Estava limpo e quase confortável, a cama coberta por uma colcha macia e algumas cadeiras perto da lareira. Tinha até um pouco de comida — enlatados e alguns pacotes — na cozinha, ao lado do quarto.

— Sente-se — disse Dimitri, indicando a cama. Obedeci, e num minuto ele tinha acendido a lareira para iluminar melhor o lugar. Quando ela pegou fogo, ele pegou um kit de primeiros socorros e uma garrafa de água no balcão e voltou para a cama, arrastando uma cadeira, para sentar na minha frente.

— Você tem que me deixar ir — implorei. — Não vê? Não vê que Jesse tem que pagar? Ele a torturou! Fez coisas horríveis com ela.

Dimitri molhou uma gaze e passou no lado da minha testa. Doeu, então eu aparentemente tinha um corte ali.

— Ele vai ser punido, acredite. E os outros também.

— Como? — perguntei, com amargura. — Detenção? Isso que ele fez é tão ruim quanto o que fez Victor Dashkov. Ninguém aqui faz nada! As pessoas cometem crimes e escapam ilesas. Ele precisa sofrer. Todos eles precisam.

Dimitri interrompeu sua limpeza, me dando um olhar preocupado.

— Rose, eu sei que você está chateada, mas você sabe que nós não punimos as pessoas assim. É... brutal.

— É? E o que há de errado nisso? Aposto que evitaria que eles fizessem de novo. — Eu mal conseguia ficar sentada. Todas as partes do meu corpo tremiam de fúria. — Eles precisam sofrer pelo que fizeram! E eu quero fazer com que isso aconteça! Quero machucar todos eles. Quero matar todos eles. — Comecei a me levantar, de repente, sentindo que eu iria explodir. Em uma fração de segundo, suas mãos estavam em meus ombros, me jogando para baixo de novo. O kit de primeiros socorros já tinha sido esquecido. Sua expressão era uma mistura de preocupação e ferocidade. Eu lutei contra ele, e seus dedos me pressionaram mais.

— Rose! Pare com isso! — Ele também estava gritando agora. — Você não quis dizer nada disso. Está estressada e sob muita pressão... isso está transformando um terrível evento em algo ainda pior.

— Pare! — gritei de volta. — Você está sempre fazendo isso. Você é sempre tão racional, não importa quão ruins as coisas estejam. E o que você disse sobre querer matar Victor na prisão? Por que aquilo era aceitável e isso não?

— Porque aquilo era um exagero. Você sabe que sim. Mas isso... isso é algo diferente. Tem alguma coisa errada com você agora.

— Não, tem alguma coisa certa comigo. — Eu estava olhando para ele, esperando que minhas palavras o distraíssem. Se eu fosse rápida o suficiente, talvez... talvez... eu pudesse passar por ele. — Eu sou a única por aqui que quer fazer algo a respeito, e se isso é errado, sinto muito. Você continua querendo que eu seja uma pessoa impossivelmente perfeita, mas eu não sou! Não sou uma santa como você.

— Nenhum de nós é um santo — disse ele, secamente. — Acredite em mim, eu não...

Eu arrisquei uma manobra, saltando e o jogando para longe. Isso o tirou de perto de mim, mas eu não fui muito longe. Mal tinha andado um metro da cama quando ele me pegou de novo e me segurou, dessa vez usando todo o peso de seu corpo, me mantendo imobilizada. De alguma maneira, eu devia saber que seria impossível escapar, mas não conseguia pensar direito.

— Me deixe ir! — gritei, pela centésima vez naquela noite, tentando soltar minhas mãos.

— Não — disse ele, com a voz dura e quase desesperada. — Não até você esquecer isso. Essa não é você!

Tinha lágrimas quentes em meus olhos.

— É, sim! Me deixe ir!

— Não é. Não é você! Não é você. — Havia agonia em sua voz.

— Você está errado! É...

Minhas palavras secaram. Não é você. Era o mesmo que eu tinha dito a Lissa quando eu a assisti, aterrorizada, torturando Jesse com magia. Eu ficara parada ali, sem acreditar no que ela estava fazendo. Ela não tinha percebido que tinha perdido o controle e estava quase virando um monstro. E agora, olhando nos olhos de Dimitri, vendo seu pânico e amor, percebi que o mesmo aconteceu comigo. Eu estava como ela, tão determinada, tão cega por emoções irracionais que eu nem ao menos reconhecia minhas próprias ações. Era como se eu estivesse sendo controlada por outra coisa.

Tentei lutar contra isso, arrancar aqueles sentimentos que queimavam dentro de mim. Eles eram muito fortes. Eu não conseguia. Eu não conseguia deixá-los. Estavam me controlando completamente, como tinham feito com Anna e a professora Karp.

— Rose — disse Dimitri. Era apenas o meu nome, mas era tão forte, tão cheio de sentido. Dimitri tinha uma fé absoluta em mim, fé na minha força e bondade. E ele tinha força também, uma força que eu sentia que ele não hesitaria em me emprestar se eu precisasse. Deirdre podia estar certa sobre eu ficar guardando ressentimentos de Lissa, mas ela estava completamente errada sobre Dimitri. O que nós tínhamos era amor. Nós éramos como duas metades de um inteiro, sempre prontos para apoiar o outro. Nenhum de nós era perfeito, mas isso não importava. Com ele, eu podia vencer essa raiva que me preenchia. Ele acreditava que eu era mais forte do que aquilo. E eu era.

Devagar, bem devagar, eu senti a escuridão desaparecer. Parei de lutar contra ele. Meu corpo tremia, mas não mais por causa da fúria. Era medo. Dimitri imediatamente reconheceu a mudança e me soltou.

— Ah, meu Deus — disse eu, com a voz tremendo.

Sua mão tocou o canto do meu rosto, dedos leves na minha bochecha.

— Rose — respirou ele. — Você está bem?

Eu engoli as lágrimas.

— Eu... eu acho que sim. Por enquanto.

— Acabou — disse ele. Ele ainda estava me tocando, dessa vez tirando cabelo do meu rosto. — Acabou. Tudo vai ficar bem.

Eu balancei a cabeça.

— Não. Não vai. Você... você não entende. É verdade; tudo com o que eu me preocupava. Sobre Anna... Sobre eu pegar a loucura do espírito... Está acontecendo, Dimitri. Lissa enloqueceu lá com Jesse. Ela estava fora de controle, mas eu acabei com aquilo, porque suguei sua raiva e a coloquei em mim. E é... é horrível. É como se eu fosse, sei lá, uma marionete. Não consigo me controlar.

— Você é forte — disse ele. — Não vai acontecer de novo.

— Não — disse eu. Podia ouvir minha voz fraquejando enquanto eu tentava sentar direito. — Isso vai acontecer de novo. Eu vou ficar como a Anna. Eu vou ficar pior e pior. Dessa vez, foi sede de sangue e ódio. Eu queria destruí-los. Eu precisava destruí-los. E da próxima vez? Não sei. Talvez será apenas loucura, como com a professora Karp. Talvez eu já esteja louca, e é por isso que vejo Mason. Talvez seja depressão, como Lissa tinha. Eu vou continuar caindo e caindo, e aí serei como a Anna e vou me suici...

— Não — interrompeu Dimitri, gentilmente. Ele aproximou seu rosto do meu, nossas testas quase se tocando. — Não vai acontecer com você. Você é muito forte. Vai lutar contra isso, como fez dessa vez.

— Eu só consegui porque você estava aqui. — Ele me envolveu com os braços, e eu coloquei minha cabeça em seu peito. — Não consigo fazer sozinha — sussurrei.

— Consegue, sim — disse ele. Tinha um tom trêmulo em sua voz. — Você é tão, tão forte... Por isso eu amo você.

Eu fechei os olhos com bastante força.

— Você não devia. Vou virar algo terrível. Eu posso até já ser algo terrível. — Eu lembrei de outros comportamentos, de como eu vinha perdendo a cabeça com todos. O jeito como eu tentara assustar Ryan e Camilla.

Dimitri se afastou, para olhar em meus olhos. Ele segurou meu rosto entre as mãos.

— Você não é. Você não vai virar — disse ele. — Não vou deixar. Não importa o que aconteça, eu não vou deixar você.

Uma emoção encheu meu corpo de novo, mas agora não era ódio ou ira, nem nada disso. Era quente e maravilhoso e fazia meu coração doer — de uma maneira boa. Eu passei os braços em volta de seu pescoço e nossos lábios se encontraram. O beijo foi amor puro, doce e feliz, sem desespero ou escuridão. No entanto, a intensidade do nosso beijo aumentou. Era ainda cheio de amor, mas se tornou algo mais — algo faminto e poderoso. A eletricidade que tinha corrido entre nós quando lutáramos e eu o mantivera no chão voltou, nos envolvendo agora.

Isso me lembrava da noite em que estivemos sob o feitiço da luxúria de Victor, os dois controlados por forças interiores que não conseguíamos dominar. Era como se estivéssemos morrendo de fome, ou nos afogando, e só a outra pessoa pudesse nos salvar. Eu me agarrei a ele, um braço ao redor de seu pescoço, enquanto a minha mão segurava suas costas com tanta força que minhas unhas quase penetravam a carne. Ele me deitou na cama. Suas mãos estavam ao redor da minha cintura, e uma delas escorregou para a minha coxa e a colocou por cima dele, quase envolvendo-o.

Ao mesmo tempo, nós nos afastamos um pouco, ainda continuando muito próximos. Tudo no mundo estava esquecido naquele momento.

— Não podemos... — disse ele.

— Eu sei.

Então sua boca estava na minha de novo, e dessa vez eu sabia que não haveria volta. Não havia barreiras agora. Nossos corpos se enlaçaram enquanto ele tentava tirar meu casaco, e aí sua camisa, a minha camisa... Realmente parecia como quando estávamos lutando mais cedo — a mesma paixão e calor. Eu acho que, no final das contas, os instintos que controlavam a violência e o sexo não eram tão diferentes. Eles todos vinham do nosso lado animal.

Mesmo assim, conforme as roupas saíam, as coisas ultrapassaram a paixão animal. Era doce e maravilhoso ao mesmo tempo. Quando eu olhei em seus olhos, pude ver sem dúvida que ele me amava mais do que qualquer pessoa no mundo, que eu era sua salvação, da mesma maneira que ele era a minha. Eu nunca tinha imaginado que minha primeira vez seria numa cabana na floresta, mas percebi que o lugar não importava. A pessoa, sim. Com alguém que você amasse, você poderia estar em qualquer lugar, e seria incrível. A cama mais luxuosa do mundo não importaria se fosse com alguém que você não amasse.

E, ah, eu o amava. Eu amava tanto que doía. Todas as nossas roupas estavam, finalmente, numa pilha no chão, mas a sensação de sua pele na minha era mais do que suficiente para me aquecer. Eu não conseguia saber onde meu corpo acabava e o dele começava, e aí eu decidi que era assim que eu sempre quisera estar. Eu não queria me separar dele nunca mais.

Eu queria ter as palavras certas para descrever o sexo, mas nada do que eu dissesse poderia realmente precisar como era incrível. Eu me senti nervosa, excitada e zilhões de outras coisas. Dimitri parecia tão sagaz, hábil e infinitamente paciente — como nos nossos treinos de combate. Segui-lo parecia algo natural, mas ele também estava mais do que desejoso de me deixar ficar no controle. Nós éramos iguais, finalmente, e todo toque tinha poder, até a mais suave carícia de seus dedos.

Quando acabou, eu me virei com as costas contra ele. Meu corpo doía... mas ao mesmo tempo era incrível, alegre e contente. Queria que já tivéssemos feito isso há muito tempo, mas eu também sabia que não teria sido certo até aquele exato momento.

Eu descansei minha cabeça no peito de Dimitri, me confortando em seu calor. Ele beijou minha testa e passou os dedos no meu cabelo.

— Eu amo você, Roza. — E me beijou de novo. — Eu sempre estarei aqui para você. Não vou deixar nada acontecer.

As palavras eram maravilhosas e perigosas. Ele não devia ter dito nada daquilo para mim. Não devia estar prometendo que me protegeria, não quando ele deveria dedicar sua vida a proteger Moroi, como Lissa. Eu não poderia vir em primeiro lugar em seu coração, como ele não poderia vir primeiro no meu. Era por isso que eu também não devia ter dito o que disse — mas falei, de qualquer maneira.

— E eu não deixarei nada acontecer a você — prometi. — Eu amo você. — Ele me beijou de novo, engolindo quaisquer outras palavras que eu pudesse ter dito.

Ficamos deitados juntos por um tempo depois disso, abraçados, sem dizer muito. Eu poderia ficar daquele jeito para sempre, mas, no fim, a gente sabia que precisava voltar. Os outros eventualmente iriam nos procurar para registrar o meu relato, e, se eles nos achassem assim, as coisas ficariam feias.

Nós nos vestimos, o que não foi fácil, uma vez que parávamos o tempo todo para nos beijarmos. Por fim, saímos da cabana relutantemente. Nós ficamos de mãos dadas, sabendo que só poderíamos mantê-las assim pelos próximos momentos. Quando chegássemos perto do coração do campus, nós teríamos que voltar ao trabalho, como sempre. Mas, por ora, tudo no mundo era dourado e lindo. Cada passo que eu dava era cheio de alegria, e o ar ao nosso redor parecia zumbir uma canção.

Questionamentos giravam pela minha cabeça, é claro. O que tinha acabado de acontecer? Para onde tinha ido o nosso autocontrole? Por ora, eu não me importava. Meu corpo ainda estava quente e desejoso dele e — de repente eu parei. Outro sentimento — um ruim — estava tomando força dentro de mim. Era estranho, como ondas rápidas e inebriantes de náusea, misturadas com uma dormência na minha pele. Dimitri tinha parado imediatamente e me dado um olhar confuso.

Uma forma pálida e meio luminescente tinha aparecido na nossa frente. Mason. Ele estava com a mesma aparência de sempre — ou será que não? A tristeza estava lá, mas eu podia ver outra coisa que eu não conseguia decifrar. Pânico? Frustração? Eu podia jurar que era medo, mas, sinceramente, do que um fantasma teria medo?

— O que houve? — perguntou Dimitri.

— Está vendo ele? — sussurrei.

Dimitri seguiu o meu olhar.

— Ele quem?

— Mason.

A expressão triste de Mason ficou pior. Eu podia não ser capaz de decifrar o que era, mas sabia que não era nada bom. O sentimento de náusea dentro de mim piorou, mas de alguma maneira eu sabia que não tinha a ver com ele.

— Rose... nós temos que voltar... — disse Dimitri, cautelosamente. Ele ainda não estava acostumado com o fato de eu ver fantasmas.

Mas não me mexi. O rosto de Mason estava me dizendo algo mais — ou tentando.

Havia algo aqui, alguma coisa importante que eu precisava saber. Mas ele não conseguia falar.

— O quê? — perguntei. — O que é?

Um olhar de frustração apareceu em seu rosto. Ele apontou para trás de mim, e depois deixou o braço cair.

— Me diga — pedi, minha frustração se igualando à dele. Dimitri estava olhando para frente e para trás, entre Mason e eu, embora Mason fosse provavelmente só um espaço vazio aos olhos dele.

Eu estava concentrada demais em Mason para me preocupar com o que Dimitri pensaria. Havia algo ali. Algo grande. Mason abriu a boca, querendo falar, como das outras vezes, mas ainda não conseguia emitir som algum. Exceto que, dessa vez, depois de alguns segundos agonizantes, ele conseguiu. As palavras eram quase inaudíveis.

— Eles... estão... chegando...


Vinte e quatro

O mundo inteiro tinha parado. Àquela hora da noite, não havia pássaros nem nada, mas tudo parecia mais quieto do que o normal. Até mesmo o vento havia se calado. Mason olhava para mim, suplicante. A náusea e o desconforto aumentaram.

E então, eu descobri.

— Dimitri — disse eu, em tom de urgência —, tem Strig...

Tarde demais. Dimitri e eu o vimos ao mesmo tempo, mas Dimitri estava mais perto. Rosto pálido, olhos vermelhos. O Strigoi avançou em nossa direção, e eu podia jurar que ele estava voando, como dizem as lendas sobre vampiros. Mas Dimitri era tão rápido e praticamente tão forte quanto ele. Estava com sua estaca — a de verdade, não a de treinamento — em mãos e retribuiu o ataque do Strigoi. Eu acho que o Strigoi havia contado com o elemento surpresa. Eles se engalfinharam e, por um instante, a luta parecia empatada; nenhum dos dois estava em vantagem. E então, a mão de Dimitri encontrou um caminho, fincando a estaca no coração do Strigoi. Os olhos vermelhos se arregalaram, surpresos, e o corpo caiu no chão.

Dimitri se virou para mim, para ter certeza de que eu estava bem, e milhões de mensagens silenciosas foram trocadas por nós. Ele girou e observou a floresta, mirando a escuridão. Minha náusea havia aumentado. Eu não sabia por quê, mas, de algum jeito, parecia que eu podia sentir os Strigoi ao nosso redor. Era isso que estava fazendo eu me sentir mal. Dimitri voltou a olhar para mim, e aquele seu olhar era algo que eu nunca vira antes.

— Rose, me escute. Corra, corra o mais rápido que puder e volte para o seu dormitório. Avise aos guardiões.

Eu concordei. Não havia como discutir ali.

Me alcançando, ele pegou meu braço e me encarou, para ter certeza de que eu entenderia suas próximas palavras:

— Não pare — disse ele. — Não importa o que você ouça, não importa o que você veja, não pare. Não até que você tenha avisado aos outros. Não pare a menos que seja diretamente confrontada. Entendeu?

Eu concordei de novo. Ele me soltou.

— Diga buria a eles.

Concordei de novo.

— Corra.

Eu corri. E não olhei para trás. Eu não me perguntei o que ele iria fazer, porque eu já sabia. Ele iria deter quantos Strigoi conseguisse, para que eu pudesse pedir ajuda. E, um instante depois, ouvi grunhidos e pancadas, me dizendo que ele havia encontrado outro. Por um breve instante, fiquei preocupada com ele. Se ele morresse, eu certamente morreria também. Mas então eu deixei aquilo de lado. Eu não podia pensar em apenas uma pessoa, não quando centenas de vidas dependiam de mim. Havia Strigoi em nossa escola. Isso era impossível, não podia acontecer.

Meus pés atingiam o chão duro espirrando água suja e lama. Ao meu redor, eu achava que podia ouvir vozes e ver formas — não as dos fantasmas do aeroporto, mas as dos monstros que eu temia há tanto tempo. Mas nada me deteve. Quando Dimitri e eu começáramos a treinar juntos, ele me fazia correr voltas e voltas diariamente. Eu reclamava, mas ele enfatizava sempre que aquilo era essencial. A corrida me deixaria mais forte, dizia ele. E acrescentava que chegaria um dia em que eu não poderia lutar e teria que fugir. Este dia chegou.

O dormitório dos dampiros apareceu à minha frente, com mais ou menos metade das janelas acesas. Era quase hora do toque de recolher, e as pessoas estavam indo dormir. Eu entrei correndo pelas portas, sentindo que meu coração ia explodir depois da corrida. A primeira pessoa que vi foi Stan, e quase o atropelei. Ele segurou meus pulsos para me deter.

— Rose, o que...

— Strigoi — disse eu, com dificuldade. — Há Strigoi no campus.

Ele me encarou, e eu o vi ficar boquiaberto pela primeira vez. E então, ele se recuperou, e vi imediatamente o que ele estava pensando. Mais histórias de fantasmas.

— Rose, eu não sei do que...

— Eu não estou maluca! — gritei. Todos os que estavam na entrada do dormitório nos encaravam. — Eles estão lá fora! Eles estão lá fora, e Dimitri está lutando sozinho contra eles. Você precisa ajudá-lo! — O que é que Dimitri havia me dito? Qual era a palavra? — Buria. Ele pediu para eu dizer buria.

E, num segundo, Stan foi embora.

Eu nunca havia visto nenhum treinamento para ataques de Strigoi, mas os guardiões devem tê-los feito. Tudo acontecia rápido demais para que eles não os tivessem feito. Cada guardião no dormitório, não importava se estava acordado ou não, apareceu no hall em questão de minutos. Ligações foram feitas. Eu fiquei parada num semicírculo com outros aprendizes, observando os mais velhos organizarem tudo com uma eficiência impressionante. Olhando ao meu redor, percebi uma coisa: não havia outros alunos do último ano comigo. Uma vez que já era domingo à noite, todos haviam voltado para a experiência de campo para proteger seus Moroi. Isso era estranhamente relaxante. Os dormitórios Moroi tinham uma linha extra de defesa.

Bom, pelo menos a parte Moroi adolescente tinha. O campo do ensino fundamental não tinha isso, havia somente a proteção regular dos guardiões, assim como as muitas defesas que nosso dormitório tinha, como grades nas janelas. Coisas que não deteriam os Strigoi, mas os atrasariam. Ninguém nunca tinha pensado em muito mais que isso. Nunca tinha sido necessário, não com os escudos.

Alberta havia se juntado ao grupo, e estava enviando equipes por todo o campus. Algumas foram proteger os prédios, outras eram equipes de caça, trabalhando para achar Strigoi e tentar descobrir quantos deles estavam por lá. Conforme o número de guardiões foi diminuindo, eu dei um passo à frente.

— O que devemos fazer? — perguntei.

Alberta se virou em minha direção. Seus olhos analisaram por cima de mim e dos que estavam atrás de mim, com idades variando de catorze anos a apenas um pouco mais novos do que eu. Algo chamava a atenção em seu rosto. Tristeza, eu acho.

— Vocês ficam aqui no dormitório — disse ela. — Ninguém pode sair, o campus inteiro está em estado de segurança máxima. Subam para seus andares, haverá guardiões lá para organizá-los em grupos. É menos provável que os Strigoi cheguem até os andares superiores vindos de fora. Se eles entrarem aqui... — Ela observou ao redor, olhou para a porta e as janelas sendo monitoradas. Ela sacudiu a cabeça. — Bem, nós resolveremos isso.

— Eu posso ajudar! — disse eu. — Você sabe que posso!

Vi que ela estava a um passo de discordar, mas então ela mudou de ideia. Para minha surpresa, Alberta consentiu.

— Leve-os para cima. Cuide deles.

Eu ia reclamar por ficar de babá, mas ela fez algo realmente impressionante. Alberta colocou a mão dentro de seu casaco e me entregou uma estaca de prata. Uma estaca de verdade.

— Vá — disse ela. — Precisamos deles fora do caminho, aqui.

Eu comecei a me virar, mas parei.

— O que significa buria?

— Tempestade — respondeu ela levemente. — É “tempestade” em russo.

Guiei os outros aprendizes pelas escadas, direcionando-os para os seus andares. A maioria estava aterrorizada, o que era perfeitamente compreensível. Alguns poucos, em especial os mais velhos, se sentiam como eu. Eles queriam fazer alguma coisa, qualquer coisa que pudesse ajudar. E eu sabia que, mesmo que estivessem a um ano de sua formatura, eles eram letais à sua própria maneira. Separei uns dois ou três.

— Não deixem que eles entrem em pânico — disse eu em voz baixa. — E mantenham-se alerta. Se algo acontecer aos guardiões mais velhos, vai sobrar para vocês.

Seus rostos estavam sérios, e eles balançaram a cabeça, concordando com minhas instruções. Eles entenderam perfeitamente. Havia alguns aprendizes, como Dean, que nem sempre entendiam a seriedade da vida que levávamos. Mas a maioria entendia. Nós amadurecemos rápido.

Fui para o segundo andar, porque percebi que lá eu seria mais útil. Se algum Strigoi conseguisse passar do primeiro, esse seria o próximo alvo óbvio. Mostrei minha estaca para os guardiões em serviço e repeti o que Alberta havia dito. Eles respeitaram a vontade dela, mas eu podia ver que não queriam que eu me envolvesse muito. Eles me mandaram para uma ala que tinha apenas uma janela pequena. Somente alguém do meu tamanho, ou menor, conseguiria passar por ali, e eu sabia que essa parte do prédio era praticamente impossível de ser escalada, por causa do formato da sua fachada.

Mesmo assim, eu continuei a postos, desesperada para saber o que estava acontecendo. Quantos Strigoi havia lá? Onde eles estavam? Eu percebi, então, que havia uma boa maneira de descobrir.

Ainda prestando atenção na janela o máximo que eu conseguia, limpei minha mente e escorreguei para a cabeça de Lissa.

Ela estava com um grupo de outros Moroi, também num andar superior do seu dormitório. Os procedimentos de segurança máxima eram, sem dúvida, os mesmos por todo o campus. Havia mais tensão no grupo dela do que no meu, provavelmente porque, mesmo que inexperientes, os aprendizes mais jovens tinham alguma ideia de como lutar contra Strigoi. Os Moroi não tinham nenhuma, embora houvesse aqueles grupos políticos tentando instigar algumas sessões de treinamento. A logística daquilo ainda estava sendo planejada.

Eddie estava perto de Lissa. Ele parecia tão forte e feroz — parecia que conseguiria, sozinho, acabar com todos os Strigoi do campus. Muito me alegrava que ele, entre todos os meus colegas de turma, tivesse sido designado para ela.

Já que eu estava completamente imersa em sua cabeça agora, eu tinha total conhecimento dos seus sentimentos. A sessão de tortura de Jesse parecia insignificante perto de um ataque Strigoi. Obviamente, ela estava aterrorizada. Mas seu medo maior não era por ela, e sim por mim e Christian.

— Rose está bem — disse uma voz por perto. Lissa olhou para Adrian. Ele estava ali no dormitório, em vez de no alojamento dos visitantes. Trazia sua tradicional cara de tédio, mas eu podia ver o medo por trás de seus olhos verdes. — Ela pode acabar com qualquer Strigoi. Além disso, Christian disse que ela estava com Belikov. Ela provavelmente está mais segura do que nós.

Lissa concordou, querendo acreditar naquilo desesperadamente.

— Mas Christian...

Adrian, com toda a sua bravata, de repente desviou o olhar. Ele não queria olhar nos olhos dela ou oferecer palavras de consolo. Eu não precisava ouvir a explicação, pois já havia lido a mente de Lissa. Ela e Christian queriam se encontrar sozinhos para conversar sobre o que aconteceu com ela na floresta. Pretendiam escapulir dali e se encontrar no seu “esconderijo”, no sótão da capela. Porém, ela não foi rápida o suficiente, e foi pega pelo toque de recolher, pouco antes do ataque, o que queria dizer que ela ficou no dormitório enquanto Christian estava lá fora.

Foi Eddie que ofereceu as palavras de conforto.

— Se ele está na capela, está bem. Na verdade, ele é o que está mais seguro de nós todos. — Strigoi não podem entrar em solo sagrado.

— A menos que eles a queimem — disse Lissa. — Já fizeram isso antes.

— Quatrocentos anos atrás — disse Adrian. — Acho que eles têm alvos mais fáceis aqui, sem precisar apelar para as práticas medievais.

Lissa tremeu ao ouvir as palavras “alvos mais fáceis”. Sabia que Eddie estava certo sobre a capela, mas não conseguia parar de pensar que Christian talvez estivesse voltando para o dormitório e tivesse sido atacado no meio do caminho. A preocupação a consumia, e ela se sentia impotente, sem ter como fazer ou descobrir qualquer coisa.

Voltei para o meu próprio corpo, permanecendo na minha posição no corredor do segundo andar. Finalmente entendi o que Dimitri havia dito sobre a importância de proteger alguém que não era ligado a mim psiquicamente. Não me entenda mal; eu ainda estava preocupada com a Lissa. Eu me preocupava com ela mais do que com qualquer Moroi no campus. A única maneira de eu não me preocupar seria se ela estivesse a quilômetros de distância, segura, com a proteção de vários guardiões e escudos. Mas pelo menos eu sabia que ela estava tão segura quanto poderia estar naquele momento, e isso já valia de alguma coisa. Quanto ao Christian, eu não fazia ideia. Não havia nenhum laço para me dizer onde ele estava ou, pelo menos, se ele estava vivo. Era isso o que Dimitri queria dizer. É um jogo totalmente diferente quando você não tem um laço, e isso era assustador.

Eu encarava a janela sem prestar atenção a ela. Christian estava lá fora. Ele era meu protegido. E mesmo que a experiência de campo fosse hipotética... bem, isso não mudava a situação.

Ele era um Moroi. Ele poderia estar em perigo. Era eu que devia protegê-lo. Eles vinham primeiro.

Respirei fundo e pensei sobre a decisão que eu tinha que tomar. Eu havia recebido ordens, e guardiões seguem ordens. Com todos os perigos ao nosso redor, seguir ordens era o que nos mantinha organizados e eficientes. Bancar o rebelde podia causar a morte de alguém, como Mason havia provado quando foi atrás do Strigoi em Spokane.

Mas eu não era a única encarando o perigo ali. Todos estavam correndo risco. Não havia segurança, ao menos até que todos os Strigoi tivessem deixado o campus, e eu não tinha ideia de quantos eles eram. Tomar conta dessa janela era apenas algo que eles inventaram para me tirar do caminho. Sim, alguém poderia invadir o segundo andar, e aí eu seria útil. E sim, algum Strigoi poderia tentar entrar por essa janela, mas isso era improvável. Era difícil demais e, como lembrou Adrian, eles tinham modos mais fáceis de encontrar vítimas.

Mas eu poderia sair pela janela.

Eu soube que era errado no momento em que abri a janela. Eu estava me expondo, mas eu enfrentava instintos conflitantes. Obedecer às ordens. Proteger Moroi.

E resolvi que eu precisava saber se Christian estava bem.

O ar frio da noite soprou para dentro da janela. Nenhum som que vinha do lado de fora me ajudava a revelar o que estava acontecendo. Eu já havia saído pela janela do meu quarto inúmeras vezes e tinha certa experiência com isso. O problema era que a pedra logo embaixo da janela era perfeitamente lisa. Não havia apoio. Havia um pequeno parapeito no primeiro andar, mas a distância até ele era maior do que minha altura, então eu não poderia simplesmente deslizar. Se eu conseguisse chegar lá, poderia andar até a quina do prédio, onde algum acabamento festonado me daria o apoio para descer facilmente.

Eu encarei o parapeito abaixo de mim. Eu teria que me jogar até ele. Se eu caísse do modo errado, provavelmente quebraria meu pescoço. Alvo fácil para os Strigoi, como diria Adrian. Depois de uma prece rápida para quem quer que estivesse ouvindo, saí pela janela, segurando-a com as duas mãos enquanto meu corpo chegava o mais perto do parapeito que eu conseguia. Ainda havia uns sessenta centímetros entre mim e o parapeito. Contei até três e soltei a janela, arrastando minhas mãos pela parede enquanto eu caía. Meus pés atingiram o parapeito e fraquejaram, mas meus reflexos de dampira me ajudaram. Recuperei o equilíbrio e fiquei ali, segurando a parede. Eu tinha conseguido. Dali em diante, me movi facilmente até a quina do prédio e desci.

Cheguei ao chão sem perceber que tinha arranhado as mãos. A área à minha volta estava em silêncio, embora eu tivesse a impressão de ter ouvido alguns gritos à distância. Se eu fosse Strigoi, não me meteria com aquele dormitório. Eles teriam uma luta complicada ali, e embora a maioria deles pudesse acabar com um grupo de aprendizes de uma vez só, havia formas mais fáceis. Os Moroi provavelmente não lutariam e não causariam problemas, sem contar que os Strigoi preferiam o sangue deles ao nosso.

Eu me movia cuidadosamente enquanto me encaminhava à capela. A escuridão me protegia, mas os Strigoi podiam enxergar melhor no escuro do que eu. Usei as árvores como proteção, olhando para todos os lados que eu conseguia, sonhando em ter olhos na nuca. Nada, exceto por mais gritos à distância. Percebi então que não estava sentindo a náusea de antes. De alguma forma, ela era um indício da proximidade de Strigoi. Eu não confiava nela o suficiente para andar tranquilamente, mas era um alívio saber que eu tinha algum tipo de sistema de alarme.

No meio do caminho para a capela, eu vi alguém se mexer por detrás de uma árvore. Virei depressa, com a estaca nas mãos, e quase acertei Christian no coração.

— Meu Deus, o que você está fazendo? — sussurrei, desesperada.

— Tentando voltar para o dormitório — disse ele. — O que está acontecendo? Eu ouvi gritos.

— Há Strigoi no campus — respondi.

— O quê? Como?

— Não sei. Você precisa voltar para a capela, lá é seguro. — Eu percebi que chegaríamos lá facilmente.

Christian era tão irresponsável quanto eu às vezes, e eu já esperava praticamente uma briga. Mas não foi o que aconteceu.

— Tudo bem. Você vem comigo?

Eu ia dizer que sim, mas então senti aquele náusea estranha de novo.

— Abaixe! — gritei. Ele se jogou no chão sem hesitar.

Dois Strigoi estavam nos atacando. Os dois vieram para cima de mim, sabendo que eu seria um alvo fácil para suas forças combinadas, e depois partiriam para cima de Christian. Um deles me arremessou em uma árvore. Minha visão ficou embaçada por meio segundo, mas logo me recuperei. Eu contra-ataquei e tive a o prazer de ver a Strigoi cambalear um pouco. O outro, um homem, tentou me agarrar, mas eu me esquivei de suas mãos.

O par de Strigoi me lembrou de Isaiah e Elena, de Spokane, mas eu me recusava a ficar presa às memórias agora. Ambos eram mais altos do que eu, mas a mulher era quase da minha altura. Fui em direção a ele e, então, me desviei e a golpeei o mais rápido que pude. A estaca penetrou seu coração. Surpreendeu a mim e a ela. Foi o primeiro Strigoi que matei com uma estaca.

Eu mal tinha retirado a estaca quando o outro Strigoi me atingiu, rosnando. Tomei um susto, mas mantive o equilíbrio e o encarei de igual para igual. Mais alto, mais forte. Era como a luta contra Dimitri. Ele devia ser mais rápido também. Girávamos, nos encarando, e então avancei e o chutei. Ele nem se mexeu direito. Tentou me agarrar, e mais uma vez me desvencilhei, enquanto tentava arranjar algum jeito de cravar minha estaca nele. Meu movimento não o desacelerou, e ele me atacou imediatamente. O Strigoi me derrubou no chão, prendendo meus braços. Eu tentei afastá-lo, mas ele não se moveu. Pingava saliva de seus caninos, e ele ia movendo seu rosto em direção ao meu. Esse Strigoi não era como Isaiah, que perdia tempo com discursos idiotas. Ele queria matar, sugar meu sangue e depois o de Christian. Eu sentia aqueles caninos contra o meu pescoço e sabia que eu ia morrer. Era horrível. Eu queria tanto viver, tanto... mas era assim que ia acabar. Nos meus últimos instantes, comecei a gritar para Christian correr.

E então, do nada, o Strigoi em cima de mim se acendeu como uma tocha. Ele se levantou, e eu rolei por debaixo dele. Chamas fortes cobriam seu corpo, tornando-o impossível de identificar. Era apenas uma fogueira em forma de homem. Ainda ouvi alguns gritos abafados vindo dele antes que se calasse completamente. O Strigoi caiu no chão, se contorcendo e rolando antes de finalmente parar de se mover. Vapor saía de onde o fogo atingia a neve, e as chamas logo se apagaram, revelando apenas cinzas.

Eu olhava fixamente para os restos queimados. Apenas alguns instantes atrás, eu esperava morrer. Agora, era o meu algoz que estava morto. Eu fiquei chocada ao perceber como estive perto da morte. Vida e morte, tão imprevisíveis, tão perto uma da outra. Existíamos de momento em momento, nunca sabendo quem seria o próximo a deixar este mundo. Eu ainda estava parada olhando para as cinzas e, quando olhei para cima, tudo me pareceu tão doce e bonito. As árvores, as estrelas, a lua. Eu estava viva — e estava feliz com isso.

Virei-me para Christian, que estava agachado no chão.

— Uau — disse eu, ajudando-o a se levantar. Obviamente, foi ele quem me salvou.

— Eu também não acredito — disse ele. — Não sabia que eu tinha tanto poder. — Ele olhou ao redor, mantendo seu corpo rígido e tenso. — Tem mais deles?

— Não — respondi.

— Você parece bem certa disso.

— Bom... isso vai parecer estranho, mas eu acho que posso senti-los. Não me pergunte como — disse, vendo sua boca se abrindo. — Só aceite. Acho que é a habilidade de ver fantasmas, um efeito colateral de ter sido beijada pelas sombras. Esqueça. Vamos voltar para a capela.

Ele não se moveu. Havia uma expressão estranha em seu rosto, especulativa, talvez.

— Rose... você quer mesmo se esconder na capela?

— O que quer dizer com isso?

— Acabamos de matar dois Strigoi — disse ele, apontando para os corpos.

Olhei em seus olhos, e o impacto do que ele estava dizendo me atingiu. Eu podia sentir os Strigoi. Ele podia usar fogo neles. Eu podia matá-los com a estaca. Contanto que nós não déssemos de cara com um grupo de dez ou coisa assim, podíamos fazer um bom estrago. Mas, então, eu voltei à realidade.

— Não posso — respondi calmamente. — Não posso arriscar a sua vida...

— Rose. Você sabe o que podemos fazer. Eu posso ver em seu rosto. Vale a pena arriscar a vida de um Moroi... e, bem, a sua... para matar um bando de Strigoi.

Colocar um Moroi em risco. Levá-lo para enfrentar Strigoi. Isso ia contra tudo o que tinham me ensinado. E, de repente, eu me lembrei do momento de clareza que eu acabara de ter, da maravilha de estar viva. Eu poderia salvar tantos outros. Eu tinha que salvá-los. Eu lutaria o quanto pudesse.

— Não use todo o seu poder neles — disse, por fim. — Você não precisa incinerá-los em dez segundos como acabou de fazer. Apenas atinja-os o suficiente para distraí-los, e então eu acabo com eles. Você pode economizar sua energia.

Um sorriso apareceu em seu rosto.

— Vamos caçar?

Ah, droga. Eu estava me metendo em um sério problema. Mas a ideia era boa demais, excitante demais. Eu queria lutar, queria proteger aqueles que eu amo. O que eu mais queria era ir para o dormitório de Lissa e protegê-la. Mas essa não era a melhor ideia. Lissa tinha meus colegas ao seu redor. Havia outros que não tinham essa sorte. Pensei nos outros alunos, como Jill.

— Vamos para o campus do primário — sugeri.

Corremos um pouco, fazendo o caminho que nós achávamos que nos manteria longe dos Strigoi. Eu ainda não tinha ideia da quantidade com a qual nós estávamos lidando ali, e isso me deixava louca. Quando estávamos quase chegando no campus, eu senti aquela náusea de novo. Avisei a Christian, na mesma hora que um Strigoi o agarrou. Mas Christian era rápido. Chamas atingiram a cabeça do Strigoi. Ele gritou e o soltou, tentando desesperadamente apagá-las. Ele acabou nem vendo quando eu cheguei com a estaca. O ataque todo durou menos de um minuto. Christian e eu nos olhamos.

É, nós éramos incrivelmente bons.

O campus do primário se mostrou um centro de atividades. Strigoi e guardiões estavam lutando sem parar próximos à entrada do dormitório. Por um momento, eu congelei. Havia quase vinte Strigoi, e menos da metade de guardiões. Tantos Strigoi juntos.... Até recentemente, eu nunca tinha ouvido falar em um bando tão grande. Achávamos ter desfeito um grupo grande deles quando matamos Isaiah, mas aparentemente estávamos enganados. Eu me concedi só mais alguns segundos de choque e então entramos no meio da confusão.

Emil estava perto de uma entrada lateral, combatendo três Strigoi. Ele estava todo machucado, e o corpo de um quarto Strigoi jazia a seus pés. Eu me lancei contra um dos três. Ela não esperava pelo meu ataque, então consegui acertá-la com a estaca quase sem nenhuma resistência. Foi muita sorte. Enquanto isso, Christian ateava fogo nos outros. Emil parecia surpreso, mas isso não o impediu de acertar mais um Strigoi. Eu fiquei com o outro.

— Você não devia tê-lo trazido aqui — disse Emil, enquanto íamos em direção a outro guardião para ajudar. — Os Moroi não devem se envolver nisso.

— Os Moroi já deviam ter se envolvido nisso há muito tempo — disse Christian, rangendo os dentes.

Quase não falamos depois disso. O resto foi um borrão. Christian e eu passamos de luta em luta, combinando sua mágica e minha estaca. Nem todas as mortes foram rápidas e fáceis como as primeiras. Algumas lutas foram longas e cansativas. Emil permanecia conosco, e eu, sinceramente, perdi as contas de quantos Strigoi nós matamos.

— Eu conheço você.

Essas palavras me chamaram a atenção. Nessa matança toda, nenhum de nós, amigo ou inimigo, se preocupou em falar. Quem falava era um Strigoi que parecia ter a minha idade, mas certamente era pelo menos dez vezes mais velho. Ele tinha cabelo loiro na altura dos ombros, e olhos de uma cor que eu não conseguia identificar. Eles tinham um anel vermelho, e era isso o que importava.

Minha única resposta foi partir para cima dele com a estaca, mas ele desviou. Christian estava ocupado queimando mais alguns Strigoi, então eu estava sozinha naquela briga.

— Tem algo estranho em você agora, mas eu ainda me lembro. Eu a vi anos atrás, antes de eu ter sido acordado. — É, pelo visto ele não tinha dez vezes a minha idade, não se ele tinha me visto quando era Moroi. Eu esperava que esse papo o distraísse. Ele era bem rápido para um Strigoi principiante. — Você estava sempre com aquela menina Dragomir, a loira. — Consegui chutá-lo e voltar para a minha posição inicial antes que ele pudesse me agarrar a perna. Ele nem se moveu. — Os pais dela queriam que você fosse sua guardiã, certo? Antes de eles morrerem?

— Eu sou a guardiã dela — grunhi. Minha estaca passou perigosamente perto dele.

— Então ela ainda está viva... Havia rumores de que ela tinha morrido no ano passado... — Havia um quê de fascínio em sua voz, que se misturava estranhamente com a malícia. — Você não tem ideia do tipo de recompensa que eu ganharia por matar a última Drago-Aaah!

Ele desviou de minha estaca novamente, mas desta vez eu consegui atingi-lo no rosto. Não o mataria, mas o toque da estaca, tão cheia de vida, era como ácido para um morto-vivo. Ele gritou, mas isso não atrapalhou sua defesa.

— Eu cuido de você quando tiver acabado com ela — rosnou.

— Você nunca vai chegar perto dela — rosnei de volta.

Algo me atingiu pelo lado, um Strigoi com quem Yuri estava lutando. Eu cambaleei, mas consegui atingir seu coração antes que ele recuperasse o equilíbrio. Yuri suspirou um obrigado, e então nos voltamos para a batalha. Só que o Strigoi loiro havia sumido. Não conseguia achá-lo em lugar algum. Outro veio em seu lugar e, enquanto eu partia em sua direção, chamas apareceram ao seu redor, tornando-o um alvo fácil para minha estaca. Christian havia voltado.

— Christian, aquele Strigoi...

— Eu ouvi.

— Temos que ir até ela!

— Ele estava assustando você. Ela está do outro lado do campus, rodeada por aprendizes e guardiões. Ela vai ficar bem.

— Mas...

— Eles precisam de nós aqui.

Eu sabia que ele estava certo. E sabia o quanto era difícil para ele dizer isso. Assim como eu, ele queria correr atrás de Lissa. Apesar de todo o bom trabalho que ele estava fazendo ali, eu suspeitava que ele preferiria gastar toda sua magia para protegê-la, mantendo-a em um círculo de fogo que nenhum Strigoi conseguiria atravessar. Eu não tinha tempo para checar nosso laço com calma, mas pude sentir duas coisas importantes: ela estava viva e ilesa.

Então eu continuei lutando ao lado de Christian e Yuri. Lissa pairava no fundo de minha cabeça, com nosso laço me dizendo que ela estava bem. Fora isso, eu deixei a luta me consumir. Eu tinha apenas um objetivo: matar Strigoi. Não podia deixá-los entrar no dormitório, e muito menos deixar que eles fugissem daquela área e pudessem ir para o dormitório de Lissa. Eu perdi a noção do tempo. Tudo que importava era o Strigoi com quem eu estava lutando. E, assim que ele estivesse morto, o próximo.

Até que não houvesse mais um próximo.

Eu estava cansada e dolorida, adrenalina por todo meu corpo. Christian ficou ao meu lado, ofegante. Ele não havia participado do embate físico, mas usou de muita magia naquela noite, e isso também exigia muito dele. Eu olhava ao nosso redor.

— Precisamos encontrar mais um — disse eu.

— Não há mais nenhum — disse uma voz familiar.

Eu me virei e olhei para Dimitri. Ele estava vivo. Todo o medo que eu senti por ele veio à tona. Eu queria me jogar em cima dele e agarrá-lo com o máximo de força que eu tivesse. Ele estava vivo — machucado e espancado, sim —, mas vivo.

Seu olhar encontrou o meu por um instante, lembrando-me do que ocorrera na cabana. Parecia que já havia se passado cem anos, mas naquele breve instante eu vi amor, preocupação e alívio. Ele também estava preocupado comigo. E então Dimitri se virou e mostrou o céu na direção leste. Eu acompanhei seu movimento. O horizonte estava rosa e roxo. Estava quase amanhecendo.

— Ou eles estão mortos, ou então fugiram — disse ele para mim. Ele variava o olhar entre Christian e eu. — O que vocês dois fizeram...

— Foi idiotice? — sugeri.

Ele sacudiu a cabeça, negando.

— Foi uma das coisas mais incríveis que eu já vi. Metade desses aí são seus.

Eu olhei de volta para o dormitório, chocada com o número de corpos que havia por ali. Nós havíamos matado Strigoi. Um bando deles. Morte e matar são coisas horríveis... mas eu tinha gostado do que eu tinha acabado de fazer. Eu havia vencido os monstros que vieram atrás de mim e daqueles que eu amo.

Foi então que eu percebi uma coisa. Meu estômago se revirou, mas não era como a náusea que sentia com os Strigoi. Isso era causado por algo totalmente diferente. Olhei para Dimitri.

— Não há somente corpos de Strigoi aqui — disse, com uma voz baixa.

— Eu sei. Nós perdemos muitas pessoas, em todos os sentidos da palavra.

Christian franziu as sobrancelhas.

— O que você quer dizer com isso?

Dimitri estava sério e triste.

— Os Strigoi mataram alguns Moroi e dampiros. E alguns... alguns eles levaram embora.


Vinte e cinco

Mortos ou levados embora.

Não era suficiente que os Strigoi tivessem vindo e nos atacado. Eles mataram Moroi e dampiros também, além de terem levado alguns com eles. Isso era algo típico dos Strigoi. Apesar de terem um limite de quanto sangue podem beber por vez, eles costumavam levar prisioneiros para um lanchinho, mais tarde. Ou às vezes, algum Strigoi poderoso que não quisesse fazer o trabalho sujo mandava seus subordinados levarem os reféns. Não importava a razão; isso significava que alguns dos nossos ainda podiam estar vivos.

Alunos, Moroi e dampiros, foram reunidos assim que os prédios foram declarados livres de Strigoi. Os Moroi adultos entraram conosco, deixando os guardiões para avaliar os danos. Eu queria estar com eles desesperadamente, ajudar e fazer a minha parte, mas eles deixaram bem claro que minha parte já havia acabado. Não havia nada que eu pudesse fazer naquele momento, exceto aguardar e me preocupar com os outros. Aquilo ainda parecia surreal. Strigoi atacando nossa escola. Como isso pôde acontecer? A escola era segura. Eles sempre nos ensinaram isso. Ela tinha de ser segura.

Era por isso que nossos anos escolares eram tão longos, e por isso as famílias Moroi aceitavam separar-se dos filhos por grande parte do ano. Valia a pena deixá-los em um lugar seguro. Mas isso não era mais verdade.

Eles precisaram de apenas algumas horas para contar quantos nós perdemos, mas a espera enquanto esses relatórios ficavam prontos parecia durar vários dias. E os números... os números foram cruéis. Quinze Moroi mortos. Doze guardiões mortos. Um grupo de treze Moroi e dampiros foi levado. Os guardiões estimavam que em torno de cinquenta Strigoi atacaram, o que era mais do que surpreendente. Eles haviam achado 28 corpos de Strigoi. O resto aparentava ter escapado, alguns levando vítimas com eles.

Pelo tamanho do grupo deles, perdemos menos pessoas do que se podia esperar. Alguns fatores nos ajudaram. Um foi o alerta rápido. Os Strigoi não haviam nem entrado na parte interna da escola quando eu avisei ao Stan. A escola entrou em estado de segurança máxima rapidamente, e tinha ajudado muito o fato de que já estavam quase todos do lado de dentro para o toque de recolher. A maioria das vítimas Moroi — mortas ou levadas — compreendia os que estavam fora do dormitório quando os Strigoi chegaram.

Os Strigoi não conseguiram entrar nos dormitórios do ensino fundamental, o que Dimitri atribuía a Christian e a mim. Entretanto, eles entraram em um dos outros dormitórios — o que Lissa habitava. Meu estômago se revirou quando eu ouvi isso. E mesmo que eu pudesse sentir que ela estava bem pelo laço, tudo que eu via era o Strigoi loiro, dizendo que ia acabar com os Dragomir. Eu não sabia o que tinha acontecido com ele; o grupo de Strigoi não conseguiu ir longe dentro do dormitório dela, mas houve baixas ali.

Uma delas foi Eddie.

— O quê? — exclamei quando Adrian me contou.

Nós estávamos comendo no refeitório. Eu não sabia mais qual era a refeição desde que o campus invertera o seu horário de funcionamento para a luz do dia, o que acabou com a minha percepção do tempo. O refeitório estava praticamente em silêncio, todas as conversas acontecendo aos cochichos. O único motivo pelo qual os alunos podiam sair de seus dormitórios era para a alimentação. Haveria uma reunião dos guardiões mais tarde, para a qual eu tinha sido chamada, mas, por ora, eu ficara confinada com o resto de meus amigos.

— Ele estava com vocês — disse eu. Foquei em Lissa, quase que a acusando. — Eu o vi com você, pelos seus olhos.

Ela olhou para mim por cima da bandeja de comida que ela não queria comer, seu rosto pálido e cheio de culpa.

— Quando os Strigoi chegaram lá embaixo, ele e outros aprendizes foram ajudar.

— Não acharam o corpo dele — disse Adrian. Não havia nenhum sorriso falso ou debochado em seu rosto. — Foi um dos que eles levaram.

Christian suspirou e se reclinou na cadeira.

— Ele está dado como morto, então.

O refeitório desapareceu. Eu não via mais nenhum deles. Tudo que eu podia ver era aquela sala em Spokane, a sala na qual nós ficamos presos. Eles haviam torturado Eddie e quase o mataram. A experiência o afetou para sempre, mudando o modo como ele se comportava como guardião. Ele se tornara extremamente dedicado, mas isso lhe custou o brilho e o sorriso que ele costumava ter.

E agora estava acontecendo de novo. Eddie capturado. Ele trabalhara tanto para proteger Lissa e os outros, arriscando a própria vida no ataque. Eu não estava perto do dormitório Moroi quando aconteceu, mas me sentia culpada, como se eu devesse ter tomado conta dele.

Claro que eu devia isso a Mason. Mason, que morreu na minha frente e cujo fantasma eu não via desde que ele tinha me avisado da presença dos Strigoi mais cedo. Eu não pude salvá-lo, e agora eu havia perdido o seu melhor amigo também.

Levantei de minha cadeira e joguei minha bandeja para longe. Aquela fúria contra a qual eu estava lutando me atingiu de novo. Se houvesse algum Strigoi ao redor, eu poderia ter acabado com ele sem nem precisar da ajuda mágica de Christian.

— Qual o problema? — perguntou Lissa.

Eu olhei para ela sem acreditar.

— Qual o problema? Qual o problema? Você realmente precisa perguntar isso? — No silêncio do refeitório, minha voz ecoava. As pessoas me encaravam.

— Rose, você sabe o que ela quis dizer — disse Adrian, com uma voz estranhamente calma. — Estamos todos nervosos. Sente-se, vai ficar tudo bem.

Por um instante, eu quase o ouvi. Mas então acordei. Ele estava tentando usar compulsão para me acalmar. Eu olhei para ele.

— Não vai ficar tudo bem, a menos que a gente faça alguma coisa.

— Não há o que fazer — disse Christian. Ao seu lado, Lissa estava em silêncio, ainda magoada pelas palavras ríspidas que usei com ela.

— Vamos ver se não há nada a fazer.

— Rose, espere — chamou ela. Lissa estava preocupada comigo, e assustada também. Isso era mesquinho e egoísta, mas ela não queria que eu a deixasse. Ela estava acostumada a me ter sempre por perto. Eu a fazia sentir segura. Mas eu não podia ficar, não agora.

Atravessei os corredores e fui em direção à luz forte lá fora. A reunião dos guardiões só aconteceria dali a algumas horas, mas eu não me importava. Eu precisava falar com alguém imediatamente. Corri para o prédio dos guardiões. Havia outra pessoa entrando lá, e, devido à minha pressa, nos trombamos.

— Rose?

Minha fúria se transformou em surpresa.

— Mãe?

Minha mãe, a famosa guardiã Janine Hathaway, estava ali na porta. Tinha a mesma aparência de quando eu a havia visto no ano-novo. O cabelo ruivo e curto e o rosto queimado de sol. Seus olhos castanhos pareciam ainda mais carrancudos do que da última vez, o que certamente queria dizer alguma coisa.

— O que você está fazendo aqui? — perguntei.

Como eu já havia dito a Deirdre, minha mãe e eu tivemos um relacionamento conturbado por praticamente toda a minha vida, grande parte pela distância que inevitavelmente se cria quando sua mãe é uma guardiã. Eu guardei ressentimento por anos, e nós ainda não estávamos lá muito próximas, mas ela esteve ao meu lado depois da morte de Mason, e eu acho que nós duas esperávamos avanços nos anos seguintes. Ela se foi depois do ano-novo e, pelo que eu soube, havia voltado para a Europa com o membro dos Szelsky que ela protegia.

Ela abriu a porta, e eu a segui. Seus modos eram bruscos e frios, como sempre.

— Vim para ajudar a diminuir o déficit de guardiões. Eles chamaram ajuda extra para reforçar o campus.

Diminuir o déficit. Substituindo os guardiões que foram mortos. Todos os corpos tinham sido retirados — Strigoi, Moroi e dampiros —, mas o buraco deixado pelos que se foram estava claro para todos. Eu ainda podia vê-los quando fechava os olhos. Mas, com ela aqui, eu percebi que tinha uma oportunidade. Segurei seu braço, o que chamou sua atenção.

— Precisamos ir atrás deles. Resgatar os que foram levados.

Ela me olhou cautelosamente, um leve franzir de sobrancelha como única indicação de seus sentimentos.

— Nós não fazemos esse tipo de coisa, você sabe disso. Temos que proteger os que estão aqui.

— Mas e aqueles treze? Não devíamos protegê-los? E você já foi em uma missão de resgate antes.

Ela sacudiu a cabeça.

— Aquilo foi diferente, nós tínhamos uma pista. Nós não saberíamos onde encontrar esse grupo, mesmo que quiséssemos.

Eu sabia que ela estava certa. Os Strigoi não deixaram uma trilha fácil de seguir. Mas ainda assim... de repente, eu tive uma ideia.

— Eles ergueram os escudos de volta, certo? — perguntei.

— Sim, quase imediatamente. Ainda não sabemos como foram quebrados. Não havia sinal de estacas para perfurá-los.

Pensei em lhe contar a minha teoria, mas ela ainda não sabia sobre os meus fantasmas.

— Você sabe onde o Dimitri está?

Ela apontou na direção de grupos de guardiões que se apressavam vindos de toda a parte.

— Tenho certeza de que ele está ocupado em algum lugar. Todos estão. E agora eu preciso avisar que cheguei. Sei que você foi convidada para a reunião, mas ela está longe de começar... Você devia tentar não atrapalhar.

— Pode deixar... mas preciso ver Dimitri primeiro. É importante. Pode ter um grande papel no que vai acontecer na reunião.

— O que é? — perguntou ela, desconfiada.

— Ainda não posso explicar... é complicado. Levaria tempo demais. Ajude-me a encontrá-lo e a gente conta depois.

Minha não parecia muito feliz com a ideia. Afinal de contas, Janine Hathaway não é o tipo de pessoa acostumada a ouvir um não. Mas mesmo assim ela me ajudou a encontrar Dimitri. Depois dos eventos nas férias de inverno, ela passou a me ver como algo mais do que uma adolescente infeliz. Achamos Dimitri com outros guardiões, estudando um mapa do campus e planejando a distribuição dos guardiões recém-chegados. Havia pessoas suficientes ao redor do mapa para que ele conseguisse escapulir e falar comigo.

— O que está acontecendo? — perguntou ele assim que nós saímos do aposento. Mesmo no meio dessa crise, mesmo se preocupando muito com os outros, eu vi que havia uma parte dele que só se preocupava comigo. — Você está bem?

— Eu acho que nós devíamos começar uma missão de resgate.

— Você sabe que nós...

— ...não costumamos fazer isso, sim, eu sei. E sei também que nós não sabemos onde eles estão... mas talvez eu saiba.

Ele franziu as sobrancelhas.

— Como?

Eu disse a ele como Mason tinha nos avisado do ataque na noite anterior. Dimitri e eu não tivéramos tempo para conversar em particular desde então, logo não discutimos sobre o que aconteceu na ocasião do ataque. Também não tivemos tempo de falar sobre o que aconteceu na cabana.

Isso me fez sentir estranha, porque era exatamente sobre isso que eu mais queria falar, mas eu não podia. Não com tanta coisa acontecendo. Então continuei tentando tirar essas memórias sobre o sexo da minha cabeça, mas elas insistiam, ressurgindo e aumentando minhas emoções.

Esperando parecer tranquila e competente, eu continuei explicando minhas ideias.

— Mason está trancado lá fora, agora que os escudos foram reerguidos, mas, de alguma forma, eu acho que ele sabe onde os Strigoi estão. Acho que ele poderia nos mostrar o local. — O rosto de Dimitri me dizia que ele tinha suas dúvidas a respeito disso. — Qual é! Você tem que acreditar em mim depois do que aconteceu.

— Eu ainda estou tendo dificuldades com isso — admitiu. — Mas tudo bem. Suponha que isso seja verdade. Você acha que ele simplesmente vai nos guiar? Você pede e ele faz?

— Sim — disse eu. — Acho que posso. Estive lutando contra ele esse tempo todo, mas acho que, se eu finalmente tentar cooperar, ele vai ajudar. Acho que isso é o que ele sempre quis. Ele sabia que os escudos estavam fracos e que os Strigoi estavam à espera. Eles não podem estar muito longe de nós. Tiveram que parar por causa da luz do dia e se esconder em algum lugar. Podemos chegar até eles antes que os reféns morram. E quando estivermos perto o suficiente, eu posso achá-los. — Então expliquei sobre o sentimento de náusea que eu tive quando os Strigoi estavam por perto. Dimitri não contestou isso. Havia coisas estranhas demais acontecendo para ele pensar em questionar algo.

— Mas Mason não está aqui. Você disse que ele não pode atravessar os escudos. Como vai fazer para ele nos ajudar?

Eu estive pensando nisso.

— Me leve para os portões da frente.

Depois de falar rapidamente com Alberta sobre “investigar uma coisa”, Dimitri me levou para fora, e nós andamos um longo caminho até a entrada da escola. Nenhum de nós disse nada enquanto caminhávamos. Mesmo no meio disso tudo, eu ainda estava pensando na cabana, em estar em seus braços. De certa forma, era parte disso que me ajudava a suportar o resto desse horror. Eu tinha a impressão de que isso passava pela cabeça dele também.

A entrada da escola consistia num longo trecho de grades de ferro que ficava bem em cima dos escudos. O caminho que vinha da estrada principal há vinte quilômetros dali chegava até o portão, que nós quase sempre mantínhamos fechado. Os guardiões tinham uma pequena cabine ali, e a área era monitorada o tempo todo.

Eles ficaram surpresos com nosso pedido, e Dimitri insistiu que era só por um instante. Eles deslizaram o portão pesado, revelando um espaço largo o suficiente para passar apenas uma pessoa por vez. Dimitri e eu chegamos do lado de fora. Uma dor de cabeça me atacou quase imediamente, e eu comecei a ver rostos e formas. Era como no aeroporto. Quando eu estava do lado de fora dos escudos, podia ver todo o tipo de espíritos. Mas agora eu compreendia, e isso não me assustava mais. Era algo que eu precisava controlar.

— Vão embora — disse eu para as formas cinzas ao meu redor. — Não tenho tempo para vocês; vão. — Eu colocava toda a força que podia na minha vontade e em minha voz e, para a minha surpresa, os fantasmas se foram. Um zumbido fraco continuava comigo, lembrando-me de que eles ainda estavam por ali, e que, se eu baixasse a guarda mesmo por um instante, tudo aquilo me atingiria de novo. Dimitri me olhava preocupado.

— Você está bem?

Eu concordei e olhei ao redor. Havia um fantasma que eu queria ver.

— Mason. Preciso de você. — Nada. Tentei o mesmo comando que usei com os outros fantasmas instantes atrás. — Mason. Por favor. Venha aqui.

Não vi nada exceto o caminho à nossa frente escurecendo. Dimitri estava me olhando do mesmo jeito da noite anterior, aquele olhar que dizia que ele estava seriamente preocupado com a minha saúde mental. E, na verdade, eu também me sentia assim, então. O aviso da noite passada foi a prova final de que Mason era real. Mas agora...

Um minuto depois, ele se materializou à minha frente, parecendo um pouco mais pálido que antes. Pela primeira vez desde que aquilo tudo começou, eu estava feliz por vê-lo. Ele, claro, parecia triste, como sempre.

— Finalmente. Você já estava me deixando mal. — Ele apenas me encarou, e eu me arrependi pela brincadeira. — Desculpe. Preciso da sua ajuda de novo. Precisamos achá-lo. Precisamos salvar o Eddie.

Ele concordou.

— Você pode me mostrar onde eles estão?

Ele concordou de novo e virou, apontando a direção que estava quase que exatamente atrás de mim.

— Eles vieram por trás do campus?

Ele concordou de novo e, assim, eu sabia o que tinha acontecido. Eu sabia como os Strigoi entraram, mas não havia tempo para perder falando sobre isso agora. Eu me virei para Dimitri.

— Precisamos de um mapa — disse.

Ele passou pelo portão e falou alguma coisa com os guardiões em serviço. Um instante depois, ele voltou com um mapa e o abriu. O mapa mostrava o layout do campus, assim como as estradas e os terrenos ao redor. Eu o tirei da mão dele e mostrei ao Mason, tentando mantê-lo esticado contra o vento forte.

A única estrada de verdade saindo da escola estava à nossa frente. O resto do campus era cercado por florestas e penhascos. Eu apontei para um pedaço atrás dos terrenos da escola.

— Foi daqui que eles vieram, não foi? Onde primeiro quebraram os escudos?

Mason concordou. Ele apontou com o dedo e, sem tocar no mapa, traçou uma rota pela floresta que flanqueava uma pequena montanha. Seguindo-a por tempo suficiente, ela dava numa pequena estrada de terra que alcançaria a intermunicipal a muitos quilômetros dali. Eu acompanhei por onde ele apontava e subitamente tive minhas dúvidas quanto a usá-lo como guia.

— Não, isso não está certo. Não pode ser. Essa parte da floresta perto da montanha não tem estradas. Eles teriam que ir a pé, e levaria tempo demais para ir da escola até a outra estrada. Não teriam tempo suficiente. Seriam pegos pela luz do sol.

Mason sacudiu a cabeça, para discordar de mim, aparentemente, e mais uma vez traçou o caminho. Ele apontava particularmente para um ponto que não era muito longe dos terrenos da escola. Ao menos, não no mapa. O desenho não era muito detalhado, e imaginei que esse lugar ficasse, provavelmente, a alguns quilômetros dali. Ele manteve o dedo lá, olhando para mim e de novo para o mapa.

— Eles não podem estar lá agora — discordei. — É aberto. Eles podem ter entrado por trás, mas devem ter saído pela frente, pegado algum tipo de veículo e ido embora.

Mason sacudiu a cabeça.

Eu olhei para Dimitri, frustrada. Sentia como se o relógio estivesse correndo contra nós, e a afirmação estranha de Mason de que os Strigoi estavam a alguns quilômetros de distância, em campo aberto, durante o dia, estava me irritando. Eu duvidava sinceramente de que eles tivessem apanhado alguns barracas e armado acampamento.

— Tem algum prédio ou coisa assim lá? — perguntei, apontando para o lugar que Mason havia indicado. — Ele diz que os Strigoi estavam indo para essa estrada. Mas eles não poderiam ter andado depois que o sol saiu, e ele insiste que eles estão lá.

Os olhos de Dimitri focaram o mapa.

— Não que eu saiba. — Ele tirou o mapa de mim e o levou para checar com os outros guardiões. Enquanto eles conversavam, eu olhei de volta para Mason.

— Espero que você saiba do que está falando — alertei.

Ele concordou.

— Você... você os viu? Os Strigoi e os reféns?

Ele fez que sim com a cabeça.

— Eddie ainda está vivo?

Ele fez que sim, e Dimitri voltou.

— Rose... — Havia algo estranho em sua voz quando ele trouxe o mapa, como se não pudesse acreditar no que estava dizendo. — Stephen disse que há cavernas bem na base desta montanha aqui.

Eu olhei nos olhos de Dimitri, sem dúvida tão surpresa quanto ele.

— São grandes o suficiente...

— Grandes o suficiente para os Strigoi se esconderem até a noite? — Ele concordou. — São, sim, e estão a apenas alguns quilômetros daqui.


Vinte e seis

Era quase impossível de acreditar. Os Strigoi estavam praticamente do nosso lado, esperando o cair da noite para conseguirem fugir. Aparentemente, no caos daquele ataque, alguns Strigoi acobertaram seus rastros enquanto outros fizeram parecer que tinham saído por vários lugares do campus. Com a cabeça em nossos próprios problemas, ninguém tinha pensado muito a respeito. Os escudos tinham sido refeitos. Até onde sabíamos, os Strigoi haviam partido, e era isso que importava.

Agora nós tínhamos uma situação estranha pela frente. Em circunstâncias normais — não que um ataque Strigoi daquele tamanho fosse normal —, nós nunca os teríamos perseguido. Os que eram sequestrados por Strigoi normalmente eram dados como mortos e, como minha mãe tinha dito, os guardiões raramente sabiam onde procurar por Strigoi. Dessa vez, no entanto, nós sabíamos. Os Strigoi estavam praticamente encurralados. Essa situação nos colocava em um dilema interessante.

Bem, não era um dilema para mim. Eu sinceramente não conseguia entender por que nós não estávamos naquelas cavernas agora mesmo, aniquilando Strigoi e procurando por sobreviventes. Dimitri e eu voltamos rápido, ansiosos para revelar nossas descobertas, mas tínhamos que esperar todos os guardiões chegarem.

— Não os interrompa — disse Dimitri para mim, quando estávamos prestes a entrar na reunião que ia decidir a nossa próxima ação. Nós estávamos perto da porta, falando baixo. — Sei como você se sente. Eu sei o que quer fazer. Mas gritar e espernear não irão ajudar a fazer as coisas como você quer.

— Gritar e espernear? — exclamei, me esquecendo de falar baixo.

— Estou vendo — disse ele. — Aquele fogo nos seus olhos, de novo. Você quer aniquilar alguém. Foi o que fez você ser tão letal naquela batalha. Mas nós não estamos lutando agora. Os guardiões têm todas as informações de que precisam. Eles farão a escolha certa. Você só tem que ser paciente.

Parte do que ele disse era verdade. Antes da reunião, nós tínhamos repassado todas as nossas informações e pesquisado um pouco mais. A investigação tinha revelado que, vários anos atrás, um dos professores Moroi tinha dado uma aula de geologia e mapeado as cavernas, nos dando tudo o que precisávamos saber sobre elas. A entrada ficava a oito quilômetros da fronteira posterior da escola. A câmara mais longa da caverna era de mais ou menos oitocentos metros, e seu comprimento nos deixava a aproximadamente 32 quilômetros daquela rodovia no mapa.

Acreditávamos que deslizamentos de terra tinham bloqueado as duas entradas. Agora, percebemos que, com a força Strigoi, limpar o caminho não teria sido tão difícil.

Mas eu não tinha certeza se acreditava no que Dimitri dissera sobre os guardiões fazerem a escolha certa. Minutos antes de a reunião começar, eu recorri a minha mãe.

— Por favor — supliquei —, nós temos que fazer isso.

Ela olhou para mim, me desanimando.

— Se houver um resgate, não será uma coisa “nossa”. Você não vai.

— Por quê? Porque nossa vitória foi tão arrasadora da primeira vez que nenhum guardião morreu? — Ela hesitou. — Você sabe que posso ajudar. Você sabe o que eu fiz. Estou a uma semana do meu aniversário e a poucos meses da formatura. Você acha que algo mágico vai acontecer antes disso? Eu tenho mais algumas coisas para aprender, sim, mas eu não acho que sejam coisas tão importantes a ponto de me impedirem de ajudar. Vocês precisam de tanta ajuda quanto conseguirem, e tem muitos outros aprendizes que já estão preparados também. Traga Christian junto, e ninguém poderá nos deter.

— Não — disse ela, rapidamente. — Ele, não. Você nunca devia ter envolvido um Moroi, ainda mais alguém tão novo quanto ele.

— Mas você viu o que ele pode fazer.

Ela não discutiu isso. Eu vi a indecisão no seu rosto. Ela olhou para mim e suspirou.

— Me deixe checar uma coisa.

Eu não sabia aonde ela tinha ido, mas ela se atrasou quinze minutos para a reunião. Até lá, Alberta já tinha informado aos guardiões sobre o que sabíamos. Pelo menos ela pulou os detalhes sobre como tínhamos conseguido as informações, então não precisamos perder tempo falando daquela parte do fantasma. A disposição das cavernas foi examinada com detalhes. Pessoas fizeram perguntas. A hora da decisão havia chegado.

Eu me preparei para ouvir. Lutar contra Strigoi sempre tinha significado me basear numa estratégia defensiva. Nós atacávamos somente quando atacados. Discussões anteriores sobre uma estratégia ofensiva sempre falhavam. Eu esperava o mesmo agora.

Só que eu estava enganada.

Um a um, os guardiões se levantaram e expressaram seu comprometimento em ir à missão de resgate. Enquanto falavam, eu via aquele fogo que Dimitri dizia. Todos estavam prontos para lutar. Eles queriam isso. Os Strigoi tinham ido longe demais. No nosso mundo, havia apenas alguns lugares nos quais estávamos a salvo: a Corte Real e as escolas. Crianças eram mandadas para lugares como a Escola São Vladimir com a certeza de que estariam protegidas. Essa certeza tinha sido abalada, e nós não iríamos suportar isso quietos, ainda mais se pudéssemos salvar algumas vidas. Um sentimento impaciente e vitorioso queimava em meu peito.

— Bem, então — disse Alberta, olhando ao redor. Acho que ela estava tão surpresa quanto eu, embora também fosse a favor do resgate. — Nós planejaremos a logística e iremos. Ainda temos nove horas de luz do dia para ir atrás deles antes que possam escapar.

— Espere — disse minha mãe, levantando-se. Todos os olhos se voltaram para ela, mas ela nem ao menos piscou. Parecia feroz e capaz, e eu estava imensamente orgulhosa dela. — Acho que há uma coisa que deveríamos considerar. Acho que devíamos deixar alguns aprendizes do último ano irem.

Isso deu início a um pequeno rebuliço, mas apenas de uma minoria. Minha mãe deu um argumento parecido com o que eu tinha usado. Ela também salientou que os aprendizes não estariam na linha de frente, mas que serviríamos de apoio no caso de algum Strigoi conseguir passar por eles.

Os guardiões tinham quase aprovado essa ideia quando ela lançou outra bomba.

— Acho que nós devíamos levar alguns Moroi conosco.

Celeste olhou para cima. Ela tinha um enorme corte na lateral do rosto. Isso fez o machucado que eu tinha visto nela outro dia parecer uma mordida de mosquito.

— O quê? Você está maluca?

Minha mãe olhou para ela com uma expressão calma.

— Não. Todos sabemos o que Rose e Christian Ozera fizeram. Um de nossos maiores problemas com os Strigoi é ultrapassar sua força e agilidade para conseguir matá-los. Se levarmos Moroi usuários de fogo, teremos uma distração que nos dará mais tempo. Nós podemos destruí-los.

Um debate começou. Custou-me todo o autocontrole não entrar na discussão. Eu lembrei das palavras de Dimitri sobre não interromper. No entanto, enquanto ouvia, eu me frustrava. Cada minuto que passava era mais um minuto durante o qual não íamos atrás de Eddie e dos outros. Era mais um minuto no qual alguém podia morrer.

Eu virei para Dimitri, sentado ao meu lado.

— Eles estão sendo idiotas — sibilei.

Seus olhos estavam em Alberta, enquanto ela debatia com um guardião que ficava no campus do primário.

— Não — murmurou Dimitri. — Observe. A mudança está acontecendo na sua frente. Pessoas lembrarão este momento como um divisor de águas.

E ele estava certo. Mais uma vez, os guardiões pouco a pouco aceitaram a ideia. Eu acho que era parte da mesma lógica que os fez quererem lutar. Nós tínhamos que nos vingar dos Strigoi. Isso era mais do que uma luta nossa — era dos Moroi também. Quando minha mãe disse que tinha conseguido um monte de professores Moroi voluntários — eles realmente não deixariam estudantes fazerem isso —, a decisão foi tomada. Os guardiões iriam atrás dos Strigoi, e aprendizes e Moroi iriam junto.

Eu me sentia triunfante e exultante. Dimitri estava certo. Aquele era o momento de mudança em nosso mundo.

Mas somente dali a quatro horas.

— Ainda estão chegando mais guardiões — disse Dimitri, quando expressei meu ultraje.

— Em quatro horas, os Strigoi podem ter decidido fazer um lanche!

— Nós precisamos de uma demonstração de força arrasadora — disse ele. — Precisamos de tudo o que tivermos. Sim, os Strigoi podem matar mais algumas pessoas até chegarmos lá. Eu não quero isso, com certeza. Mas, se formos despreparados, podemos perder ainda mais vidas.

Meu sangue fervia. Eu sabia que ele estava certo, e que não havia nada que eu pudesse fazer. Eu odiava isso. Eu odiava ser inútil.

— Venha — disse ele, gesticulando para a saída. — Vamos dar uma volta.

— Aonde?

— Não importa. Nós precisamos acalmá-la, ou não estará pronta para lutar.

— É? Você está com medo de o meu lado negro possivelmente louco aparecer?

— Não, estou com medo de o seu lado normal aparecer, o que não tem medo de cair na luta sem pensar, quando acha que algo é certo.

Eu dei a ele um olhar seco.

— E tem diferença?

— Sim. O segundo me assusta.

Eu resisti à vontade de lhe dar uma cotovelada. Por meio segundo, eu queria poder fechar meus olhos e esquecer de toda a dor e derramamento de sangue ao nosso redor. Queria ficar deitada na cama com ele, rindo e brincando, nenhum dos dois preocupado com nada a não ser um com o outro. Mas isso não era real. A realidade era aquela ali.

— Não irão precisar de nós aqui? — perguntei.

— Não. Agora eles só vão esperar os outros, e eles têm mais pessoas do que o suficiente para armar a estratégia de ataque. Sua mãe está organizando isso.

Eu segui o olhar dele até onde minha mãe estava, no centro de um grupo de guardiões, apontando com movimentos rápidos e fortes para o que pareciam ser alguns mapas. Eu ainda não sabia o que pensar exatamente sobre ela, mas, observando-a agora, eu não podia evitar admirar a sua dedicação. Não havia nenhuma das irritações disfuncionais que eu normalmente experimentava perto dela.

— Tudo bem — disse eu. — Vamos.

Ele me levou a um passeio pelo campus, e nós examinamos os restos das batalhas. A maior parte dos estragos não estava no campus exatamente, é claro. Estava nas pessoas. Mesmo assim, nós podíamos ver alguns sinais do ataque: estragos nos prédios, manchas de sangue em lugares inesperados etc. O estrago mais perceptível era o clima. Mesmo com o dia ensolarado, ainda havia escuridão ao nosso redor, uma tristeza pesada que você quase conseguia tocar. Eu via isso nos rostos de todos os que passavam.

Eu quase esperava que Dimitri fosse me levar aonde alguns dos feridos estavam. Ele passou longe disso, no entanto, e eu meio que sabia por quê. Lissa estava ajudando lá, usando seus poderes em pequenas doses para curá-los. Adrian também estava, embora não pudesse fazer tanto quanto ela. Eles tinham finalmente resolvido que valia a pena arriscar que todos soubessem sobre o espírito. A tragédia ali era grande demais. Além disso, muito sobre o espírito tinha sido revelado no julgamento, e seria só uma questão de tempo mesmo até tudo vir à tona.

Dimitri não me queria perto de Lissa enquanto ela usava magia, o que eu achei interessante. Ele ainda não sabia se eu estava realmente sugando sua loucura, mas ele aparentemente não queria correr esse risco.

— Você me disse que tinha uma teoria sobre o porquê de os escudos terem quebrado — disse ele.

Estendemos nosso passeio pelo campus, até não muito longe de onde a sociedade de Jesse tinha se encontrado na última noite.

Eu tinha quase esquecido. Uma vez que consegui juntar as peças, tudo ficou muito claro. Ninguém havia feito muitas perguntas sobre aquilo, não ainda. As preocupações imediatas eram conseguir novos escudos e cuidar das pessoas. A investigação iria ocorrer depois.

— O grupo de Jesse estava fazendo a iniciação deles aqui, perto dos escudos. Você sabe o princípio de que as estacas podem anular os escudos porque os elementos vão uns contra os outros? Eu acho que foi a mesma coisa. As pessoas na iniciação usaram todos os elementos, e devem ter anulado os escudos da mesma maneira.

— Mas as magias são usadas o tempo todo no campus — lembrou Dimitri. — De todos os elementos. Por que isso nunca aconteceu antes?

— Porque normalmente a magia não é usada tão perto dos escudos. Eles estão nos limites do campus, então não há conflito. Além disso, acho que existe uma diferença na maneira que os elementos são usados. Magia é vida, por isso destrói Strigoi e eles não conseguem atravessar. A magia nas estacas é usada como arma. E assim eram as magias na sessão de tortura. Quando é usada dessa maneira negativa, imagino que anule a magia boa.

Eu tremi, me lembrando daquele sentimento nojento que eu senti quando Lissa usou magia para atormentar Jesse. Não tinha sido natural.

Dimitri encarou uma cerca quebrada que marcava um dos limites da escola.

— Incrível. Eu nunca pensaria que isso fosse possível, mas faz sentido. O princípio é realmente o mesmo para as estacas. — Ele sorriu para mim. — Você pensou bastante sobre isso.

— Não sei. Tudo meio que se juntou na minha cabeça.

Fiquei furiosa, pensando no grupo idiota de Jesse. Já era ruim o suficiente o que eles tinham feito com Lissa. Isso já era o bastante para me fazer querer surrá-los (não mais matá-los; eu tinha aprendido a me controlar um pouco depois da noite passada). Mas isso? Deixar Strigoi entrarem na escola? Como uma coisa tão estúpida e mesquinha da parte deles podia ter levado a esse tipo de desastre? Seria quase melhor se eles tivessem tentado fazer isso de propósito, mas não. Tinha acontecido por causa desse joguinho deles em busca de glória.

— Idiotas — murmurei.

Soprou um vento forte. Eu tremi, e dessa vez foi pela temperatura fria, não pela minha própria sensação de mal-estar. A primavera até podia estar vindo, mas certamente ainda não tinha chegado.

— Vamos voltar para dentro — disse Dimitri.

Nós nos viramos, e, enquanto voltávamos ao centro do campus do secundário, eu a vi. A cabana. Nenhum dos dois desacelerou o passo, ou obviamente olhou para ela, mas eu sabia que ele a percebia tanto quanto eu. Ele provou isso, quando falou um segundo depois.

— Rose, sobre o que aconteceu...

Eu gemi.

— Eu sabia. Eu sabia que isso ia acontecer.

Ele olhou para mim, assustado.

— Que o que ia acontecer?

— Isso. A parte em que você me dá um sermão enorme sobre o que aconteceu ser errado e que nós não devíamos ter feito e que nunca acontecerá de novo. — Até as palavras saírem da minha boca, eu não sabia o quanto tinha medo de ouvi-lo dizer isso.

Ele ainda parecia chocado.

— Por que você pensa isso?

— Porque é assim que você é — disse eu. Acho que eu parecia um pouco histérica. — Você sempre quer fazer a coisa certa. E quando você faz algo errado, você tem que consertar e fazer a coisa certa. E eu sei que você vai dizer que o que nós fizemos não poderia ter acontecido e que você quer...

O resto do que eu poderia ter falado se apagou quando Dimitri me envolveu em seus braços e me puxou para perto dele sob a sombra de uma árvore. Nossos lábios se encontraram, e, enquanto nos beijávamos, me esqueci de todas as minhas preocupações e medos de ele dizer que fizéramos algo errado. Eu até — por mais impossível que pareça — esqueci as mortes e destruições causadas pelos Strigoi. Por um momento.

Quando nós finalmente nos separamos, ele ainda me segurava próxima a ele.

— Não acho que o que fizemos foi errado — disse ele, calmamente. — Eu fico feliz que tenhamos feito. Se pudéssemos voltar no tempo, eu faria de novo.

Um sentimento rodopiante queimou em meu peito.

— Sério? O que fez você mudar de opinião?

— Você é difícil de resistir — disse ele, claramente se divertindo com a minha surpresa. — E... você se lembra do que Rhonda disse?

Tive outro choque, ouvindo-o falar dela. Mas então eu me lembrei de seu rosto quando ele ouviu o que ela disse, e também o que ele disse sobre a avó. Eu tentei me lembrar das palavras exatas de Rhonda.

— Alguma coisa sobre como você iria perder alguma coisa... — Eu aparentemente não lembrava muito bem.

— Você irá perder aquilo que mais estima, então aproveite enquanto pode.

Naturalmente, ele sabia palavra por palavra. Eu tinha zombado das palavras da primeira vez, mas agora eu tentei decifrá-las. Primeiro, eu senti uma grande felicidade: era eu o que ele mais prezava. Então olhei para ele, assustada.

— Espere aí. Você acha que eu vou morrer? Por isso você dormiu comigo?

— Não, não, claro que não. Eu fiz o que fiz porque... acredite, não foi por isso. Sem ligar para os detalhes, ou ainda que sejam verdadeiros, ela estava certa sobre como as coisas podem mudar rapidamente. Nós tentamos fazer o que é certo, ou mesmo o que os outros dizem que é certo. Mas às vezes, quando isso vai de encontro ao que nós somos realmente... você tem que escolher. Mesmo antes do ataque Strigoi, quando eu via você lutando contra os seus problemas, eu percebi o quanto você era importante para mim. Tudo mudou. Eu estava preocupado com você, tão, tão preocupado... Você não tem ideia. E foi inútil eu tentar fingir que poderia colocar a vida de qualquer Moroi antes da sua. Não vai acontecer, não importa se as pessoas disserem que é errado. Então decidi que isso é algo com que eu tenho que lidar. Uma vez tomada a decisão... não havia nada nos impedindo. — Ele hesitou, parecendo rever aquelas palavras em sua cabeça, enquanto tirava o cabelo do meu rosto. — Bem, me impedindo. Eu falo por mim. Não quis que isso soasse como se eu soubesse exatamente por que você fez aquilo.

— Eu fiz porque amo você — disse eu, como se fosse a coisa mais óbvia no mundo. E realmente era.

Ele riu.

— Você pode resumir em uma frase o que eu demorei um discurso inteiro para falar.

— Porque é assim, simples. Eu amo você e não quero ficar fingindo o contrário.

— Nem eu. — Sua mão saiu do meu rosto e foi para a minha mão. Dedos se entrelaçaram, e começamos a andar de novo. — Não quero mais mentir.

— Então, o que vai acontecer agora? Quero dizer, com a gente. Quando tudo isso acabar... com os Strigoi...

— Bom, embora eu odeie reforçar seus medos, você estava certa sobre uma coisa. Nós não podemos ficar juntos de novo... pelo resto do ano escolar, quero dizer. Nós teremos que manter distância.

Fiquei um pouco desapontada com isso, mas eu sabia que ele estava certo. Parecia que nós finalmente tínhamos alcançado o ponto onde não iríamos negar nossa relação, mas era difícil mostrá-la enquanto eu ainda era estudante.

Nossos pés pisaram no lodo. Alguns pássaros cantavam nas árvores, com certeza surpresos por verem tanta atividade de dia por ali. Dimitri encarou o céu, pensativo.

— Depois que você se formar e estiver por aí com a Lissa... — Ele não terminou. Me custou um pouco, mas eu entendi o que ele ia dizer. Meu coração quase parou.

— Você vai pedir para ser transferido, não vai? Você não será o guardião dela.

— É a única maneira que temos de ficar juntos.

— Mas não vamos estar juntos de verdade — lembrei.

— Se nós dois ficarmos com ela, teremos o mesmo problema, eu me preocupando mais com você do que com ela. Ela precisa de dois guardiões dedicados a ela. Se eu puder ser designado para alguém da Corte, estaremos próximos o tempo todo. E em um lugar seguro como aquele, existe mais flexibilidade com os horários dos guardiões.

Uma parte chorona e egoísta minha queria imediatamente dizer o quanto aquilo era péssimo, mas realmente não era. Não havia nenhuma opção ideal para a gente. Cada uma trazia uma série de complicações. Eu sabia que era difícil para ele desistir de Lissa. Ele se importava com ela e queria mantê-la segura com uma paixão quase tão grande quanto a minha. Mas ele se preocupava mais comigo, e ele tinha que fazer esse sacrifício se ainda quisesse honrar suas obrigações de guardião.

— Bem — disse eu, percebendo uma coisa —, poderemos nos ver mais se formos guardiões de pessoas diferentes. Podemos tirar folga juntos. Se nós dois estivéssemos com Lissa, teríamos turnos diferentes e estaríamos sempre separados.

As árvores iam rareando mais à frente, o que era uma pena, porque eu não queria soltar a mão dele. Ainda assim, uma onda de esperança e alegria começou a nascer em meu peito. Parecia errado em meio à tragédia, mas eu não conseguia evitar.

Depois desse tempo todo, depois da dor de cabeça toda, Dimitri e eu iríamos fazer aquilo funcionar. É claro que havia a possibilidade de ele ser chamado para outro lugar que não a Corte, mas mesmo assim nós conseguiríamos arranjar um tempo juntos. O tempo separado seria uma agonia, mas a gente faria aquilo funcionar. E seria melhor do que continuar vivendo uma mentira.

Sim, tudo daria certo. Todas as preocupações de Deirdre sobre eu lidar com peças conflitantes da minha vida foram em vão. Eu conseguiria ter tudo. Lissa e Dimitri. A ideia de que eu poderia estar com os dois me fortalecia. Me faria aguentar o ataque Strigoi. Eu a levaria na minha cabeça, como um amuleto da sorte.

Dimitri e eu não dissemos mais nada por um tempo. Como sempre, nós não precisávamos. Eu sabia que ele estava sentindo a mesma felicidade que eu, apesar de seu exterior sério. Nós estávamos quase fora da floresta, de volta à vista de todos, quando ele falou de novo.

— Você fará dezoito anos logo, mas mesmo assim... — Ele suspirou. — Quando isso vier à tona, muita gente não irá gostar.

— Bom, eles terão que lidar com isso. — Rumores e fofoca eram algo que eu podia aguentar.

— Também sinto que sua mãe terá uma conversa muito séria comigo.

— Você está prestes a combater Strigoi, e é da minha mãe que tem medo?

Eu podia ver um sorriso despontando em seus lábios.

— Ela tem uma força que não pode ser desprezada. De onde você acha que tirou a sua?

Eu ri.

— É um mistério como você me aguenta, então.

— Você vale a pena, pode acreditar.

Ele me beijou de novo, usando a última sombra da floresta para nos acobertar. Em um mundo normal, esse seria um feliz e romântico passeio pela manhã depois de uma transa. Nós não teríamos que nos preparar para uma batalha e nos preocupar com nossos entes queridos. Nós estaríamos rindo e nos provocando, enquanto secretamente planejávamos nossa próxima fuga romântica.

Nós não vivíamos em um mundo normal, é lógico, mas, naquele beijo, foi fácil imaginar que sim.

Eu e ele relutantemente nos separamos e saímos da floresta, voltando para o prédio dos guardiões. Um momento negro estava à nossa frente, mas com aquele beijo ainda queimando em meus lábios eu sentia que podia fazer qualquer coisa.

Até enfrentar um bando de Strigoi.


Vinte e sete

Ninguém parecia ter notado nossa ausência. Mais guardiões, como prometido, haviam aparecido, e agora nós éramos quase cinquenta. Era um exército de verdade, e como no caso dos Strigoi, era um número sem precedentes, exceto por antigas lendas europeias de grandes batalhas entre nossas raças. Nós tínhamos mais guardiões no campus, mas alguns de nós tinham que ficar para trás, para proteger a escola. Vários de meus colegas tinham sido escolhidos para essa função, mas uns dez — incluindo eu — acompanhariam os outros até a caverna.

Uma hora antes de sairmos, nós nos encontramos de novo, para repassar o plano. Havia uma grande câmara perto da entrada da caverna, e fazia muito sentido os Strigoi estarem lá, para saírem assim que a noite chegasse. Nós os atacaríamos pelos dois lados. Quinze guardiões entrariam por cada lado, acompanhados por três Moroi, cada. Dez guardiões ficariam na entrada para pegar qualquer Strigoi que fugisse. Eu ia ficar na entrada do lado mais afastado. Dimitri e minha mãe eram parte do grupo que entraria. Eu queria muito estar com eles, mas sabia que já tinha tido sorte de conseguir ir. E em uma missão assim, qualquer trabalho era importante.

Nosso pequeno exército foi montado, e andava com um ritmo pesado para cobrirmos os oito quilômetros. Nós deduzimos que a caminhada demoraria um pouco mais de uma hora, e ainda haveria luz do sol o suficiente para a batalha e a viagem de volta. Nenhum Strigoi estaria do lado de fora, de guarda, então nós podíamos entrar nas cavernas sem sermos percebidos. Quando os guardiões entrassem, no entanto, era praticamente óbvio que a audição elevada dos Strigoi os informaria do ataque.

Falamos muito pouco enquanto nos aproximávamos. Ninguém queria bater papo, e a conversa se resumia à logística. Eu andava com os aprendizes, mas de vez em quando eu olhava para Dimitri. Eu sentia como se houvesse uma ligação invisível entre nós agora, tão espessa e intensa que era incrível que ninguém conseguisse ver. Sua expressão era séria, belicosa, mas eu via o sorriso em seus olhos.

Nosso grupo se separou quando chegamos à entrada mais próxima da caverna. Dimitri e minha mãe entraram, e quando eu lhes dei uma última olhada, meus sentimentos não tinham nada a ver com o meu encontro romântico de antes. Tudo o que sentia era preocupação, preocupação de nunca mais os ver de novo. Eu tinha que me lembrar de que eles eram durões — dois dos melhores guardiões do grupo.

Se alguém sairia vivo dali, seriam eles. Quem precisava ter cuidado era eu, e quando percorremos os oitocentos metros ao redor da base da montanha, eu guardei meus sentimentos no fundo do peito. Eles teriam que permanecer ali até o final daquilo tudo. Eu estava em modo de batalha agora, e não podia deixar que me distraíssem.

Quando estávamos quase na nossa entrada, vi uma luz prateada pelo canto do olho. Eu estava tentando afastar os fantasmas que viviam fora dos escudos, mas esse eu desejava ver. Olhando com atenção, eu vi Mason. Ele estava parado, sem dizer nada, com sua perpétua expressão triste. Ainda parecia estranhamente pálido para mim. Quando nosso grupo passou, ele levantou uma mão, se como despedida ou bênção eu não sabia.

Na entrada da caverna, nosso grupo se separou. Alberta e Stan lideravam. Eles ficaram parados na entrada, esperando o momento exato que tinham combinado com o outro grupo. A senhorita Carmack, minha professora de magia, estava entre os Moroi que entrariam com eles. Ela parecia nervosa, mas determinada.

O momento chegou, e os adultos desapareceram. O resto de nós ficou ali, alinhado ao redor da caverna. Nuvens cinzas pendiam no céu. O sol tinha começado a se pôr, mas ainda tínhamos algum tempo.

— Isso vai ser fácil — murmurou Meredith, uma das outras três garotas na turma de aprendizes do último ano. Ela falava com incerteza, mais para ela do que para mim, acho. — Molezinha. Eles irão acabar com os Strigoi antes que qualquer um tenha a chance de se defender. Não teremos que fazer nada.

Eu esperava que ela tivesse razão. Estava pronta para lutar, mas, se eu não tivesse que fazer isso, significava que tudo tinha corrido como planejado.

Nós esperamos. Não havia mais nada a fazer. Cada minuto parecia uma eternidade. Então começamos a ouvir os sons da luta. Gritos e grunhidos. Alguns berros. Todos nós estávamos tensos, nossos corpos tão rígidos que parecíamos prontos para explodir. Emil era o nosso líder ali, e era quem ficava mais próximo da entrada, com a estaca em mãos e suor se formando na testa, enquanto ele olhava para a escuridão, pronto para qualquer sinal de Strigoi.

Em alguns minutos, ouvimos o som de passos correndo em nossa direção. Nossas estacas estavam preparadas. Emil e outro guardião chegaram mais perto da entrada, prontos para pular e matar o Strigoi que aparecesse.

Mas não foi um Strigoi que saiu. Era Abby Badica. Ela estava arranhada e suja, mas viva. Sua expressão era de desespero, e cheia de lágrimas. Primeiro, ela gritou quando nos viu. Depois, ela percebeu quem éramos, e desabou nos braços da primeira pessoa que viu — Meredith.

Meredith parecia surpresa, mas confortou Abby.

— Está tudo bem. Tudo está bem. Você está ao sol.

Gentilmente, Meredith tirou os braços de Abby e a levou para uma árvore. Abby sentou-se sobre uma raiz, colocando as mãos no rosto. Meredith voltou a sua posição. Eu queria confortar Abby. Acho que todos nós queríamos, mas teríamos que esperar.

Um minuto depois, outro Moroi saiu. Era o professor Ellsworth, que me deu aula na quinta série. Ele estava um trapo, e seu pescoço mostrava mordidas. Os Strigoi o haviam usado para se alimentar, mas não o mataram. No entanto, apesar dos horrores que ele deve ter enfrentado, o professor Ellsworth estava calmo, seus olhos alertas e observando tudo. Ele percebeu a situação e imediatamente saiu do círculo.

— O que está acontecendo lá dentro? — perguntou Emil, de olho na caverna. Alguns guardiões tinham pontos eletrônicos, mas eu imaginei que fosse difícil reportar a situação durante a batalha.

— Está um inferno — disse o professor Ellsworth. — Mas estamos conseguindo sair, pelos dois lados. É difícil saber quem está combatendo quem, mas os Strigoi parecem distraídos. E alguém... — Ele franziu o cenho. — Eu vi alguém usando fogo nos Strigoi.

Nenhum de nós respondeu. Era um assunto muito complexo para começar a discussão agora. Ele percebeu isso, e saiu para sentar-se perto da Abby, que ainda estava chorando.

Mais dois Moroi e um dampiro que eu não conhecia se juntaram a eles. Cada vez que alguém saía, eu torcia para ser Eddie. Nós tínhamos recuperado cinco reféns até agora, e eu tinha que presumir que outros estavam saindo pelo outro lado, mais perto da escola.

Vários minutos se passaram, e ninguém mais saiu. Minha camisa estava ensopada, encharcada de suor. Eu tinha que trocar a estaca de uma mão para a outra, de vez em quando. Minha pegada estava tão forte que os dedos estavam travando. De repente, eu vi Emil recuar. Percebi que ele estava recebendo uma mensagem através do ponto. Seu rosto mostrava uma concentração intensa, e ele murmurou algo de volta. Olhando para a gente, ele apontou para três aprendizes.

— Vocês, levem-nos de volta para a escola. — Ele gesticulou para os reféns libertos, e se voltou para três dos guardiões adultos. — Entrem. A maioria dos prisioneiros saiu, mas nosso pessoal está preso. Há um beco sem saída. — Os guardiões entraram sem hesitar, e alguns momentos depois, os aprendizes foram embora com as vítimas.

Isso fez com que restassem quatro de nós, dois adultos — Emil e Stephen — e dois aprendizes, Shane e eu. A tensão era tão grande que mal conseguíamos respirar. Mais ninguém saía. Mais nenhuma mensagem era enviada. Emil olhou para dentro e parecia alarmado. Eu segui seus olhos. Havia passado mais tempo do que eu percebera. O sol estava significativamente baixo.

Emil de repente recuou de novo, quando outra mensagem chegou.

Ele olhou para todos nós, com a expressão confusa.

— Precisamos de mais gente para cobrir a saída do outro lado. Não parece que perdemos muitos. Eles só estão tendo problemas para sair.

“Muitos”, ele disse. Não “nenhum”. O que significava que tínhamos perdido pelo menos uma pessoa. Senti um frio pelo corpo todo.

— Stephen, você entra — disse Emil. Ele hesitou, e eu podia ver claramente seu dilema. Ele queria entrar também, mas, como o líder daquele lado, ele devia ficar ali fora até não haver outra escolha. Percebi que ele estava prestes a desobedecer essas ordens. Estava considerando entrar com Stephen e me deixar com Shane ali fora. No entanto, ao mesmo tempo, ele não podia deixar dois apredizes sozinhos ali; algo inesperado podia acontecer. Emil suspirou e olhou para nós.

— Rose, vá com ele.

Não perdi nem um segundo. Seguindo Stephen, entrei na caverna e imediatamente aquela náusea tomou conta de mim. Estava frio lá fora, mas ficava ainda mais frio conforme entrávamos. E também mais escuro. Nossos olhos conseguiam lidar com pouca luz, mas logo ficou escuro demais. Ele ligou uma pequena lanterna presa em sua jaqueta.

— Eu queria lhe dizer o que fazer, mas não sei o que iremos encontrar — disse ele para mim. — Esteja preparada para tudo.

A escuridão à nossa frente começou a desaparecer. Os sons aumentaram. Começamos a andar mais rápido, olhando em todas as direções. De repente, nos vimos na grande câmara mostrada no mapa. Uma fogueira queimava em um canto — um Strigoi a havia feito, não era nada mágico — e iluminava o lugar. Olhando ao redor, imediatamente vi o que tinha acontecido.

Parte da parede tinha desmoronado, criando uma pilha de pedras. Ninguém ficara soterrado, mas as pedras tinham praticamente bloqueado a passagem para o outro lado da caverna. Eu não sabia se a magia havia causado isso, ou se fora a briga. Talvez tivesse sido uma coincidência. Qualquer que fosse a razão, sete guardiões — incluindo Dimitri e Alberta — estavam encurralados por dez Strigoi. Nenhum Moroi usuário de fogo tinha ficado desse lado, mas algumas luzes do outro lado da caverna mostravam que eles ainda estavam lutando. Eu vi corpos no chão. Dois eram Strigoi, mas não consegui identificar os outros.

O problema era óbvio. Para passar pela fresta, a pessoa tinha praticamente que rastejar. Isso a deixaria em uma posição vulnerável, o que significava que esses outros Strigoi tinham que ser aniquilados antes de ela poder passar. Stephen e eu íamos ajudar a enfrentá-los. Nós viemos por trás dos Strigoi, mas três deles de alguma maneira nos sentiram e se viraram para a gente. Dois pularam em Stephen e o outro veio para mim.

Instantaneamente, entrei em modo de batalha. Toda a raiva e frustração tomou conta de mim. A estrutura da caverna não permitia que eu mantivesse certa distância dele na briga, mas eu ainda conseguia me esquivar dele. Na verdade, o espaço apertado era uma vantagem para mim, porque o Strigoi, com seu grande porte, tinha dificuldade em abaixar e fugir. Fiquei fora de seu alcance, praticamente o tempo todo, embora ele tenha conseguido me pegar e me jogar contra a parede. Eu nem senti. Só continuei me movimentando, partindo para a ofensiva. Desviei de seu ataque seguinte, consegui bater um pouco nele, e, devido à minha baixa estatura, consegui escorregar e enterrar a estaca nele antes de seu próximo ataque. Retirei a lâmina em um movimento sutil e fui ajudar Stephen. Ele havia matado um dos oponentes, e nós dois acabamos com o outro.

Restavam sete Strigoi agora. Não, seis. Os guardiões encurralados — que estavam tendo dificuldades por causa de sua posição — mataram outro. Stephen e eu puxamos um Strigoi para perto de nós. Ele era bem forte — muito velho, muito poderoso — e, ainda que fôssemos dois, ele era difícil de destruir. Por fim, acabamos conseguindo. Com o número de Strigoi reduzido, os outros guardiões atacavam mais facilmente. Eles começaram a se libertar, e agora podiam nos ajudar mais.

Quando o número de Strigoi foi limitado a dois, Alberta gritou para começarmos a fugir.

Nosso alinhamento no local tinha mudado. Agora éramos nós que rodeávamos os dois últimos Strigoi. Isso deixava o caminho livre para os três guardiões restantes escaparem por onde viemos. Stephen, enquanto isso, rastejou pela fresta até o outro lado. Dimitri matou um dos Strigoi. Só restava um. Stephen colocou a cabeça para o nosso lado e gritou algo para Alberta que eu não consegui ouvir. Ela gritou algo de volta, sem olhar para ele. Ela, Dimitri e dois outros estavam terminando com o último Strigoi.

— Rose — gritou Stephen, acenando.

Seguir ordens. Era o que fazíamos. Eu deixei o grupo, passando pelo buraco mais facilmente do que ele, pelo meu tamanho. Outro guardião imediatamente seguiu depois de mim. Não tinha ninguém desse lado da caverna. A luta tinha ou terminado, ou seguido adiante. Corpos mostravam que o combate havia sido intenso. Eu vi mais Strigoi, assim como um rosto conhecido: Yuri. Olhei de relance para Stephen, que ajudava outro guardião a passar. Alberta veio logo após.

— Estão mortos — disse ela. — Parece que há mais alguns bloqueando a saída daqui. Vamos terminar antes de o sol surgir.

Dimitri foi o último a passar pelo buraco. Ele e eu trocamos um breve e aliviado olhar, e voltamos a andar. Essa era a parte mais longa do túnel, e nós nos apressamos através dela, ansiosos para levar as pessoas restantes para fora dali. Primeiro, nós não encontramos nada, e aí luzes indicaram que havia outra lareira mais à frente. A professora Carmack e minha mãe lutavam contra três Strigoi. Meu grupo se aproximou, e em segundos os Strigoi estavam acabados.

— Acabamos com esse grupo — disse minha mãe, arfando. Eu estava feliz por vê-la viva também. — Mas acho que são mais do que pensávamos. Acho que eles deixaram alguns para trás quando foram atacar a escola. O resto dos nossos sobreviventes já conseguiu sair.

— Existem outras passagens pela caverna — disse Alberta. — Os Strigoi podem estar se escondendo lá.

Minha mãe concordou.

— Podem, sim. Alguns sabem que foram derrotados e estão esperando que nós saiamos para então escapar. Outros virão atrás de nós.

— O que faremos? — perguntou Stephen. — Acabamos com eles? Ou nos retiramos?

Nos voltamos para Alberta. Ela tomou uma decisão rápida.

— Nos retiramos. Já matamos bastantes Strigoi, e o sol já está se pondo. Temos que voltar para a proteção dos escudos.

Nós saímos, tão próximos da vitória, forçados pela luz que ia embora. Dimitri estava do meu lado enquanto andávamos.

— Eddie conseguiu sair? — Eu não tinha visto o corpo dele, mas não prestara muita atenção.

— Sim — disse Dimitri, respirando com dificuldade. Só Deus sabia quantos Strigoi ele tinha matado naquele dia. — Nós praticamente tivemos que expulsá-lo. Ele queria lutar.

Essa era uma atitude típica do Eddie.

— Eu me lembro dessa curva — disse minha mãe enquanto virávamos. — Não está muito longe. Vamos ver luz logo. — Até agora, nós éramos guiados pelas lanternas nas jaquetas.

Eu senti a náusea apenas um pouquinho antes de eles atacarem. Em uma encruzilhada em formato de T, sete Strigoi pularam em nós. Eles tinham deixado os outros escaparem, mas estavam nos esperando, três de um lado, quatro do outro. Um guardião, Alan, não teve tempo de ver nada.

Um Strigoi o segurou e quebrou seu pescoço tão rápido que parecia não ter feito esforço algum. E provavelmente não fez mesmo. Era tão parecido com o que tinha acontecido com Mason que eu quase travei. Em vez disso, eu me fortaleci, pronta para entrar na briga.

Mas nós estávamos em uma parte estreita do túnel, e nem todos conseguiam alcançar os Strigoi. Eu estava presa no fundo. A professora Carmack estava do meu lado, e ela tinha visibilidade o suficiente para iluminar alguns Strigoi, ajudando os outros guardiões envolvidos no combate.

Alberta olhou para mim e para alguns outros guardiões.

— Comecem a se retirar! — gritou ela.

Nenhum de nós queria sair, mas não havia muito a fazer. Vi um dos guardiões cair, e meu coração acelerou. Eu não o conhecia, mas não importava. Em segundos, minha mãe estava em cima do atacante Strigoi, enfiando a estaca em seu coração.

Então perdi a visão da luta, quando virei outra esquina com os três guardiões que me acompanhavam. Mais à frente no corredor, vi uma fraca luz púrpura. A saída. Os rostos dos outros guardiões nos olhavam. Nós tínhamos conseguido. Mas onde estavam os outros?

Nós corremos até a saída, emergindo no ar. Meu grupo se juntou na entrada, ansioso para ver o que tinha acontecido. O sol, eu estava desanimada em ver, tinha quase ido embora. A náusea não tinha me deixado, o que significava que os Strigoi ainda estavam vivos.

Momentos depois, o grupo da minha mãe chegava pelo corredor. Pelo número, alguém mais tinha ficado lá. Mas eles estavam tão perto... Todos ao meu redor ficaram tensos. Tão perto. Tão, tão perto...

Mas não perto o suficiente. Três Strigoi esperavam em uma das alcovas. Nós tínhamos passado por eles — mas eles nos tinham deixado passar. Tudo aconteceu tão rápido, e ninguém conseguiu reagir a tempo.

Um dos Strigoi apanhou Celeste, sua boca e presas indo direto para a bochecha dela. Eu ouvi um grito reprimido e vi sangue por todo o lado. Um dos Strigoi foi para a professora Carmack, mas minha mãe tirou ela dali, empurrando-na para perto da gente.

O terceiro Strigoi pegou Dimitri. Em todo o tempo que o conhecia, nunca o vira hesitar. Ele sempre era mais rápido e mais forte do que todos. Não desta vez. Esse Strigoi o pegou de surpresa, e foi tudo o que ele precisou. Eu o encarei. Era o Strigoi loiro. O que tinha falado comigo na batalha na escola. Ele pegou Dimitri e o jogou para o chão. Eles se atracaram, força contra força, e então eu vi aquelas presas entrando no pescoço de Dimitri. Os olhos vermelhos se levantaram e olharam para mim.

Eu ouvi outro grito — dessa vez, era o meu.

Minha mãe tinha começado a ajudar os caídos, mas então cinco outros Strigoi apareceram. Foi um caos. Eu não conseguia mais ver Dimitri; eu não conseguia ver o que acontecera com ele. Minha mãe mostrou indecisão entre ficar ou fugir, e assim, com muito arrependimento, ela continuou correndo para nós e para a saída. Enquanto isso, eu estava tentando correr de volta para dentro, mas alguém me segurou. Era Stan.

— O que você está fazendo, Rose? Tem mais Strigoi vindo.

Será que ele não entendia? Dimitri estava lá. Eu tinha que buscar Dimitri.

Minha mãe e Alberta correram para fora, arrastando a professora Carmack. Um grupo de Strigoi estava atrás delas, parando somente diante da luz. Eu ainda lutava contra Stan.

Ele não precisava de ajuda, mas minha mãe me pegou e me puxou.

— Rose, nós temos que sair daqui!

— Ele está lá dentro! — gritei, lutando o máximo que podia. Como eu tinha conseguido matar Strigoi e não conseguia fugir desses dois? — Dimitri está lá dentro! Nós temos que voltar para ajudá-lo! Não podemos deixá-lo!

Eu estava tremendo, histérica, gritando para todos que eu tinha que salvar Dimitri. Minha mãe me sacudiu com força e se aproximou tanto que só alguns centímetros nos separavam.

— Ele está morto, Rose! Nós não podemos voltar. O sol vai se pôr em quinze minutos, e eles estão esperando por nós. Estaremos no escuro antes de conseguirmos voltar para a proteção dos escudos. Nós precisamos de cada segundo que conseguirmos, e pode não ser o suficiente.

Eu podia ver os Strigoi se juntando na entrada, seus olhos vermelhos brilhando pela ansiedade. Eles ocupavam todo o local, e eram uns dez. Talvez mais. Minha mãe estava certa. Com a velocidade deles, até nossos quinze minutos de vantagem poderiam não ser suficientes. Ainda assim, eu não conseguia andar. Eu não conseguia parar de encarar a caverna, onde Dimitri estava, onde metade da minha alma estava. Ele não podia estar morto. Se ele estivesse, então eu estaria morta também.

Minha mãe me deu um tapa, a dor fez com que eu voltasse a mim.

— Corra! — gritou ela para mim. — Ele está morto! Você não vai se juntar a ele!

Eu vi o pânico em seu próprio rosto, pânico por mim — sua filha — sendo morta. Eu lembrei de Dimitri me falando que ele preferia morrer do que me ver morta. E se eu continuasse ali, estupidamente, deixando um Strigoi me pegar, eu conseguiria os dois.

— Corra! — gritou ela de novo.

Com lágrimas descendo em meu rosto, eu corri.


Vinte e oito

As doze horas seguintes foram as mais longas da minha vida.

Nosso grupo conseguiu voltar ao campus em segurança, embora a maioria tivesse vindo correndo — o que era difícil com tantos feridos. O tempo inteiro eu me senti nauseada, provavelmente porque os Strigoi estavam perto. Se eles estavam mesmo, não nos alcançaram, e era possível que eu só estivesse assim por causa de tudo o que acontecera nas cavernas.

Uma vez de volta à proteção dos escudos, os outros aprendizes e eu fomos esquecidos. Nós estávamos a salvo, e os adultos agora tinham um monte de assuntos com os quais se preocupar. Todos os sequestrados tinham sido recuperados — todos os que estavam vivos. Como eu temia, os Strigoi resolveram se alimentar de um deles antes de chegarmos. O que significava que nós tínhamos recuperado doze. Seis guardiões — incluindo Dimitri — tinham ficado lá. Esses não eram números ruins, considerando quantos Strigoi tínhamos enfrentado, mas verificando o saldo, percebíamos que só tínhamos salvado seis vidas. A perda da vida dos guardiões tinha mesmo valido a pena?

— Você não pode ver isso dessa maneira — me disse Eddie enquanto andávamos para a clínica. Todos, prisioneiros e combatentes, receberam ordens de ir para lá. — Vocês não salvaram só aquelas vidas. Vocês mataram quase trinta Strigoi, mais aqueles do campus. Pense em todas as pessoas que eles poderiam ter matado. Você salvou, indiretamente, todas essas pessoas também.

Uma parte racional de mim sabia que ele estava certo. Mas o que a razão tinha a ver com isso, quando Dimitri poderia estar morto? Era muito egoísmo, mas naquela hora eu queria trocar todas aquelas vidas pela dele. Ele não ia querer isso, no entanto. Eu o conhecia.

E havia uma pequena e microscópica chance de que ele ainda estivesse vivo. Mesmo a mordida tendo parecido séria, aqueles Strigoi poderiam tê-lo incapacitado e fugido. Ele poderia estar caído nas cavernas agora mesmo, morrendo e precisando de cuidados médicos. Isso me enlouquecia, pensar nele assim, e nós, sem podermos ajudar. Não havia nenhuma maneira de voltarmos, no entanto. Não até de manhã. Outro grupo iria até lá para trazer os mortos e os enterrarmos. Enquanto isso, eu tinha que esperar.

A dra. Olendzki me analisou rapidamente, concluiu que eu não tinha nenhuma concussão e me liberou para que eu mesma me fizesse os curativos. Ela tinha muitos outros com que se preocupar agora, que estavam em condições muito piores.

Eu sabia que a coisa mais inteligente a fazer era ir para o meu dormitório, ou ir até Lissa. Eu poderia ter descansado, e através do laço eu podia senti-la me chamando. Ela estava preocupada. Estava com medo. Eu sabia que ela descobriria as notícias logo, no entanto. Ela não precisava de mim, e eu não queria vê-la. Eu não queria ver ninguém. Então, em vez de ir para o meu próprio quarto, fui para a capela. Eu precisava fazer alguma coisa até as cavernas poderem ser checadas. Rezar era uma boa opção.

Normalmente, a capela estava vazia no meio do dia, mas não hoje. Eu não devia ter ficado surpresa. Considerando a morte e a tragédia das últimas 24 horas, era natural as pessoas irem procurar conforto. Alguns se sentavam sozinhos, outros em grupos. Eles choravam. Eles se ajoelhavam. Eles rezavam. Alguns apenas olhavam para o nada, claramente sem conseguir acreditar no que acontecera. O padre Andrew circulava pelo santuário, falando com muitos deles.

Encontrei um banco vazio bem no fundo e sentei lá. Puxando os meus joelhos para cima, eu os envolvi com os braços e descansei a cabeça. Nas paredes, imagens de santos e anjos olhavam todos nós.

Dimitri não podia estar morto. Não tinha como. Certamente, se ele estivesse, eu saberia. Ninguém poderia tirar uma vida como aquela do mundo. Ninguém que tivesse me abraçado na cama como ele fizera ontem poderia ter partido. Nós estivemos muito quentes, muito vivos. A morte não poderia acontecer assim.

O chotki de Lissa estava em meu pulso, e eu passei os dedos pela cruz e pelas miçangas. Tentei desesperadamente expressar meus pensamentos em forma de oração, mas não sabia como. Se Deus existisse mesmo, acho que Ele seria poderoso o suficiente para saber o que eu queria sem eu ter que dizer nada.

Horas se passaram. Pessoas iam e vinham. Eu me cansei de ficar sentada e me estiquei no banco. Do teto dourado, mais anjos e santos me olhavam. Tanta ajuda divina, pensei, mas o que eles estavam realmente fazendo de bom?

Eu não percebi que tinha adormecido até Lissa me acordar. Ela parecia um anjo, o cabelo pálido e comprido balançando e passando por seu rosto. Seus olhos eram tão gentis e tinham tanta compaixão quanto os santos.

— Rose — disse ela —, nós procuramos você por toda a parte. Você estava aqui esse tempo todo?

Eu me sentei, me sentindo cansada e com a visão embaçada. Considerando que eu não tinha dormido na noite anterior e participara de uma luta de grandes proporções, minha fadiga era compreensível.

— Sim.

Ela balançou a cabeça.

— Então, já está aqui há horas. Você devia comer alguma coisa.

— Não estou com fome. — Há horas. Eu puxei o braço dela. — Que horas são? O sol já nasceu?

— Não. Ainda faltam umas cinco horas...

Cinco horas. Como eu poderia esperar tanto?

Lissa tocou meu rosto. Eu senti a magia queimando pelo nosso laço, e aí as cócegas quentes e frias passaram pela minha pele. Machucados e cortes desapareceram.

— Você não devia fazer isso — disse eu.

Um sorriso bobo cruzou seu rosto.

— Tenho feito isso o dia inteiro. Eu estou ajudando a dra. Olendzki.

— Eu soube disso, mas uau. É tão estranho. Nós sempre escondemos isso, sabe?

— Não importa que todos saibam agora — disse ela, dando de ombros. — Depois de tudo o que aconteceu, eu tinha que ajudar. Tantas pessoas estão machucadas, e se ajudar significava que meu segredo tinha que ser descoberto... bem, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Adrian também tem ajudado, embora ele não consiga fazer tanto.

Então percebi. Eu me sentei direito.

— Meu Deus, Liss. Você pode salvá-lo. Você pode ajudar Dimitri.

Uma grande tristeza encheu seu rosto e também nosso laço.

— Rose — disse ela, calmamente —, estão dizendo que Dimitri está morto.

— Não. Ele não pode estar. Você não entende... Acho que ele só ficou ferido. Bastante, provavelmente. Mas, se você estiver junto quando eles o trouxerem, pode curá-lo. — Então, o pensamento mais louco apareceu em minha cabeça. — E se... e se ele estiver mesmo morto... — As palavras doíam enquanto eu falava. — ...você pode trazê-lo de volta! Como fez comigo. Ele seria beijado pelas sombras também.

Sua expressão ficou ainda mais triste. Tristeza — por mim, agora — irradiava dela.

— Eu não posso fazer isso. Trazer as pessoas de volta dos mortos suga muito da minha energia... e além disso, eu não sei se consigo fazer isso com alguém que morreu há, bem, tanto tempo. Acho que tem que ser recente.

Eu podia ouvir o desespero louco em minha voz.

— Mas você tem que tentar.

— Eu não posso... — Ela engoliu, parecendo desconcertada. — Você ouviu o que eu disse à rainha. Eu realmente sinto aquilo. Eu não posso ficar trazendo de volta à vida todas as pessoas mortas. Parece o tipo de abuso que o Victor queria. Era por isso que mantínhamos meu poder em segredo.

— Você o deixaria morrer? Você não tentaria salvá-lo? Não faria isso por mim? — Eu não estava gritando, mas minha voz estava definitivamente alta demais para se usar em uma igreja. A maioria das pessoas tinha ido embora, e com o nível de luto por ali eu duvidava que alguém fosse reclamar de um descontrole. — Eu faria qualquer coisa por você. Você sabe disso. E você não fará isso por mim? — Eu estava prestes a chorar.

Lissa me analisou, milhões de pensamentos correndo em sua cabeça. Ela reparou minhas palavras, meu rosto, minha voz. E de repente ela entendeu. Ela finalmente entendeu o que eu sentia por Dimitri, percebeu que era mais do que uma conexão de estudante e professor. Eu sentia a consciência daquilo surgindo em sua cabeça. Incontáveis conexões foram feitas: comentários que eu tinha feito, a maneira como eu e Dimitri nos comportávamos perto um do outro... Tudo fazia sentido para ela agora, coisas que ela estivera cega demais para perceber. Perguntas apareceram também, mas ela não queria fazer nenhuma delas, ou até mesmo mencionar o que tinha percebido. Em vez disso, ela apenas pegou minha mão e me puxou para perto.

— Me desculpe, Rose. Eu sinto muito, muito mesmo. Eu não posso.

Eu a deixei me levar dali depois disso, teoricamente para ir comer. Mas, quando eu sentei na mesa do refeitório e olhei a bandeja na minha frente, a ideia de comer qualquer coisa me deu mais enjoo do que estar perto de qualquer Strigoi. Ela desistiu depois disso, percebendo que eu não comeria nada até descobrir o que acontecera com Dimitri.

Nós subimos para o quarto dela, e eu deitei na cama. Ela sentou perto de mim, mas eu não queria conversar, e logo dormi de novo. Quando acordei, minha mãe estava do meu lado.

— Rose, nós vamos checar as cavernas. Você não pode entrar, mas pode vir para os limites da escola se você quiser.

Era o melhor que eu poderia conseguir. Se isso significava que eu descobriria o que acontecera com Dimitri um pouco antes do que se ficasse ali, eu iria. Lissa veio comigo, e nós fomos atrás do grupo de guardiões. Eu ainda estava magoada por ela ter se negado a curar Dimitri, mas uma parte de mim secretamente achava que ela não seria capaz de se segurar quando o visse.

Os guardiões juntaram um grande grupo para checar as cavernas, no caso de precisarem de ajuda. Nós tínhamos certeza de que os Strigoi tinham ido embora, no entanto. Eles tinham perdido sua vantagem numérica e sabiam que, se nós voltássemos para apanhar os mortos, iríamos com um grupo renovado. Qualquer um que tivesse sobrado teria ido embora.

Os guardiões cruzaram os escudos, e o resto de nós que os acompanhara ficou para trás. Quase ninguém falava. Seriam provavelmente três horas até eles voltarem, contando o tempo da viagem. Tentando ignorar os sentimentos sombrios e pesados dentro de mim, eu sentei no chão e encostei minha cabeça no ombro de Lissa, desejando que os minutos voassem. Um Moroi usuário de fogo criou uma fogueira, e nós nos aquecemos ao redor dela.

Os minutos não voaram, mas eles passaram. Alguém gritou que os guardiões estavam voltando. Eu levantei com um salto e corri para olhar. O que eu vi me fez congelar. Macas. Macas carregando os corpos dos que foram mortos. Cadáveres dos guardiões, rostos pálidos e olhos sem brilho. Um dos Moroi que observavam correu e vomitou em um arbusto. Lissa começou a chorar. Um a um, os mortos passavam por nós. Eu encarava, me sentindo vazia e fria, imaginando se eu veria seus fantasmas da próxima vez que me afastasse dos escudos.

Finalmente, o grupo inteiro passou. Cinco corpos, mas pareceram quinhentos. E havia um corpo que eu não tinha visto. O que eu estava temendo. Eu corri para minha mãe. Ela estava ajudando a carregar uma maca. Ela não me olhava e com certeza sabia o que eu vinha perguntar.

— Onde está Dimitri? Ele está... — Era muito para se esperar, muito para se perguntar. — Ele está vivo? — Meu Deus. E se minhas preces tivessem sido atendidas? E se ele estivesse lá atrás, machucado, esperando para que eles mandassem um médico?

Minha mãe não me respondeu imediatamente. Eu mal reconheci sua voz quando ela falou.

— Ele não estava lá, Rose.

Eu tropecei no chão irregular e tive que me apressar para alcançá-la de novo.

— Espere aí, o que isso significa? Talvez ele esteja machucado e saiu para buscar ajuda...

Ela ainda não me olhava.

— Molly também não estava lá.

Molly era a Moroi que havia sido mordida. Ela tinha a minha idade, alta e linda. Eu vira o seu corpo na caverna, já quase sem sangue. Ela com certeza estava morta. Não tinha como ela estar apenas machucada e ter cambaleado para fora. Molly e Dimitri. Os dois corpos haviam sumido.

— Não — engasguei. — Você não acha...

Uma lágrima escorreu do olho de minha mãe. Eu nunca tinha visto nada assim vindo dela.

— Eu não sei o que pensar, Rose. Se ele sobreviveu, é possível... é possível que eles o tenham deixado para mais tarde.

A ideia de Dimitri como um “lanchinho” era muito horrível para expressar em palavras — mas não era a pior alternativa. Nós duas sabíamos disso.

— Mas eles não levariam a Molly para mais tarde. Ela já estava morta há algum tempo.

Minha mãe assentiu.

— Sinto muito, Rose. Não podemos saber ao certo. É como se os dois estivessem mortos e os Strigoi tivessem levado seus corpos.

Ela estava mentindo. Aquela foi a primeira vez em minha vida que minha mãe tinha mentido para me proteger. Ela não era do tipo que confortava, não era do tipo que inventava histórias bonitas para fazer alguém se sentir melhor. Ela sempre dizia a mais dura verdade.

Não dessa vez.

Eu parei de andar, e o grupo continuou passando por mim. Lissa me alcançou, preocupada e confusa.

— O que está acontecendo? — perguntou ela.

Eu não respondi. Em vez disso, virei e corri para trás, para os escudos. Ela correu atrás de mim, me chamando. Ninguém tinha nos notado, porque, sinceramente, quem no mundo seria estúpido o suficiente para cruzar os escudos depois do que acontecera?

Eu era — embora, na luz do dia, não houvesse nada a temer. Passei pelo lugar onde o grupo de Jesse tinha atacado Lissa, cruzando a linha invisível que marcava os limites das terras da escola. Lissa hesitou um momento e se juntou a mim. Ela estava sem ar depois de correr tanto.

— Rose, o que você está...

— Mason! — gritei. — Mason, preciso de você.

Demorou um pouco para ele se materializar. Dessa vez, não só ele parecia muito pálido, como também parecia estar tremendo, como uma luz que fosse se extinguir. Ele ficou ali parado, me observando, e embora sua expressão fosse a mesma de sempre, eu tinha o bizarro pressentimento de que ele sabia o que eu ia perguntar. Lissa, ao meu lado, ficou olhando para frente e para trás, entre mim e o espaço vazio com o qual eu falava.

— Mason, o Dimitri está morto?

Mason balançou a cabeça negativamente.

— Ele está vivo?

Ele balançou a cabeça negativamente mais uma vez.

Nem vivo, nem morto. O mundo dançava ao redor de mim, faíscas coloridas apareciam em meus olhos. A falta de comida tinha me deixado tonta, e eu estava prestes a desmaiar. Eu tinha que manter o controle. Eu tinha que fazer a próxima pergunta. De todas as vítimas... de todas as vítimas que eles podiam ter escolhido, certamente eles não o escolheriam.

As próximas palavras ficaram presas em minha garganta, e caí de joelhos enquanto as dizia.

— Ele é... Dimitri é um Strigoi?

Mason hesitou por um instante, como se tivesse medo de responder, e então — fez que sim com a cabeça.

Meu coração se partiu. Meu mundo caiu.

Você irá perder aquilo que mais estima...

Não era de mim que Rhonda estava falando. Não era nem da vida de Dimitri.

Aquilo que mais estima.

Era da alma dele.


Vinte e nove

Quase uma semana depois, fui à porta de Adrian.

Não houvera aula desde o ataque, mas nosso toque de recolher ainda tinha que ser respeitado, e já era quase hora de dormir. O rosto de Adrian transpareceu surpresa total quando ele me viu. Era a primeira vez que eu o procurava, e não o contrário.

— Dampirinha — disse ele, abrindo passagem. — Entre.

Entrei, e me senti quase sufocada pelo cheiro de álcool ao passar por ele. O alojamento dos visitantes da escola era bom, mas ele claramente não se esforçava para manter seus aposentos limpos. Tive a impressão que provavelmente estava bebendo desde o ataque. A tevê estava ligada e, em cima de uma pequena mesa ao lado do sofá, estava uma garrafa meio vazia de vodca. Peguei a garrafa e li o rótulo. Estava escrito em russo.

— Hora errada? — perguntei, colocando-a de volta no lugar.

— Para você, nunca é — me disse ele, de forma galanteadora. Seu rosto estava abatido. Ele ainda estava bonito como sempre, mas as olheiras fundas embaixo dos olhos mostravam que ele não vinha dormindo bem. Ele gesticulou na direção de uma poltrona e sentou-se no sofá.

— Não tenho visto você.

Recostei-me.

— Ando sem vontade de ser vista — admiti.

Não falei com quase ninguém desde o ataque. Tinha passado muito tempo sozinha ou com Lissa. Ficar perto dela me tranquilizava, mas nós não falávamos muito. Ela entendia que eu precisava pensar a respeito de certas coisas e simplesmente ficava ao meu lado, sem me pressionar a conversar sobre o que eu não queria, mesmo que ela tivesse várias perguntas.

Os mortos da escola foram homenageados em uma cerimônia conjunta, apesar de suas famílias terem organizado funerais para cada um deles. Eu fui à maior cerimônia. A capela ficou lotada, e todos os lugares estavam ocupados. O padre Andrew leu o nome dos mortos, incluindo Dimitri e Molly. Ninguém falava sobre o que realmente tinha acontecido com eles. Havia muitas outras lamentações, e estávamos nos afogando nelas. Ninguém sabia como a escola ia se reerguer e voltar à ativa.

— Você parece pior do que eu — disse a Adrian. — Não achei que fosse possível.

Ele levou a garrafa aos lábios e bebeu um pouco.

— Não, você está sempre bonita. Já eu... bem, é complicado. As auras têm me afetado. Tem tanta tristeza por aqui. Você não faz nem ideia. Ela irradia de todo mundo no nível espiritual. É sufocante. Faz até a sua aura escura parecer alegre.

— É por isso que você tem bebido?

— Exato. Felizmente, a bebida bloqueia a minha visão das auras, por isso não poderei lhe dar nenhuma informação sobre a sua hoje. — Ele me ofereceu a garrafa, e eu recusei. Ele deu de ombros e tomou mais um gole. — Então, em que posso ajudar, Rose? Tenho a impressão de que você não veio só me fazer uma visita.

Ele estava certo, e eu me senti só um pouco mal pelo motivo que me levara até lá. Havia pensado bastante durante essa última semana. Lidar com a minha dor pelo Mason fora difícil. Na verdade, eu ainda não tinha me conformado completamente quando a história de ver fantasmas começou. Agora meu luto começaria todo de novo. Até porque, não era só Dimitri que se fora. Professores morreram, assim como guardiões e Moroi. Nenhum dos meus amigos próximos morreu, mas algumas pessoas que eu conheci nas aulas, sim.

Elas estudavam ali há tanto tempo quanto eu, e era estranho pensar que eu nunca mais os veria. Eu tinha que lidar com muitas perdas, dizer adeus para várias pessoas.

Mas... Dimitri. Com ele era diferente. Como você se despede de alguém que não partiu de fato? Esse era o problema.

— Preciso de dinheiro — disse a Adrian, sem rodeios ou fingimento.

Ele levantou uma sobrancelha.

— Inesperado. Pelo menos vindo de você. Recebo vários pedidos desse tipo dos outros. Mas, me diga, o que eu estaria financiando?

Desviei o olhar, prestando atenção na televisão. Estava passando um comercial de algum desodorante.

— Estou deixando a escola — disse eu, finalmente.

— Também inesperado. Faltam apenas alguns meses para você se formar.

Olhei em seus olhos.

— Não importa. Tenho coisas para resolver agora.

— Nunca imaginei que você seria o tipo de guardiã que larga os estudos. Vai se juntar às prostitutas de sangue?

— Não — disse eu. — Claro que não.

— Não fique tão ofendida. Não é uma ideia tão absurda. Se você não se tornar uma guardiã, o que mais vai fazer?

— Eu já disse. Tenho assuntos a resolver.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Algo que vá lhe causar problemas?

Dei de ombros. Ele riu.

— Pergunta estúpida, não é? Tudo o que você faz lhe causa problemas. — Ele pôs o cotovelo no braço do sofá e apoiou o queixo em sua mão. — Por que você pediria dinheiro a mim?

— Porque você tem.

Isso também o fez rir.

— E por que você acha que vou lhe dar?

Eu não disse nada. Apenas olhei para ele, usando o máximo de charme feminino que eu conseguia. Seu sorriso se foi, e seus olhos verdes se estreitaram de frustração. Ele rapidamente desviou o olhar.

— Droga, Rose. Não faça isso. Não agora. Você está brincando com o que sinto por você. Não é justo. — Ele bebeu mais um gole de vodca.

Ele estava certo. Eu o havia procurado porque achei que pudesse usar a paixão que ele sentia para conseguir o que eu queria. Era um golpe baixo, mas eu não tinha escolha. Levantando, me aproximei e sentei ao lado dele. Segurei sua mão.

— Por favor, Adrian — disse eu. — Me ajude, por favor. Você é a única pessoa a quem eu posso recorrer.

— Isso não é justo — repetiu ele, tropeçando um pouco nas palavras. — Você está me olhando desse jeito sedutor, mas não é a mim que você quer. Nunca foi. Sempre foi o Belikov, e só Deus sabe o que você vai fazer agora que ele se foi.

Mais uma vez ele estava certo.

— Vai me ajudar? — perguntei, ainda usando o meu charme. — Você é o único com quem eu posso conversar... o único que realmente me entende...

— Você vai voltar? — retrucou.

— Um dia.

Jogando a cabeça para trás, ele expirou longamente. Seu cabelo, que eu sempre achei que parecia bagunçado mas com estilo, hoje estava simplesmente bagunçado.

— Talvez seja melhor que você vá. Talvez você o esqueça mais rápido se sumir por um tempo. Além disso, não faria mal nenhum se afastar da aura da Lissa. Pode retardar o escurecimento da sua, acabar com essa raiva que você parece sentir constantemente. Você precisa ser mais feliz. E parar de ver fantasmas.

Meu poder de sedução falhou por um momento.

— Lissa não é a razão pela qual eu vejo fantasmas. Bom, ela é, mas não da forma que você pensa. Eu vejo fantasmas porque fui beijada pelas sombras. Estou ligada ao mundo dos mortos, e, quanto mais eu mato, mais forte essa ligação fica. É por isso que eu vejo os mortos, e por isso me sinto estranha perto de Strigoi. Eu posso senti-los agora. Eles também estão ligados àquele mundo.

Ele franziu a testa.

— Está dizendo que as auras não significam nada? Que você não está pegando de Lissa os efeitos do espírito?

— Não. Isso também está acontecendo. É por isso que tudo tem sido tão confuso. Pensei que só uma coisa estivesse acontecendo, mas são duas. Eu vejo fantasmas por ter sido beijada pelas sombras. Eu fico... triste e com raiva... até má... porque estou tirando o lado sombrio de Lissa. Por isso a minha aura tem escurecido e eu tenho sentido tanta raiva ultimamente. Por enquanto, parece só um temperamento forte... — Franzi a testa, lembrando da noite em que Dimitri me impedira de ir atrás de Jesse. — Mas não sei no que isso vai dar.

Adrian suspirou.

— Por que tudo é tão complicado com você?

— Você vai me ajudar? Por favor, Adrian. — Acariciei sua mão. — Por favor, me ajude.

Golpe baixo, muito baixo. Eu estava jogando muito sujo, mas não importava. Só Dimitri importava.

Finalmente Adrian me olhou. Pela primeira vez, ele parecia vulnerável.

— Quando você voltar, vai me dar uma chance de verdade?

Disfarcei minha surpresa.

— O que você quer dizer?

— É como eu disse. Você nunca me quis, nunca nem me considerou uma possibilidade. As flores, o flerte... você foi imune a tudo. Estava tão apaixonada por ele, e ninguém percebeu. Se você sair para fazer o que tem que fazer, vai me levar a sério? Vai me dar uma chance quando voltar?

Eu o encarei. Eu definitivamente não esperava por aquilo. Meu primeiro impulso foi dizer que não, que eu nunca mais poderia amar alguém, que meu coração havia se partido junto com o pedaço da minha alma que pertencia a Dimitri. Mas Adrian me olhava tão intensamente, sem nenhum traço das brincadeiras habituais... Ele falava sério, e percebi que todo o afeto que ele tinha por mim e que ele sempre usou para fazer graça não era uma brincadeira. Lissa estava certa a respeito dos sentimentos dele.

— Vai? — repetiu.

Só Deus sabe o que você vai fazer agora que ele se foi.

— Claro. — Não era uma resposta honesta, mas era necessária.

Adrian desviou o olhar e bebeu mais vodca. Não sobrou muita.

— Quando você parte?

— Amanhã.

Deixando a garrafa de lado, ele se levantou e foi até o quarto. Voltou com uma pilha grande de dinheiro. Fiquei me perguntando se ele guardava esse dinheiro embaixo do colchão ou algo do gênero. Ele me ofereceu a pilha sem dizer uma palavra e, então, pegou o telefone e fez algumas ligações. O sol já tinha nascido, e o mundo dos humanos, que guardava a maior parte do dinheiro Moroi, já estava acordado.

Tentei assistir à tevê enquanto ele falava, mas não conseguia me concentrar. Eu ficava querendo coçar a minha nuca. Já que não tinha como saber exatamente quantos Strigoi eu e os outros havíamos matado, nós recebemos um tipo de tatuagem diferente das marcas molnija de sempre. Eu esqueci o nome, mas aquela tatuagem parecia uma estrela pequena. Significava que o dono participou de uma batalha e matou vários Strigoi.

Quando finalmente terminou suas ligações, Adrian me deu um pedaço de papel. Nele estava o nome e o endereço de um banco em Missoula.

— Vá até lá — disse ele. — Suponho que você tenha que ir primeiro a Missoula, se pretende ir a qualquer lugar civilizado. Foi aberta uma conta para você com... muito dinheiro nela. Fale com eles, e vão terminar de preencher a papelada com você.

Levantei e guardei as notas em meu casaco.

— Obrigada — disse eu.

Sem hesitar, estendi meus braços e o abracei. O odor da vodca era muito forte, mas eu sentia que devia isso a ele. Eu estava me aproveitando de seus sentimentos para alcançar os meus objetivos. Ele pôs os braços ao meu redor e me abraçou por vários segundos antes de me soltar. Passei meus lábios por seu rosto ao nos afastarmos e pensei que ele fosse parar de respirar.

— Não vou me esquecer disso — sussurrei em seu ouvido.

— Você não vai me dizer aonde vai, não é? — perguntou.

— Não. Me desculpe.

— Apenas cumpra a sua promessa e volte.

— Eu não usei a palavra promessa — corrigi.

Ele sorriu e beijou minha testa.

— Tem razão. Vou sentir saudade de você, dampirinha. Tome cuidado. Se precisar de algo, me avise. Vou esperar por você.

Agradeci novamente e parti, sem dizer que talvez ele fosse esperar por um longo tempo. Era possível que eu nem voltasse.

No dia seguinte, me levantei cedo, muito antes da maioria do campus acordar. Eu quase não tinha dormido. Peguei minha bolsa, coloquei-a nas costas e caminhei em direção ao escritório central no prédio administrativo. O escritório também não estava aberto ainda, então me sentei no chão do corredor à frente dele. Analisando minha mão enquanto esperava, percebi duas pequenas pintas douradas na unha do meu polegar. Eram os vestígios finais do meu esmalte. Uns vinte minutos depois, a secretária chegou com as chaves e me deixou entrar.

— Como posso ajudar? — perguntou ela, ao sentar-se à sua mesa.

Entreguei uma pilha de papel que estava em minhas mãos.

— Estou me desmatriculando.

Os olhos dela se arregalaram.

— Mas... O que... Você não pode...

Pus minha mão sobre a pilha.

— Posso. Está tudo preenchido.

Ainda pasma, ela murmurou algo sobre esperar e, então, saiu da sala às pressas. Alguns minutos depois, voltou com a diretora Kirova. Ela aparentemente havia sido avisada e me olhava com censura do alto de seu nariz curvado.

— Senhorita Hathaway, o que significa isso?

— Estou partindo — respondi. — Desistindo. Abandonando. Ou seja lá como você quiser chamar.

— Você não pode fazer isso — disse ela.

— Bem, eu obviamente posso, já que vocês mantêm os papéis de desligamento na biblioteca. Está tudo preenchido direitinho.

A raiva dela se transformou em algo mais triste e ansioso.

— Eu sei que muitas coisas aconteceram, todos estamos tendo dificuldades em nos acostumar com as mudanças, mas não é motivo para tomar uma decisão precipitada. Até porque precisamos de você mais do que nunca.

Ela estava quase implorando. Difícil acreditar que ela queria me expulsar seis meses atrás.

— Não é uma decisão precipitada — rebati. — Eu pensei muito a respeito.

— Permita pelo menos que eu chame a sua mãe para que possamos conversar.

— Ela foi para a Europa três dias atrás. Não que isso faça alguma diferença. — Apontei para a linha no topo do formulário em que se lia data de nascimento. — Eu faço dezoito anos hoje. Não há mais nada que ela possa fazer. A escolha é minha. Agora, você vai carimbar o formulário ou vai realmente tentar me impedir? Estou quase certa de que derrotaria você em uma luta, Kirova.

Elas carimbaram os papéis, contrariadas. A secretária fez uma cópia do documento oficial que declarava que eu não era mais aluna da Escola São Vladimir. Eu precisava dele para passar pelo portão principal.

Era uma longa caminhada até a frente da escola, e o lado oeste do céu estava vermelho enquanto o sol ia se arrastando pelo horizonte. O clima tinha esquentado, até durante a noite. A primavera finalmente havia chegado. Era um clima bom para caminhar, já que eu tinha uma longa estrada a percorrer antes de chegar à rodovia. Dali, eu iria de carona até Missoula. Não era seguro pedir carona, mas a estaca de prata no meu bolso fazia com que eu me sentisse segura para enfrentar qualquer coisa. Ninguém a tinha tirado de mim após o ataque, e ela funcionaria tão bem em humanos abusados quanto em Strigoi.

Eu já avistava os portões quando senti a presença dela. Lissa. Parei de andar e me virei na direção de um aglomerado de árvores cobertas de botões. Ela estava de pé em meio a elas, imóvel, e havia escondido seus pensamentos tão bem que eu não percebera que ela estava praticamente ao meu lado. Seu cabelo e olhos brilhavam ao pôr do sol, e ela parecia muito bela e etérea para fazer parte daquela paisagem sombria.

— Oi — disse eu.

— Oi. — Ela pôs os braços em volta de si mesma, sentindo frio mesmo estando de casaco. Os Moroi não tinham a mesma resistência a mudanças de temperatura que os dampiros. O que para mim era quente e primaveril era frio para ela. — Eu sabia. Desde o dia em que disseram que o corpo dele se fora. Algo me dizia que você faria isso. Eu só estava esperando.

— Você pode ler minha mente agora? — perguntei pesarosa.

— Não, mas eu posso ler você. Finalmente. Não acredito como fui cega. Não acredito que nunca percebi. O comentário do Victor... ele estava certo. — Ela olhou para o pôr do sol e então voltou a me olhar. Um lampejo de raiva, vindo de seus sentimentos e de seus olhos, me atingiu. — Por que não me contou? — gritou ela. — Por que você não me contou que amava Dimitri?

Eu a encarei. Não conseguia me lembrar da última vez em que vi Lissa gritando com alguém. Talvez no outono passado, durante toda aquela loucura envolvendo Victor. Ataques eram do meu feitio, não do dela. Mesmo ao torturar Jesse, a voz dela era assustadoramente calma.

— Eu não podia contar a ninguém — disse eu.

— Eu sou a sua melhor amiga, Rose. Nós enfrentamos tudo juntas. Acha mesmo que eu teria dito alguma coisa? Eu teria guardado segredo.

Olhei para o chão.

— Eu sei que sim. Eu só... não sei. Eu não podia falar a respeito. Nem mesmo para você. Não posso explicar.

— Era... — Ela buscava a pergunta que sua mente já tinha formulado. — Era sério? Era só da sua parte ou...?

— Nós dois — disse a ela. — Ele sentia o mesmo. Mas nós sabíamos que não podíamos ficar juntos, não nessa idade... e, bem, não quando devíamos proteger você.

Lissa franziu a testa.

— O que isso quer dizer?

— Dimitri sempre disse que, se nós nos envolvêssemos, nos preocuparíamos mais em proteger um ao outro do que em protegê-la. Não podíamos fazer isso.

A ideia de que fora responsável por nos manter separados a fez encher-se de culpa.

— Não é culpa sua — disse eu, prontamente.

— Claro... tinha de haver outro jeito... Não seria um problema...

Dei de ombros, sem disposição para lembrar ou mencionar nosso último beijo na floresta, quando Dimitri e eu pensamos ter encontrado a solução para todos os nossos problemas.

— Eu não sei — disse eu. — Nós só tentamos nos manter afastados. Às vezes funcionava. Às vezes não.

A mente dela era um turbilhão de emoções. E, ao mesmo tempo que sentia pena de mim, ela estava irritada.

— Você devia ter me contado — repetiu. — Sinto como se você não confiasse em mim.

— Claro que confio.

— É por isso que você está fugindo?

— Isso não tem nada a ver com confiança — admiti. — Sou eu... bom, eu não queria contar. Eu não conseguiria contar para você que eu estava partindo ou explicar o porquê.

— Eu já sei — disse ela. — Já entendi tudo.

— Como? — perguntei. Lissa estava cheia de surpresas hoje.

— Eu estava lá. No outono passado, quando levamos aquela van até Missoula. As compras... Você e Dimitri falavam sobre Strigoi, sobre como tornar-se um transforma você em algo tenebroso e maligno... como a pessoa que você costumava ser é destruída e você é levado a fazer coisas horríveis. E eu ouvi... — Ela tinha dificuldade para dizer. Eu tinha dificuldade para ouvir, e meus olhos se encheram de lágrimas. A lembrança era muito dura, lembrar de estar sentada ao lado dele naquele dia, quando estávamos nos apaixonando. Lissa engoliu em seco e continuou: — Ouvi vocês dois dizerem que preferiam morrer a se tornarem monstros como aqueles.

O silêncio se abateu sobre nós. O vento começou a soprar nossos cabelos, claros e escuros.

— Eu tenho que fazer isso, Liss. Tenho que fazer por ele.

— Não — disse ela, firme. — Não tem. Você não prometeu nada a ele.

— Não com palavras. Mas você... você não entende.

— Entendo que você está tentando superar, e essa é uma maneira, como todas as outras. Você precisa achar uma outra forma de esquecê-lo.

Balancei minha cabeça negativamente.

— Eu tenho que fazer isso.

— Mesmo que signifique me deixar?

A forma como ela disse essas palavras, a forma como me olhou... meu Deus. Uma enxurrada de memórias invadiu minha mente. Nós estávamos juntas desde a infância. Inseparáveis. Unidas. Mas... Dimitri e eu também fomos unidos. Droga. Eu nunca quis ter que escolher entre os dois.

— É algo que tenho que fazer — disse eu mais uma vez. — Me perdoe.

— Você devia ser minha guardiã e ir para a faculdade comigo — protestou ela. — Você recebeu o beijo das sombras. Nós devíamos ficar juntas. Se você me deixar...

As garras sinistras da escuridão começaram a tomar meu peito. Minha voz ficou embargada quando disse:

— Se eu deixá-la, vão providenciar outro guardião. Dois deles. Você é a última Dragomir. Eles vão mantê-la a salvo.

— Mas não vai ser você, Rose — disse ela. Aqueles olhos verdes brilhantes se focaram nos meus, aplacando a raiva dentro de mim. Ela era tão bonita, tão doce... e parecia tão sensata... Ela estava certa. Eu devia isso a ela. Eu precisava...

— Pare! — gritei, me virando. Ela estava usando magia. — Não use compulsão em mim. Você é minha amiga. Amigas não usam poderes umas nas outras.

— Amigas não abandonam umas às outras — retrucou ela. — Se você fosse minha amiga, não faria isso.

Virei-me em direção a ela, tomando cuidado para não olhar muito fundo em seus olhos, caso ela tentasse usar compulsão mais uma vez. A raiva dentro de mim explodiu.

— Isso não tem a ver com você, entendido? Dessa vez, estou pensando em mim mesma. Não em você. Toda a minha vida, Lissa... por toda a minha vida tem sido a mesma coisa. Eles vêm primeiro. Eu vivi minha vida para você. Eu treinei para ser sua sombra, mas quer saber? Eu quero vir primeiro. Eu preciso cuidar de mim dessa vez. Cansei de cuidar de todo mundo e deixar de lado o que eu quero. Dimitri e eu fizemos isso, e veja o que aconteceu. Ele se foi. Nunca mais vou abraçá-lo. Agora eu devo isso a ele. Sinto muito se isso magoa você, mas é a minha escolha!

Eu gritei as palavras, sem nem parar para respirar, e torci para que minha voz não tivesse alcançado os guardiões em serviço no portão. Lissa me encarava, surpresa e magoada. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, e uma parte de mim pareceu secar ao magoar aquela que eu jurara proteger.

— Você o ama mais do que a mim — disse ela, baixinho, soando como uma criança.

— Ele precisa de mim agora.

— Eu preciso de você. Ele se foi, Rose.

— Ainda não — observei. — Em breve ele terá ido. — Levei a mão até minha manga e tirei o chotki que ela me dera de Natal. Estendi-o para ela. Ela hesitou e então o pegou.

— Para que é isso? — perguntou.

— Eu não posso usá-lo. É para o guardião de um Dragomir. Eu pego de volta quando eu... — Eu quase disse se, e não quando. Acho que ela percebeu. — Quando eu voltar.

As mãos dela envolveram as miçangas.

— Por favor, Rose. Por favor, não me deixe.

— Me desculpe. — Eu não tinha mais nada a dizer. — Me desculpe.

Eu a deixei chorando enquanto andava até o portão. Um pedaço da minha alma havia morrido quando Dimitri se foi. Ao virar as costas para ela, senti mais um pedaço morrer.

Logo não restaria mais nada dentro de mim.

Os guardiões no portão ficaram tão surpresos quanto a secretária e a diretora Kirova, mas não havia nada que pudessem fazer. “Parabéns para mim”, pensei com amargura. Finalmente os dezoito. Não era nada do que eu esperava.

Eles abriram os portões, e eu passei, além dos limites da escola e dos escudos. As linhas eram invisíveis, mas eu me sentia estranhamente vulnerável e exposta, como se tivesse pulado de um grande abismo. Ainda assim, ao mesmo tempo, me sentia livre e no comando da minha vida. Comecei a caminhar pela estrada estreita. O sol já havia quase se posto; e, em breve, eu dependeria da luz da lua.

Quando os guardiões já não podiam me ouvir, eu parei e disse:

— Mason.

Tive que esperar um longo tempo. Quando ele apareceu, eu mal conseguia enxergá-lo. Estava quase completamente transparente.

— Já é hora, não é? Você está indo... está quase indo para...

Bom, eu não tinha ideia do destino dele. Eu não sabia mais o que havia além, se eram os reinos em que o padre Andrew acreditava ou algum mundo completamente diferente que eu visitara. De qualquer forma, Mason entendeu e confirmou minha suspeita.

— Fazem mais de quarenta dias — contemplei. Então eu acho que seu prazo acabou. Fico feliz... Quer dizer, espero que você encontre a paz. Apesar de eu ter achado que você me levaria até ele.

Mason sacudiu a cabeça negativamente, e não precisou dizer uma palavra para que eu entendesse o que ele queria dizer: Você está por sua conta, Rose.

— Tudo bem. Você merece descansar. Além disso, eu acho que sei por onde começar.

Eu havia pensado continuamente a respeito disso na última semana. Se Dimitri estivesse onde eu achava que ele estava, eu teria muito trabalho pela frente. A ajuda de Mason seria bem-vinda, mas eu não queria continuar importunando-o. Parecia que ele já tinha coisas demais para lidar.

— Adeus — disse a ele. — Obrigada pela ajuda. Eu... vou sentir sua falta.

Os traços dele se tornaram mais fracos e, logo antes de desaparecerem, vislumbrei o resquício de um sorriso, aquele sorriso aberto e malicioso que eu tanto adorava. Pela primeira vez desde sua morte, pensar em Mason não me entristecia. Eu estava triste e sentiria muita saudade dele, mas eu sabia que ele estava a caminho de algo bom— algo muito bom. Eu já não me sentia mais culpada.

Virando-me, olhei fixamente para a longa estrada que se estendia à minha frente. Suspirei. Essa viagem poderia demorar um pouco.

— Então, comece a andar, Rose — murmurei para mim mesma.

E então parti. Para matar o homem que eu amava.

 

 

                                                    Richelle Mead         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades