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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TUDO... OU NADA! / Kay Thorpe
TUDO... OU NADA! / Kay Thorpe

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

"Alô, Kerry", disse uma voz desconhecida. "Já que você vai se casar com Ross Sinclair, é melhor que saiba quem ele realmente é. O que você acha de um homem que vive durante seis meses com uma mulher e depois a põe na rua?" Kerry gelou com a revelação. Aquilo abalava de vez a confiança que ela depositava em Ross, filho de seu padrasto e seu futuro marido. Maldito Ross, que fazia seu coração disparar, louco de amor... e que estava interessado apenas na herança que o pai deixara para ela. Não, Kerry não poderia aceitar um casamento sem amor. Por mais que sofresse, para ela tinha de ser tudo... ou nada!

 

 

                             

 

 

- Seu padrasto era uma ótima pessoa, srta. Rendai - disse o vigário, estendendo-lhe a mão, penalizado. - Sentiremos muita falta dele.

Não tanto quanto ela, pensou Kerry saindo da capela. Mesmo assim, recusou-se a deixar que a tristeza tomasse conta de si. Andrew Sinclair morreu como gostaria: rápido, sem enfrentar uma longa enfermidade. Aos sessenta e nove anos ainda estava forte e vivera a vida que sempre quis.

Ross Sinclair estava em algum lugar, atrás dela. Kerry o havia visto na entrada da capela do crematório, na hora em que o cortejo fúnebre chegara. Depois de todos aqueles anos, pelo menos deveria ter tido a delicadeza de ir até a casa primeiro. A morte anula quaisquer diferenças familiares, mesmo as mais amargas.

Mesmo depois de seis anos ela não tivera dificuldade em reconhecê-lo, o mesmo cabelo claro e o mesmo rosto, enfim uma réplica mais jovem do pai. Os dois tinham gênio forte e isso se revelava em Ross do mesmo modo que em seu pai: a linha do queixo se endurecia e os lábios se comprimiam. Se algum dos dois soubesse o significado da palavra "transigir", a briga não aconteceria. Andrew sentira falta do filho, ela bem que sabia, mas não o admitira nem para ela nem para mais ninguém. Restava apenas esperar que essa obstinação não se estendesse após a morte, se bem que com as leis atuais ninguém podia ser totalmente deserdado, e Andrew devia saber disso.

Não, Ross estava a salvo. O negócio que o levara a sair de casa e deixar o país agora seria dele, para agir como bem quisesse. Seis anos nos Estados Unidos certamente fariam diferença, pois o sistema de vendas por atacado nascera lá. Sem dúvida ele iria rapidamente transformar a Sinclairs numa loja comum, desprezando quase um século de vendas a varejo, como se isso não tivesse a menor importância.

A loja tinha sido fundada no fim do século passado pelo avô de Andrew Sinclair e cresceu com o tempo até se transformar no enorme magazine de quatro andares, com seus vinte e sete departamentos e um grande quadro de funcionários. A Sinclairs não era apenas a melhor loja de Medfield, era a única no seu ramo. Na Sinclairs o freguês podia comprar desde linhas e agulhas até um terno completo, sem ter que andar mais que alguns metros.

A última reforma havia sido feita nos anos quarenta e por isso ela parecia meio antiquada, mais na decoração e não tanto na organização. O atendimento também era diferente do das lojas modernas. Os empregados da Sinclairs estavam ali para servir, e faziam isso com cortesia, eficiência e interesse. Era essa a regra do velho Henry Sinclair, passada e seguida pelo neto ao pé da letra.

Só Ross Sinclair questionou esse velho hábito. Aos vinte e cinco anos argumentara que não era mais possível tanta indulgência com o freguês. O que interessava mais era a rapidez nas operações, o agrupamento dos departamentos semelhantes e a melhor utilização da área disponível. Havia feito um projeto de reestruturação para a loja inteira, tanto na distribuição quanto na organização.

Kerry ainda se lembrava muito bem da discussão que houvera entre ele e o pai, antes que Ross desistisse e fosse embora para os Estados Unidos. Lembrava-se também da raiva que sentira do rapaz, por achar que ele não tinha o menor senso de lealdade familiar. Não que tivesse algum sentimento mais profundo por ele, nem ele por ela, pois as circunstâncias não haviam favorecido um relacionamento mais íntimo entre ambos.

Kerry tinha quatorze anos quando sua mãe conhecera e se casara com Andrew Sinclair. Como Kerry não se lembrava do próprio pai, ficara feliz por ter ganho um outro. Vinte anos mais velho que sua mãe, Andrew havia demonstrado ser um dos homens mais bondosos e, gentis do mundo, e Kerry não havia mudado de opinião nos últimos dez anos. Ross, entretanto, era completamente diferente da imagem habitual do irmão mais velho e amigo. Quando se conheceram, Kerry achou-o arrogante, convencido e muito cheio de si. Apesar de não ter sido abertamente contra o casamento, deu a impressão de achar que a mãe de Kerry tinha se casado com seu pai por interesse.

Agora, aos trinta e um anos, esperava que ele tivesse se humanizado um pouco. Homens como Ross Sinclair geralmente ficavam mais duros com o passar dos anos, e o simples fato de ele não ter entrado em contato com ela antes do funeral era prova disso. Não havia recebido nem mesmo um telegrama dele e até alguns minutos atrás nem tinha certeza de que ele viria, da mesma forma quando a mãe dela morrera há quatro anos num desastre. Ross enviou então apenas uma carta de condolência e nada mais. Só que agora era diferente.

As pessoas vinham falar com ela, apertar sua mão de um modo meio indeciso, como quem não sabe bem o que dizer numa ocasião como aquela. Os dois primos de Andrew aguardavam perto dos carros. Ambos eram acionistas minoritários da Sinclairs e os únicos parentes vivos, além de Ross. Eram muito parecidos. Tinham mais ou menos sessenta anos e eram solteirões.

Alguns dos amigos voltariam com eles para casa, para tomarem um lanche, mas talvez ficassem um pouco desapontados, pois Kerry havia dito à sra. Payne para preparar algo bem simples. Imaginava que a casa agora pertencia a Ross. Pelo menos não havia razão para acreditar no contrário, pois se Andrew tivesse tido a idéia de deserdar o filho, sem dúvida teria comentado com ela no decorrer de todos esses anos. Pelo que Kerry sabia, Andrew não havia feito um novo testamento depois da partida do filho e, no original, Ross era o maior herdeiro, se bem que sua mãe tivesse ficado bem protegida também.

De qualquer modo, tudo ficaria esclarecido na manhã do dia seguinte, quando o dr. Watling, advogado de Andrew, leria o testamento para todos os interessados. Isso parecia meio estranho, mas, segundo ele, seria melhor assim. Talvez houvesse necessidade de esclarecer alguma coisa.

Kerry sentiu que lhe tocavam o braço com firmeza. Virou a cabeça instantaneamente e viu Ross, muito sério, elegantemente vestido com um terno cinza. Kerry de saltos altos, ainda era mais baixa do que ele, e precisou erguer os olhos para encará-lo. Sentiu uma estranha sensação ao vê-lo.

- Se você vai voltar de carro para casa, acho que vou com você. Vim de táxi da estação - disse ele.

Havia no mínimo uma dúzia de coisas que Kerry queria dizer a ele no momento, mas, vendo que os outros os observavam, achou melhor deixar para depois. Fez um gesto com uma das mãos, indicando o primeiro dos dois automóveis parados nas proximidades.

- Vamos naquele, os outros podem ir no outro.

Os dois primos ficaram olhando enquanto Kerry e Ross se aproximavam, sem saber bem como cumprimentar o filho pródigo. Mas o próprio Ross resolveu o problema, perguntando:

- Como estão? - E abriu a porta de trás para que Kerry entrasse antes dele. Os primos responderam ao cumprimento e Ross acrescentou: - Ótimo, então nos encontraremos lá em casa.

Kerry recostou a cabeça no estofamento macio, sem conseguir olhar para ele.

- Quase não chegou a tempo. Como descobriu a hora do funeral?

- Eu telefonei para o dr. Watling, do aeroporto, assim que cheguei. Foi uma sorte ter conseguido pegar o trem.

- Imagino que não lhe ocorreu me telefonar, ao menos para avisar que estava na Inglaterra - disse Kerry, baixando a voz.

- Ocorreu-me, sim - respondeu ele, seco. - Como eu disse, era muito cedo, e eu não tinha certeza de ser bem recebido. Seis anos é tempo demais.

- É mesmo? - Kerry tentou não ser irônica. - É um alívio saber que recebeu meu telegrama.

- Só recebi ontem à tarde. Estive fora da cidade por alguns dias.

- Oh! - disse ela, olhando para ele e notando sua aparência cansada. - Eu não sabia.

- E nem tinha jeito de saber.

- Não. - Não havia mais nada a dizer sobre o assunto. Não interessava saber onde é que ele estivera, Kerry apenas se sentia grata por ele ter chegado a tempo. - Você deve estar cansado de viajar a noite toda - acrescentou. - E além de tudo, o choque...

- É, foi um choque. - Sorriu levemente, sem humor. - Eu sempre achei que ele chegaria aos oitenta. Todos os Sinclair vivem muito.

- Foi um ataque violento de coração - esclareceu Kerry. - O dr. Simmons disse que não poderia ter feito nada nem que estivesse do lado dele na hora.

- Imagino que não. Onde é que ele estava?

- Na cama. - Kerry tentou não se emocionar. - Reclamou de má digestão depois do jantar e foi se deitar cedo. Na manhã seguinte, pensei que ele ainda estava dormindo, mas...

- Não deve ter sido nada agradável para você - comentou ele baixinho quando ela parou de falar. - Teria sido pior se ele fosse seu pai verdadeiro, é claro, mas...

- O fato dele não ser faz muito pouca diferença - interrompeu-o Kerry, seca. - Pessoalmente, acho que laços de sangue não são assim tão importantes! Desculpe-me, não devia ter dito isso.

- Se eu tivesse realmente dito o que você pensou, bem que merecia essa resposta. Mas esqueça isso, está bem? - Era uma afirmação, não uma pergunta. - A sra. Payne ainda trabalha lá em casa?

- Sim, se bem que não vem tantas vezes como antes. Desde que mamãe morreu, não recebemos muita gente.

Ross não fez comentário algum e nem ela esperava que fizesse. O silêncio pairou entre os dois. Kerry ficou olhando a paisagem pela janela do carro, a cidade e as colinas na distância. Medfield era uma cidade industrial do condado de Yorkshire, mas muito bem localizada. Kerry nascera num lugar mais ao sul, com uma topografia mais plana, mas havia se apaixonado à primeira vista pelas colinas escarpadas e pelos vales verdes de seu novo lar. O que quer que acontecesse, sabia que nunca mais iria embora dali, pois, depois de nove anos, se sentia como se fosse filha da terra.

- Eu só reconheci você por causa do cabelo - disse Ross, fazendo com que ela voltasse a atenção para ele. - Essa cor de castanho é bem pouco comum, mas o corte está diferente.

Kerry ficou surpresa dele se lembrar disso.

- Eu o cortei há alguns anos. Estava muito comprido, difícil de manter arrumado, e você sabe como seu pai dava importância à aparência do pessoal da loja.

Seus olhos cinzentos se estreitaram e ele perguntou:

- Você trabalha na loja?

- Sim. - Kerry hesitou, mas acrescentou meio na defensiva: - Eu era assistente dele.

Desta vez não houve reação, mas ele comentou:

- Ele devia ter muita confiança em você.

- Nós nos entendíamos bem, se é isso que quer saber.

- Partilhavam as mesmas opiniões?

- Bastante.

- Sei, sei. - Fez uma pausa. - E agora?

- Vai depender muito das circunstâncias - respondeu cautelosa e notou uma expressão irônica em seu rosto.

- Está querendo dizer que, se eu herdar a loja, você vai ter que repensar em seu futuro?

Ela evitou a pergunta.

- Não acho que haja dúvida alguma sobre a questão da herança. Você é o último dos Sinclair e, apesar de tudo o que seu pai sentia, não iria querer que a firma perdesse o nome da família.

- Será que você conhecia meu pai tão bem assim?

- Talvez melhor que você - respondeu-lhe, amarga, deixando subentendido algo que ela preferia ter omitido. Sentiu que corava e acrescentou depressa: - Veja bem, morar junto com alguém na mesma casa durante anos acaba criando um certo grau de intimidade.

- Eu vivi com ele nesta casa durante doze anos - lembrou ele, seco. - E posso dizer que isso não serviu para melhorar nosso relacionamento.

- Isso porque vocês eram parecidos demais. Vocês dois queriam as mesmas coisas o tempo todo.

Ross acabou rindo.

- Eu me lembro que um dia você me chamou de cabeça-dura, mas aposto que nunca chamaria meu pai assim.

- Se eu o chamei assim, você provavelmente merecia - retrucou Kerry, recusando-se a ficar desconcertada. - Era por isso, ou então porque você me ignorava.

- Impossível! Como eu poderia ignorar uma garota que me olhava como se fosse o ser mais desprezível da terra? - Havia humor em sua voz. Seus traços por sua vez se suavizaram. - Talvez eu merecesse, não sei. Só sei que era incapaz de aturar você.

Kerry ficou olhando para ele durante um longo tempo, desconfiada de que ele estivesse caçoando dela, mas sem ter certeza.

- Eu não era arrogante - disse, afinal. - Era tímida. Você era adulto e do lugar; para mim tudo era novo. Nunca tinha morado numa casa do tamanho de Underwood, nem freqüentado uma escola grã-fina. Tudo isso me humilhava, naqueles primeiros meses, mas eu não queria que ninguém desconfiasse, por isso fingia superioridade. Nunca desconfiei que representasse tão bem...

- Acredite-me, você enganou bem. - O sorriso era genuíno, fazendo com que ela esquecesse um pouco a tristeza dos últimos dias. - E comigo, parecia ser pior ainda. Foi pena que precisasse acontecer uma coisa como esta para a verdade aparecer.

- Pois é. Você devia ter voltado antes, Ross. Ele teria recebido você de braços abertos.

- Só se eu resolvesse aceitar as coisas do modo como ele queria. Eu não podia aceitar isso, então preferi continuar longe; mas nos correspondíamos.

- Verdade? - perguntou Kerry, admirada. - Nunca soube disso!

- Mas não era sempre. Acho que você tem razão, éramos parecidos demais para nos entendermos. Talvez, se partisse de mim a primeira tentativa, pudéssemos chegar a nos compreender melhor.

- Mas você tinha conseguido vencer nos Estados Unidos e não queria se arriscar a perder tudo o que conseguira, voltando aqui e começando da estaca zero, não é? - arriscou ela, e viu que ele assentia.

- É mais ou menos isso mesmo. Eu cheguei onde queria e aprendi o que achava necessário.

- E agora?

Ele ergueu os ombros.

- Como você mesma disse, tudo depende das circunstâncias. Pelo que o dr. Watling disse hoje cedo, sou mencionado no testamento de papai, mas é a única coisa que sei. Ele poderia apenas estar me desejando felicidades...

- Você pretende questionar o testamento, se por acaso ficar fora dele?

- Não. - A negativa foi firme. - Eu não estou mal de vida, e o meu emprego continua à minha disposição.

- Qual é exatamente o seu emprego? - perguntou Kerry, interessada.

- Sou o gerente geral, da filial de Detroit, de uma grande cadeia de lojas.

- É um ótimo posto para alguém da sua idade - comentou ela, pensando na cúpula administrativa da Sinclair, onde ninguém tinha menos de cinqüenta anos.

- Nos Estados Unidos as promoções são rápidas.

- Mas precisam ser merecidas, não é?

- Claro, mas eu também tive sorte. O próximo passo é a matriz em Nova York, e isso não me atrai muito. Prefiro ficar em um lugar onde eu tenha mais liberdade de ação.

- E quanto mais ação, melhor, imagino eu...

- Certo. Isso faz com que ache as coisas na Sinclair paradas demais para o meu gosto. - Deu uma olhada para ela. - A não ser que tenha havido alguma mudança para melhor.

- Algumas - foi a resposta cautelosa. - Provavelmente não de acordo com o seu pensamento.

- Diga-me uma.

- Bem, instalamos escadas rolantes no ano passado.

- Já não era sem tempo. O que mais?

- Redecoramos tudo. Modernizamos a cozinha do restaurante.

- Eu estava falando sobre eficiência operacional, sobre organização.

- Eu sei que você estava. - Kerry evitava um tom de desculpa na voz. - Mas os lucros ainda são suficientemente bons para não precisarmos pensar em grandes mudanças.

- Isso porque papai não retirava quase nada dos lucros da loja. Não dirigia a loja como se fosse um negócio, mas sim como se fosse um divertimento.

- Os outros diretores nunca se queixaram.

- E por que deveriam? Levam um padrão de vida muito bom, para pouco esforço. Deus me livre se acontecer alguma coisa com os acionistas!

Kerry sacudiu a cabeça.

- Isso não vai acontecer.

- Vamos esperar para ver.

O carro saiu da estrada e pegou a entrada curva em direção à casa. Ross inclinou-se para a frente, para vê-la. Era uma casa antiga, de pedra cinzenta. Seu rosto mudou de expressão ao avistar as linhas suaves da mansão. Quando Kerry ali chegara, há nove anos, a casa lhe parecera um castelo. Ainda parecia grande e imponente, mas agora, já acostumada, não se sentia mais intimidada. Aprendera a amar Underwood como se fosse seu lar. Será que as coisas ainda continuariam assim? Sabia que Andrew nunca a deixaria à míngua, mas o dinheiro não era tudo. Sua vida estava prestes a sofrer uma segunda mudança radical, e isso não a agradava.

- O que aconteceu com a sua bagagem? - perguntou, assim que o carro parou.

- Mandei direto da estação para cá. - Ross saiu primeiro e ajudou-a a descer, indicando com a cabeça que o motorista podia levar o carro.

Ali, ao lado dela, ele parecia mais alto ainda, o corpo esbelto sugerindo uma musculatura que o terno de corte perfeito não conseguia esconder. Kerry sentiu um leve aroma de loção de barba. Olhando para ele, ninguém imaginaria que tivesse viajado a noite inteira. Devia ter feito a barba no trem para estar tão impecável.

O segundo carro chegou logo em seguida. De dentro dele saiu uma meia dúzia de pessoas. Os primos foram os primeiros, seguidos do vigário e de três amigos idosos. Os primeiros nunca tinham muito a dizer, nem mesmo nas reuniões de diretoria. Pareciam perdidos sem Andrew, sem mesmo saber que caminho deveriam seguir ali.

Ross resolveu o problema para eles, segurando o cotovelo de Kerry e dirigindo-se para dentro de casa. O vestíbulo forrado de lambris parecia aconchegante. Havia um vaso de crisântemos amarelos enfeitando a mesa no sopé da escadaria em curva. Sem hesitar, Ross atravessou o aposento e abriu as portas duplas que davam para a sala, como se tivesse ido embora apenas na véspera.

Na meia hora seguinte tudo correu como o programado. Kerry serviu salgadinhos preparados pela sra. Payne, café e licores. O vigário preferiu beber um uísque com Ross.

- Uma grande perda... - repetia, sacudindo a cabeça tristemente. - Um bom homem, o seu pai. A paróquia não vai ser a mesma sem ele!

Ross conversou um pouco com os primos e por fim despachou-os, assim como aos outros, com uma facilidade que demonstrava estar acostumado a lidar com situações meio embaraçosas como aquela. Os primos deveriam voltar na manhã seguinte para a leitura do testamento, mas até lá a casa estava livre de visitantes.

Até aquele momento ela não pensara onde é que Ross passaria aquela noite, nem as seguintes. Não que isso fizesse alguma diferença, pois a sra. Payne poderia arrumar o antigo quarto dele, que dava para o jardim.

- Você vai ficar aqui mesmo, não é? - perguntou, apenas para ter certeza, e viu que ele erguia as sobrancelhas.

- Você preferia que eu fosse para um hotel?

- E por que faria isso?

- Para manter as aparências, imagino.

Ela olhou para ele por um momento, antes de perceber onde queria chegar.

- Não seja ridículo - disse. - Para todos os efeitos, somos praticamente irmãos.

Ross sorriu.

- Você tem vinte e três anos, não quatorze, e é uma moça muito atraente. Esta cidade sempre foi muito puritana.

- Não a ponto das pessoas imaginarem que possa acontecer alguma coisa apenas por ocuparmos a mesma casa por uma noite.

- É, talvez por uma noite... E o que vai acontecer se o testamento for mesmo como você imagina?

Kerry levantou a cabeça e disse:

- Então eu não vou mais estar aqui, não é? A propriedade vai ser sua.

- E você acha que eu ia querer que você fosse embora?

Kerry levantou os ombros, desanimada.

- Na verdade, não havia pensado em nada além do funeral. Tive tanto que fazer nestes últimos dias...

- Coisas que eu deveria ter providenciado, se estivesse aqui. - Acendeu um cigarro e ficou olhando para a fumaça com ar pensativo. - No que se refere a mim, este é o seu lar enquanto você quiser. Papai deve ter cuidado de tudo. Ele gostava muito de você.

- Eu sei - disse ela baixinho. - Vamos deixar isso para amanhã, quando tudo ficar esclarecido?

- Claro. - Fez uma pausa e olhou para ela com uma expressão enigmática. - Estou muito cansado, pois quase não preguei o olho durante o vôo. E o jantar de hoje?

- Não pedi que a sra. Payne ficasse, mas posso fazer alguma coisa para nós dois.

- Estava pensando em jantar fora. Estamos no meio da semana, por isso acho que não precisaremos reservar mesa. A gente escolhe o restaurante mais tarde. - Ao ver a reação dela, indagou: - Não acha uma boa idéia?

- Não no dia do enterro do seu pai - respondeu ela. - Imagino que estejamos de luto, e não fazendo programas...

- Eu me referi a uma refeição, não a uma festa. - De repente ele pareceu intolerante. - Você pode estar de luto sem ser reclusa.

- Acho que pensamos diferente - observou ela, seca.

- Claro, claro. - Ross soltou um suspiro resignado. - Está bem, ficamos em casa. Espero que você pelo menos seja uma cozinheira razoável.

Kerry acabou sorrindo.

- Acho que dá para não morrer de fome. Na verdade, seu pai preferia a minha comida à da sra. Payne.

- Lógico... - Ross sorriu. - Prefiro esperar para dar minha opinião. Fico com o meu velho quarto?

- Espere um instante só, enquanto falo com a sra. Payne. Não sabia se você vinha, por isso não mandei arrumar o quarto com antecedência; mas não vai demorar.

A criada estava na cozinha grande e ensolarada, cantarolando baixinho enquanto colocava a louça na lavadora de pratos. Era uma mulher alegre, de mais ou menos sessenta anos.

- A cama já está arrumada - disse ela, quando Kerry lhe perguntou. - Aprontei o quarto quando vi chegarem as malas do sr. Ross. - Olhou para Kerry, curiosa. - Será que agora ele fica de vez?

- Não tenho certeza dos planos dele - respondeu Kerry. - Não precisa ficar hoje, sra. Payne. Não irei à loja, por isso aprontarei o jantar.

- Vai ser ótimo ter a tarde livre - disse a empregada. - Mas, e o almoço?

- Duvido que qualquer um de nós ainda queira comer alguma coisa. - Num impulso, acrescentou: - Não precisa vir amanhã também. Não vai haver muito serviço. - Voltou para a sala.

Ross estava de pé perto da janela, olhando para o gramado que ia até uma linha de árvores altas mais ao fundo. Atrás delas ficava a quadra de tênis. No total, Underwood tinha mais de quinze mil metros quadrados. Andrew às vezes ameaçava vender parte das terras, mas nunca levou isso muito a sério.

- Seu quarto está pronto - disse Kerry. - Do mesmo jeito que você o deixou. A sra. Payne guardou com cuidado as roupas que você deixou aqui; volta e meia ela as punha ao sol, para arejar.

- Será que deixei tantas assim? - perguntou Ross, virando-se para ela. - Nem me lembro...

- Dois ternos, algumas camisas e calças avulsas, não tenho certeza.

- Não faz mal, depois dou uma olhada. - Correu os dedos pelos cabelos num gesto de cansaço. - Agora vou cochilar um pouco. Se eu não aparecer até as cinco horas, por favor me chame, está bem? Desculpe-me, mas não estou me agüentando de pé.

Cansado, abatido e sem nada saber do futuro, pensou Kerry. Sozinha, ficou imaginando o que iria fazer nas próximas horas. Teria sido melhor se não tivesse tirado folga o dia todo. Agora era tarde demais, já estava feito. Havia algumas despesas da casa que precisavam ser calculadas. Aproveitaria seu tempo disponível para fazer isso. O dr. Watling provavelmente iria querer informações a respeito, embora Andrew tenha tido sempre o cuidado de não deixar a família sobrecarregada de encargos administrativos. Até mesmo o testamento havia ficado com o advogado e não no cofre do escritório. Também não havia segredo algum quanto a isso. Kerry sabia há anos que o dr. Watling ficaria encarregado de tudo, quando se tornasse necessário. Só que nem ela nem ninguém haviam imaginado que tudo acontecesse tão depressa.

O espelho grande, ao lado da entrada, refletia sua imagem: uma figura esbelta e elegante, num discreto vestido negro, o rosto emoldurado pelos cabelos castanhos, lisos, e que lhe chegavam até abaixo dos ombros. Os olhos verdes quase não revelavam seus pensamentos.

Uma moça muito atraente, Ross havia dito. Ela não era convencida, mas também não era ingênua e bem sabia que outros rapazes tinham a mesma opinião sobre sua beleza, só que até aquele dia nenhum elogio a deixara tão feliz. Ross era diferente, irradiava uma grande segurança, bem diferente da maioria dos rapazes que conhecia. Kerry ficou imaginando sobre as mulheres que ele poderia ter tido. Sem dúvida teriam existido muitas, pois ele, além de fisicamente atraente, era um homem bem-sucedido. Será que tinha sido uma mulher que o mantivera afastado tanto tempo? Provavelmente Kerry nunca saberia e talvez nem quisesse saber. Ross Sinclair estava novamente participando de sua vida, preenchendo um vazio que nem ela mesma sabia que existia.

Ross desceu depois das seis e meia. Parecia bem-disposto e muito mais à vontade com um par de calças marrom e uma camisa branca.

- Você devia ter me acordado - disse ele, entrando na cozinha e encostando-se no batente da porta. - Eu não pretendia dormir tanto assim.

- Você está precisando descansar - disse Kerry. - É sempre melhor acordar sozinho do que ter o sono interrompido. Eu nunca viajei para muito longe, por isso desconheço os efeitos das diferenças de horário, mas já ouvi comentários.

- Você fica meio desorientado. Eu estou achando, por exemplo, que ainda é hora do almoço.

- Daqui a uma meia hora o jantar estará pronto. Só falta fazer o arroz.

- Humm... que cheirinho bom! O que é?

- Galinha ao vinho. Pensei que você acabaria dormindo até amanhã.

- Que tal uma garrafa de vinho para acompanhar?

- Ótima idéia! A chave da adega está no lugar de sempre.

Jantaram às sete horas. Sem querer, Kerry havia colocado o lugar de Ross na cabeceira da mesa e o seu à esquerda dele. Ele reparou nos talheres de prata e nos copos de cristal e sorriu enquanto colocava o guardanapo sobre os joelhos.

- Eu já quase tinha me esquecido desse tipo de vida - admitiu. - O meu apartamento em Detroit tem tudo o que se possa imaginar de moderno, mas é igualzinho a qualquer outro do quarteirão.

- Você vai voltar para lá para resolver suas coisas? Vai levar muito tempo?

- Tínhamos decidido deixar esse assunto para amanhã - lembrou ele, sem alterar a expressão. - Não posso fazer plano algum sem antes saber o que diz o testamento de papai.

- Está certo, desculpe-me. - Kerry tinha certeza de que ele não tinha nenhuma dúvida, mas não quis insistir. - Conte-me como é a loja em Detroit. De que tamanho é?

- Tem três vezes a área da Sinclairs.

- É uma responsabilidade e tanto...

- Tenho uma assessoria excelente.

Kerry estava com vontade de perguntar se ele achava que iria sentir saudade do trabalho nos Estados Unidos, mas, depois do que ele dissera, resolveu ficar calada. Talvez ele no íntimo até preferisse não ter a responsabilidade da Sinclairs sobre seus ombros. Sua vida nos Estados Unidos parecia agradável e satisfatória e ele devia sentir-se grato por saber que conquistara tudo aquilo sozinho. Isso devia significar muito para um homem do tipo de Ross.

A opinião de Kerry foi reforçada durante o jantar, enquanto ele respondia a mais algumas perguntas. No fim ela já percebia as diferenças básicas entre o sistema americano e o inglês de vendas a varejo. Foram tomar o café na sala de visitas, onde Ross acendeu a lareira e sentou-se no sofá, com um suspiro de satisfação, depois de ver que as chamas ganhavam força.

- Um outono inglês tem suas vantagens - comentou.

- Eu prefiro a primavera - retrucou Kerry. - Ela é o começo, enquanto o outono é o fim. - O braço que Ross colocara no encosto do sofá quase tocava as costas de Kerry, e se ela chegasse mais para trás, como ele, aquele braço encostaria em seu pescoço. Continuou sentada como estava, a cabeça baixa, olhando para sua xícara de café. - Segundo o serviço de meteorologia, vamos ter um inverno violento este ano.

- Agora sei que estou de volta! - Ross começou a rir. - E você, como vai sua vida? O que tem feito nestes anos, além de trabalhar?

- Nada de especial. - Era verdade. A Sinclairs preenchia sua vida, como preenchera a de Andrew. - Faço parte também de um grupo de teatro amador.

- Tem que haver algo de mais importante na sua vida do que apenas isso. - Fez uma pausa. - E namorados?

Kerry ergueu as sobrancelhas.

- Seu interesse é fraternal, ou simples curiosidade?

- Não sou seu irmão. - Desta vez a resposta foi quase brusca. - Não temos laços de sangue.

- Não me esqueci disso - ela respondeu baixinho. - Estava apenas brincando.

- Meu senso de humor nunca foi muito grande. - Ficou olhando para ela durante um instante e depois, sem aviso, tirou-lhe da mão a xícara e o pires, colocando-os na mesa, à sua frente. Passou o braço nos ombros de Kerry e, segurando-lhe o queixo, obrigou-a a olhar para ele. Os olhos cinzentos tinham uma expressão estranha. - Eu não faria isto com minha irmã - disse suavemente e beijou-a.

Não foi um beijo longo, mas despertou nela algo quase adormecido. Por um momento ficou imóvel, os lábios entreabertos em resposta, mas de repente caiu em si e empurrou-o um pouco, sentindo-se confusa. Não conseguia nem encará-lo.

- Isso não teve graça - conseguiu dizer.

- E nem era para ter. É que fiquei com vontade - disse ele com um toque de cinismo na voz. - E você também queria.

- Não! - negou com violência. - Nunca pensei em você deste modo!

- E nem eu... até agora. - Não fez outra tentativa para tocá-la, limitando-se a olhar para ela, com um leve sorriso nos lábios. - A única coisa que eu desejava fazer com você naquela época era apagar do seu rosto aquela expressão de crítica cada vez que olhava para mim. Já imaginou o que é ter uma pessoa quase da sua idade condenando praticamente tudo o que você faz? - Sacudiu a cabeça quando ela quis negar. - Não é que você falasse, mas seus olhos diziam tudo. Agora aprendeu a disfarçar um pouco seus sentimentos, mas a atração física pegou você desprevenida. Eu sei. Aconteceu o mesmo comigo quando olhei para você.

- Ross, enterramos seu pai ainda hoje! - exclamou.

- Mas a vida continua. Não se preocupe, não vou desonrar a família fazendo amor com você. É que eu precisava provar alguma coisa para mim mesmo, só isso.

- E o que é?

- Isso é comigo.

- Acho que é comigo também.

- Só porque a beijei? Não dê valor demais para isso. Não vai acontecer outra vez.

- Eu preferia que não tivesse acontecido nem desta vez. Não entendo você.

- É que hoje foi um dia estranho. - Ross encheu novamente as xícaras de café, estendendo a de Kerry para ela. - Beba isso e pare de se preocupar. Se eu tiver sorte, estarei indo embora antes do fim da semana.

- Sorte? - perguntou ela, começando a perceber por que é que ele estava estranho.

Ele olhou novamente para ela, meio irônico.

- Hoje, quando me sentei na cabeceira da mesa, me senti como uma visita sendo mimada pela dona da casa. Papai talvez se sentisse assim.

- Como uma visita?

- É que você se encaixava na posição de dona da casa. Pare de se defender. Ambos sabemos sobre o que eu estou falando.

- Eu não sei nada sobre o testamento - ela negou, esforçando-se para se manter calma. - De jeito nenhum. Talvez, se há quatro anos eu tivesse concordado quando ele pediu que eu trocasse meu sobrenome pelo dele, então você tivesse motivo para receios, mas eu sei que de modo algum ele deixaria Underwood para alguém que não fosse um Sinclair. Continuo a pensar assim. Eu me enganei com relação a você. Pensei que tivesse mudado, mas continua o mesmo. Você até desconfia que ele possa ter deserdado você!

- Tenho certeza disso. - Qualquer vislumbre de amizade que pudesse existir entre eles desaparecera. Os olhos de Ross pareciam de aço - Talvez seja por isso que a gente se sinta atraído um pelo outro. Somos parecidos demais. Naturalmente papai não partilhava essa opinião. Você teve quatro anos para se fazer indispensável a ele, e obviamente não perdeu tempo...

O pior disso tudo era ser julgada assim, sem ter meios de provar o contrário. Talvez as dúvidas desaparecessem no dia seguinte, mas ninguém conseguiria convencê-lo de que ela não tivera segundas intenções ao se interessar pelos negócios do pai dele. Era pena, pois houvera um momento no carro, quando voltavam do cemitério, que ela imaginara que estivessem começando a se entender. Falsa esperança!

- Vou para o meu quarto - disse ela, seca. - O dr. Watling virá às dez. Pensei em usarmos o escritório.

- Tenho certeza de que você pensou em tudo. - Não se levantou. - Durma bem!

Em seu quarto, Kerry começou a pensar no futuro. Depois disso não poderia continuar ali em Underwood, nem trabalhar na loja. Tinha que arranjar um novo emprego e isso não seria difícil, pois tinha bastante experiência em vendas a varejo. Mas teria que ser fora de Medfield. Londres, talvez... Lá ninguém a conhecia. A idéia até que a agradava.

Capítulo II

Não havia sinal de Ross quando Kerry desceu, às oito horas, mas na cozinha encontrou sinais de que alguém havia feito café e ovos mexidos. Kerry fez o mesmo para ela e ficou imaginando para onde é que ele teria ido. Com a diferença de horários, Ross provavelmente tivera dificuldade em dormir. Mas ela também tivera; só conseguira pegar no sono quase de madrugada.

Ross voltou um pouco depois das nove, o casaco jogado nos ombros largos.

- Fui dar uma volta - disse ele. - Já faz muito tempo que não faço isso só pelo prazer de andar. O ar já está gelado esta manhã. - Olhou para ela, sentada, quieta, à mesa do café. - Fui grosseiro ontem à noite. Esqueça, sim?

O pedido de desculpas deixou-a desconcertada. Não esperava por isso. Mas será que a intenção dele fora mesmo pedir desculpas? Esqueça, dissera ele, e não desculpe-me.

- Eu geralmente ando a pé nos domingos de manhã - observou Kerry. - Acho que é bom levantar cedo, quando não é preciso.

- Você pensa assim? - perguntou ele, percebendo a atitude evasiva de Kerry. - Sobrou café?

- Um pouco, mas acho que não está mais muito quente. - Em outra ocasião, Kerry se ofereceria para fazer mais um pouco, mas desta vez continuou sentada.

Ross ergueu as sobrancelhas mas não disse nada. Pôs a mão no bule e comentou:

- É verdade, já está frio. Vou subir e trocar de roupa. Vejo você às dez, no escritório.

Faltava menos de meia hora, pensou Kerry com a garganta estranhamente seca, e então saberiam. Se não fosse o suspense criado pelo advogado, já estariam sabendo. Claro que devia haver alguma razão, suspeitava ela. Não que Andrew tivesse deserdado o filho, isso seria impossível, ele não podia ter feito isso.

O advogado chegou cinco minutos antes da hora. Era um velho amigo da família e conhecia Ross desde criança, mas nessa manhã cumprimentou o rapaz meio constrangido.

O escritório era o lugar favorito de Kerry. Paredes cobertas de livros, poltronas de couro e um tapete espesso acolhiam bem tanto quem quisesse trabalhar, como descansar. O cachimbo e a bolsa de fumo que seu padrasto usara na noite em que morrera ainda estavam sobre a escrivaninha antiga. Kerry viu que Ross olhava para aquilo e apertava os lábios, talvez por achar que já deviam ter sido tirados dali, ou talvez por lhe despertar alguma lembrança mais íntima.

- Será que não devíamos esperar pelos outros? - perguntou Kerry, quando o advogado abriu a pasta e tirou alguns papéis.

O dr. Watling lançou-lhe um olhar resignado e respondeu:

- Não existem outros, minha querida. Os únicos herdeiros são vocês dois...

Mais tarde, analisando os fatos, Kerry achou que Ross tinha mais ou menos adivinhado o que ia acontecer, mas ela ficou aliviada ao ver que sua fé em Andrew não fora abalada e que ele não tinha renegado o filho único.

Sentado à escrivaninha de Andrew Sinclair, o advogado limpou a garganta antes de começar a ler os papéis que segurava nas mãos. A primeira parte era previsível: quinhentas libras para a sra. Payne pelos serviços prestados durante todos aqueles anos, a mesma importância para o jardineiro, uma outra bem maior para uma instituição de caridade que Andrew às vezes ajudava e uma doação para o Clube Ecológico local.

Uma pausa naquele ponto indicava que o que vinha a seguir era de importância maior. O dr. Watling limpou a garganta mais uma vez antes de continuar:

- O restante do espólio deve ser dividido igualmente entre meu filho Ross Sinclair e minha enteada Kerry Rendai, subentendendo-se que cada um deles deve residir em Underwood no mínimo durante nove meses no ano, e cada um deles deve tomar parte ativa na direção da loja Sinclairs.

Então o advogado leu a assinatura e a data do testamento. Apenas três meses depois do acidente em que sua mãe morrera, notou Kerry. Mas, por quê? Por que Andrew teria feito aquilo? Para refrear Ross, talvez? Sentiu-se comovida com a fé que o padrasto demonstrava em sua lealdade, mas rejeitava a idéia da herança. Metade da casa já teria sido demais, mas metade de tudo! Oh, Andrew, não!

- Parabéns. Acho que acabamos de ficar sócios.

Kerry percebeu então que ele iria lutar, não contra o testamento, que era legal, mas contra ela mesma. Isso fez com que sentisse a garganta apertada. Encarou-o, imaginando qual seria sua expressão. Mas, qualquer que fosse sua emoção, o rosto de Ross não revelava nada. Kerry abriu as mãos num apelo inconsciente.

- Não sei o que dizer.

- Tente agradecer - sugeriu ele. - Se existe uma outra vida, talvez ele escute.

O dr. Watling pigarreou, sentindo o antagonismo dele, sem saber o que fazer.

- Se vocês quiserem ir até o meu escritório, poderemos objetivar melhor as coisas. - Fez uma pausa. - Devo informá-los de que algumas ações da Sinclairs vão ter que ser vendidas para podermos pagar os impostos. Isso não vai empobrecê-los, mas vão precisar pensar em aumentar os lucros da loja.

Então era isso! Kerry prendeu a respiração. Andrew sabia que isso iria acontecer. Sabia que os impostos iriam comer parte do capital e que mudanças seriam necessárias, mas acreditava em Kerry; sabia que ela nunca concordaria com transformações radicais, que mudassem a imagem da Sinclairs. Andrew havia confiado nela, e ela agora teria que lhe retribuir e fazer o que estivesse a seu alcance, sem levar em conta a vontade de Ross.

Apesar de toda essa determinação, ficou preocupada quando viu o advogado se retirando, consciente da presença de Ross às suas costas. Ele continuava parado na porta do escritório, quando Kerry se voltou, e indicou com um gesto da mão que ela devia voltar para lá.

- Precisamos conversar.

Kerry passou por ele, esforçando-se por parecer segura, e foi se apoiar na escrivaninha. Encarou-o de frente.

- Bem?

- Estou preparado para comprar de você, por um preço superior ao do mercado, trinta dos quarenta por cento das ações que você tem da Sinclairs - disse sem preâmbulos. - Você continua pertencendo ao conselho diretor, é claro, junto com os primos.

Como uma acionista minoritária, sem poder algum, pensou Kerry, sem deixar transparecer seus sentimentos.

- Mas você tem dinheiro para isso?

- Onde e como arranjo o dinheiro é problema meu. Quero comprar essas ações.

- Eu sei que quer, mas a resposta é não.

- Por quê?

- Porque seu pai não queria que você tivesse todo esse poder. Se isso acontecesse você reestruturaria toda a organização. Concordo que deva haver mudanças, mas sem destruir o que ele sempre quis manter. Nós atraímos um grande número de fregueses porque oferecemos um tipo de atendimento diferente das grandes cadeias de lojas. Se não mantivermos isso, teremos que competir no mesmo nível delas.

- Não demorou muito para começar a falar no plural.

Kerry corou.

- Seu pai sempre me estimulou a pensar na Sinclairs desse modo. Ele acreditava que isso criava um envolvimento maior. - Fez uma pausa e olhou para ele. - Ross, será que não podemos resolver tudo isso sem amarguras? Acho que sei como você está se sentindo, mas...

- Será que sabe? Duvido. - Sacudiu a cabeça com impaciência. - Não se pode levar em conta os sentimentos. Existe um potencial enorme naquela loja e nem papai, nem você e nem os primos vão impedir que eu consiga torná-lo real.

- Não ande tão depressa. E não confie nos primos, eles preferem o sistema antigo também.

- Então, se for necessário, lutarei contra os três.

- Pode tentar.

Ross olhou para ela por longo tempo e depois deu um suspiro.

- Acho que vamos ter que fazer uma coisa de cada vez. A partir de hoje, quero ver como estão as coisas na loja, para ter uma visão de conjunto.

Ele estava certo, concordou Kerry, não adiantava continuar com a discussão, se é que aquilo era uma discussão. Mais tarde, depois que ele se acalmasse, tudo ficaria mais fácil. Sob alguns aspectos, teria sido melhor se Ross não tivesse herdado nada da loja, pois assim logo partiria para seguir sua própria vida. Mas Kerry sabia que isso nunca aconteceria, pois a Sinclairs sempre fora um desafio para ele, e agora, em vez do pai, teria que enfrentar a ela. Kerry esperava ter forças para a luta.

- E o almoço? - perguntou ela.

- Vamos almoçar lá.

Kerry pegou o telefone.

- Acho melhor avisar que vamos almoçar lá.

- Não. O melhor meio de julgar um departamento é uma visita desse tipo.

- Está bem. Vou reservar uma mesa para nós para a uma hora, está bem?

- Não quero mesa reservada. - Ross soava duro e intolerante. - Não quero que eles sejam avisados. Se houver fila, ficaremos esperando, até que haja lugar. O que é bom para o freguês é bom para nós. - Fez uma pausa e encarou-a, pensativo. - Acho até melhor você almoçar com a diretoria e me deixar fazer a experiência sozinho. Assim ninguém vai me reconhecer.

- Não sei como é que são as coisas nos Estados Unidos, pois nunca estive lá - respondeu Kerry, seca -, mas aqui não agimos desse modo.

- Se acredita mesmo nisso, anda vivendo num mundo de ilusões. Faça como quiser. Mesmo que sejamos reconhecidos, não vai dar tempo deles fazerem nada. - Passou os olhos pelo vestido de lã cinza que ela usava e deteve-se em suas pernas bem torneadas. - Se você está pronta é melhor irmos logo.

- Vou pegar minhas coisas.

A Sinclairs era muito bem localizada. Ainda possuía a fachada original de pedra esculpida, agora ainda mais bela por ter sido lavada recentemente. Pelos padrões modernos, as vitrines do andar térreo eram pequenas, mas Kerry achava que isso tinha importância secundária, levados em conta seus excelentes arranjos.

Ao passarem pela frente da loja, a caminho do estacionamento, Kerry reparou que a vitrine mais próxima da entrada principal estava chamando bastante a atenção das pessoas. Ela ia descer e dar uma olhada assim que tivesse uma oportunidade. Lester Belton era um ótimo vitrinista, mas precisava ser elogiado e ela iria fazê-lo mais tarde, decidiu.

Ninguém ainda poderia estar sabendo das notícias sobre a direção da loja, mas Kerry sabia que não ia demorar muito para que isso acontecesse. Haveria gente que não iria gostar de ver uma pessoa tão jovem num cargo de tanta importância, e ainda mais sendo mulher. Muitos dos funcionários mais velhos apoiavam as idéias um tanto antiquadas de Andrew e ficariam surpresos com a decisão de seu padrasto. Mas, assim como Ross, iam ter que aceitá-la.

Ross não fez nenhum comentário sobre a cidade. Havia feito todo o trajeto calado, sem demonstrar a mínima curiosidade pelas mudanças havidas em Medfield desde que fora embora. Aparentemente queria chegar à Sinclairs o mais rápido possível. O Jaguar prateado era quase novo e Ross podia ficar com ele. Kerry preferia o Dover, menor, mas também muito confortável. Ela achava que poderiam dividir assim os bens dessa natureza, senão teriam que vender ambos os carros e depois dividir entre si a importância apurada.

Em relação ao resto da herança, achava que praticamente não haveria dificuldades. Eles teriam que morar na mesma casa, só isso. Só? Ela quase riu. Underwood era bem grande, mas não o suficiente para que os dois ficassem isolados. Teriam que dividir a cozinha e as áreas de recreação e também os lugares onde fossem trabalhar. Até que isso seria fácil, um ficaria com o escritório e o outro com a saleta menor. Mas era melhor ir resolvendo cada problema à medida que fosse aparecendo. Era bobagem ficar preocupada com detalhes quando havia tanta coisa séria para resolver.

A vaga reservada para a diretoria estava vazia. Ross estacionou o carro e ambos desceram. Nessa manhã usava um terno cinza que combinava muito bem com seu tom de pele; a camisa era listrada e a gravata lisa. Kerry divertiu-se imaginando que ele achava que não ia chamar a atenção. Todos os diretores mais velhos usavam ternos escuros, sem exceção. Os mais jovens às vezes usavam um terno cinza risca-de-giz e isso era o máximo. As senhoras e as moças usavam o mesmo uniforme: saia cinza e blusa branca, sempre impecável. Não era difícil imaginar o impacto que o novo diretor causaria nas funcionárias mais jovens. Aos trinta e um anos, Ross era suficientemente moço e atraente para fugir à imagem padrão do executivo.

- Primeiro, o escritório, eu acho - disse ele, consultando o relógio. - É apenas meio-dia. Começaremos a percorrer a loja na parte da tarde.

- A essa hora o pessoal já vai estar sabendo - comentou Kerry. - Não está com receio de causar uma impressão errada?

- O tipo de coisa que quero verificar não tem nada a ver com o comportamento dos funcionários - retrucou ele, seco. - Podem até fazer um carnaval, que não vai fazer diferença. Vou analisar as vitrines, a utilização do espaço e a qualidade do estoque, e não se o pessoal está de unhas limpas.

- Ora, deixe disso! - protestou Kerry, brincando. - Seu pai nunca chegou a esse ponto!

- Nem precisou. E pare de ficar chamando-o de meu pai, cada vez que se refere a ele. Como é que você o chamava?

- Andrew - ela respondeu meio na defensiva. - Ele preferia assim.

- Então continue. Vou saber a quem está se referindo.

Ela preferiu ficar calada, decidida a não deixar que ele a perturbasse mais do que já conseguira.

Tomaram o elevador dos funcionários até o quarto andar, dando num corredor acarpetado. Ross virou à esquerda com a segurança de quem sabia que não tinha havido nenhuma modificação nos anos em que estivera ausente. E isso nem poderia ter acontecido. A sala da diretoria ficava junto à sala de reuniões, e essa não poderia ser transferida com facilidade.

Arthur Fielding, o secretário-geral, estava saindo de seu escritório. Era um homem alto e magro, impecavelmente vestido com um terno cinza-escuro, o cabelo grisalho cuidadosamente penteado no alto da cabeça. Trabalhava na Sinclairs há mais de trinta anos e era secretário há doze. Provavelmente continuaria no cargo até se aposentar. Seus traços duros se suavizaram ao avistar Ross.

- Seja bem-vindo! - disse, de um modo reservado. - Foi pena que tivesse sido sob tais circunstâncias. Seu pai era um homem muito respeitado tanto dentro quanto fora de Medfield, sr. Sinclair.

- Muito obrigado. - Ross apertou a mão que o outro lhe oferecia, respeitoso, mas sem demonstrar o que estava pensando... - Vou precisar de um relatório detalhado da nossa situação financeira dentro de uns dois dias. Convoque os auxiliares que precisar, pois gostaria que estivesse pronto até sexta-feira pela manhã, sem falta.

Kerry ficou irritada, mas preferiu não fazer nenhum comentário. Não havia nada a ganhar, e provavelmente muito a perder, se fossem vistos discutindo em público. Esperou que entrassem no escritório para então dizer com calma:

- Mesmo correndo o risco de parecer desagradável, será que posso lembrar-lhe de que somos sócios?

Ele virou-se para olhar para ela, largando um maço de papéis sobre a escrivaninha e erguendo as sobrancelhas de modo hostil.

- Alguém tem que começar a controlar as coisas, se é que queremos chegar a ter sucesso. Você se acha melhor preparada para isso?

- Não, mas...

- E algum dos primos?

- Não, claro que não. De qualquer modo, eles...

- Eles não contam - concluiu ele. - Pura verdade, mas que fique só entre nós dois. Tudo bem, você tem tanta liberdade quanto eu de dar ordens, contanto que saiba o que está fazendo e por quê. Não estou tentando me impor, apenas quero ter uma idéia geral de tudo, e para isso preciso de dados e números.

Ao encará-lo, Kerry sentiu-se envergonhada. Ele tinha tão mais experiência do que ela, sem falar em seus direitos como filho de Andrew.

- Desculpe-me - disse num impulso. - É claro que você está certo.

- Desculpas aceitas. - Ross deu a volta na mesa e sentou-se na poltrona giratória. - Imagino que você tenha um escritório próprio.

- Sim, aí ao lado - disse ela, erguendo o queixo.

- Isso é ótimo. A srta. Jardine ainda trabalha aqui?

- Ela se aposentou há três anos. Agora contamos com a sra. Antony.

- Sua idade?

- Uns cinqüenta e três, acho. Preciso perguntar ao departamento de pessoal. É muito eficiente.

- Tenho certeza que é. Imagino que você tenha causado sensação quando começou a trabalhar aqui regularmente, apesar do fato de você pertencer à família tornar as coisas um pouco diferentes. Quanto tempo você levou para convencer papai a deixá-la trabalhar na loja?

- Eu não precisei pedir nada, foi ele quem sugeriu. - Lutou para manter-se calma. - Ao contrário do que você pensa, não me empenhei para ganhar parte da companhia como herança de Andrew.

- Não esperava ganhar nada?

- Se eu tivesse chegado a pensar nisso, o que não aconteceu, iria apenas achar que Andrew não me deixaria desprotegida.

- Quer dizer então que, se tivesse podido escolher, não ia querer assumir tanta responsabilidade?

- Isso mesmo - admitiu ela com franqueza. - Mas já que recebi, não pretendo abandonar tudo. Eu sei como Andrew se sentia a respeito da Sinclairs, e apoio muitas das idéias dele.

- Mesmo que a maioria delas sejam ultrapassadas? - perguntou Ross e, antes que ela respondesse, continuou: - Mas vai ter que deixar de lado algumas delas, senão não chegaremos a nada. Somos uma companhia e limitada. A casa e as outras coisas não podem ser tocadas, mas se não conseguirmos aumentar nossa renda conjunta o suficiente para manter a casa, talvez ela precise ser vendida.

- E o que aconteceria em tais circunstâncias? - perguntou Kerry, pensativa. - Uma das condições do testamento especifica que teremos que morar lá nove meses no ano, o que seria impossível se fôssemos obrigados a vendê-la.

- Não sei. Podíamos tentar uma anulação judicial - respondeu Ross, impaciente. - Isso é apenas uma hipótese. Contanto que você não impeça o que eu for fazer, acabaremos dando um jeito. Pelo menos não temos concorrentes aqui em Medfield, por isso, o que quer que façamos não vai ser alvo de comparações. O problema é manter a imagem de loja de departamentos enquanto conseguimos movimento semelhante ao dos supermercados. Poderíamos alugar espaço para butiques. Firmas como Mary Quant trariam muito mais fregueses para a loja.

- Só que isso reduziria o espaço para nossos próprios departamentos.

- Certo, mas você tem que levar em conta que teríamos uma renda certa dos aluguéis todos os meses. Pelo menos é uma idéia.

Kerry achou que o melhor seria esperar para ver. Ross parecia estar tentando entrar num acordo.

Ouviram então uma leve batida na porta de comunicação com o escritório de Kerry. Era Kate Antony, que parou na soleira da porta, meio atrapalhada ao ver Ross sentado na poltrona do chefe.

- Pensei ter ouvido vozes...

- Chegamos há alguns minutos apenas - disse Kerry, fazendo as apresentações e analisando a reação da mulher mais velha com uma certa dose de cinismo. Sem dúvida, Ross produzia um impacto nas mulheres, qualquer que fosse a idade. A habitualmente imperturbável sra. Antony ficara bastante confusa depois de apertar a mão do novo patrão.

- Eu ia sair para almoçar, mas se precisarem de mim para alguma coisa...

- Agora não, obrigado - respondeu Ross. - A srta. Rendai e eu vamos almoçar aqui mesmo na loja e depois percorreremos todos os andares na parte da tarde. Vou precisar que bata à máquina algumas notas para mim amanhã cedo, mas até lá não há mais nada a fazer.

- Vou precisar ditar uma ou duas cartas ainda hoje - disse Kerry. - Mas mais tarde, lá pelas quatro horas. - Evitou o olhar de Ross. Se ele não tivesse terminado sua inspeção até aquela hora, teria que continuar sozinho. A rotina do escritório ainda continuava, apesar de tudo.

Ross continuou de pé, depois da secretária ter saído.

- É melhor irmos agora. Estou com fome.

- E eu nem lhe ofereci um lanche. Desculpe-me, é que foi uma manhã um tanto...

- E vai haver muitas outras assim - disse Ross. - Então, vamos.

O restaurante era no segundo andar, à esquerda do elevador. Kerry achava que numa terça-feira não haveria fila e não havia mesmo. O restaurante não estava cheio e os garçons trabalhavam com facilidade. O gerente ficou um pouco preocupado ao reconhecê-los, mas apressou-se a dar as boas-vindas, sorrindo.

- É bom tê-lo de volta, sr. Sinclair - disse ele, encaminhando-os a uma mesa perto da janela. Um leve sinal seu fez com que um garçom logo se aproximasse.

Enquanto esperavam os pratos pedidos, Ross tirou um caderninho de anotações do bolso e escreveu algumas coisas que Kerry não conseguiu ler de cabeça para baixo.

Sem levantar os olhos ele indagou:

- Você disse que o lugar havia sido redecorado recentemente?

- Sim - respondeu ela. - Você não está imaginando em fazer isso novamente, não é?

- De jeito nenhum. Combina com a época, só que a iluminação do lado de lá não me parece boa. Persianas verdes dão uma impressão muito fria.

- E o que você sugere como alternativa? Luzes fluorescentes?

Ele ergueu os olhos, a boca tensa.

- Você está querendo uma briga, não está? Espere até a noite e tudo bem, mas pelo menos em público vamos tentar ter um comportamento razoável.

Kerry foi a primeira a baixar os olhos. Ironia não funcionava com ele. Ela acabava fazendo o papel de tola.

- Está bem - concordou. - Então, que cor você sugere?

- Acho que dourado ficaria bem. Por outro lado, você acha que esta é a média de fregueses?

Sua resposta foi relutante.

- Aos sábados há mais movimento.

- Fica lotado?

- Entre o meio-dia e uma hora, sim.

- Um dia em seis. Talvez a maioria prefira um lanche leve em vez de almoço.

- Não temos espaço para uma lanchonete.

- Sim, temos. Bem ali. Uma divisão no meio, um balcão para os lanches e bebidas do outro lado, um tipo diferente de acomodações para sentar e pronto. O custo é mínimo e a cozinha é a mesma.

Kerry procurou falhas mas não encontrou nenhuma. O restaurante não dava lucro há muito tempo; funcionava apenas para atender os fregueses que precisavam dele. Uma lanchonete atrairia o comprador não habitual e até poderia cobrir algum déficit do restaurante.

- Teríamos que reorganizar a cozinha - disse ela, sem deixar transparecer entusiasmo. - Mas acho que daria certo.

- Até que enfim uma aprovação. - Ele parecia meio surpreso. - Papai nunca concordaria.

- Ele não teria que descobrir meios de aumentar a receita assim tão depressa.

- Mas não há tanta pressa assim. Temos que ter tempo para analisar. Preciso fazer algumas pesquisas de mercado antes de tomar qualquer decisão.

- Como?

- Talvez um questionário para os fregueses. São eles que nos interessam, vamos descobrir o que querem.

Kerry parecia meio em dúvida.

- Você talvez não encontre gente disposta a perder tempo preenchendo questionários.

- Então espalharemos gente pela loja preenchendo as respostas para eles. Temos que fazer com que sintam que suas respostas são importantes e aposto que teremos poucas recusas. Lá em Detroit, aumentamos as vendas em quatro por cento só porque aceitamos algumas sugestões. Uma delas era sobre uma creche onde as mães podiam deixar seus filhos enquanto faziam as compras.

- Dificilmente arranjaríamos lugar para isso aqui - protestou Kerry.

- Talvez não, mas uma área para um parquinho com uma atendente talvez seja uma boa alternativa.

Não, se todas as crianças resolvessem berrar pedindo a presença das mães ao mesmo tempo, pensou Kerry com ironia. Mas não esperava que um homem entendesse disso.

- Acho que se poderia tentar. Você mesmo trataria do assunto?

- Dificilmente. Teremos que procurar especialistas.

- Isso vai custar dinheiro.

- Você tem que gastar para ganhar mais - respondeu ele, seco. - É um risco calculado.

Não teve nada a criticar quanto à refeição, quando foi servida, nem quanto ao atendimento. Assim que acabaram de tomar café, levantou-se.

- Vamos primeiro ver o gerente-geral - disse ele. - Ainda é o Arnold Gregson? Deve estar perto da aposentadoria.

- Daqui a um ano - informou Kerry. - Vai pegá-lo de surpresa?

Ross olhou para ela, aborrecido.

- Dificilmente. Provavelmente já sabe há mais de uma hora que estamos na loja. Poderíamos voltar para o escritório e mandar chamá-lo, mas, já que vamos passar pela porta dele, não custa entrar.

Séria, ela comentou:

- Você tem talento para pensar mal das pessoas.

- Com algumas, isso não é difícil. - Apontou as escadas. - Vamos por ali? É bom para fazer a digestão.

O gerente-geral estava no seu escritório e recebeu Ross com a mesma reserva demonstrada por Arthur Fielding. Ambos sentiam mudanças no ar e Kerry não podia culpá-los por ficarem perturbados. Aliás, Ross perturbava todo mundo. Até ali ela concordara com os planos dele, mas isso era apenas o começo. Entretanto, problemas certamente iriam aparecer, isso era certo.

Capítulo III

Ross declinou do oferecimento do gerente-geral de acompanhá-los na visita aos departamentos alegando que três executivos juntos formalizariam demais sua inspeção. Kerry pensou em não ir também, mas lembrou que isso a deixaria por fora das idéias dele. Se estivesse junto poderia notar, pelas reações de Ross, quais os pontos sujeitos a atrito. Também não pretendia bloquear mais nenhuma mudança sugerida por ele, a não ser que fosse absolutamente necessário para manter a imagem da Sinclairs que havia sido tão importante para seu padrasto. Dignidade era a palavra chave e por ela Kerry lutaria até o fim.

Muito antes do final da tarde ela sabia que as críticas eram muitas e variadas. Kerry esteve a ponto de se irritar com os comentários de Ross sobre as vitrines. Reclamou também da distribuição dos funcionários, muitos nos lugares errados e na hora errada, segundo ele. Achou que ele estava se aproximando demais dos funcionários, pois a política da loja era sempre manter uma certa distância entre os funcionários e o pessoal da diretoria.

Às quatro horas o caderno de anotações já estava quase cheio e ele ainda não havia acabado. Concordou entretanto em parar, quando Kerry sugeriu que tomassem um chá no escritório, achando que já tinham visto o suficiente para um dia.

- Você vai ler o relatório quando estiver terminado - disse ele sem se comprometer, quando ela perguntou a que conclusões chegara. - É mais fácil esclarecer as coisas no papel.

Quando voltaram ao escritório, ele ligou para uma firma de pesquisa de mercado da cidade, marcando um encontro para a manhã seguinte para discutirem detalhes. Assim que acabou de telefonar, Kate Antony entrou com o chá, acompanhado de pequenos sanduíches de presunto e um prato de bolinhos.

- Esse é o chá habitual - explicou Kerry, ao notar a expressão de Ross. - Ainda não tive tempo de cancelá-lo.

- Então é melhor que o faça, a não ser que goste de um pequeno lanche no meio da tarde.

- Não, para mim basta o chá.

- Papai também era assim. Não me lembro de tê-lo visto provando qualquer dos petiscos. Apenas queria que estivessem ali, para o caso de sentir vontade.

- Todos nós temos nossas manias - comentou ela com simplicidade.

- Alguns têm mais que os outros. - Ross colocou açúcar no seu chá e, olhando para ela com ironia, perguntou: - Vai me seguir a semana inteira?

Kerry não aceitou a provocação.

- Duvido muito. Tenho que cuidar do meu trabalho.

- Então posso deixar a rotina nas suas mãos e me concentrar em terminar isto - disse ele, colocando a mão sobre as anotações em cima da mesa. - Vou ter que classificá-las.

- Tudo isso?

- Claro. Espere o relatório. Então vai saber de tudo. - Fez uma pausa. - E sobre o jantar de hoje? Quer sair para comer fora?

Kerry sacudiu a cabeça.

- Estou acostumada a cozinhar para dois.

- E ainda está muito perto do enterro, não é? Talvez seja melhor mesmo. Vou aproveitar para trabalhar à noite.

- Hoje à noite tenho ensaio - disse ela, contente. - Vou voltar mais ou menos às onze horas.

- Que ótimo. O que está fazendo?

Ele não estava realmente interessado, perguntava apenas por educação. Kerry respondeu do mesmo modo:

- Uma peça que você não conhece. A que horas você pretende ir para casa?

- Quando você quiser. Você disse que tinha umas cartas, parece que urgentes...

Elas não eram urgentes, na verdade. Kerry as havia mencionado apenas para se sentir mais segura em sua posição dentro da firma. Mas, já que falara, agora não podia voltar atrás. Largou a xícara na mesa e levantou-se.

- Então, daqui a uns quinze minutos.

Foi um alívio sentar-se à sua mesa no outro escritório. Ali ela sabia onde estava e quem era. Seria difícil acostumar-se à sua nova situação, em alguns aspectos mais difícil do que fora quando ela era ainda criança. O único consolo, se é que se podia falar nisso, era que agora podia encarar Ross de igual para igual, pelo menos em termos de idade. Engraçado como, naquela época, nove anos de diferença pareciam muito mais.

- Quer ditar aquelas cartas? - perguntou Kate Antony da outra mesa, fazendo com que Kerry voltasse à realidade. A secretária olhava para ela de modo estranho. - Você disse que elas deveriam seguir ainda hoje?

E ela bem que sabia que não havia tanta pressa, pensou Kerry. Gostava da sra. Antony e dava-se bem com ela, apesar da diferença de idade. Mas uma coisa era certa: a secretária não era nada boba.

- Eu estava apenas fazendo uma demonstração de força - respondeu. - Mas, já que estamos aqui, é melhor fazermos o serviço.

- O sr. Sinclair é muito diferente do que eu imaginava - observou a secretária. - Acho que todos vão achar meio estranho ter um diretor tão jovem.

Kerry abriu a boca para contradizê-la, mas se conteve. Haveria tempo de sobra para esclarecer a situação. Era possível que as notícias de sua participação como acionista ainda não tivessem chegado, mas isso parecia meio difícil. Porém, enquanto alguém não mencionasse o assunto, ela não diria nada. Eles que pensassem que ela continuava na firma apenas por uma questão de caridade.

Foi só quando estavam no carro, indo para casa, é que Ross disse calmamente:

- Eu liguei para os primos enquanto você estava ditando as cartas e combinei uma reunião para amanhã, às nove. Vou receber o pessoal da pesquisa de mercado às onze, por isso você poderia marcar uma reunião com os gerentes de departamento para as duas horas.

- Será que você não está passando por cima do gerente-geral? - perguntou Kerry. Em troca recebeu um olhar reprovador.

- Claro que ele vai presidir a reunião. Eu só quero me apresentar.

- Considerando o modo como evitou isso durante todo o dia de hoje, estou surpreendida.

- Eu só não queria pompa e cerimônia.

Bem diferente de Andrew, que não dispensava uma comitiva quando fazia sua inspeção mensal na loja. Ainda assim, por que não? Havia sido essa sua única vaidade, Kerry tinha que admitir.

Talvez fosse sua imaginação, mas a casa parecia menos acolhedora naquela noite. Kerry ainda achava difícil aceitar a idéia de que era dona da metade daquilo. Pensando bem, as condições do testamento começavam agora a preocupá-la. O que aconteceria, por exemplo, se um deles resolvesse se casar, ou ainda pior, se os dois resolvessem isso? Será que ambos os casais teriam que ocupar alternadamente a casa pelo resto da vida?

- Quer um aperitivo? - perguntou Ross, depois de entrarem.

- É cedo demais para mim - respondeu Kerry, sacudindo a cabeça. - Mas tome você. Espero que não se incomode de jantar cedo, pois tenho que estar no ensaio às oito.

- Está bem, assim tenho mais tempo para trabalhar - concordou ele. - Precisa de ajuda?

- Não, obrigada. Deixei quase tudo pronto hoje cedo. - Ficou imaginando o que ele faria se ela tivesse aceitado seu oferecimento. Provavelmente não teria problema, já que morara sozinho, ou pelo menos era isso que parecia. Deveria estar acostumado a cozinhar, talvez até melhor do que ela mesma.

Jantaram às seis e meia, na copa, por sugestão do próprio Ross. Depois de terminarem, ele levou o café para o escritório, dizendo que a veria mais tarde. Kerry teve a impressão de que ele estava satisfeito por ficar sozinho. E, na verdade, não era só ele. Morar com uma pessoa praticamente estranha na mesma casa não ia ser nada fácil, mesmo que conseguissem manter uma relação de amizade aparente. E viver com um homem que a atraía fisicamente seria ainda mais difícil.

Kerry não ouviu nenhum barulho no escritório quando saiu, às sete e meia. Imaginou Ross debruçado sobre os papéis, transformando suas anotações em idéias bem definidas. Sentiu um aperto no coração ao pensar que as circunstâncias tinham tornado as relações entre os dois tão precárias. Se Andrew tivesse deixado todas as suas ações da Sinclairs para Ross, ela talvez não concordasse com todas as reformas que ele quisesse fazer, mas pelo menos a responsabilidade de impedi-lo não seria dela. Entretanto, do jeito que as coisas estavam, tinham muito pouca probabilidade de virem a ser amigos.

O grupo amador de Medfield ensaiava uma vez por semana no salão de uma igreja, quase no centro da cidade. Perto da estréia, ensaiavam duas vezes por semana. Os espetáculos eram apresentados duas vezes por ano, durante três noites, e geralmente com casas lotadas. Era a única atividade cultural da cidade e entre os atores havia alguns com muito talento.

Desta vez ensaiavam uma peça de Bernard Shaw. Kerry tivera papéis menores nas produções anteriores, mas agora ganhara o papel principal. Havia ficado muito surpreendida com a escolha, mas estava gostando demais do seu personagem. Larry Hall, o diretor, dizia sempre que o texto deveria ser antes de tudo compreendido pelos espectadores.

Foi quase a última a chegar para o ensaio. Larry saiu da plataforma que servia de palco e veio ao seu encontro. Era magro e vestia jeans desbotados e um agasalho velho. Aos vinte e seis anos, com o futuro assegurado na indústria têxtil do tio, ele era, como Kerry às vezes pensava bem-humorada, o marido ideal. Tinha uma aparência agradável, o cabelo loiro e os olhos de um azul brilhante. Sabia que Larry gostava dela, mas até então era uma entre muitas. Hoje, porém, havia algo diferente no modo de Larry olhar para ela.

- Não tínhamos certeza de que você viria - disse ele. - Parece que o filho do seu padrasto está de volta, não é?

- É, está sim. - Kerry imaginou que outras informações já deviam estar correndo por ali. - E por que isso seria motivo para eu não comparecer?

- Bem, o enterro foi ontem e...

- A vida continua - respondeu ela, e imediatamente se arrependeu de seu tom de desafio. - Quero dizer, Andrew não iria gostar de me ver chorando pelos cantos - explicou-se. - Esse tipo de atitude não faz bem a ninguém.

Larry parecia curioso.

- Por um minuto pensei que você estivesse irritada com alguma coisa. Não soava nem um pouco como você, Kerry.

- É, eu sei. É que tive um dia muito difícil.

- Por causa de Ross Sinclair?

- Em parte. - Ela não estava preparada para confessar mais do que isso. - Larry, agora sobre aquele pedaço logo depois da entrada de Elisa no segundo ato...

Durante o ensaio, Kerry achou que Larry não estava muito atento. Ele parecia preocupado. Deixava de comentar erros que uma semana antes o teriam feito arrancar os cabelos. Estavam a menos de três semanas da estréia e agora, mais do que nunca, precisavam dele. Só restava esperar que, qualquer que fosse o problema, ele fosse resolvido o mais breve possível.

Surpreendentemente, o próprio Larry convidou todo mundo para uma reunião em seu apartamento, depois do ensaio. Kerry aceitou o convite, pois estava relutante em voltar para casa e encontrar Ross ainda de pé. Sabia que era uma atitude ridícula, já que essa convivência seria permanente e ela teria que se acostumar. Só que, por enquanto, queria evitar ao máximo contatos muito pessoais.

O apartamento de Larry era espaçoso e bem decorado. Kerry ainda não conhecia o lugar, mas sabia que diversas moças do elenco já tinham estado lá. Notou, porém, que nenhuma delas estava presente naquela noite. Não aceitou nenhuma bebida alcoólica, pretextando o fato de ter que voltar guiando, mas se ofereceu para fazer café. Larry mostrou a ela onde estavam as coisas e deixou-a na cozinha, comentando que ela combinava muito bem com o ambiente.

Já passava da meia-noite e ninguém parecia querer ir embora. Kerry rapidamente recolheu os copos e pratos usados e lavou-os, enquanto Larry conversava com um dos companheiros na porta de saída. Quando voltou para a sala, Larry estava acabando de fechar a porta e virou-se para ela, que ia pegando o casaco.

- Será que está com muita pressa? - perguntou, sorrindo. - É que existem um ou dois pontos que eu gostaria de rever com você.

Kerry hesitou, um braço já enfiado no casaco.

- Já é muito tarde, Larry, e nós dois temos que levantar cedo amanhã. É tão importante assim?

- Nem tanto. Apenas algumas idéias que eu queria discutir. Não leva mais que alguns minutos e nunca temos a oportunidade de um contato mais direto, pelo menos nos ensaios.

Kerry concordou. Sentira ela mesma a necessidade disso nas últimas semanas. Era a primeira vez que tinha o papel principal e queria que tudo corresse o melhor possível, tanto por ela quanto pelo grupo todo. Se Larry queria fazer alguma sugestão, o mínimo que podia fazer era ouvi-lo. Tirou o casaco e disse:

- Está bem.

Conversaram sobre o personagem durante uma meia hora e Kerry ficou em dúvida se havia adiantado alguma coisa. Larry era um diretor muito bom, mas Kerry achava que ele se excedia em sutilezas, tanto para os intérpretes quanto para os espectadores.

- Ajudou bastante - disse ela por fim. - Só que agora tenho mesmo que ir.

- O irmão mais velho está esperando por você? - perguntou ele, rindo.

Ela esperava sinceramente que não. Por outro lado, era muito pouco provável que Ross fosse se preocupar com ela. Por que faria isso? Ela não era mais criança...

- Não há entre nós esse tipo de relacionamento - respondeu, despreocupada. - Apenas ocupamos a mesma casa.

No olhar dele havia curiosidade.

- É um arranjo permanente?

- Foi essa a condição - respondeu ela e mordeu o lábio, percebendo ter dito mais do que devia, por isso esclareceu: - Acho que a casa poderia ser dividida em duas sem grandes complicações.

- Você acha que era isso que seu padrasto tinha em mente?

- Não tenho certeza do que ele pretendia.

- A mim me parece bem claro - disse Larry.

Kerry olhou para ele, surpreendida.

- Como?

- Claro que ele pretendia que vocês dois acabassem se casando.

Ela ia responder que isso não era verdade, quando percebeu o que ele no fundo queria dizer. Sentiu que corava e, com um sorriso forçado, observou:

- Ah, deixe disso! Para Andrew éramos apenas dois irmãos!

- Mas você não era filha dele, não é verdade? Não existem laços de sangue entre você e Ross, por isso pode se casar com ele como com qualquer outra pessoa.

- Talvez. De qualquer modo, isso não vem ao caso.

- Mas você não gosta dele?

- Não! - De repente Kerry percebeu que sua negativa tinha sido enfática demais. Tentou desfazer essa impressão, acrescentando: - Não, claro que não. Depois de seis anos, é difícil restabelecer um relacionamento. Além disso...

Larry ergueu as sobrancelhas como se quisesse que ela continuasse, mas Kerry decidiu encerrar o assunto, que só dizia respeito a ela e a Ross.

- Eu tenho que ir. Já é quase uma hora da manhã.

Larry não tentou detê-la.

- Vou acompanhá-la até o carro. A essa hora da noite, não se sabe o que pode acontecer.

Ela havia estacionado o carro perto do prédio. Larry pegou a chave, abriu a porta e fez uma mesura para que ela entrasse.

- Está passando um filme ótimo no Odeon - disse ele. - Você comentou isso com a Sandra. Eu também gostaria de vê-lo. Que tal irmos juntos?

Kerry sorriu e respondeu:

- Gostaria muito.

- Ótimo. - Fechou a porta do carro e ficou olhando para ela, que abaixava o vidro. Havia em seus olhos azuis um brilho estranho. - Você não precisa vir de carro para a cidade. Passo em sua casa às sete e podemos jantar primeiro, o que acha?

- Ficaria encantada. - Resolveu ignorar a possibilidade de Ross querer fazer algum programa em seu primeiro sábado em Medfield. De qualquer forma, ele teria muitos amigos a quem procurar.

Àquela hora da noite, e com a estrada praticamente deserta, Kerry levou apenas quinze minutos para chegar em casa. Havia luz no hall quando ela chegou, mas tanto a sala quanto o escritório estavam às escuras. Daquele lado da casa não se via o quarto de Ross, mas ela presumia que ele já tivesse subido e deixado a luz do hall acesa.

Kerry deixou o carro na entrada e abriu a porta silenciosamente. Ao fechá-la, o trinco fez um pequeno ruído, e sem razão alguma ela sentiu que prendia o fôlego para ver se percebia algum movimento no andar superior. Isso era ridículo! Ela tinha vinte e três anos, não treze! Nem mesmo Andrew se preocupava com suas saídas desde que completara dezoito anos.

Chegou ao seu quarto sem que Ross desse o menor sinal. Fechou a porta com uma sensação de alívio. Amanhã seria um novo dia! Sem dúvida ela acabaria se acostumando a dividir a casa com um homem. Já o tinha feito com Andrew durante vários anos. Mas a comparação era pouco realista...

Já ia se deitar quando lhe ocorreu que talvez Ross também tivesse saído depois dela e que ele ficaria aborrecido se encontrasse a porta fechada com o trinco de segurança.

Suspirando, enfiou o roupão. No alto da escada hesitou, olhando para a porta do quarto dele. Era melhor ter certeza, pensou.

Deu uma leve batida e não teve resposta. Tentou novamente e resolveu abrir a porta para dar uma olhada. Estava escuro e aparentemente a cama não estava desfeita. Então era verdade, a porta precisava ficar sem a tranca até que ele chegasse. Talvez Ross tivesse mais amigos em Medfield do que ela imaginara.

Estava sendo cínica, disse para si mesma. Só porque Ross a beijara na noite passada, isso não queria dizer que houvesse implicações sexuais! Ele apenas pretendera demonstrar que desprezava o tipo de relação familiar que os unia, apenas isso. E ela também não desejava nada dele, queria apenas o direito de ser ouvida em pé de igualdade.

Soltou a trava da porta e deu uma olhada para a porta do escritório, imaginando se o relatório no qual ele estivera trabalhando se encontrava ali. Era uma probabilidade. A tentação de dar uma olhada era muito forte. Além disso, ela apenas estaria se antecipando em um ou dois dias, e iria precisar de algum tempo para poder consolidar seus argumentos.

As cortinas estavam puxadas. Kerry acendeu a luz e chegou perto da escrivaninha, dando uma espiada nos papéis. Não encontrou o que procurava e começou a abrir as gavetas, tendo quase a certeza de que o relatório não estava ali, mas recusando-se a ser derrotada até ter esgotado todas as possibilidades.

Ross abriu a porta de repente e pegou-a de surpresa, deixando-a gelada e com um ar de culpa no rosto. Ele segurava uma pasta nas mãos.

- Estava procurando por isto? - perguntou, irônico. - Sinto desapontá-la, mas estava comigo na saleta.

Então era por isso que Kerry não havia visto luz alguma. A saleta a que Ross se referia ficava nos fundos da casa.

- Pensei que você tivesse saído - foi tudo o que conseguiu dizer. - Não me ouviu chegando?

- Claro. Ouvi o carro e acordei com o barulho. Acendi a lareira na saleta e fiquei relendo o que havia escrito. Acabei cochilando. - Fez uma pausa e ficou olhando para ela. - Deve ter sido um ensaio bem comprido...

- Eu e alguns outros atores acabamos indo até o apartamento do nosso diretor para um bate-papo. - Percebeu que sua voz soava como se estivesse se defendendo e irritou-se consigo mesma.

- Não estou reclamando - disse Ross, sorrindo. - Agora você já é gente grande. Quem é seu diretor?

- Larry Hall. Acho que você não o conhece.

- A família dele não é dona da Construtora Hall?

- É do tio dele. Larry trabalha para ele. Seus pais emigraram para a Nova Zelândia há alguns anos e ele preferiu ficar.

- Como um provável herdeiro?

- Pode ser. O velho sr. Hall não tem filhos.

Ross estava encostado no batente, impedindo a passagem de Kerry.

- Ele deve ser um ótimo partido.

- Imagino que sim, nunca pensei nisso.

- Não? - Seu tom era irônico. - Você não pensa em se casar?

- Claro que penso, mas com a pessoa certa.

- E não pode ser esse Larry?

- Não tenho quase nenhum contato pessoal com ele. Esta foi a primeira vez que ele me convidou... - Sentiu-se constrangida e não terminou a frase.

Ross acabou por ela:

- Convidou? Mas é claro, sua posição não estava muito bem definida até hoje. As notícias correm num lugar pequeno como este. Sempre foi assim.

Kerry levantou-se abruptamente, fechando a gaveta com força desnecessária.

- Larry não é assim!

- Você acabou de dizer que mal o conhecia. Como pode dizer que ele não é assim? - Fez uma pausa. - Apenas por curiosidade: quando você se casar, pretende me vender as suas ações?

- Não! - respondeu ela, erguendo a cabeça.

- Foi o que pensei. - Não havia saído do lugar, mas parecia mais tenso. - Isso foi uma coisa que papai esqueceu de estabelecer.

- Se está pensando que vou entregar minha parte da Sinclairs para o homem com quem eu me casar, está muito enganado.

- É muito fácil falar assim agora. As mulheres são capazes de qualquer coisa quando estão apaixonadas.

Kerry recusou-se a aceitar o desafio.

- E que solução você propõe?

- Só existe uma solução: você se casar comigo.

Demorou um pouco até que ela conseguisse responder:

- Já disse antes que não acho graça nesse tipo de brincadeira.

- E quem está brincando? Provavelmente era isso mesmo que papai desejava.

Era a segunda pessoa que dizia a mesma coisa em poucas horas. Kerry tentou manter-se calma.

- Nesse caso, ele deveria ter mencionado isso.

- Como? Fazendo disso uma cláusula do testamento? - Ross sacudiu a cabeça. - Se fosse submetida a julgamento com certeza não passaria. De qualquer modo, ele era sutil demais para usar desse expediente. Eu mesmo é que tenho que dar um jeito!

Ela ficou olhando para ele, sem conseguir acreditar que estivesse falando sério.

- Será que está imaginando que eu consentiria em me casar com você apenas para tirar de seus ombros a preocupação com as malditas ações?

- Não são malditas! - retrucou ele, duro. - São ações da Sinclairs e vão ficar aqui mesmo, dentro da família!

- Com o nome de Rendai! - exclamou com raiva. - Ross, eu não me casaria com você por nenhuma razão, e muito menos por essa!

- Então não vai se casar com mais ninguém. Não enquanto for dona das ações, pode ter certeza disso.

- E o que é que você pode fazer?

- Homem nenhum vai querer o resto de outro, pelo menos não os homens que você conhece. Num lugar como Medfield, basta o simples fato de estarmos morando juntos na mesma casa. Você sabe como o pessoal é...

- Mas não é verdade e a pessoa que gostasse de mim não iria acreditar.

- E se eu jurasse?

Naquele momento, e pela primeira vez, Kerry soube o que era odiar alguém. E ele realmente seria capaz disso!

- Você é um sujo mesmo... - disse, cheia de amargura.

- Mas você ainda tem uma alternativa: venda para mim sua parte.

- Você sabe que eu não posso fazer isso.

- Não há nada que a impeça, a não ser essa sua lealdade fora de moda.

- A seu pai! Isso não significa nada?

- Meu pai... - retrucou ele, com ironia. - Você só via um lado dele, eu via os dois.

- Você tinha raiva dele, não tinha?

- Não, não é verdade. - De repente ele pareceu cansado. - Eu apenas não queria dançar de acordo com a música dele, só isso.

- E você não estaria fazendo isso agora, se casasse comigo apenas para pôr as mãos nas ações?

- Não, porque ele não estaria aqui para nos controlar. De qualquer modo, você jurou que não quer se casar comigo, por isso a questão está encerrada. E se você também se recusa a me vender as ações, não tenho outra alternativa.

- A não ser ameaças - protestou em voz alta. - Não tenho medo delas, Ross.

- Está bem, então. Vamos fazer com que se tornem reais.

Kerry ficou olhando enquanto ele colocava a pasta sobre uma mesa ao lado da porta e se dirigia para ela. Sentia a garganta apertada. Não adiantava querer escapar, não havia para onde ir.

- O que é que está tentando provar? - perguntou quando ele a alcançou.

- Isto - respondeu ele, puxando-a com força para junto de si.

O beijo foi lento e demorado, forçando-a a abrir os lábios, apesar de Kerry opor resistência. Sentiu que ele se movia para trás, apoiando-se na beirada da escrivaninha. Puxou-a então ainda mais, segurando-a com força. Ela sentia o corpo dele colado ao seu. Estremeceu quando Ross abriu o robe e começou a acariciar seu seio.

- Não! - implorou fragilmente, enquanto ele lhe beijava o queixo e o pescoço. - Ross, não...

Ele riu e continuou. Kerry sentia a pele queimar como se fosse fogo. O robe escorregava do ombro e ela não pôde evitá-lo. Segurou os cabelos de Ross com as duas mãos e tentou fazer com que se afastasse dela, mas em vão: ele continuou a beijá-la.

Não estava preparada para a emoção que sentia, para o desejo incontrolável que se erguia como uma onda dentro dela. Sem perceber, sentiu que parava de tentar impedi-lo e, quando repetiu o nome dele, sua voz soava diferente, como se implorasse.

Quando ele por fim a ergueu nos braços, Kerry não resistiu mais...

- Aqui não! - disse ele. - No seu quarto ou no meu?

Se Ross não tivesse falado nada, se a tivesse carregado para o quarto e colocado na cama, teria se entregado a ele sem hesitação. Suas palavras fizeram com que ela caísse em si e se desse conta do que estava fazendo.

- Oh, Deus! Ross, me ponha no chão!

- Espere aí! Você acha que eu sou feito de quê?

- Sinto muito. Acho que não devia ter deixado que chegássemos a esse ponto. - Sua voz tremia de emoção. - Você não devia ter feito isso. Eu não consegui impedi-lo...

- E nem queria! - Seu rosto estava sério. - Por que deveria parar agora?

- Porque eu estou pedindo... implorando, se quiser. - Estava desesperada, sabendo que tudo aquilo podia facilmente acontecer outra vez. Queria poder se olhar no espelho e não se sentir envergonhada.

- Não... não posso!

Ross encarou-a por um longo momento, depois a colocou abruptamente no chão, virou-se para a mesa e acendeu um cigarro. Ao voltar-se novamente para ela, estava controlado como sempre.

- É melhor você ir dormir.

- Não até que eu faça você entender.

- Entender o quê? - perguntou ele, erguendo as sobrancelhas.

- Por que eu agi daquele modo agora há pouco.

- Mas isso não precisa de explicações, não é? É muito simples. Você desejava o mesmo que eu, só que mudou de idéia. Esse é um truque feminino... deixar um homem louco e depois não querer mais. Desta vez você conseguiu, mas na próxima talvez não tenha tanta sorte.

- Não foi assim! - protestou ela. - Não foi mesmo...

- Eu disse para você ir dormir.

Ela encarou-o, desanimada, relutante em ir, mas sabendo que não adiantava nada ficar.

- Será que não dá para voltarmos ao começo? - implorou ela. - Não posso vender a confiança que seu pai depositou em mim, mas vou tentar entender seu ponto de vista, em relação à loja, sempre que for possível.

- Inclusive com o atendimento automático? - perguntou ele, irônico. - É a única opção.

- Você sabe que não posso ir até esse ponto - argumentou ela, mordendo o lábio.

- Não pode ou não quer?

- Ambos. Andrew não cederia nesse ponto. Sem seu serviço personalizado, a Sinclairs estaria morta.

- Já está morta. Morta e enterrada. Existe uma geração inteira que não liga para o atendimento pessoal.

- Então o que é que você pretende fazer? Mandar embora metade dos funcionários?

- Eles seriam aproveitados de outro modo. Você saberá como, depois de ler o meu relatório.

- Eu não quero ler esse maldito relatório! - As emoções de instantes atrás estavam explodindo agora. - Não quero nem saber quais são os seus planos, simplesmente porque eles não irão adiante! Não desse jeito!

- Se eu conseguir a adesão dos primos, vou ficar com sessenta por cento dos votos.

- Eles não vão concordar, a não ser que eu também concorde. Ou será que você ignora que eles sabem por que Andrew dividiu as ações?

- Vai haver muito dinheiro envolvido nisso. Será que você acha que eles não iriam gostar de ganhar mais?

- Não às custas de tudo o que a Sinclairs representa. Não se esqueça de que eles são da mesma geração que seu pai e respeitam valores que você não reconheceria.

- Mas que você reconhece.

- Sim, eu reconheço. E existe muita coisa que pode ser feita para aumentar os lucros, sem ser preciso tomar medidas extremas.

- Talvez fosse melhor deixar as reformas para você, já que tem tantas idéias... - disse ele em tom sarcástico.

- Não estou querendo passar à frente de ninguém. Posso concordar com quase tudo, menos com o atendimento automático.

- Só que algum dia vai ter que concordar, a não ser que prefira perder Underwood.

- Não foi isso o que o dr. Watling disse.

- Mas era isso o que queria dizer. Os impostos estão cada vez mais altos e a renda vai diminuir, se tivermos que vender algumas ações para pagá-los. Papai deve ter percebido que teria que haver algumas modificações depois que ele morresse.

- Claro que percebeu, e deve ter calculado exatamente o quanto seria necessário.

- Há quatro anos. Hoje as coisas são diferentes. Cresça, querida, e pare de viver no passado.

- Acho que é muito melhor que o presente. - Kerry olhou para ele, conformada, percebendo que seria inútil tentar convencê-lo. Se no fim fosse mesmo muito difícil manter Underwood, ela teria que abrir mão de mais alguns dos princípios de Andrew, mas, até lá, iria continuar agüentando. - Boa noite, Ross.

- Kerry! - A voz dele fez com que ela parasse a meio caminho da porta. - Vou fazer o que disse há pouco. Se eu perceber que está interessada em outro homem, vou criar caso!

- Pode tentar.

Capítulo IV

O relatório demorou uma semana para ficar pronto. Ao entregar as cópias para serem examinadas durante a segunda reunião da diretoria, na quinta-feira de manhã, Ross pediu desculpas pelo atraso.

- Havia muito mais coisas envolvidas do que eu imaginei no princípio - disse ele. - Sugiro que leiam até o fim antes que comecemos a discutir qualquer item.

- Meus olhos já não são tão bons quanto antes - reclamou John Barratt. - Será que você não pode nos fazer um resumo?

- Basicamente o que precisamos fazer é reestruturar toda a organização para obtermos maiores lucros. Algumas coisas podem ser feitas aos poucos, mas muitas são prementes. Controle do estoque, por exemplo. Existe muito capital parado nisso.

- Sempre em estoque na Sinclairs! - lembrou James, como se fosse uma frase célebre. - Um freguês que vai embora é um freguês perdido!

- Se organizarmos um sistema eficiente de renovação de estoque, não haverá necessidade de um estoque muito grande.

- Mas não cabe aos gerentes de cada departamento decidir quanto precisam de cada mercadoria?

- Esse é um dos problemas. Há um excesso de decisões individuais. Uma das coisas de que mais precisamos é um gerente-geral, que determine o controle do orçamento e supervisione as compras. Veja o que acontece com as peles, por exemplo. Calculei que temos umas dezessete mil libras paradas; muita coisa em estoque relativamente antigo. - Seus olhos encontraram os de Kerry. - Alguma pergunta?

- Sim - disse ela. - Quando é que você volta para Detroit?

- Minha querida! - James parecia chocado. - Isso é modo de falar?

- Não foi isso o que eu quis dizer. Estava apenas perguntando, porque imagino que ele deva voltar para lá a fim de resolver suas coisas.

Ross respondeu calmamente:

- Você está certa. Preciso mesmo ir. Estou pensando em ir hoje à noite, e é por isso que estou com um pouco de pressa para tomar algumas decisões.

- E quanto tempo pretende ficar fora?

- É difícil dizer. Pelo meu contrato, preciso dar um mês de aviso prévio, mas posso dar um jeito.

- Você pertence à diretoria? - perguntou James.

- Não, a empresa pertence a uma família. Eu assisto às reuniões de diretoria, mas não posso comprar ações. Isso me lembra uma coisa: o nosso gerente-geral atual deve se aposentar dentro de onze meses, e acho que seu sucessor deve ser nomeado diretor.

- E nós é que deveremos nomeá-lo? - quis saber Kerry.

- De jeito nenhum - foi a resposta precisa. - As promoções não são um direito adquirido. Devem ser merecidas. Nenhum dos assistentes serve para uma posição superior e alguns deles não servem nem para as posições que ocupam atualmente. É uma pena que não possamos baixar a idade da aposentadoria e varrer essa velharia toda de uma vez. Já estão na firma há muito tempo para se acostumarem com novidades.

- Isso depende de até onde vão as novidades - desafiou Kerry. - Imagino que já tenha o sucessor do gerente-geral em mente.

- Não. Teremos quase um ano para encontrá-lo.

- E tem que ser um homem?

- Está pretendendo o cargo para você mesma? - perguntou ele com um sorriso gelado.

- Não foi isso o que eu quis dizer.

- Estou aliviado. Feminismo é a última coisa de que precisamos. Sim, provavelmente será um homem, mas apenas porque é relativamente difícil encontrar boas executivas.

Kerry havia pedido por isso. Deveria ter se resguardado melhor, pensou com raiva. Um duelo sem armas era o que parecia o relacionamento dos dois. Mas Ross tinha armas, e muito eficientes. Apenas não as usara, confiando apenas em sua agilidade mental para lutar contra Kerry.

James Barratt fez um ar de aprovação ao ouvir as palavras de Ross. Kerry duvidava de que ele não gostasse dela como pessoa, mas ele era de uma época em que as mulheres não ousavam opinar. Apenas algumas semanas atrás, ele dissera a Andrew que Kerry andava dando muitos palpites. Andrew tinha rido ao contar a história para ela, enquanto lhe afagava os cabelos. Chamava Kerry de "minha compensação". Lembrando-se agora disso, ficou pensando por que não gostava que ele a chamasse assim. Andrew tivera dela o carinho e as atenções que não recebera do filho. Ela dizia apenas o que aprendera com ele, e não havia nada de errado nisso. Acreditava nele, continuava acreditando, e Ross não iria conseguir tirar isso dela.

- Você vai assumir a presidência, é claro - disse James, fazendo com que ela voltasse a prestar atenção ao que estava acontecendo na sala. - Acho que não precisamos fazer votação nenhuma.

- Eu aceito - respondeu Ross.

Kerry olhou para James, para John e depois novamente para Ross, e viu que não adiantava objetar. Claro que os primos não iriam querer que ela ficasse na presidência. E, para ser honesta, nem ela queria, pois naquelas circunstâncias o cargo era apenas nominal.

- O cargo é todo seu - respondeu.

- Obrigado.

- Não há de quê.

- Se é que pretende dizer sempre a última palavra, que pelo menos ela seja construtiva, sim? Não estamos aqui para brincadeiras.

Ela corou, reconhecendo que merecia o comentário, e resolveu ficar quieta. Sempre que discutiam, ela acabava levando a pior, e nem sabia por que continuava insistindo.

- Vamos começar a fazer as pesquisas de mercado no próximo sábado e durante toda a semana seguinte - continuou ele. - Isso vai nos dar uma boa média. Vai demorar algum tempo para ajuntar os dados, mas no fim creio que nos apontarão uma ou duas soluções práticas. Quando eu voltar, deve estar tudo pronto para colocar os planos em ação.

Quando ele voltasse... Pela primeira vez Kerry pensou no que provavelmente ele estaria deixando de lado nos Estados Unidos. Em seis anos deveria ter feito muitas amizades. O que sentiria ao voltar àquele tipo de vida? Será que se arrependeria?

Seria estranho ficar novamente sozinha na casa, mas ainda assim seria bom. Talvez tivesse sido bobagem ela ter telefonado para Larry para cancelar o encontro de sábado, mas, na ocasião, as ameaças de Ross estavam muito vivas em sua cabeça. Mas Larry não desanimara, convidara Kerry novamente no ensaio da noite passada e desta vez ela iria, de qualquer jeito.

Acabaram a reunião, combinando que se encontrariam novamente quando Ross voltasse. Os primos saíram, levando suas cópias do relatório. Ross fez um sinal a Kerry, que também ia saindo, para que se sentasse novamente.

- Sente-se - disse. - Há mais uma ou duas coisas que quero falar com você.

Ela encarou-o por um momento, depois resolveu concordar.

- Está bem, desabafe.

- Essa é uma delas - retrucou ele, azedo. - Olhe, Kerry, quando estivermos em casa, você pode me tratar do jeito que quiser, mas aqui, na frente dos outros, não faça mais isso, senão vai se arrepender.

- E por quê? - perguntou, provocando. - Será que isso fere sua preciosa dignidade?

- Eu é que vou ferir sua dignidade já, já! - ameaçou ele. - Você merece uma boa surra... - Viu a mudança no rosto dela e riu. - Não pense que já passou da idade!

- Tenho certeza de que você ainda não passou! - retrucou ela com o máximo de controle que conseguiu.

- Ótimo. Então pare de me provocar. Goste ou não, temos que trabalhar juntos. - Fez uma pausa e sua voz mudou de tom. - Dê uma olhada naquele relatório, está bem? Citei números e fatos para reforçarem minhas sugestões.

- Elas são bem mais que sugestões, não são? - perguntou ela, baixo. - O que está querendo é fazer uma grande limpeza!

- Não de uma vez. Algumas modificações vão ter que ser feitas gradualmente. O treinamento do pessoal vai levar tempo. Você vai ver que me preocupei muito com o aproveitamento do pessoal mais moço. É aí que vamos encontrar mais tarde novos quadros para ocupar a gerência. Seguir os métodos da velha geração não vai bastar.

- Mas isso significa muito esforço de adaptação.

- Sim, é verdade.

- E os que não conseguirem?

- Vamos deixar para resolver isso quando chegar a ocasião - respondeu, sério. - Até que eu volte, você vai dispor de algumas semanas para determinar quais serão as suas prioridades.

Kerry ficou olhando para ele.

- Acredita mesmo que vai conseguir resolver tudo tão rápido assim?

- Espero que sim, considerando-se as circunstâncias. O funcionário logo abaixo de mim tem capacidade bastante para assumir imediatamente esse encargo, se for preciso.

- Imagino que todos os gerentes abaixo de você sejam homens - observou ela suavemente.

- Não, não são. Eu disse que as boas executivas eram raras, mas não impossíveis de se encontrar. Minha gerente de vendas é uma mulher, e eficientíssima, ou não estaria no lugar que ocupa.

- É moça?

- Vinte e oito anos. - Havia ironia no olhar dele. - E, para evitar mais perguntas, ela é loira, tem olhos azuis, é muito atraente, e não chegou onde está por causa dessas qualidades.

- E você mal reparou nessas qualidades...

- Teria que ser cego para não reparar. Uma coisa eu aprendi, e bem cedo. Mantenho o trabalho estritamente separado do prazer. Assim dá para manter uma relação de trabalho muito melhor. Veja nós dois. Tudo ficaria muito mais fácil se você não estivesse tão envolvida na Sinclairs.

- Não vejo que diferença isso possa fazer. Ainda assim continuaríamos com raiva um do outro.

Ross sorriu de leve.

- Você acha que é assim?

- E você, o que acha? - provocou ela e viu que os olhos de Ross aquiriam um brilho diferente.

- Venha até aqui e eu lhe mostro o que acho.

Kerry não se moveu. Olhava para o rosto dele, observava o modo como segurava as costas da cadeira à sua frente, lembrando-se dos carinhos de suas mãos, do toque de seus lábios... Desejava ardentemente obedecer à ordem dele, sentir aqueles braços apertando-a como da outra vez. Não havia como negar a atração que sentia por ele. Isso já fazia muito tempo, praticamente logo depois que o conheceu. Ficara adormecida durante os anos em que ele esteve fora, atrapalhando todas as outras possíveis relações, porque nunca havia ninguém à altura de Ross.

Agora ele estava de volta, e o desejo ainda permanecia, só que muito mais forte, quase irresistível. De repente ficou com vontade de se render, ali e agora, dizer a Ross que agisse como quisesse em relação à loja e em relação a ela. Amava-o e desejava-o, mas a dívida que sentia em relação ao pai dele tornava tudo impossível.

- Kerry? - A voz dele soava diferente, algo mais profundo e íntimo substituía o sarcasmo. Endireitou o corpo, encarando-a fixamente. - Se não vier até aqui, acho que vou ter que ir aí.

- Não, Ross! - Estendeu os braços, num gesto de defesa. Seus olhos se turvaram. - Não quero que me toque outra vez!

- Quer, sim! Quer tanto quanto eu... - Ergueu-a, segurando-a com força pelos braços. - Se não fosse por esse maldito negócio, estaríamos livres para fazer o que bem quiséssemos, tomar nossas próprias decisões. - Estendeu a mão e tocou o rosto de Kerry, fazendo com que ela estremecesse. - Quero fazer amor com você, Kerry. Nós dois queríamos isso na outra noite. Só que é impossível mantermos uma relação real enquanto estivermos envolvidos com toda essa complicação que papai nos deixou. Você sabe disso, não é?

- Sim. - A voz dela soava baixa e rouca. - Eu sei.

- Então, faça a coisa certa e pare de lutar contra mim.

- Eu... eu não posso. Ele confiava em mim.

- Claro que confiava. Mas não tinha o direito de colocar você nessa posição. O sistema antigo morreu com ele, já é tempo de renovar; renovar completamente. - Segurou o queixo de Kerry e beijou-a com paixão, obrigando-a a corresponder. Ao erguer o rosto, sorria. Suas mãos a acariciavam com ternura. - Estou me lembrando de ter visto você nua num relance, quando tinha uns quinze anos. Você já começava a ter corpo de mulher, seios pequenos como duas maçãzinhas e irresistíveis, como agora.

- Ross... - disse ela, trêmula, desejando que ele continuasse a acariciá-la, mas preocupada com o lugar onde estavam. - Alguém pode entrar...

- Podemos trancar a porta.

- Não. - Afastou as mãos dele e abotoou a blusa, sem conseguir encará-lo. - Não consigo pensar direito quando você faz isso...

Ele riu, abraçando-a e beijando-lhe as mãos.

- Kerry, você é uma mistura estranha... Sabe como corresponder e no entanto fica relutante em se entregar. Ainda é virgem, não é?

Ela se sentiu ridícula.

- E há algum mal nisso?

- Não, de jeito nenhum. Gosto da idéia. Você sabe, hoje se fala muito sobre os direitos sexuais da mulher antes do casamento, mas os homens, egoístas ou não, gostam na sua maioria de pensar que são os primeiros e os únicos na vida da mulher com quem vão se casar. - Sentiu que ela ficou tensa e perguntou: - Não acha que o casamento seja uma boa idéia?

- Apenas para manter as ações no nome dos Sinclairs?

- Foi um modo deselegante de colocar as coisas, concordo. Eu queria provocar você. Mas esqueça as ações por um momento. Estou falando sobre nós dois. Provavelmente é um pouco cedo para ter certeza, mas, pelo jeito, acho que é isso que vai acontecer.

- Mas o casamento não é só sexo - protestou Kerry.

- Também acho, mas não tente me convencer de que o sexo não é importante, porque não vou acreditar em você. - Fez uma pausa e olhou para ela de um modo que a fez corar. - Como eu queria não ter que ir embora hoje...

- Eu acho bom que vá. - Kerry tentou ser convincente. - Você confunde os meus princípios. Não quero mais lutar com você, Ross.

- E não precisa, não precisa lutar contra nada. Apenas confie em mim, querida. Pode acreditar, eu sei sobre o que estou falando. - Beijou-a novamente, desta vez bem de leve, e afastou-a com relutância. - Você está certa. Este não é o lugar nem a hora apropriados. Vamos fazer nossos planos assim que eu voltar.

Kerry estava cautelosa, não acreditava que ele falasse sério.

- Assim, tão depressa?

- E por que não? Não há razão para esperar...

Não? E o amor? Kerry queria perguntar, mas não conseguiu. Talvez, como homem, ele estivesse sendo objetivo, mas nada havia que indicasse aquela emoção. Tudo bem, disse para si mesma, ele ainda não a amava do modo como ela desejava, mas isso não queria dizer que não chegasse a amá-la.

- Por que não me disse que ia embora hoje? - perguntou. - Resolveu de repente?

- Não, na verdade, não. Parece que nos últimos dias não houve oportunidade. - Afastou-se dela para colocar alguns papéis na pasta. - Do jeito que você andava, imaginei que ficaria muito feliz em me ver pelas costas.

- Foi você mesmo que me deixou daquele jeito - disse ela. - Durante toda a semana agiu como se quisesse me bater.

- Apenas por frustração - afirmou ele, rindo. - Se não pode se juntar a eles, bata neles, como diz o ditado...

- Agora está sendo irônico.

- Não, não estou. - Fechou a pasta e olhou para ela. - Vou sentir falta das suas provocações nos próximos dias.

- Bem que eu queria ir com você - confessou, trêmula.

- Eu também queria, mas não seria prático. Vou estar muito ocupado. Futuramente, levo você até lá e mostro sobre o que estou falando.

- Ao mesmo tempo em que verifica se seu sucessor está correspondendo - brincou ela.

- Até que era uma boa idéia - disse Ross, rindo. - Acho que vou ter que ficar de olho nas suas idéias, senão não vou ter sossego.

Kerry duvidava daquilo. Podia-se conhecer Ross Sinclair muito bem, mas ele sempre manteria oculta uma parte de si mesmo. E assim é que tinha que ser! Ninguém deve se desnudar completamente para outra pessoa, pois fica-se muito vulnerável.

- São mais de três e meia - disse ele, olhando para o relógio. - Meu vôo é às nove. Vou ter tempo de ir até em casa, pegar minhas coisas e chegar a Ringwood às oito e meia. Como alguma coisa no caminho. - Baixou os olhos para a blusa que ela abotoara há pouco e sorriu. - Volte comigo para casa, Kerry.

A tentação de aceitar era grande, mas ela resistiu.

- Não acho que seja uma boa idéia.

Ross sacudiu os ombros, resignado, e respondeu:

- Talvez você tenha razão. Eu ia acabar perdendo o avião. Vai ser uma coisa que vou aguardar com ansiedade quando voltar.

- Ross... - Kerry hesitava, procurando algo no rosto dele.

- Não se preocupe - disse com gentileza, interpretando certo a ansiedade dela. - Não vou esperar por nada além do que você possa me dar. Você tem direito à tradicional noite de núpcias, se é isso que quer. Não vai querer um casamento sofisticado, não é? Afinal de contas, a família é muito pequena.

- Não, claro que não. - Mordeu o lábio, sem saber como se explicar. - Ross, você não acha que está indo depressa demais?

- Por querer me casar com você? - Largou a pasta em cima da mesa e abraçou-a uma vez mais. - Como é que posso convencê-la? Você quer se casar comigo, não quer? Eu quero me casar com você, Kerry.

- Bem... eu também quero.

- Não parece estar muito segura.

- Não é isso. Só não quero que você se arrependa.

- Não vou me arrepender, nem você. E, lembre-se, papai também queria isso.

- Como você pode ter certeza? - perguntou, afastando-se um pouco dele.

- Porque eu o conhecia bem. Melhor do que você imagina. - Havia uma certa ansiedade no rosto dele, mas imediatamente desapareceu. - Provavelmente ele sempre esperou que isso acontecesse. Desde que você tinha dezesseis anos, ele vivia constantemente elogiando você para mim.

- E como isso devia ter aborrecido você... - disse ela, franzindo o nariz.

- Isso mesmo. Eu podia reparar muito bem sozinho que você estava virando uma linda moça, sem que ele ficasse toda hora insistindo nisso... Se às vezes eu a irritava, era apenas autodefesa.

- Às vezes você era insuportável! Eu costumava rogar pragas horríveis em cima de você.

- E agora, não roga mais?

- Não, pelo menos não agora...

- Isso significa que a época de maldades ainda pode voltar? - perguntou, intrigado. - Vou ter que me cuidar. - Deu uma outra olhada no relógio e suspirou. - Amor, tenho que ir... ainda não fiz as malas. Você vai ficar bem, sozinha lá em casa?

- Claro. - Resistiu ao impulso de se agarrar a ele. - Cuide-se bem, Ross.

- Pode deixar. - Beijou-a novamente, de leve desta vez, e deixou-a. - Até daqui a algumas semanas.

Kerry ficou parada durante muito tempo depois de ele ter partido, pondo em ordem suas emoções. Há menos de meia hora, estavam brigando e agora estavam praticamente noivos. Tudo tinha acontecido muito depressa e ela nem tinha tido tempo de pensar direito. Claro que agora teria muito tempo para isso, com ele fora. Nesse sentido, até que a viagem de Ross era uma coisa boa, pois daria a ambos a oportunidade de pensar melhor. Mesmo que Ross achasse que não, as ações pesavam na decisão de dar a ela o sobrenome Sinclair, e essa não era a base ideal para um casamento.

Encontrou a casa vazia às seis e meia. Tomou um lanche rápido e levou a cópia do relatório para a saleta, junto com um bule de café. Sentou-se numa das poltronas e começou a lê-lo.

Leu duas vezes, a primeira rapidamente para apreender os tópicos principais, e a segunda mais devagar, para melhor considerar os detalhes. Eram inúmeras suas críticas às técnicas atuais como também suas sugestões para a descoberta de novos caminhos. Mas tudo combinava, pelo menos no papel. Podia-se até ver a nova Sinclairs renascendo das cinzas da velha. Não seria da noite para o dia, é claro. Levaria tempo para fazer tudo o que propunha. Os projetos para o serviço automático trouxeram de volta as dúvidas que ela tinha posto de lado quando estava nos braços de Ross. Se ele conseguisse o que queria nesse sentido, só restaria da velha loja uma alta eficiência, porém impessoal. Será que ela teria coragem de trair sua lealdade a Andrew, sabendo o quanto ele confiava nela?

Teria sido difícil desmanchar seu encontro com Larry sem entrar em explicações que ela preferia não dar, por isso Kerry manteve o compromisso. O filme que ambos queriam ver ainda estava passando e ela poderia esquecer um pouco seus problemas particulares.

Foi Larry quem sugeriu que fossem jantar depois do cinema e levou-a a um pequeno restaurante francês, fora do centro da cidade, que Kerry nem sabia que existia.

- Eles fazem uma deliciosa sopa de cebolas. O cozinheiro ainda é moço, mas passou alguns anos na França, antes de abrir o restaurante. Você vai gostar.

E Kerry gostou mesmo. A atmosfera era bem francesa, e a comida estava deliciosa, como Larry afirmara. Ele insistiu no vinho para acompanhar a refeição.

- É uma espécie de celebração - disse ele. - Afinal, é nosso primeiro encontro, o primeiro de muitos, espero...

Ela devia ter-lhe contado a verdade, mas algo a deteve. Aqueles momentos na sala de reuniões três dias atrás pareciam até agora meio irreais. Não tinha recebido nenhuma notícia de Ross, nem mesmo para dizer se chegara bem. Não que isso fosse sério, pois quando não há notícias é porque tudo está correndo bem. Mas um telefonema não tomaria muito tempo dele.

- Você acha mesmo que nossa peça vai estar pronta dentro de quinze dias? - perguntou ela, fugindo do assunto.

- O que você quer saber é se você vai estar em forma para a estréia - disse ele, sorrindo. - Claro que vai estar. Seu sotaque precisa ser aperfeiçoado um pouco mais, talvez, mas, a não ser por isso, pode crer que vai fazer sucesso.

- É surpreendente como é difícil falar errado quando não se está acostumada. É como aprender uma nova língua. Mas eu estava perguntando sobre o espetáculo, como um todo. Na noite passada não estava nada bom.

- Como diretor, protesto contra este comentário! Às vezes acontecem coisas assim, quando nada dá certo. Já ocorreu antes e vai ocorrer novamente. Mas é melhor vocês estarem ótimos no ensaio de terça-feira, senão cabeças vão rolar.

Acabaram os dois rindo e Kerry perguntou:

- Que tal fazermos uma peça histórica na próxima vez?

- Vamos colocar em votação. - Havia algo de estranho no olhar dele. - Por que não fizemos isto antes, Kerry? Devíamos ter feito...

- Você nunca me convidou - respondeu ela. - Além disso, eu achava que você estava envolvido com a Caroline Wyatt.

- Envolvido não é a palavra exata - respondeu ele, à vontade. - Andamos juntos durante algum tempo, só isso. Caroline não é um tipo de garota para se namorar sério. Quando pensa em se casar, um homem começa a escolher... Vai querer uma garota com cabeça, além de boa aparência. Alguém a quem possa respeitar, e confiar também. E moças assim também gostam de escolher. Têm esse direito.

Depois disso, conversaram sobre generalidades. Apenas quando Larry parou o carro em frente da casa é que tentou voltar a falar de assuntos pessoais.

- Você é uma pessoa formidável, Kerry - disse baixinho. - Gostei demais desta noite. Vamos ficar muito ocupados nas duas próximas semanas por causa da peça, mas depois disso vamos sair novamente? - Achou que ela havia aceitado e beijou-a delicadamente no rosto. - Não vou entrar, já é muito tarde. - Fez uma pausa. - Antes que me esqueça, já recebeu notícias do seu... meio-irmão?

Ela negou com um gesto de cabeça.

- Acho que ele anda muito ocupado. Deixar um emprego como o dele deve ser muito complicado.

- Mas o prêmio é bem grande. Existem rumores de que ele planeja remodelar a loja toda. E já não é sem tempo, se quer minha opinião. Ela é meio antiquada.

- Nem tanto - protestou ela. - Se fosse, não estaria funcionando.

- Sim, mas existe uma vasta diferença entre o que é e o que deveria ser. Foi uma pena que seu padrasto nunca vislumbrou as potencialidades do negócio.

- Ele bem que as viu, mas rejeitou-as.

- Então não era um homem de visão. Mesmo em Medfield não se pode ignorar as conquistas do progresso. - Ficou olhando para ela antes de perguntar, preocupado: - Você não pretende impedir o que ele quer fazer, não é?

Então ele estava sabendo de sua posição dentro da Sinclairs! Kerry não sabia por que se sentia tão deprimida ao descobrir isso.

- Não estou pretendendo fazer nada agora, a não ser dormir - disse ela, tentando brincar. - É muito tarde, Larry, como você já disse.

- Claro. - Ficou olhando enquanto ela saía do carro. - Você não está com medo de ficar sozinha em casa, não é?

- Não - respondeu ela, mas pensou que acabaria ficando, já que tanta gente estava sugerindo isso. Acrescentou: - Andrew acreditava em segurança total. As janelas têm trancas especiais, as portas também e existe um sistema de alarme especial ligado diretamente com a delegacia de polícia.

- Ótimo. Detestaria pensar que você estivesse correndo perigo. Entre e acene para mim da janela do seu quarto para avisar que tudo está bem.

- Não posso. É do outro lado da casa. - Fechou a porta do carro e dirigiu-se para a casa. Parou na porta para dar adeus. - Boa noite, Larry.

Ele ficou esperando até que ela entrasse, depois deu a partida no carro e foi embora. Ao ouvi-lo partir, Kerry se arrependeu de não ter esclarecido a situação. Mas se nem para ela estava tudo muito claro! Ross a havia pedido em casamento, era verdade, mas ela iria mesmo aceitar? Não tinha certeza nem dos seus próprios sentimentos, quanto mais dos dele.

Estava saindo do banheiro quando o telefone tocou. Seu primeiro pensamento foi para Ross. Correu para a extensão de seu quarto, prendendo o fôlego, de tão ansiosa.

- Sim?

- Estou falando com Kerry Rendai? - perguntou uma voz feminina com um sotaque que ela não reconheceu logo.

- Sim - respondeu Kerry, espantada. - Quem está falando, por favor?

- Você não me conhece. Duvido que Ross tenha mencionado meu nome. - Seu tom era amargo. - Achei que você deveria saber, antes de se casar com ele, que tipo de homem ele é. O que é que acharia de um homem que vive com uma mulher durante seis meses e depois a põe na rua?

Kerry gelou.

- Quem é você? Sobre o que está falando?

- Meu nome é Margot... Margot Kilkerry. Pergunte a Ross sobre mim e depois olhe bem para ele.

- Não acredito! - Kerry estava pálida e sua voz tremia. - Está inventando tudo isso.

- Não estou, não! O endereço dele era o mesmo que o meu até alguns dias atrás. Quando ele voltou para cá, simplesmente me mandou embora. Antes que o pai dele morresse, nós íamos nos casar. Ele estava passando férias junto comigo quando recebeu a notícia.

- Como você sabia onde me encontrar?

- Eu sabia o nome da cidade e da casa, e a telefonista internacional fez o resto, mas isso não é importante. O fato é que encontrei você.

- E o que espera que eu faça?

- Você é quem sabe. Não posso obrigá-la a desistir dele, mas acho que devia saber a verdade.

- Mas se eu desistir dele, ainda assim ele virá para cá.

- Por causa da herança que ele divide com você? Sim, ele me contou. Se você entregar a ele as ações, que por direito deveriam pertencer a ele, então Ross não precisará mais se casar com você. Você já tem tanta coisa, por que vai querer também um homem que não a ama? Se não fosse por você, ele me levaria para a Inglaterra também. Pense nisso, sim?

Kerry ouviu o telefone sendo colocado no gancho a milhares de quilômetros de distância, mas não pendurou o seu imediatamente. Ficou com ele encostado no rosto, estonteada. Eram verdadeiras as palavras daquela moça; havia um toque de indiscutível sinceridade em tudo o que dissera. Ross obviamente contara tudo a ela, inclusive os motivos que o levaram a pedir sua mão. A traição é que doía mais. Como é que ele podia ter feito isso para ela e também para Margot? Que tipo de homem era ele?

Não soube por quanto tempo ficou sentada na beirada da cama, depois de finalmente ter desligado o telefone. Não conseguia raciocinar com clareza. A necessidade de falar com Ross foi surgindo devagar, mas firme. Não sabia o que adiantaria, mas tinha que falar com ele, dizer o que pensava dele, expressar todo o desprezo que sentia e a amargura enorme que a corroía por dentro.

A agenda onde ela havia encontrado o endereço dele no dia do falecimento de Andrew ainda estava no escritório. Encontrou-a na mesma gaveta onde a deixara e abriu-a na página certa enquanto pagava o telefone.

Logo descobriu o número e se deu conta de que podia ligar direto para ele. Era um número comprido e Kerry precisou discar duas vezes até acertar. Ouviu uma série de cliques indicando as diversas ligações, uma pausa longa e depois, surpreendentemente claro, o toque de chamada do telefone de Ross.

Ele respondeu tão rápido que devia estar ao lado do telefone quando tocou.

- Sinclair - respondeu.

Agora que a hora havia chegado, Kerry sentiu a boca e a garganta completamente secas. Engoliu com dificuldade e conseguiu fazer a voz sair:

- É Kerry.

- Kerry? - Ele parecia surpreso. - Aí deve ser duas horas da manhã! Onde é que você se meteu? Andei tentando falar com você por mais de três horas.

- Fui ao cinema - disse ela, sem mentir, e fez uma pausa. - Por que estava tentando ligar para mim?

- O que você acha? Queria falar com você. Desculpe-me por não ter ligado antes, mas as coisas por aqui se complicaram. - Percebeu um tom diferente na voz dele. - Kerry, você está bem? Parece meio estranha...

- Não, estou bem. Deve ser a ligação. Já sabe mais ou menos quando é que vai voltar?

- Com certeza, não. Apareceram um ou dois problemas, mas nada sério. Se tiver sorte, estarei aí no meio do mês. - A voz voltou a alterar-se. - Kerry, estou sentindo falta de você.

- Eu também. - Doía dizer isso.

- Está tudo bem na loja?

- Sim. - Agora o terreno era mais seguro. Aquele era o interesse real dele. - Começamos a pesquisa de opinião esta manhã, como o combinado. Aparentemente os resultados de hoje foram bons. E já recebemos diversas solicitações para alugar e vender e não tinha percebido que você já tinha ido tão longe.

- Foram só umas indagações que fiz. Não era para despertar um pouco de interesse.

Não, pensou ela, não faz mal. De repente sentiu que não importava mais.

- Preciso desligar agora, Ross - disse. - Já é tarde aqui.

- Sim, eu sei. Você já devia estar na cama. Eu queria estar aí com você. Boa noite, querida. Falo com você...

Kerry desligou o telefone vagarosamente e ficou olhando para o aparelho. Covarde, pensou. Você é mesmo uma covarde! Tinha ficado ali, falando com Ross, como se não tivesse acontecido nada. Teria que esperar que ele voltasse e então lhe atiraria no rosto tudo o que sabia. Mas como iria agüentar até lá?

Capítulo V

A peça estreou muito bem, foi melhor na segunda noite e, na terceira e última apresentação, o sucesso foi tão grande que deixou todo o elenco eufórico.

- Mas a verdadeira heroína foi Kerry - observou Tom Cotteril com simpatia, durante a festa de comemoração após a última apresentação - Kerry, você esteve maravilhosa, simplesmente maravilhosa!

Os outros também se manifestaram, fazendo com que Kerry corasse de prazer e embaraço. Larry, sentado ao seu lado, passou um braço possessivamente pelos seus ombros, sem esconder a satisfação.

- É verdade. Você acabou se revelando uma atriz de primeira, melhor até do que todos esperavam. O que foi que aconteceu com você durante esta última semana? Prometia ser boa, mas não tanto assim.

- Acho que acabei tomando gosto pelo meu papel só no fim - disse Kerry, aceitando os elogios porque não tinha outro jeito. Ficou imaginando o que é que eles diriam se ela contasse a verdade, que mergulhara no papel de Elisa para esquecer os outros problemas. Agora a peça terminara e também sua válvula de escape. Mas não imediatamente, não hoje. Por isso é que convidara todo o elenco para uma festa em Underwood. Amanhã começaria a estudar a estratégia para quando Ross voltasse para casa. Hoje não queria pensar nele.

Alguém colocou uma música suave e apagou algumas luzes para que o ambiente ficasse mais aconchegante. Larry disse baixinho:

- Kerry, vamos dançar...

Não reclamou quando ele a apertou nos braços, pois estava precisando de calor humano. A companhia de Larry havia sido boa para ela nas últimas semanas, pois dividiam um interesse comum. Qualquer que tivesse sido o motivo dele a ter convidado no começo, Kerry agora sentia que ele gostava muito da companhia dela.

- Estou orgulhoso de você - confessou-lhe, o rosto encostado nos cabelos dela. - Minha querida Kerry, perdemos tempo demais, mas agora vamos recuperá-lo, está bem?

- Se você quer assim... - respondeu ela e ele acabou rindo.

- Pode apostar que quero! Vamos nos divertir juntos, vamos nos conhecer melhor. Temos muita coisa em comum. Nós até que formamos um belo par, não acha?

Ela virou a cabeça um pouco para dar uma olhada no espelho da sala.

- Sim, combinamos muito bem - concordou Kerry, com um aperto no coração.

Larry a beijava na hora em que Ross entrou. Kerry sentiu uma mudança no ambiente e afastou-se dos braços de Larry. A expressão de Ross era enigmática e seus olhos estavam frios como o aço.

- Estão comemorando alguma coisa? - perguntou no meio do silêncio que se seguiu. Seu sorriso era aparentemente normal, mas Kerry percebia a tensão por detrás dele. - Imagino que a peça tenha sido um sucesso.

De algum modo Kerry conseguiu controlar a situação, fazer as apresentações e parecer normal. Alguns dos convidados mais velhos já conheciam Ross e o cumprimentaram meio curiosos, mas sem censura. Sem esforço ele se tornou um deles, pegando uma bebida, conversando à vontade com os outros e dando apenas uma olhada para Kerry, que não conseguiu descobrir o que ele estaria pensando.

- Você agora vai ficar para sempre na Inglaterra? - perguntou uma das moças sentada ao lado dele, com os olhos cheios de interesse. - Não vai mais voltar para os Estados Unidos?

- Não, agora vim para ficar - respondeu, rindo.

- Já andamos sabendo de seus planos para modernizar a Sinclairs - observou Larry. - Parecem ótimos.

Os olhos de Ross se fixaram por um instante no braço de Larry, apoiado de leve sobre os ombros de Kerry.

- Vai demorar ainda - disse. - Essas coisas geralmente demoram. Estaremos muito ocupados durante muitos meses ainda. - Disfarçou um bocejo com a mão e acrescentou: - Desculpem-me, mas viajei por doze horas. Será que não se incomodam que eu vá me deitar?

- Já é hora de todos nós irmos embora - disse Larry, aproveitando a deixa.

Levaram uns vinte minutos para sair; a garota que estivera conversando com Ross era a mais relutante de todas.

- Eu não sabia que você tinha um irmão tão bacana - confessou para Kerry, ao sair. - Será que não o convence a entrar para o grupo de teatro?

- Duvido muito - respondeu Kerry. - Os interesses dele são outros.

- Quero que você me conte quais são, um outro dia qualquer - disse ela, rindo. - Boa noite, Kerry. Obrigada pela festa.

Larry foi o último a sair.

- Vamos ter algumas semanas até decidirmos qual será a próxima peça. Vou vê-la antes disso, não é?

- Claro - disse Kerry, consciente da presença de Ross atrás dela. - Ligue para mim, Larry.

Ele pareceu um pouco desapontado; provavelmente não estava acostumado a ser tratado assim.

- Terça à noite, está bem? Podemos sair para jantar.

- Está ótimo. - Naquele momento teria concordado com qualquer coisa. - Terça.

Larry beijou-a rapidamente, antes que ela pudesse se afastar, e pareceu que ia comentar seu modo distante, mas desistiu. Kerry fechou a porta atrás dele e recostou-se nela. Tinha se desgastado demais na última hora; mais que durante os três dias de representação. O fato de Ross ter chegado assim, sem avisar, tinha sido um choque enorme e agora estava despreparada, tanto física quanto mentalmente, para um confronto com ele.

Fechou os olhos e visualizou o rosto dele enquanto tentava descobrir o que dizer. Ao abrir os olhos não notou a menor diferença, pois ele estava ali, à sua frente, a expressão severa e os lábios contraídos.

- Que história é essa que você está aprontando? - interpelou ele. - Você não vai a lugar algum com ninguém, nem terça nem qualquer outro dia! - Como Kerry continuasse em silêncio, insistiu: - Kerry, fale comigo!

Kerry por fim conseguiu fazer com que sua voz saísse, baixa mas forte, desabafando tudo o que guardara durante aquele tempo.

- Você pensou mesmo que tivesse conseguido, não é, Ross? Pensou que iria chegar aqui e fazer um sinal com o dedo e que eu iria correndo fazer tudo o que você quisesse!

- De que diabos está falando?

- Estou falando sobre minhas ações da Sinclairs, é sobre isso que estou falando. Você quer tanto o controle total da firma que faria qualquer coisa para isso... até casar-se comigo, se fosse preciso.

- E de que modo isso me daria o controle? Já vão longe os dias em que o homem tinha automaticamente direito sobre as propriedades da mulher com quem se casasse.

- Mas poderia ser suficientemente enganada para que deixasse tudo para ele, não é isso?

- Talvez, não sei. - Ficou olhando para ela. - Está tentando me dizer que foi fazendo o meu jogo para ver até onde eu ia?

- O que é que você acha?

- O que eu acho é que você está mentindo, mentindo por algum motivo. E só existe um meio de descobrir a verdade. - Alcançou-a antes que ela pudesse dar um passo. - Só existe um lugar onde você não vai mentir para mim.

Kerry resistiu à necessidade de lutar contra ele, sabendo que não teria forças para isso. O desespero escureceu sua mente ao pensar que, se Ross começasse a acariciá-la, provavelmente ela não resistiria. Ele também sabia disso. O único modo de impedi-lo seria dizer o que sabia, mas mesmo assim hesitava em fazer isso, pois descobrir a verdade estampada no rosto dele seria pior que a morte.

O quarto dela era o mais próximo da escada. Ross nem se importou em acender a luz; entrou e atirou-a sobre a cama com tanta força que Kerry perdeu o fôlego. Ele parou apenas para tirar o paletó e veio direto sobre ela. Seus beijos violentos eram desprovidos de ternura, mas mesmo assim Kerry sentia que seu corpo correspondia. Ross a desarmava, fazia aflorar seu desejo, mas isso não era amor. Ela não podia amar um homem que agia daquele jeito.

- Era assim que você fazia amor com Margot? - perguntou, quando ele interrompeu um dos beijos, e sentiu que ele ficou tenso.

- Como você soube sobre Margot?

Até então ela não escondia a esperança de que tudo não passava de uma grande mentira, mas agora, com a confirmação, desabou uma grande dor sobre seu coração. Sentiu vontade de feri-lo também.

- Ela mesma me contou. A mulher que vivia com você! Ela me telefonou uma noite e confessou que sabia por que você queria se casar comigo. Foi lindo você ter contado tudo a ela. Na verdade, existem coisas muito mais importantes que as emoções, não é mesmo?

Ele ergueu a cabeça e olhou para ela, os olhos gelados e sem sinal de arrependimento.

- Foi na mesma noite em que você ligou para mim, não foi? Por que não disse tudo naquela hora? Não foi por isso que telefonou?

- Foi, mas eu não consegui! - A voz de Kerry tremia. - E você não tenta nem se desculpar, não é?

- Não tenho por que me desculpar. Eu vivia com ela, ou melhor, ela vivia comigo.

- Oh, Deus! - Kerry tentou se mover mas não conseguiu; o peso dele impedia. - Saia daqui, Ross - disse ela com os dentes cerrados. - Saia já!

- Vou quando achar que devo - respondeu ele, sem se abalar, segurando-a com mais força. - Está bem, talvez eu devesse ter contado a você. Se não fiz isso foi porque tinha certeza de que sua reação seria essa mesma que você está tendo.

- E que outra reação eu poderia ter? O que é que eu devia sentir? Você estava planejando casar-se com ela até pouco tempo atrás!

- Isso não é verdade, e se ela disse isso, estava mentindo.

Kerry encarou-o durante algum tempo, tentando em vão decifrar o que seus olhos queriam dizer.

- Ela acreditava nisso - disse por fim. - Você deve ter dado motivos. Contou-me que vocês estavam passando férias juntos quando chegou a notícia da morte de Andrew. Foi por isso que ninguém o encontrou em casa.

- Em parte isso é verdade. Eu saí com ela durante alguns dias para facilitar as coisas, só isso.

- Facilitar o quê?

- Dizer a ela que estava tudo acabado. Quanto a mim, já fazia tempo, mas dizer a ela é que era o problema. - Sentou-se de repente, passando a mão pelos cabelos num gesto de resignação. - O que adianta... Você não ia entender mesmo...

- Tem razão, não entendo mesmo. - Kerry se sentia esgotada com tantas emoções. - Você ficou com ela porque a desejava e, depois que se satisfez, chutou-a! Você é calculista, Ross. Conhece muita, coisa sobre as mulheres, pelo menos fisicamente, e usa desse conhecimento para conseguir o que deseja. Agora encontrou alguém que se recusa a esse tipo de jogo! E fique sabendo que não vai pôr as mães naquelas ações!

- Malditas ações! - exclamou com voz rouca. Estava sentado, o cotovelo apoiado no joelho e a cabeça baixa. Kerry não podia ver seu rosto. - Eu gostaria de enfiá-las goela abaixo!

- Não jogue sua culpa em cima de mim! - Kerry retrucou e encolheu-se junto ao travesseiro quando ele levantou o rosto de repente e olhou para ela.

- Não abuse, Kerry. Isso não adianta nada. Não queira ser dona da verdade.

- Não sou dona da verdade!

- Sim, está sendo. E vingativa, ainda por cima, se é que eu conheço mesmo as mulheres. Vai lutar contra mim, não vai?

Kerry encarou-o, cheia de ódio.

- É só nisso que pensa, não é mesmo? Nem Margot nem eu valemos nada...

- Se é assim que você pensa... Mas se não vai se casar comigo, as coisas continuam como eu disse antes. Vou impedir qualquer ligação séria que você tente ter com outro homem.

- E o que eu disse antes também continua valendo - respondeu, furiosa. - Você pode tentar! Agora saia daqui!

Ele a encarou por um longo momento antes de estender os braços e puxá-la violentamente contra si. Só quando Kerry parou de resistir é que Ross ergueu a cabeça para olhar para ela.

- Este é um dos meios de que disponho, apesar de todas as suas virtudes. Se eu quisesse, eu a teria agora, mas acho mais divertido esperar...

Ela ficou largada onde ele a empurrara, olhando-o sair e desejando desesperadamente chamá-lo de volta, estender os braços para ele, esquecer-se de tudo o mais. Mas não conseguiu dizer uma só palavra, e agora era tarde. Ross havia saído, batendo a porta com força.

Demorou algum tempo antes que ela conseguisse sair do lugar. Sentia-se ferida, tanto física quanto moralmente. Seu vestido estava rasgado na bainha. Kerry tirou-o e chutou-o para longe. Maldito! Ela não podia se sentir assim, depois do que soubera dele. Tinha que aprender a lutar contra isso!

Uma coisa era certa: fosse o que fosse que ela decidisse fazer com suas ações, ele não iria se casar com a tal Margot. Ross usara as duas. Com ela, tudo também havia sido rápido demais. Percebera que se sentia atraída fisicamente por ele e a levara a um ponto em que não podia mais se controlar. E nisso tudo havia um único motivo: o controle da Sinclairs. Era uma verdadeira obsessão para Ross! Mas ela iria lutar, lutar muito. Não apenas em nome de Andrew, mas porque Ross teria que aprender a não menosprezar as emoções das pessoas e ainda sair com ares de vencedor.

Foi uma noite longa e cansativa. Kerry levantou-se às sete e saiu para dar uma volta e respirar o ar fresco da manhã. Morar na mesma casa, junto com Ross, ia ser intolerável, mas não havia outra alternativa, senão perderia sua metade da herança. Ou os dois perderiam? Tentou lembrar-se das palavras do testamento. Nove meses por ano, Andrew havia estipulado, mas nada além disso. Uma cláusula muito estranha. Por que teria feito isso? Era óbvio que ele queria os dois juntos a maior parte do tempo possível. Bem, ela sentia muito por Andrew, mas o negócio não ia dar certo.

Ross estava na cozinha, preparando ovos com presunto, quando ela voltou. Deu uma olhada para ela, notando suas olheiras e sorrindo de leve.

- Quer um pouco? - perguntou.

- Pode deixar que eu mesma preparo o meu - respondeu, seca.

- Pare de ser criança. Temos que morar na mesma casa e trabalhar juntos, haja o que houver.

- Só nove meses por ano - disse ela com firmeza. - Imagino que os outros três sejam facultativos. Por isso, você vai entender minha decisão de sair agora.

A resposta veio áspera e seca:

- Você não vai a lugar nenhum.

- Você não pode me impedir.

- Não? - Abriu dois ovos na frigideira e jogou as cascas no lixo. - O tempo é que vai dizer.

Kerry tentou dizer algo que pudesse feri-lo e conseguiu, falando no mesmo tom dele:

- Se se sentir muito solitário, sempre pode mandar buscar Margot.

O maxilar contraído de Ross era um sinal de perigo.

- Você não sabe quando deve parar, não é mesmo?

- E você, sabe?

- Sim, parei ontem à noite. Pelo menos por enquanto.

- E o que mais?

- Vou fazer o que disse. Experimente sair daqui, que irei buscá-la de um modo que não deixará mais dúvidas sobre nossas relações. Continue vendo com freqüência aquele diretor e vai acontecer a mesma coisa.

- Larry iria acreditar mais em mim que em você.

- Talvez você tenha razão. Só há um meio de verificar.

Ela encarou-o desanimada, sem saber o que fazer.

- Ross, para que tudo isso?

- Pode chamar de persuasão. Você pode ter a liberdade que quiser se me entregar aquelas ações. - Pegou um prato, colocou-o na mesa e sentou-se, olhando para ela com as sobrancelhas erguidas. - Por que esse silêncio interminável? Você sabia que era isso mesmo o que eu queria!

- Maldito! - exclamou, amargurada.

- Repita isso novamente e posso começar a agir de novo. - Ross percorreu com os olhos todo o corpo de Kerry. - Não se esqueça! - advertiu-a.

Não havia resposta para suas palavras. Com muita força de vontade podia controlar suas emoções, mas fisicamente a coisa era diferente. Ele sabia que tinha esse poder sobre ela, e usaria desse recurso sempre que fosse necessário.

Deixou-o na cozinha e foi para o quarto, atirando-se na cama para tentar encontrar uma solução para a encrenca em que havia se metido. Lentamente dentro dela começou a crescer a convicção de que, se ia haver briga, o melhor era enfrentá-la desde já. Se ela revelasse medo, a luta estaria perdida antes de começar.

O resto da manhã foi aparentemente tranqüilo. Kerry preparou o almoço para ambos, mas levou o seu prato para o quarto, pois não estava disposta a enfrentá-lo. Quando por fim desceu, ele havia se fechado no escritório, pelo menos era o que parecia pelo ruído que vinha lá de dentro.

Parada ali, ficou pensando em tudo o que poderia estar fazendo e rejeitou a idéia, pois a atmosfera da casa estava opressiva, como nunca fora antes. Num impulso pegou um casaco e saiu sem fazer barulho. Entrou no carro e partiu sem destino.

Naquela época do ano os campos estavam lindíssimos, repletos de flores silvestres. Kerry saiu do carro e caminhou até um lugar protegido do vento e de onde se via todo o vale.

Apenas uma parte de Medfield podia ser vista dali. As casas pareciam de bonecas e as pessoas minúsculas, como formigas. No dia seguinte aquela gente estaria trabalhando, inclusive os funcionários da Sinclairs. Como é que eles reagiriam às transformações propostas por Ross? Ficariam alegres ou tristes com as mudanças que ocorreriam na loja? Os mais jovens, mais adaptáveis, provavelmente iriam gostar, mas e os mais velhos? Alguns haviam trabalhado na Sinclairs durante toda a vida.

Dali a algumas semanas haveria o baile dos funcionários. Andrew sempre insistira para que fosse em novembro, antes da correria do Natal. Desde que sua mãe morrera, Kerry sempre ia com ele, sentando-se na mesa principal, junto com os outros funcionários graduados e as respectivas esposas, e depois dançava com ele, no ritmo que a idade dele permitia. Quando Kerry tinha vinte anos, um rapaz mais atirado se atrevera a tirá-la para dançar, mas Andrew não tinha permitido. Seu padrasto fora um grande esnobe, percebia ela agora com afeição. Seria difícil imaginar o filho agindo desse modo.

Ross. De repente lembrou-se. Será que precisaria ir como par de Ross? Se fosse assim, ela se recusaria a comparecer! O bom senso acabou prevalecendo. Essa não era a resposta. Claro que teria que ir, mesmo que tivessem que fingir amizade por uma noite. Todos esperavam que comparecessem juntos.

O vento gelado provocou-lhe um arrepio e ela resolveu voltar para o carro. Descobriu então que as chaves não estavam no seu bolso, e ficou nervosa ao pensar que o único lugar onde poderiam ter caído era onde estivera sentada, bem lá no alto.

A idéia de ter que subir tudo aquilo de novo deixou-a arrasada, mas tinha de achar as chaves ou andar oito quilômetros até a cidade.

A subida, que na primeira vez levara vinte minutos, demorou mais de meia hora. Já estava começando a escurecer quando chegou lá em cima. Ficou mais desanimada ainda ao não encontrar as chaves. O que iria fazer se não as achasse?

O sol já havia se posto quando ela afinal desistiu. Cansada, voltou para o carro e percebeu no relógio do painel que já eram seis e meia. A essa hora Ross já deveria ter desconfiado que ela não iria jantar. Provavelmente pensaria que ela estava fazendo de propósito. As luzes do vale começaram a piscar, parecendo bem mais próximas do que estavam na verdade. Percebeu que iria demorar umas duas horas para chegar até lá, andando no escuro, mas de repente parou ao ouvir o ruído de um carro que se aproximava.

Era um Ford caindo aos pedaços, guiado por um rapaz também mal-arrumado. Kerry ficou contente ao ver alguém. Deu um passo à frente e abanou a mão.

- Oi! - disse ele alegremente, baixando o vidro. - Está com problemas?

- Perdi minhas chaves - explicou ela, animada com o interesse do rapaz. - Será que pode me dar uma carona até a cidade?

- Acho que posso fazer mais do que isso - respondeu. - Negócio de carros é comigo. - Desligou o motor do Ford e saiu. Era alto e magro; vestia jeans desbotados e um suéter velho. O cabelo loiro meio comprido soprado pelo vento deixava à mostra um rosto no qual Kerry instintivamente confiou, apesar do olhar de admiração que ele lhe lançou. - Vou ter que quebrar uma janela para poder abrir, você sabe.

- Claro. - Kerry estremeceu com o vento gelado. - Eu mesmo teria feito isso, mas não ia adiantar nada.

O rapaz quebrou o vidro da janela e abriu a porta. Kerry sentou-se depressa, grata por se sentir protegida do vento. Soltou em seguida a trava do capô quando ele pediu.

Ela não conseguiu saber o que ele fez no motor, mas em poucos instantes estava funcionando.

- Deve continuar funcionando - disse ele, fechando o capô. - A não ser que você deixe morrer.

- Não vou deixar - prometeu ela. Olhou para ele, agradecida. - Muito, muito obrigada!

- Não foi nada. - Os olhos dele brilharam, maliciosos. - Mas tome cuidado com você, assim sozinha de noite. Eu podia ser um...

- Mas, afinal, quem é você? - perguntou ela, rindo.

- Meu nome é Graham Bingham. Estudo direito na Universidade de Sheffield.

- Mas está bem longe de lá.

- Vim visitar uns parentes que têm uma fazenda por aqui. - Tirou o braço de cima do carro e continuou: - Vou seguir atrás de você até a estrada principal.

Kerry ficou olhando o rapaz ir até seu carro antes de sair. Tinha sido uma sorte, pois sem a ajuda dele teria que ir a pé até a cidade.

Na encruzilhada, ele pegou a outra estrada e abanou a mão em despedida. Finalmente Kerry chegou a Medfield. Por sorte não havia muito trânsito quando o motor emperrou e morreu de repente.

Não podia saber o que acontecera, mas de repente se lembrou: estava com pouca gasolina quando saíra de casa. Pretendia encher o tanque no primeiro posto, mas, como não passou por nenhum, decidiu fazer isso na volta. Agora era tarde demais, estava mesmo presa ali.

Já eram bem mais de sete horas e os táxis de Medfield dificilmente saíam do centro depois de escurecer. Ela poderia chamar um táxi pelo telefone público, pensou, mas de que adiantaria? O carro teria que ficar ali, e mal estacionado ainda por cima. Isso a deixava com uma única alternativa: teria que telefonar para Ross, pedindo que trouxesse as chaves sobressalentes. Mas se fosse só isso, não era nada. Depois que ele chegasse ela teria que pedir-lhe que fosse buscar um pouco de gasolina também. Já podia imaginar qual seria a reação dele.

Ficou indecisa por mais algum tempo, mas depois resolveu agir, antes que Ross resolvesse sair de casa. Como sempre, alguém chegou antes dela ao telefone e demorou até acabar de falar. Kerry esperou, tremendo de frio. Quando chegou sua vez, viu que não tinha ficha telefônica na bolsa. Isso significava que tinha que fazer a chamada a cobrar.

Ross parecia despreocupado ao ser indagado se pagaria a chamada, mas mudou de tom quando percebeu quem era.

- Com os diabos, onde é que você está?

Kerry rapidamente explicou a situação e esperou um comentário sarcástico. Entretanto, Ross disse apenas que ela esperasse onde estava que ele chegaria dentro de quinze minutos.

Ele chegou no momento em que um grupo de adolescentes começou a ficar interessado demais no carro parado e em sua solitária ocupante, batendo nas janelas e fazendo caretas para ela em meio a risadas e sugestões obscenas. Vendo Ross sair do carro do outro lado da rua, ficaram indecisos, mas só se afastaram quando o viram encaminhar-se em direção a eles.

Kerry tremia ao abrir a porta, mais de raiva do que de qualquer outra coisa.

- Idiotas! - exclamou. - Pensam que são muito espertos!

- É isso mesmo - concordou Ross, colocando as chaves na ignição, com o rosto perto demais para que Kerry se sentisse à vontade. - Tudo bem, agora?

- Não, ainda não - disse ela, baixinho. - Estou sem gasolina. Pelo menos, acho que estou.

Ele resmungou alguma coisa e, ligando a chave, deu uma olhada no ponteiro, endireitando-se depois com um ar resignado.

- Onde é o posto mais perto?

- Fica perto da rua Ilkley. Sabe onde é?

- Posso encontrá-lo. - Parou e perguntou-lhe: - Quer ir comigo?

Kerry fez que não com a cabeça e, olhando fixamente para ele, disse:

- Sinto muito estar incomodando você.

- Está bem! - O desprezo era deliberado. - Volto logo.

Kerry sentiu-se furiosa. Ele levaria uns dez minutos para ir e voltar. Ficou tentada a largar o carro ali e pegar um ônibus para ir para casa. Assim pensou e assim fez, sem se deter em considerações. Saiu do carro, trancou as portas e saiu andando com um ar de desafio. Ross que descobrisse um jeito de trazer os dois carros.

Demorou um pouco mais do que imaginara para chegar ao terminal de ônibus, mas logo depois descobriu que a linha que lhe servia só tinha ônibus de hora em hora aos domingos à noite, e um acabara de sair. Agora não podia mais voltar para o carro. Mesmo que Ross ainda estivesse lá, ela não iria se rebaixar a esse ponto. Sentia-se arrependida do que tinha feito. Tinha sido uma infantilidade, e o fato de saber que Ross também ia pensar assim a deixava mais aborrecida ainda.

Ainda, estava parada ali, sem saber o que fazer, quando viu o Jaguar se aproximando. O som da buzina fez com que todos olhassem. Mordendo o lábio, Kerry começou a andar em direção à saída do terminal, imaginando que Ross teria que dar marcha à ré e fazer a volta. Só que ele não fez isso, claro. Veio rápido pelo caminho dos ônibus e parou ao lado dela.

- Entre - ordenou ele, furioso.

Kerry entrou e recusou-se a olhar para ele, envergonhada pelo que fizera.

- Desculpe-me, fiz uma tolice.

O pedido de desculpas pareceu desconcertá-lo. Olhou para ela como se esperasse uma reação diferente; só depois deu novamente a partida no carro. Ficou em silêncio até chegarem à estrada, onde ficara o carro de Kerry.

- Está com fome? - perguntou.

Kerry esperava tudo, menos isso. Espantada, respondeu a verdade:

- Sim, mas...

- Antigamente havia um bom restaurante deste lado da cidade. Ainda existe?

- Sim - respondeu ela. - Pelo menos se é o mesmo que estou pensando.

- Fica a uns cinco quilômetros daqui, se bem me lembro. Pegaremos seu carro quando voltarmos. - Sorriu. - Assim evitamos preparar uma refeição em casa e teremos tempo para esfriar os ânimos. Precisamos conversar num lugar neutro.

- Como é que descobriu onde eu estava? - perguntou Kerry.

- Adivinhei. Ainda bem que não havia nenhum ônibus no terminal, porque senão eu arrancaria você lá de dentro.

Graças a Deus, pensou ela. Ser arrancada de dentro de um ônibus ia ser muito embaraçoso.

- Não estou vestida apropriadamente para um jantar - atreveu-se a dizer depois de algum tempo. - Pretendia voltar antes das seis.

- Você está bem assim - disse Ross, sem olhar para ela. - Não vai ser nenhum acontecimento social.

Nenhum dos dois falou mais nada até chegarem ao restaurante. Kerry não sabia se ficava alegre ou não ao ver que o restaurante ainda estava aberto. Foi até o banheiro, onde passou batom e uma escova nos cabelos, enquanto Ross pedia os aperitivos. Sentiu-se um pouco mais apresentável, apesar de suas calças estarem meio amassadas. Usava um suéter branco sob o casaco. Essa sensação desapareceu ao ver a elegante loura com quem Ross conversava no bar. Havia também um outro homem, mas aparentemente em segundo plano.

- Ah, você está aí - disse Ross, ao vê-la chegando. - Acho que não conhece Sharon West, não é?

Kerry sentiu-se encolher ao enfrentar o olhar inquiridor que Sharon lhe lançou. A garota usava saia escocesa, blusa branca e botas e fazia com que a roupa de Kerry parecesse mais simples ainda. Sharon era alta, quase tão alta quanto Ross, e tinha um corpo espetacular.

- Então você é a meia-irmã de Ross? - perguntou ela com ar superior. - Não, não nos conhecemos. Acho que você ainda estava na escola quando conheci Ross.

- É isso mesmo - concordou ele. - Faz sete anos. O que aconteceu com sua butique de Londres?

- Descobri que havia menos concorrência aqui mesmo em Medfield - respondeu ela, sorrindo. - Voltei para cá alguns meses depois de você ter ido embora. Você foi meio de repente, não foi?

- É verdade - concordou ele, sem se perturbar. - E agora, onde é que você está?

- Na rua Oeste, onde mais poderia ser? - Sharon deu um sorriso amarelo. - Só que minha loja vai ser demolida dentro de algumas semanas e estou procurando um outro lugar.

- Já encontrou algo que sirva?

- Ainda não. Eu poderia alugar uma das novas lojas que vão ser construídas no lugar da minha, mas ainda vai demorar uns seis meses, e eu não posso esperar tanto.

Kerry sabia o que viria antes mesmo de Ross falar. Estava estampado nos olhos dele.

- O que acharia de alugar um espaço na Sinclairs? Poderia ser um bom negócio para todos nós.

Sharon pareceu interessada.

- Eu já soube que existem planos para modernizar a loja. Não é uma má idéia, Ross. Qual é a área de que você dispõe?

- Vamos mudar a seção de peles para outro lugar, depois da venda especial, e isso deixa um ótimo espaço no primeiro andar. Não sei a área exata, mas podíamos combinar alguma coisa.

- Que venda? - perguntou Kerry, e desejou ter mantido a boca fechada quando os dois se viraram para ela.

- Temos um estoque enorme de peles - respondeu Ross num tom tolerante. Isso fez com que Kerry sentisse vontade de agredi-lo. - Eu disse a você, algumas semanas atrás, antes de ir para os Estados Unidos. Vamos ter menos prejuízos com o estoque velho se o vendermos em liquidação. Daqui para a frente temos que reduzir o estoque. Se considerarmos as campanhas ecológicas, acho que ganharemos mais vendendo peles sintéticas.

- Boa idéia - concordou Sharon. - Quando é que posso dar uma olhada no espaço que está me oferecendo?

- Pode ir amanhã, se quiser. Vá ao meio-dia, assim poderemos conversar durante o almoço.

- Ótimo, então fica marcado. - Virou-se para o homem que a acompanhava e disse: - Acho melhor irmos à tal festa. Só espero que não seja tão chata quanto a última que os Glover ofereceram.

- Bill Glover? - perguntou Ross, interessado.

- Claro. Você conhece o Bill, não é? Ele se casou com a Jean Brompton há três anos. - Fez uma pausa, os olhos brilhando com a idéia que lhe ocorrera. - Por que você não vem também à festa?

- Sem um convite? - perguntou Ross.

- Tenho certeza de que ele mandaria um convite se soubesse que você está na cidade. Ele é sempre o último a saber das coisas. - Deu uma olhada para Kerry. - Os dois, é claro.

- Obrigada - disse Kerry, mantendo-se calma com esforço. - Não estou arrumada para ir a festas.

- Ora, ninguém vai reparar. O pessoal não se incomoda. Eu mesma nem me incomodei em me arrumar...

Ross riu.

- Só jogou uns trapos sobre o corpo, não é mesmo? A mesma Sharon de sempre! - Sacudiu a cabeça, meio triste. - Hoje não vai dar. Logo faremos uma reunião em Underwood com toda a velha turma. Você poderia me ajudar a lembrar dos nomes.

- Ótimo. Vejo você amanhã, então.

Kerry ficou chateada e engoliu metade do aperitivo que Ross havia pedido para ela de uma só vez.

- Acho que você está abusando um pouco - disse em voz baixa, sem levantar o rosto para ele. - Será que podia não anunciar planos, que eu nem sei que existem, na frente de outras pessoas?

- Desculpe-me, é que saiu sem querer, no meio da conversa.

- Bem mais que conversa. Você ofereceu a ela espaço para alugar.

- Acontece que ela é uma velha amiga e também comerciante.

- Mas você não sabe nada dos negócios dela.

- Claro que vou descobrir antes de fechar negócio - disse ele, impaciente. - Deixe a discussão para depois, sim, Kerry? Agora não estou com disposição para isso.

Ela ficou imaginando qual seria a disposição dele. Será que o fato de ter visto Sharon lhe trouxera lembranças agradáveis? Ela era bonita e muito bem conservada.

A refeição foi deliciosa, mas Kerry não aproveitou muito.

- Perdi a fome - disse ela como desculpa quando Ross comentou que ela estava sem apetite. - Andei muito esta tarde e estou cansada. Será que podemos ir embora?

- Ainda não. - Ele estava inclinado para a frente, as mãos segurando um copo de conhaque, os olhos distantes. Havia apenas mais um casal no restaurante. - Eu disse que precisávamos de um lugar neutro, e acho que este é o ideal. - Fez uma pausa, mudando o tom de voz. - Nós precisamos conversar, Kerry.

- Sobre o quê?

- Você sabe muito bem!

- Se é para se desculpar pelo modo como me tratou na noite passada, suas desculpas já estão aceitas. - Fez um esforço enorme para conseguir dizer tudo isso.

- Não estou pedindo desculpas por nada. Tudo o que fiz você mereceu.

- Inclusive o fato de você ter mentido para mim?

- Não menti para você.

- A omissão equivale a uma mentira, nesse caso. Você não iria me contar se eu não descobrisse tudo.

- Não contaria mesmo. A confissão às vezes não é o melhor recurso. Você ficaria mais feliz se não soubesse.

- Até que você deixasse escapar, não é? Será que está querendo me dizer que você se satisfaz com uma única mulher?

- Eu não estava querendo uma mulher - respondeu ele, impaciente. - Precisava apenas da companhia de uma garota! O caso Margot já estava acabado antes de eu vir para cá. Não posso alterar o passado.

- Você não precisaria viver com ela.

Ross sorriu.

- Você então não se incomodaria se eu dormisse com ela, contanto que ela não passasse a noite comigo, é isso?

- Você sabe o que estou querendo dizer.

- Claro, sei o que está querendo dizer. Margot sabia das condições. Era um arranjo temporário, até que ela conseguisse um outro apartamento, depois que teve que entregar o dela. Verifiquei se ela tinha para onde ir, antes de mandá-la embora.

- Já que você vinha embora, ela poderia ter ficado com o seu apartamento.

- Ela não poderia pagá-lo. Não ganha tanto assim.

Kerry ficou quieta por um momento, tentando pôr em ordem suas emoções. Por fim, disse baixinho:

- Acho que isso na verdade não vem ao caso, Ross. Eu nunca confiei em você.

- Talvez você tenha razão. Mas não volto atrás no que disse ontem à noite. A Sinclairs vai continuar nas mãos da família.

- Duvido que você cumpra suas ameaças. O que seus amigos iriam pensar? Sharon, por exemplo?

- Na verdade, eu não me importo com o que pessoas como Sharon possam pensar. É essa a diferença entre nós. Você odiaria os mexericos, odiaria ser olhada de esguelha.

- Sim, odiaria mesmo - admitiu ela e endureceu a voz. - Mas preferia enfrentar tudo isso a entregar a você o que está querendo.

- Apenas porque ainda não acredita que eu seja capaz de fazer o que disse. Espero que eu não precise convencê-la. - Levantou-se. - Vou pagar a conta. Espere-me no carro.

O carro de Kerry estava no lugar onde eles o haviam deixado. ROSS colocou no tanque a gasolina que tinha ido buscar.

- É melhor você encher o tanque antes de voltar para casa. Sigo você. Tem dinheiro suficiente?

Kerry assentiu com a cabeça. Entrou no carro e deu a partida, percebendo que seria inútil dizer a Ross que não precisava segui-la. Ele faria apenas o que desejava, mas estava certo ao admitir que ela não acreditava que Ross cumprisse a promessa. Afinal, o que ele ganharia com isso?

Capítulo VI

Ross sugeriu que fossem com os dois carros para a cidade no dia seguinte, dando a impressão de que tinha planos para a noite, e que não voltaria para casa.

- Chamei o pessoal para uma reunião às onze horas - disse ele ao chegarem. - Temos que resolver as coisas de uma vez. Se James e John votarem comigo, começaremos de qualquer jeito.

- Eles não vão aceitar - afirmou Kerry com mais segurança do que sentia. - E mesmo que eles façam isso, você não pode simplesmente ignorar o meu voto.

- Acho que posso. Seriam sessenta por cento contra apenas quarenta. Não há nada no regulamento contra isso.

- Talvez no seu regulamento.

Ross segurou a porta do elevador quando parou no último andar e olhou para ela por um instante.

- Seja racional. Alguns dias atrás você praticamente concordou com os meus planos para a loja.

- Não - respondeu ela, seca. - Você presumiu isso naquele dia. Eu li seu relatório à noite quando cheguei em casa, e ainda não concordo com tudo. As mudanças que você quer fazer são radicais demais.

- Você está falando de um ponto de vista puramente emocional.

- Coisa que você nem sabe o que é.

- Neste caso é verdade. O negócio tem que começar a dar lucro, Kerry.

- E dá.

- Não, apenas paga as despesas. Precisa dar um lucro líquido de trinta por cento no próximo ano.

- Só na teoria.

- Na prática. - Estava impaciente. - Você está fazendo isso apenas para me provocar, e ambos sabemos disso.

- Não seja convencido - retrucou ela. - Estou fazendo isso pelo seu pai, porque era assim que ele pretendia que fosse. Não vou pular fora, Ross. Nem por você nem por ninguém.

- Ele deixou mesmo sua marca em você, não é? Eu escapei, mas ele a marcou em meu lugar. - Fez uma pausa e olhou para ela. Kerry sentiu o coração bater mais rápido. - Kerry, você não deve nada a ele. Deu a ele seis anos inteiros de sua vida, desde que fui embora. Comece a viver sua própria vida, comece a ter suas próprias idéias. Você sabe que o que eu disse naquele relatório é a verdade.

Desesperada, Kerry sacudia a cabeça.

- Não! - insistiu.

- Você está tornando as coisas difíceis - disse ele, perdendo a paciência. - Depois não diga que eu não avisei.

Abriu a porta e saiu andando pelo corredor, sem olhar para trás. Kerry sentia-se arrasada, mas convencida. Nada ia fazer com que mudasse de idéia. Nada!

Surpreendentemente, foi John Barratt quem mais tarde lhe deu uma mão. Via de regra costumava apoiar o irmão, quando tinham que tomar alguma decisão, mas nesse dia sentiu necessidade de externar seu ponto de vista.

- Li seu relatório com todo o cuidado - disse ele para Ross. - E, apesar de concordar com seus argumentos, não tenho certeza de que a loja que você planeja esteja à altura de uma cidade como Medfield. James não concorda inteiramente comigo, por isso chegamos a um acordo. Se tanto você quanto Kerry, que são os sócios majoritários, quiserem tocar as reformas para a frente, nós dois concordaremos.

Kerry assustou-se ao ouvir o lápis de Ross partindo-se em dois. Ele deu uma olhada nos dois pedaços, depois sacudiu os ombros e atirou os restos no cesto de lixo.

- Estamos num impasse - disse. - Kerry também prefere viver no passado.

- Não é um caso de viver no passado - protestou John. - Temos sempre conseguido nos sair muito bem. Para que arriscar?

- Mas isso não vai continuar para sempre. As pessoas mudam. As necessidades mudam. A geração que mantém a loja está morrendo, e os jovens não virão para cá, se não houver novos estímulos.

- Será que não podemos criar esses estímulos sem descaracterizar a loja?

- Não, se quisermos que os lucros subam. Meias medidas não adiantam. O projeto tem que ser encarado como um todo.

- Você nunca experimentou o meio-termo antes - interveio Kerry. - Como pode saber que não vai dar certo?

- Porque não é nem uma coisa nem outra. Acho que vocês não entenderam o sentido do serviço automático. O vendedor estará por perto no caso do freguês precisar de alguma coisa, mas a escolha da mercadoria será feita pelo próprio freguês, em estandes abertos, e o pagamento numa caixa central.

- Já comprei em lojas assim - disse Kerry antes que qualquer um deles falasse. - Nove entre dez vezes é praticamente impossível encontrar um vendedor quando se precisa, e os furtos devem ser enormes!

- Circuitos fechados de televisão controlariam isso.

- A um custo astronômico.

- Podemos obter um financiamento para as reformas.

- Se conseguirmos.

- Já consegui. - Sua voz não se alterava. - Já tratei disso antes de ir embora. Ainda bem que há banqueiros de visão!

- E não são só eles que pensam adiantado, pelo jeito. - Os olhos verdes de Kerry brilhavam. - Parece que você adiantou bem seus planos!

- Pelo visto, não o bastante. Parece-me que não considerei certas influências externas...

James pigarreou, lembrando-os de que havia mais gente presente.

- Não sei o que está havendo entre vocês dois - disse ele, seco. - Espero que isso não interfira em outros assuntos. Andrew não tinha o direito de deixar as coisas desse jeito.

- Quer dizer, nas mãos de uma mulher, não é? - perguntou Kerry com sarcasmo. - Você três são bem parecidos!

James olhou zangado para ela antes de responder:

- Você ainda não é uma mulher. Não passa de uma garota, e insolente ainda por cima. Ross devia dar-lhe uns tapas!

Kerry ficou vermelha, ao sentir o olhar irônico de Ross sobre ela.

- Já pensei nisso - disse ele. - Mas não acho que seja a solução.

- Então qual é, homem? Não podemos ficar aqui discutindo o dia todo.

Houve uma pausa e Ross ergueu os ombros.

- Acho que vou ter que me conformar com o meio-termo que vocês desejam. Sem serviço automático. Mas vou poder resolver o resto do modo que quero?

- Quanto a nós dois, tudo bem.

Kerry olhou para John e mordeu o lábio.

- Desculpem a explosão - disse ela.

- Recuperou suas boas maneiras? Isso, porém, não altera o que eu disse. Andrew não devia ter agido assim.

- Vamos deixar meu pai fora disso, está bem? - disse Ross com tal autoridade que ninguém se atreveu a contestar. - Kerry, você também concorda?

- Contanto que você cumpra sua palavra.

- Sem dúvida, você vai ficar fiscalizando... - Olhou para o relógio e empurrou a cadeira. - Temos que interromper por agora. Tenho um compromisso dentro de dez minutos.

- E outro depois desse. Julguei que não misturasse negócios com divertimento - observou Kerry.

- É verdade, não faço isso. Meus encontros são de negócio. Mais tarde vou para Leeds ver umas pessoas. Talvez passe a noite lá e volte só amanhã cedo. - Para os primos, acrescentou: - Acho que não haverá necessidade de novas reuniões, a não ser daqui a alguns meses, se aparecer alguma coisa. Até então, espero poder mostrar algum progresso.

Kerry recusou-se a olhar na direção de James quando estavam saindo, pois percebeu seu ar de satisfação. Quando é que aprenderia a não discutir com Ross? Ele a derrotava sempre... Ficou pensando se sua ida para Leeds era mesmo a negócios ou por prazer. Talvez fosse ver algum velho amigo. Pena que não ficasse lá de uma vez.

De repente percebeu que não era nada disso. Ter Ross por perto era ruim, mas ficar sem ele era muito pior. Se se casasse com ele, pelo menos poderia ficar a seu lado. Mas será que era verdade? Agora ela sabia que o atraía fisicamente, mas, uma vez saciado o apetite, provavelmente ele se cansaria dela, como acontecera com Margot.

Acabou se esquecendo do encontro com Larry, até que ele lhe telefonou, na terça à tarde. Quase disse que não poderia ir, mas lutou contra isso. Se começasse a ficar com medo das ameaças de Ross, ia acabar numa situação insuportável. Gostava de Larry e precisava se distrair.

- Pego você às sete e meia. A mesa está reservada para as oito e meia, por isso teremos tempo para os aperitivos. - Fez uma pausa, e sua voz ficou mais terna: - Senti falta de você, Kerry.

- Eu também - disse ela, e era verdade. Com Larry ela podia ficar à vontade e esquecer os problemas. Levantou os olhos ao ver Ross entrando, encarou-o e confirmou com ênfase ao telefone: - Sete e meia, então. Até logo, Larry.

Ross atravessou a sala e deixou uma carta sobre a mesa de Kate Antony. Em seguida, perguntou:

- Vai a algum lugar?

- Sim, vou jantar fora. Você vai ter que preparar seu jantar ou então sair também.

- Vou ver o que resolvo.

Kerry olhou para ele, espantada. Perguntou, então, com ironia:

- Não vai fazer ameaças? Contar a Larry algo de terrível sobre nós dois?

Ele sacudiu os ombros, bem-humorado.

- Uma andorinha só não faz verão. Se eu achasse que havia chance de você se apaixonar por ele, então seria diferente.

- Como você pode ter tanta certeza?

Ele a encarou calmamente, com os braços apoiados sobre a mesa.

- O fato é que você já está apaixonada por outro homem...

Kerry sentiu uma onda de calor invadir seu corpo.

- Você não é nada modesto! - exclamou, meio sem jeito, enquanto Ross sorria.

- Não mencionei meu nome...

- Mas isso me pareceu óbvio.

- É claro, você iria negar. Você prefere pensar que me odeia só porque condena meu passado. Por acaso já lhe ocorreu que eu talvez não conseguisse excitá-la se eu não tivesse alguma experiência?

Kerry ficou em silêncio por longo tempo.

- Você não tem mesmo idéia do que seja o amor, não é mesmo? - disse por fim, com voz trêmula. - Você pensa que é apenas sexo.

- Mas é verdade - argumentou Ross. - Você não ia me querer se eu não pudesse fazer amor com você, por isso não tente se convencer de que minha mente é a coisa mais importante para você...

- Mas suas atitudes são. Não posso dizer emoções, porque isso você desconhece!

- Você sabe que está errada. Além do mais, tenho a maior vontade de lhe dar uma surra e qualquer dia vou fazer isso, haja o que houver.

- E por que razão?

- Por qualquer coisa que eu queira e que você tente impedir. - Fez uma pausa e acrescentou: - Por isso, da próxima vez que eu assobiar, quero que venha correndo. Isso vai evitar uma enorme perda de tempo...

- Vá para o inferno!

- Se eu for, levarei você comigo. Comporte-se esta noite e eu talvez permita que você continue se encontrando com o seu Larry.

A entrada de Kate Antony livrou-a de uma resposta à altura. Ross acenou sorrindo para a recém-chegada e saiu, mas o ambiente continuou pesado. Percebeu que Kate havia notado qualquer coisa no ar, mas era discreta demais para perguntar. Kerry desejou poder confiar nela, pedir seu conselho. Mas que conselho alguém poderia lhe dar?

Ross ainda não havia chegado em casa quando Larry veio buscá-la. Kerry pensou que não se importaria com a saída de Ross, mas no fundo sabia que não era verdade. Apesar das negativas dele, desconfiava que tivesse ido se encontrar com Sharon. Ligações antigas às vezes se reacendem.

Fez um esforço para se interessar em Larry e isso o sensibilizou.

- Interessante como as pessoas ficam diferentes quando você as conhece melhor - comentou ele. - Até há poucas semanas você parecia meio distante, meio arredia.

- E agora estou sendo exagerada!

- Não, você é uma ótima companhia. Você não acha que temos muita coisa em comum?

- De fato, não posso negar. Um dos nossos interesses comuns é o teatro.

- O que eu quis dizer é bem mais do que isso. Gostamos do mesmo tipo de coisas, de lugares, como este, por exemplo. Nem todas as pessoas gostam.

- Você quer dizer que Caroline não gostava - afirmou Kerry.

- Caroline preferia uma discoteca do que jantar fora. Quase não tínhamos diálogo.

- Mas era companhia agradável?

- Sim. - Estava claro que ele não queria falar sobre as antigas namoradas. - E os planos para a Sinclairs, como estão?

Algo esfriou dentro dela.

- Pergunte a Ross; ele é quem sabe dessas coisas.

- Mas você sabe o que ele anda fazendo, não é?

- Eu sei o que ele não anda fazendo - disse ela, num impulso. Ao notar a reação de Larry, acrescentou: - Ele quer reformar a loja segundo os padrões americanos; enfim, descaracterizá-la.

- Visando lucros mais altos, imagino.

- É esse seu argumento.

- Com a experiência que ele tem no ramo, deve saber o que está fazendo.

- Eu devia saber que você ia ficar do lado dele.

- Não é questão de ficar do lado dele. Os negócios têm que evoluir com o tempo para não ficarem estagnados. As despesas da Sinclairs devem ser astronômicas em comparação com os lucros. A modernização possibilitaria um equilíbrio econômico.

- Não era isso que Andrew queria.

- Seu padrasto já morreu - lembrou-lhe Larry. - Você não pode viver a vida dele, Kerry.

- Em outras palavras, você acha que eu devo deixar que Ross faça exatamente como quer.

Ele hesitou, olhando incerto para ela.

- Até certo ponto - disse ele e sorriu. - Mas vamos deixar os negócios de lado. Estou pensando em montar uma peça mais moderna da próxima vez, por isso estou pedindo a todos que venham à reunião e tragam sugestões.

Ainda um pouco tensa, Kerry aderiu à conversa sobre teatro.

Estavam de volta a Underwood antes das onze e meia. Ao ver a luz da entrada acesa, Kerry relutou em ficar sozinha com Ross. Larry aceitou rápido seu convite para tomar um café antes de ir para casa.

Ross estava na sala de visitas e cumprimentou os dois sem surpresa.

- Também acabei de chegar - disse ele, sem maiores explicações. - Está bem frio lá fora, não?

Kerry largou os dois conversando e foi até a cozinha preparar o café. Quando voltou, eles estavam falando sobre a Construtora Hall, e Ross se mostrava muito interessado.

- Então você é o sucessor de seu tio quando ele se aposentar? - perguntou Ross ao pegar a bandeja das mãos de Kerry. - Que idade ele tem?

- Sessenta e quatro - respondeu Larry, com um sorriso forçado. - Não que eu ache que ele vá se aposentar. Ele é do tipo que só sai morto. - Caiu em si sobre o que dissera e ficou meio sem jeito. - Desculpe, esqueci que você perdeu seu pai há pouco tempo.

- Tudo bem. - O rosto de Ross não se alterara. - Você poderia citá-lo como um exemplo para o seu tio. Se meu pai tivesse se aposentado aos sessenta e cinco, talvez ainda estivesse vivo.

Poderia, pensou Kerry, se o filho estivesse disposto a ajudá-lo. Contentou-se em apenas sorrir, mas quando Ross estendeu a mão para pegar a xícara de café, viu que ele havia entendido.

- Sábado? - perguntou Larry quando ela o acompanhou até a porta. - Podíamos ir até Leeds. Abraçou-a e beijou-a carinhosamente, sem perceber que ela não correspondia totalmente. - Daqui para a frente, pretendo vê-la com freqüência, Kerry.

Ross estava parado no mesmo lugar, em frente à lareira. Kerry não olhou para ele ao começar a juntar a louça do café.

- Parece que foi bem beijada - comentou ele. - Gostou?

- Gostei, gostei muito. Larry não força as coisas quando não é correspondido.

- E nem eu. Mas não pretendo provar isso hoje à noite, portanto pode ficar sossegada.

- Está com medo de não ser igual a ele?

- Não adianta querer me forçar - respondeu, sem mudar de expressão. - E também não adianta trazer seu namorado aqui para exibi-lo. Ele pode estar muito envolvido, mas duvido que você esteja.

- Porque já estou apaixonada por você?

- Você pode dar o nome que quiser. A diferença é que eu poderia levar você agora para a cama e fazer com que correspondesse aos meus desejos em poucos minutos, coisa que eu duvido que seu amigo Larry conseguisse.

Kerry controlou-se e respondeu:

- Fisicamente talvez você conseguisse, pois tem muita prática, mas mesmo assim não conseguiria o que quer.

- Eu sei. E é por isso que não faço nada.

Kerry encarou-o. Odiava-o, amava-o, desejava-o, tudo isso ao mesmo tempo. Por fim disse, com voz rouca:

- Se algum dia Larry me pedir em casamento, vou aceitar, e nada vai me impedir.

- Vamos ver, vamos ver... Por ora vou para a cama. Deixe que eu levo a bandeja.

- Obrigada, pode deixar.

- Está bem, leve. Não vou discutir com você por causa de uma bandeja. - Parecia indiferente. - Boa noite.

Ela nem respondeu. Sentia-se arrasada.

A neve chegou cedo naquele inverno.

Por causa do movimento de antes do Natal, muitas das mudanças da Sinclairs tiveram que ser adiadas até depois do Ano-Novo, mas algumas puderam ser feitas. A venda especial de peles foi muito ajudada pelo tempo frio, e o departamento ficou livre de grande parte do estoque antigo, despertando o interesse dos fregueses pelos produtos sintéticos, muito mais baratos. Depois disso o departamento foi transferido para outro lugar, abrindo espaço para a instalação da butique West.

Relutante como estava em admitir novas idéias, Kerry teve que reconhecer que nunca a Sinclairs vira tanta gente jovem como depois da inauguração da butique. A nova lanchonete fez sucesso desde o primeiro dia, fazendo com que aparecesse um sorriso no rosto geralmente azedo do contador ao informar o lucro do primeiro mês.

Até então as mudanças haviam sido lentas e não chamavam muito a atenção, mas Kerry sabia que depois do Ano-Novo as coisas seriam diferentes. As vendas de janeiro ajudariam a liquidar os estoques antigos, abrindo assim espaço para mercadorias mais lucrativas. Ao mesmo tempo, todo o sistema de controle estava previsto para, na ocasião apropriada, ser modificado.

Ao contrário do que Kerry imaginara, a maioria dos funcionários parecia satisfeita. Apenas os mais velhos continuavam renitentes, horrorizando-se com as mudanças. Kerry sabia que também estava sendo acusada por concordar com Ross, mas não podia fazer nada para modificar essa impressão.

Não havia sido muito difícil conviver com Ross nas últimas semanas, porque ela raramente o via. Ele saía a maioria das noites e, quando ficava em casa, geralmente se trancava sozinho no escritório. Kerry procurava se fazer de indiferente, mas sabia que estava mentindo. Experimentava uma sensação de perda, desde o momento em que Ross deixara de persegui-la. Uma ou duas vezes chegou a desejar ter ignorado o maldito telefonema e se casado com ele assim mesmo, mas no fundo não estava convencida de que pudesse dar certo.

Se quisesse, poderia fazer com que Ross se interessasse por ela novamente, mas não era essa a solução. Larry era um consolo, pois seu interesse por ela era cada vez maior. Isso ficava evidente quando ele a beijava. Controlava-se e chegava a brincar com ela por corresponder demais.

- Já é difícil eu me controlar, sem ser tentado desse jeito. Kerry, você é linda e sensual, e eu bem que gostaria de fazer amor com você, mas sei que você não assumiria uma relação desse tipo.

Sensual!, pensou Kerry, depois que ele foi embora. Não era assim antes de Ross voltar. Pelo menos não sabia que era. Não estivera beijando Larry naquela noite, e sim Ross. Agora mesmo, deitada ali em sua cama, seu corpo ansiava por ele. Ross estava logo ali, no quarto pegado; tudo o que tinha a fazer era ir ter com ele. Mesmo assim, sabia que não podia.

O baile anual dos funcionários era realizado geralmente no restaurante, no fim de novembro. Como esse ano isso não era possível em virtude da instalação da lanchonete, Ross alugou o Centro Cívico para a ocasião. Uma das salas serviria de discoteca para os mais jovens. Uma comissão eleita entre os funcionários se encarregou de todos os outros detalhes, desde a escolha do cardápio até a dos músicos. Segundo Ross, a idéia não podia ser melhor, pois, se alguma coisa desse errado, a culpa seria da comissão, e não da diretoria.

- Deve estar custando o dobro dos outros anos - comentou Kerry com Arthur Fielding, o contador, e, por sua reação, viu que estava certa

Ross não se incomodou.

- Isso só acontece uma vez por ano, e vamos exigir muito de todos eles nos próximos meses.

- Pagamento adiantado? - perguntou ela. - Acha que isso funciona?

- Você acha que estou pretendendo suborná-los? - respondeu ele no mesmo tom. - Acho que uma noite de gala nunca pode ser encarada assim. Faça como os outros: relaxe e aproveite.

Kerry disse então, sem pensar:

- Nem sei se vou...

Ross olhou para ela por um instante antes de responder:

- Você vai, sim. Todos nós vamos. Não é isso, Arthur?

- Bem... sim - disse o contador, meio desanimado com a idéia. - Se acha que é necessário.

- Acho - respondeu, pondo fim à discussão. - A comissão decidiu que mesas redondas para doze pessoas seriam mais práticas. Você e sua esposa ficarão na mesa principal, claro. Assim vai ser melhor. Talvez demore um pouco mais para o pessoal limpar o salão para o baile, depois do jantar, mas todos poderão ir para a discoteca e para o bar enquanto esperam.

Kerry controlou o riso quando o contador passou por ela. Era muito engraçado imaginar o azedo Arthur Fielding e sua esposa dançando numa discoteca. Percebeu então que Ross olhava para ela de modo estranho.

- É a primeira vez que você sorri aqui nestes últimos quinze dias - comentou.

- Talvez seja porque pela primeira vez nesse tempo todo achei graça em alguma coisa - retrucou ela. - Não precisa mais de mim, não é? - perguntou, já a caminho da porta.

- Uma última coisa: você vai ficar ao meu lado no banquete, por isso, se quiser convidar Larry, ele vai ter que se sentar em algum outro lugar.

Kerry controlou-se ao ver que ele esperava que ela reagisse.

- Duvido que Larry queira ir. Ele já acha isso muito quando se trata de seus próprios funcionários...

- Se pensa assim, devia tomar providências para melhorar as festas da firma dele.

Ela explodiu imediatamente:

- Só porque você não gosta dele...

- Eu nunca disse que não gostava dele. Pensando bem, ele até que é um bom sujeito. Mas, dependendo das circunstâncias... - Interrompeu-se e depois continuou: - Você tem estado muito com ele, não é? - Era quase uma afirmativa.

- E o que tem isso?

Ele sorriu de modo encantador.

- É apenas um comentário. Acho que está na hora de darmos aquela festa que propus a você. Podemos marcá-la para o primeiro fim de semana de dezembro. Dá tempo para você convidar todas as pessoas que deseja?

- Acho que não há problema. - Olhou para ele, meio intrigada. - Você acha que a ocasião é apropriada?

- Que ocasião?

- Você sabe o que quero dizer.

- Não, não sei. Então está marcado. E não se preocupe com nada. Vou contratar uma firma especializada.

De volta ao seu escritório, Kerry começou a pensar nas pessoas que Ross convidaria. Sharon West, com certeza. Os dois eram muito discretos, mas Kerry tinha a certeza de que Sharon era o motivo de Ross ficar tão pouco tempo em casa. Ela sabia que Sharon tinha um apartamento no outro lado da cidade e, por diversas vezes, ficou tentada a perguntar a Ross por que ele não mudava de uma vez para lá.

No fim, viu que estava errada. Não conhecia Sharon o bastante para poder julgar seu comportamento.

Naquela noite houve ensaio e, quando Kerry mencionou a festa, todo mundo ficou excitado.

- Estava imaginando quando é que eu iria encontrar novamente seu irmão - disse Jill Willet, que se interessara por Ross logo que ele voltou. - Ele não é de sair muito, não é?

- Não - respondeu Kerry, meio seca, e acrescentou: - Ele é filho do meu padrasto.

- Não muda nada, a não ser que você esteja interessada nele...

- Não seja ridícula! Ela estava apenas explicando! - exclamou Larry.

- Ótimo! Então estou com o campo livre.

Kerry podia tê-la informado melhor sobre Ross, mas não fez isso. Jill logo descobriria que Ross é quem escolhia; com ele não havia campo livre.

Caroline Wyatt foi a única que recusou o convite, demonstrando uma clara antipatia por Kerry ao perguntar:

- E vocês dois, quando é que vão comemorar alguma coisa?

- Mais cedo do que você pensa - respondeu Larry, antes que Kerry o fizesse. - Já está na hora de irmos embora.

Uma vez mais Larry convidou alguns deles para um drinque em seu apartamento, e levou algum tempo para que Kerry pudesse falar com ele a sós.

- Não devia ter dito aquilo para Caroline - protestou ela. - Vai pensar que é sério.

- E se for? - Sorria, mas os olhos azuis estavam sérios. - Kerry, meu tio quer conhecer você. Quer ir jantar lá em casa na próxima sexta-feira?

Kerry tentou brincar, embora se sentisse confusa.

- Vou ser julgada?

- Acho que sim - respondeu, rindo. - Ele não confia no meu julgamento em relação às mulheres. Mas vai adorar você, pode ter certeza.

E se ele não gostasse? Será que isso iria afetar os sentimentos de Larry?

- Apanho você às sete. E não se preocupe com ele.

Mais tarde, ao acompanhá-la até o carro, ele repetiu o convite, acrescentando:

- Vai haver mais gente. O vereador Perry, sua esposa e outras pessoas.

- E todos da geração do seu tio?

- Bem, acho que sim. - Olhou para ela, incerto. - Por quê? Isso é importante?

- Não, claro que não. Não vou desapontá-lo, Larry.

- Sei disso. - Beijou-a e afastou-se dela com relutância. - Boa noite, querida.

Kerry voltou para casa com a mente perturbada. Que esse convite para sexta-feira era importante, ela não tinha dúvidas. Larry devia ter informado ao tio que estava seriamente interessado em alguém. Não podia culpá-lo por querer saber com que tipo de garota seu sobrinho pensava casar. Além do mais, o fato de gostar de Larry assegurava-lhe um casamento com todas as possibilidades de dar certo, ao contrário de Ross, por quem só sentia atração física.

Capítulo VII

O Jaguar já estava na garagem quando ela chegou em casa. Estacionou seu carro ao lado dele, fechou as portas e ficou por um momento parada, olhando para a casa e balançando as chaves na mão. Como a frente da casa estava às escuras, provavelmente Ross estava na saleta dos fundos ou em seu próprio quarto. Não teria que falar com ele, mas ainda assim hesitava. Tinha que pensar também sobre Underwood, caso decidisse casar com Larry. Duvidava que ele aceitasse morar ali, apesar de ser suficientemente grande. Por outro lado, ele ainda nem a pedira, e talvez nem chegasse a fazê-lo, se o tio não a aprovasse. Não adiantava colocar o carro na frente dos bois.

A porta do quarto estava fechada quando ela passou, mas havia luz. Kerry entrou no seu, fechou a porta e colocou mais uma barreira entre os dois, desejando poder bloquear do mesmo modo suas emoções.

Ficou bastante tempo no banho, aproveitando para descansar. Por fim saiu e enrolou-se numa toalha. Estacou na porta ao ver Ross sentado na cama dela, usando pijamas tipo quimono e deixando à mostra seu peito cabeludo.

- Pensei que fosse ficar no banheiro a noite toda - disse ele. - Cinco minutos mais e eu iria arrancá-la de lá.

Kerry percebeu que seu coração batia acelerado.

- A única coisa que vai ser arrancada é você de cima da minha cama!

- Não antes que a gente esclareça alguns assuntos importantes.

- Quais?

- Você sabe. - Seu olhar percorreu-lhe o corpo, os lábios se abrindo num sorriso ao perceber que ela corava. - Desejo você e estou cansado de esperar. Tire isso aí e venha para a cama. Poderemos resolver o resto de manhã.

Ela nem se mexeu, agarrando a toalha que escorregava, sem saber o que fazer.

- Você me deseja! E é só isso que conta?

- Não, mas no momento é a preocupação principal.

- Mais do que a Sinclairs? - retrucou ela com sarcasmo.

- As prioridades são diferentes segundo a ocasião. Esse seu orgulho não vai desaparecer apenas com palavras, por isso resolvi recorrer à ação. Depois de fazermos amor, você provavelmente me escutará melhor.

- Não há nada que você queira dizer e que eu queira ouvir!

- Vou correr o risco. - Fez uma pausa. - Você vai vir ou tenho que ir buscá-la?

Ele estava falando sério! Num movimento rápido, Kerry saiu do quarto, fechando a porta do banheiro no rosto dele. Com os dedos trêmulos passou a chave. Ficaria ali pelo resto da noite se fosse preciso.

Não ouviu nada até que o trinco se abaixou e ele meteu os ombros na porta, fazendo-a abrir.

- Ross, pare com isso! - implorou Kerry. - A brincadeira já passou da conta!

- Já passou da conta há muito tempo - retrucou ele. - Papai queria que partilhássemos tudo, não é verdade?

- Não desse modo.

- Bem, você não quer se casar comigo, então tem que ser assim. - Veio vindo para perto dela com um olhar que Kerry conhecia muito bem. Ela largou a toalha para se defender e sentiu que ela escorregava até a cintura, ficando presa ali pelo nó que havia dado.

Então ele a beijou e tudo começou a ficar embaçado. Aquele cheiro de homem penetrava em suas narinas e ela sentia nos seios os pêlos do peito dele. Sem querer aproximar-se mais, ele a manteve a distância, dizendo:

- Devagar, querida, calma.

Ainda havia resistência dentro dela, mas não o bastante para fazer com que seu corpo a obedecesse. Soltou um gemido quando ele acariciou um de seus seios.

- São perfeitos - disse ele, baixinho. - Certos para minha mão. - Olhou para ela. - Não vai mais lutar contra mim, não é, Kerry? Você deseja isto tanto quanto eu, não é verdade?

- Sim. - Era pouco mais que um sussurro. Sentiu que a outra mão dele descia para o nó da toalha e deixou escapar um pequeno protesto. - Não, Ross, por favor!

- Está bem - disse ele. - Tiro depois. Posso até apagar a luz, se você preferir.

- Sinto muito - murmurou ela, envergonhada. - Não consigo...

- Vai aprender. Vou ensiná-la a ter orgulho de seu corpo, a não se sentir inibida ao mostrá-lo para mim. Você é linda, Kerry, uma moça maravilhosa e sensual, sem nada para se envergonhar. E quero que me conheça. - Beijou-a novamente. - Vamos para a cama...

O toque estridente do telefone do quarto interrompeu-o, e ambos se assustaram. Para Kerry foi como uma ducha fria.

- Diabo! - exclamou Ross. - Quem será a esta hora? - Largou-a, relutante, ao ver que o telefone continuava a tocar. Levantou-se e atendeu.

- Alô!

Vagarosamente Kerry cobriu-se com a toalha e deu um nó bem apertado. Percebeu que Ross olhava para ela, mas não conseguiu erguer a cabeça e encará-lo.

- Sei... E vocês não podem resolver? - disse. Uma pausa, e quando falou novamente foi num tom resignado: - Está bem. Chego aí em vinte minutos.

- Houve uma tentativa de arrombamento na loja - informou-a. - A polícia entrou em contato com o Arnold Gregson, mas querem que eu também vá. - Foi até a porta, encostando-se no batente, e disse: - Olhe para mim, Kerry. - Ao ver que ela não atendia seu pedido, aproximou-se, segurou-lhe o queixo e ergueu sua cabeça. - Sinto muito, Kerry. Não foi assim que eu tinha planejado...

- Você vai chegar tarde - disse ela. - Não é melhor você se vestir?

- Acho melhor. Tente estar acordada quando eu voltar, sim?

Dormir? Aquilo era até engraçado...

- Vou tentar... - respondeu.

- Ótimo! - Deu-lhe um sorriso. - Não pretendo demorar muito. Não consigo imaginar por que eles precisam de mim. Gregson podia resolver tudo...

Kerry sentia-se aliviada. Sem aquele telefonema, estaria perdida. Não que ficasse arrependida de fazer amor com ele, pois no fundo era o que queria, mas não daquele jeito...

Ele não voltou ao seu quarto antes de sair e Kerry ficou sem saber se foi por respeito à sua sensibilidade ou apenas por falta de tempo. Ouviu o ruído do carro desaparecer e só então conseguiu relaxar. Mas não seria por muito tempo, pensou, ele logo estaria de volta. Antes disso precisava descobrir uma maneira de mantê-lo a distância. Não tinha ilusões quanto ao poder de persuasão de Ross.

Ele demorou quase duas horas. Deitada, escutou o carro chegar. Depois ouviu-o entrar e subir as escadas, cada passada ecoando em se coração. Com a cabeça afundada no travesseiro, fingia dormir quando Ross entrou no quarto, rezando para que ele não desconfiasse.

- Kerry! - ele chamou baixinho, sem acender a luz. Como não houve resposta, chegou mais perto e tocou-a de leve no ombro. - Sua dorminhoca, eu bati todos os recordes para voltar o mais depressa possível.

Kerry se mexeu e resmungou alguma coisa, antes de se ajeitar novamente e continuar respirando pausadamente. Mesmo sem ver, percebia que ele estava desconcertado.

Deve ter então notado o vidro de comprimidos na mesinha-de-cabeceira, pois acendeu o abajur para poder ver melhor. O silêncio foi tão grande que ela ficou tentada a abrir os olhos, mas quando ele se moveu novamente foi para largar o frasco com força sobre a mesa, apagar a luz e sair do quarto. Kerry nunca se sentiu tão só!

Acordou tarde, com o ruído da chuva batendo na janela. Um chuveiro refrescou-a fisicamente, mas não emocionalmente. Ficou pensando em como é que se sentiria nessa manhã, se o telefone não tivesse tocado. Certamente não estaria pior do que agora.

Foi a primeira a descer. Ross entrou na cozinha quando ela preparava o café. Tinha um ar aborrecido no rosto.

- Tirei os comprimidos para dormir do seu quarto e joguei-os fora - disse ele abruptamente. - Devia ter feito isso ontem à noite. Onde é que você os encontrou?

- Eram do seu pai - disse ela, concentrando-se no que fazia. - Ele não os usava sempre, só quando precisava. Estavam no armário do banheiro.

- Quantos você tomou?

Ela hesitou, sem saber qual seria a dose certa. Tinha porém que justificar seu sono pesado.

- Dois - arriscou.

- Sua tola! - A voz dele era dura. - Bastava um! - Aproximou-se dela e fez com que se virasse para ele. - Está se sentindo bem?

- Estou. - E não se arriscou a dizer mais nada.

- Teve sorte. - A pausa foi curta e ele não mudou de expressão. - Por que você fez isso, Kerry?

- Porque eu sabia que você ia recomeçar de onde havia parado, e eu não estava disposta a ficar ali, esperando para satisfazê-lo. - A voz tremeu no final, e ela teve que fazer força para encará-lo. - Eu não sou uma outra Margot, Ross. Não tenho a intenção de ser usada quando você tem vontade. Podemos viver na mesma casa, mas de agora em diante as coisas param aí!

- Não era isso que você queria ontem à noite - disse ele.

Kerry sentiu que corava, mas falou, sem fraquejar:

- Estou certa de que você tem a capacidade de fazer qualquer mulher perder a cabeça em certas circunstâncias. Isso não é certo. Talvez você pensasse que eu aceitaria o nome Sinclair depois dessa noite.

Uma expressão estranha passou pelo rosto dele.

- Talvez pensasse.

- Isso mesmo, pensava. - Ela não cedia um centímetro. - Você faria qualquer coisa para manter aquelas ações na família, não é?

- Você acha realmente que essa é a única razão?

- E existe outra? Tenho certeza de que você não está apaixonado por mim.

Demorou um pouco para ele responder, as mãos apertando os ombros dela, a expressão dos olhos difícil de decifrar.

- Se eu dissesse que estou, você acreditaria?

- Nem por um minuto.

- Foi isso o que pensei. - Soltou-a e sacudiu os ombros, indiferente. - Então estamos na estaca zero.

- É verdade. E, para o caso de você tentar continuar, quero avisar que vou me casar com Larry.

- Ele já pediu a sua mão?

- Vamos dizer que eu sei que ele vai pedir. E eu vou dizer que sim, e não há jeito de você impedir, Ross.

Ele não respondeu; limitou-se a olhar para ela. Quando falou, sua voz era neutra:

- Caso você esteja interessada, a polícia pegou os homens envolvidos no assalto de ontem. Para sorte da Sinclairs, eles não roubaram nada.

- Maldita Sinclairs! Você só se preocupa com isso! - disse ela, perdendo a paciência.

Comeram e saíram de casa em silêncio, cada um no seu carro. Ao olhar o Jaguar desaparecendo em sua frente, Kerry ficou pensando se no casamento com Larry ela sentiria a metade da emoção que sentira nos braços de Ross, na noite passada.

O jantar na casa de Larry acabou sendo bem mais agradável do que Kerry podia supor. Ela resolveu usar um vestido de veludo preto, pouco decotado, e uma fita com um camafeu no pescoço. A princípio sentiu-se meio intimidada pelo sr. Hall, mas logo percebeu que seu modo meio rude escondia um bom coração. Ficou claro para ela que Larry era estimado pelo tio.

Havia mais cinco convidados à mesa, mas Kerry apenas conhecia um casal: o vereador Perry e sua mulher, que haviam comparecido às reuniões em Underwood em diversas ocasiões. Haviam também mandado coroas por ocasião da morte de sua mãe e de Andrew, e a cumprimentaram nessa noite dizendo com sinceridade que a cidade sentia falta de seu padrasto.

- Um bom homem - disse o vereador, sacudindo a cabeça. - Tentei muitas vezes fazer com que ele se candidatasse às eleições municipais, mas sempre recusou.

Kerry lembrava-se de Andrew ter mencionado o fato uma vez, perguntando o que ela achava. Quando lhe respondeu que ele daria um ótimo vereador, ele rira muito, dizendo que não se sentia atraído por política. Além da Sinclairs, pouca coisa o interessava nos últimos anos.

- E o filho? - perguntou o sr. Perry em seguida. - Veio para ficar?

- Acho que sim - respondeu ela. - Largou um emprego excelente na América para assumir a direção da Sinclairs.

- Não exatamente assumir, diria eu, não é? - observou o sr. Hall da ponta da mesa. - Larry me contou que seu padrasto dividiu as ações igualmente entre você e ele.

- É verdade - confirmou Kerry, meio reticente.

- Exceto que Kerry sabe que um homem com a experiência dele pode obviamente fazer muito pela Sinclairs - interveio Larry. - Você se daria muito bem com ele, titio. Ele sabe onde tem a cabeça - disse ele, imitando o sotaque do tio.

O sr. Hall caçoou dele e comentou:

- Metade do prazer que se tem em conhecer as pessoas vem do fato de se tentar adivinhar de onde elas são, apenas pelo sotaque.

Larry acenou de leve para Kerry, querendo dizer que ela havia sido aceita.

Havia gelo no chão quando ele a levou para casa às onze horas. Parou o carro no ponto em que a estrada margeava um campo de golfe e disse:

- Eu deveria esperar por um lugar mais romântico, mas pelo menos temos uma lua. Kerry, você sabe o que vou dizer, não é?

- Sim - respondeu ela.

- Isso é uma resposta ou uma afirmativa?

Ela afastou-se um pouco, tentando olhar nos olhos dele, e disse, hesitante:

- Larry, você ainda ia querer se casar comigo se seu tio não tivesse dado sua aprovação?

- Eu não tinha a menor dúvida de que ele acharia você ótima.

- Não foi isso que perguntei.

- Sei que não foi. - Deu um suspiro contido. - Teria sido difícil, Kerry, tenho que admitir. Meu futuro está na firma. Se eu não tivesse tanta certeza de que ele iria gostar de você, nunca teria me envolvido tanto.

Como era bom, pensou ela, dominar tão bem as emoções. Tocou o rosto dele.

- Está tudo bem, querido. Eu só queria que você fosse honesto comigo.

- Sempre serei honesto com você. - Ele parecia aliviado. - Amanhã iremos escolher seu anel. Que pedra prefere?

- Não tenho certeza, você vai ter que me ajudar a escolher. - Sentia como se outra pessoa estivesse falando. Quando ele a beijou novamente, ela reagiu meio ansiosa, passando as mãos por dentro da camisa dele. Larry respirava ofegante enquanto suas mãos afagavam os seios de Kerry.

- Oh, querida, isso é demais! Você é tão sensual! - De repente fez um movimento abrupto, afastando-a de si e controlando suas emoções. - É melhor eu levá-la para casa enquanto ainda consigo. Seria arriscado fazer amor agora, se temos que esperar apenas alguns meses.

- Meses? - perguntou Kerry. - Tanto tempo assim?

- Bem, pelo menos cinco. Não seria ideal a gente se casar na primavera? - Ao notar o silêncio de Kerry, acrescentou: - Sei que não vai ser fácil para nenhum de nós dois, mas vai valer a pena. Teremos o maior e mais lindo casamento que a cidade já viu, e depois uma lua-de-mel da qual nunca mais nos esqueceremos, apenas porque soubemos esperar.

- O que você quer dizer com arriscado? - perguntou ela, estranhando.

- Bem, obviamente... - Fez uma pausa, o rosto mudando de expressão. - Kerry, você não toma anticoncepcionais, não é?

- Não. - Kerry não se deixou afetar pela sua falta de tato.

- Claro que não. - Era como se ele pedisse desculpas. - E nunca vai ter que fazer isso. Esse assunto vai ser meu.

- Pensei que você quisesse filhos.

- E quero, mas bastam dois. Não ia querer uma casa cheia. - Fez uma pausa. - Falando em casa, aquele plano que você tinha de dividir Underwood em duas casas ainda parece ser uma ótima idéia. É suficientemente grande e assim você obedeceria à cláusula do testamento de Andrew sobre ter que morar lá.

- Não tenho certeza - respondeu. - Não sei se ia querer continuar morando em Underwood. Não poderíamos ter um lugar só para nós? E o seu apartamento?

- Ele é pequeno demais. - Larry estava meio sem jeito. - E teríamos muita sorte em encontrar uma casa como Underwood. Só a terra vale muito. Por que...

- Sim, eu sei. Seria bobagem largar um lugar como aquele, não é?

- Sobretudo por seu padrasto ter se empenhado tanto para que você ficasse e aproveitasse. - Ele parecia aliviado. - Teremos que conversar com Ross, é claro, mas acho que ele não ia objetar. Além disso, ele teria sua metade.

- Estou cansada. Por favor, leve-me para casa.

- Seu pedido é uma ordem. - Rindo, deu a partida no carro. - Quero você descansada para a comemoração de amanhã. Vamos até Leeds procurar o anel e ficaremos para jantar. Vai ser um dia muito especial, o que acha?

- Perfeito - respondeu Kerry, sem entusiasmo, mas Larry aparentemente não notou nada. Ela estava sendo ridícula. Tudo o que Larry dissera fazia sentido. Tudo muito bem mastigado para uma decisão repentina. De certo modo Larry era tão calculista quanto Ross.

Chegaram a Underwood pouco antes da meia-noite. Havia luz no escritório.

- Ross ainda está acordado - comentou Larry, satisfeito. - Isso é bom. Vamos entrar e contar para ele. Acho que não vamos surpreendê-lo.

- Não podemos deixar para amanhã? - perguntou Kerry, sem sair do lugar.

- Para que esperar?

- É muito tarde.

- Nem tanto, e não vai demorar. Ele deve ser o primeiro a saber. Afinal, é seu único parente...

- Ele é um Sinclair, e eu sou uma Rendai.

- Não por muito tempo - disse ele, beijando de leve o rosto dela. - Vai ser uma Hall, querida. Vamos, então.

Ross saiu do escritório quando eles entravam em casa. Havia tirado o paletó e a gravata e aberto a camisa. O cabelo estava em desalinho e seu rosto demonstrava cansaço.

- Eu ia tomar um drinque. Vocês me acompanham?

Larry respondeu pelos dois:

- Ótimo, vem mesmo a calhar.

Kerry preferia que saíssem do escritório. Afundou-se na poltrona de couro, sem olhar para nenhum dos dois. Desde o testamento de Andrew, o aposento perdera a graça para ela.

Ross servia as bebidas e ergueu seu copo, dizendo:

- Saúde.

- Na verdade, temos uma coisa para comemorar - disse Larry, sorrindo para Kerry. - Vamos nos casar.

A reação de Ross foi mínima e Kerry chegou a pensar que ele não se importava mais. Ele olhou então para ela, com os lábios comprimidos e um estranho brilho no olhar.

- Estou vendo. Então seu tio aprovou?

- Claro! Gostou muito dela.

- E não gostamos todos nós? - perguntou, seco. - Será que ele ainda aprovaria se soubesse que você não é o primeiro?

Seguiu-se um silêncio constrangedor. Primeiro Larry não entendeu, depois, ao perceber, ficou branco.

- O que está querendo dizer?

Mais tarde Kerry percebeu que havia assinado sua sentença de morte ao abrir a boca. Se tivesse ficado calma e deixado Ross resonder, em vez de acusá-lo, talvez Larry pudesse acreditar nela. Mas não fez isso, não podia!

- Ele está mentindo! - exclamou, desesperada. - Qualquer coisa que ele diga é mentira!

Ross sacudiu os ombros.

- Querida, ele tem o direito de saber. Você deveria ter sido honesta para depois ele não ficar sabendo por outras pessoas.

- Ninguém mais sabe! - protestou, mas percebeu que suas palavras confirmavam o que Ross dissera. Tentou corrigir: - Isso nunca aconteceu! - Olhou para Larry. - Ele ameaçou fazer isso se eu me interessasse por outro homem, só que nunca imaginei que ele fosse cumprir a promessa. Não está vendo...

- Outro homem... - Larry repetiu as palavras vagarosamente. - Antes de outro tem que haver o primeiro.

Não foi isso o que eu quis dizer!

- Então o que foi? Que razão teria ele para fazer uma ameaça se não fosse verdade?

Ela ficou olhando para ele, sem acreditar no que ouvia.

- Você acredita mesmo nele, não? - perguntou. - É a palavra dele contra a minha.

Não podia haver ninguém mais dividido do que Larry naquele momento. Por fim disse:

- Está bem. Jure que não é verdade e eu acredito.

A raiva subitamente tomou conta de Kerry.

- Jurar para você? Vá para o diabo!

- Essa teimosia não adianta nada - disse Ross para Larry. - Olhe, sinto muito por tudo isso. Sabe como é, vivemos muito próximos um do outro, tinha que acontecer... Papai devia ter pensado melhor.

- Talvez ele tivesse pensado, mas duvido que esperasse esse tipo de relacionamento - respondeu Larry, seco.

- Quer dizer que ele esperava que nós nos casássemos? Eu sugeri isso há algum tempo, mas Kerry não gostou da idéia. Casada comigo não teria toda a liberdade que deseja, e ela sabe disso.

- Você sabia que eu estava saindo com ela há semanas. Por que deixou que as coisas chegassem a esse ponto?

- Provavelmente eu teria feito alguma coisa se tivesse percebido que a coisa era séria. Vocês eram amigos, faziam teatro juntos...

- Não somos mais... - Kerry levantou-se, dura mas controlada. - Larry, pode ir para casa sossegado, não vou continuar no grupo.

- Sossegado? - Ele parecia tudo menos isso. - Só não entendo como você teve coragem de fazer isso comigo, Kerry. O que vou dizer ao meu tio?

- Diga o que quiser. Não me incomodo. Agora, por favor, vá embora!

- Já estou indo! - Agora era ele quem estava zangado e sentindo-se ultrajado. - Imagino que eu deva agradecer por tudo. - Deixou o copo sobre a mesa e olhou para Ross. - Obrigado!

- Lá vai um homem arrasado... - observou Ross assim que a porta bateu. - Vai ter um trabalhão para achar outra candidata tão apropriada quanto você, aqui em Medfield - Kerry não disse nada. - Está zangada? - perguntou.

- Eu desprezo você!

- Verdade? Você não pode dizer que eu não a avisei. Sociedade com a Construtora Hall não me interessa.

- E o que eu sinto também não tem importância, não é mesmo?

- Se quer minha opinião honesta, você provavelmente está mais aliviada por ter terminado com ele. Larry Hall nunca foi seu tipo. Nenhum homem que precise de aprovação, antes de pedir uma mulher em casamento, merece essa mulher. Duvido que ele a satisfizesse em qualquer sentido.

- Por que você tem tanta segurança ao afirmar isso? - explodiu ela. - Você se acha o único homem capaz de fazer amor com uma mulher?

- Não, mas o único capaz de fazer você se esquecer de tudo o mais.

- Talvez Larry também pudesse conseguir isso.

- De jeito nenhum. Eu sei quando você está mentindo. Nem isso você faz bem!

- Não? Então eu fui perfeita na outra noite, quando você pensou que eu estivesse dormindo. Não tomei comprimido nenhum. O frasco estava na mesa-de-cabeceira para enganá-lo!

- Não devia ter me contado isso - disse ele depois de algum tempo. - Perdi um tempão ficando preocupado.

- Você nunca ficaria preocupado com alguém ou com alguma coisa. Você não tem consciência!

- Mas sou eu quem consegue fazer você descer desse pedestal. Kerry, deixe disso. Não vai fazer bem a nenhum de nós dois. Não desse jeito.

- E de jeito nenhum. Nada mudou.

- Não? Os mexericos logo vão começar. Pode apostar que já havia muita curiosidade sobre nós dois.

- Duvido. Você quase nunca estava aqui.

- Fico em casa à noite, quando as coisas acontecem, aos olhos dos que gostam de fofoca. E quem é que sabe quando eu saio?

- Talvez Sharon West...

Ele ficou surpreso por um instante.

- Você tira conclusões rápidas demais, não acha?

- Geralmente com boas razões. - Kerry recusava-se a duvidar. - Você nega?

- Não nego nada. Você está perdendo seu tempo. - Fez uma pequena pausa. - Tente pensar seriamente no que faremos daqui para a frente. Existem duas alternativas: ou continuamos como antes, o que não vai ser fácil, ou então você para de ser teimosa e tornamos tudo legal.

- Prefiro morrer!

- Você vai acabar se casando comigo, Kerry. Vai precisar.

A necessidade de ceder e parar com toda aquela confusão era muito forte, mas ela resistiu.

- A não ser que eu passe para você aquelas ações primeiro. Então não haveria mais necessidade. Você teria todo o poder que sempre quis.

- Você ainda teria dez por cento.

- Como também os primos, e o nome deles também não é Sinclair.

- Mas eles não podem vender a parte deles para alguém de fora da companhia. Papai se esqueceu disso em relação a você.

- Ele confiava em mim. Mais do que você. Eu nunca iria entregar minhas ações a Larry.

- Não vou discutir sobre isso. Está acabado e pronto. De qualquer modo você não o queria como marido. Com outro homem, talvez eu tivesse pena, mas com Larry... O orgulho dele vai agüentar o golpe. - Fez uma pausa e, quando voltou a falar, sua voz era suave: - Kerry...

- Oh, deixe-me sozinha. Conseguiu o que queria, agora deixe-me sozinha!

- Não posso deixar você sozinha. Estamos juntos nesta casa e temos que nos empenhar no melhor convívio possível.

- Mas isso não inclui inventar mentiras.

- Nem mesmo quando todas as pessoas vão achar que são verdades?

- Larry não vai espalhar essa história. Não iria gostar de fazer papel de bobo - disse ela, sacudindo a cabeça.

- Ele vai ter que dar uma explicação satisfatória para o tio. O pedido de casamento provavelmente nunca vai ser conhecido, mas o resto da história aposto que vai. O único modo de você andar de cabeça erguida dentro da loja, ou pela cidade, é tirar toda a pimenta da história. As pessoas podem comentar e dizer que já estava na hora, mas uma certidão de casamento anula muitos pecados. Nós poderíamos dar um bom jeito em tudo se nos esforçássemos.

Demorou um segundo ou dois antes que ela dissesse inexpressivamente:

- Estou cansada, Ross. Vou dormir.

- Está bem, falaremos sobre isso no fim de semana. Vou à loja de manhã, e você durma até mais tarde e descanse para a noite. - Seu olhar fez com que ela silenciasse. - Não se preocupe, não houve tempo suficiente para os mexericos se espalharem.

- Mexericos que você provocou - afirmou ela, amargurada.

- Se está pensando que vou me desculpar, vai ter que esperar muito. Eu teria feito pior para livrar você das mãos de Larry. Vejo você na hora do almoço. A sra. Payne vem?

Kerry disse que sim com a cabeça.

- Ótimo. Ela vai se aposentar dentro de alguns meses, conforme esteve me dizendo. Temos que arranjar alguém que durma aqui e se encarregue de todo o serviço doméstico se você vai continuar a trabalhar na loja. Há o apartamento em cima da garagem que precisa apenas de uma pequena reforma.

- Desta vez você está se adiantando muito - conseguiu dizer Kerry.

- Não, não estou. Você vai ver. - Sorriu. - Vá para a cama. Amanhã é um novo dia.

Kerry foi, entorpecida demais para pensar com clareza. Precisava e queria dormir, para se esquecer de todos os problemas. Surpreendentemente, dormiu assim que encostou a cabeça no travesseiro.

Capítulo VIII

A sra. Payne estava passando o aspirador na sala quando Kerry se levantou, às dez horas, o rádio ligado no último.

- Já terminei a saleta e o escritório - avisou ela, desligando o aparelho e falando mais alto que o rádio. - Quer tomar café?

Kerry sacudiu a cabeça.

- Só uma xícara, e deixe que eu pego. Quer uma também?

- Não, obrigada, tomei uma xícara de chá agora há pouco.

Kerry hesitou, pensando se adiantaria tratar do assunto que queria tendo que quase gritar. No fim, abaixou o volume do rádio e disse:

- Verdade que você vai deixar de trabalhar dentro de algum tempo?

- É verdade. Vou fazer sessenta e seis anos dentro de alguns meses e achei que merecia um presente de aniversário. Tenho um pouco de dinheiro guardado, graças ao sr. Sinclair, e cheguei à conclusão de que estava na hora de descansar.

- Tem toda a razão. Não parece ter essa idade.

- Só que às vezes me sinto como se tivesse oitenta. Se está pensando em alguém para me substituir, acho que tenho uma pessoa para recomendar.

- Na verdade, acho que Ross vai querer alguém que durma no emprego. Há o apartamento sobre a garagem e...

O rosto da velha se iluminou.

- Se é assim, meu filho Billy vai se casar logo com essa moça de quem falei. Ela é viúva, sem filhos, e uma ótima cozinheira. Estão sem um lugar para morar, a casa era alugada e ela teve que sair. Acho que serviria para vocês. Além disso, meu filho Billy é jardineiro, trabalha nos parques da prefeitura, e bem que poderia ajudar nas horas de folga. O velho Aden Baxter quase já não agüenta mais.

Kerry bem que concordava com isso. Não que fosse culpa dele. Não podiam simplesmente mandá-lo embora depois de tantos anos de serviço, mas alguma coisa tinha que ser feita. Esta talvez fosse a solução ideal para os dois problemas. De repente deu-se conta de que os seus eram muito mais complicados...

- Talvez dê certo - admitiu. - Claro, o apartamento precisa de uma reforma. Desde que vim para cá tem sido usado como depósito.

- Ora, não se incomode. Dê a eles tinta e pincel e eles mesmos ficarão felizes em arrumar o apartamento.

- E se eles tiverem filhos? - Kerry resolveu perguntar. - O apartamento é bom para duas pessoas, mas ficaria apertado com mais gente.

- Duvido que isso aconteça. Os dois têm mais de quarenta anos. - Riu. - Meu filho demorou muito para escolher. Posso dizer a ele?

- Bem, tenho que falar primeiro com Ross, mas ele estará em casa antes de você ir embora. Acho que ele vai concordar. Não podia ter sido melhor! Se bem que vamos sentir sua falta, claro.

A sra. Payne riu novamente.

- Não fique tão triste. Ando cansada, e o papai vai ficar contente em comer na hora certa em vez de esperar até que eu volte para casa. Mas olhe, ele nunca reclamou que eu trabalhasse aqui. Deu para comprarmos coisas que nunca poderíamos ter tido se não fosse isso. Mas o dinheiro dá, agora que os filhos todos se casaram. Falta só o Billy, mas agora vai chegar a vez dele. Nunca é tarde demais.

Isso podia valer para ela, pensou Kerry, enquanto ia para a cozinha. Não era tarde demais para aceitar a oferta de Ross e partir para a melhor solução. E talvez um dia ele chegasse a amá-la, como ela o amava, apesar de tudo. E se Ross não chegasse a isso, ela bem que poderia aceitar a idéia. Pelo menos tinha mais poder sobre ele do que Margot.

Ross chegou em casa à uma hora e, de nariz para cima, comentou:

- Humm... Que cheiro bom! É alguma comemoração especial?

- A sra. Payne acha que é. Fez um frango ao vinho que é uma delícia. - Ainda havia tensão no ar, apesar de tudo. - Eu contarei a você durante o almoço.

Ross logo aprovou a idéia.

- Não podia ser melhor. De fato, talvez fosse uma boa ideia oferecer um emprego de tempo integral também para Billy. O jardim está começando a ficar horrível, mesmo dando o desconto do inverno.

- E Aden Baxter? - perguntou, preocupada. - Não podemos simplesmente mandá-lo embora.

- E eu nem ia fazer isso. Os dois poderiam trabalhar juntos e o velho Aden poderia tirar uma folga de vez em quando.

- Você é capaz de ser bem compreensivo quando quer - observou Kerry, de cabeça baixa.

- Isso é compreensão? Pensei que fosse bom senso. O serviço aqui sempre foi demais para um homem só. Quando o Baxter se aposentar, poderemos arranjar um outro auxiliar.

Ela olhou para ele, sentindo o costumeiro aperto no coração.

- Aconteceu alguma coisa especial hoje na loja? - perguntou depressa.

- Nada que merecesse contar para você. - Esperou um instante e continuou: - Pensou no que eu disse na noite passada?

- Sim - respondeu em voz baixa.

- E então?

Era difícil conseguir falar com a garganta tão apertada.

- Eu decidi me casar com você, se é isso que você quer mesmo.

- É isso mesmo que eu quero. - Não havia triunfo na voz dele, apenas satisfação. Empurrou a cadeira para trás e acrescentou, baixinho: - Kerry, venha cá.

Ela olhou para ele, sem ver direito, antes de obedecer. Ross sentou-a no colo e beijou-a, delicadamente mas com paixão.

Quando a sra. Payne entrou na sala ele a segurou firme e sorriu para a criada.

- Pode nos dar os parabéns, sra. Payne. Vamos nos casar.

- Está tudo acontecendo, não? - respondeu ela, sem demonstrar surpresa. - O sr. Andrew é que ficaria contente.

- Você acha mesmo? - perguntou Kerry, sem perceber como precisava de aprovação.

- Oh, sim, tenho certeza. Ele mesmo disse isso uma vez, antes do sr. Ross ir embora. O sr. Sinclair sempre tinha seus planos. - Sorriu satisfeita para os dois. - Querem um pouco de pudim?

- Traga. Meu apetite está cada vez maior! - exclamou Ross, rindo.

- Eu não acho isso... Vocês dois comem feito passarinho! Vou buscar é pudim de maçã e creme - disse ela, saindo.

- Isso vai parar com os comentários - comentou Ross, satisfeito. - A nossa amiga vai enforcar qualquer um que fale alguma coisa perto dela.

- É só com isso que você se preocupa? - perguntou Kerry, e ele sorriu, sacudindo a cabeça.

- Não, mas preocupa você. Eu tive que fazer chantagem emocional para conseguir que você me aceitasse. Como eu disse ontem, não vou me desculpar por isso.

- Eu não imaginaria que você se desculpasse por nada - disse ela. - Não é seu costume.

- E você aceita isso?

- Não tenho escolha. Ross, gostaria que você não esperasse muito de mim. Quero dizer...

- Eu sei o que você quer dizer. - Ficou olhando sério para ela. - Se quer que eu espere até nos casarmos, vai ter que ser logo. Que tal na próxima semana? Poderíamos fazer um cruzeiro pela América do Sul e escapar deste inverno miserável.

- E a loja? - perguntou.

- O que tem a loja? Está tudo sob controle. Não há muita coisa para fazer até o Ano-Novo... - Beijou-a de leve novamente. - Você iria gostar do cruzeiro. Poderíamos prolongá-lo até o Natal, se você quisesse. Que tal o Natal no Rio?

Ele estava indo depressa demais; Kerry precisava de tempo para se habituar às idéias.

- A festa! Já convidei gente para a festa.

- O pessoal de teatro?

- Sim - confirmou ela, séria. - Mas não sendo mais membro do grupo, acho que não vai ter importância. Jill é que vai ficar desapontada.

- Jill?

- A garota que estava lançando olhares para você na outra noite, quando voltou para casa.

- Acho que não notei. Estava ocupado demais planejando o que fazer com você quando a pegasse sozinha. - Fez uma pausa e olhou para ela. - Será que não podemos nos esquecer de tudo aquilo agora?

- Sim. - Não ia ser de imediato, ela sabia, mas não havia mais nada que pudesse fazer.

Assustou-se ao ver que a porta se abria novamente, e ela ainda continuava no colo de Ross. A sra. Payne entrou.

- Não ligue para mim - disse, rindo. - Com três filhas, já passei por tudo isso antes. - Deixou a bandeja, deu uma piscada e, quando saía, acrescentou: - Agora deixo vocês sozinhos.

Kerry escapou das mãos de Ross e sentou-se novamente no seu lugar antes que a criada chegasse à porta.

- Sra. Payne, está tudo certo sobre o apartamento. Pode contar ao Billy e à noiva.

- Talvez eles pudessem vir conversar amanhã, que é dia livre - sugeriu Ross. - Quero ver se seu filho aceita um emprego de tempo integral aqui. Acha que ele gostaria?

- Eu não ficaria surpresa, se o pagamento for bom.

- Tenho certeza de que acertaremos as coisas. Baxter ainda continuaria, enquanto agüentasse, mas acho que ele anda sofrendo muito com o inverno.

- É, e ele teria ajuda. - Sorriu, feliz. - Seria ótimo se o meu filho morasse aqui. Nenhum dos dois iria desapontá-lo, sr. Ross.

- Tenho certeza. Amanhã, então. Diga que venham às três. A sobremesa estava deliciosa, como sempre.

Kerry brincou com a colher, sem terminar.

- Não estou com tanta fome assim.

Ross estendeu as mãos para a bandeja do café.

- Quer café? - perguntou.

- Sim - respondeu ela e continuou: - Eu é que deveria estar fazendo isso.

- E tem importância? - Estendeu uma xícara para ela. - Não temos que ir para a festa antes das sete horas. O que gostaria de fazer esta tarde?

- Qualquer coisa. Não me importo, escolha você.

- O que eu gostaria, você não quer - disse ele, sacudindo a cabeça. - Não, não estou me queixando. Bem, não muito. Posso esperar... uma semana, só isso!

- Uma semana é muito pouco.

- Não, não é. Não nestas circunstâncias. Não temos que dar satisfação para mais ninguém além de nós dois. O navio Imperatriz sai de Southampton na sexta para um cruzeiro de seis semanas pelas Canárias e pelo Brasil. Poderíamos nos casar na sexta de manhã e ir direto.

- Como é que você sabe se ainda há lugares?

- Porque vi o anúncio ainda esta manhã. A agência nos reservaria os lugares. É só telefonar.

- Não existe jeito de eu estar pronta na sexta - disse ela. - Não tenho roupas apropriadas.

- Você tem uma loja inteira onde escolher, e Leeds fica só a uma hora de distância, se você não encontrar o que quiser na Sinclairs - afirmou ele. - Não quero desculpas, vou fazer as reservas.

Kerry continuou sentada, quieta, depois dele ter saído da sala. América do Sul no Natal e, mais importante, América do Sul com Ross. Seis semanas longe da Sinclairs e de tudo o que ela significava para os dois. Seis semanas para ficarem sozinhos. Claro que isso valia um pouco de correria. De repente ficou desesperada para que ele fizesse mesmo as reservas.

Parecia que Ross havia demorado uma eternidade, mas quando voltou estava sorrindo.

- Tudo certo. Conseguimos a última cabine da primeira classe. Eu disse que iria até lá hoje à tarde para levar o cheque. Quer vir comigo?

Kerry sacudiu a cabeça.

- Prefiro não ir.

- Está com medo de encontrar Larry?

- Não com medo, mas meio sem jeito. Ele hoje ia me levar para escolher o anel de noivado...

- Aliás é o que precisamos fazer. Pensou que ia ficar sem seu anel? Pode ser um noivado curto, mas vai ser como tem que ser. Podíamos escolher as alianças na mesma ocasião, mas espero que você não me obrigue a usar uma; seria como aquele anel que se põe no focinho do touro...

- É porque você prefere parecer solteiro...

- Hei! Isso foi uma brincadeira. Vai ter que aprender a confiar em mim, Kerry. O passado já era.

Tantas palavras, pensou ela, mas nenhuma era a que ela queria tanto ouvir. Se ele apenas uma vez dissesse que a amava, mesmo que não fosse verdade, então tudo estaria bem.

- Diga-me só uma coisa. Tem visto Sharon West nestas últimas semanas?

- Apenas nas horas de trabalho - disse ele, sem se perturbar, mas, pelo modo como contraiu o queixo, queria dizer: não faça mais perguntas. - Nós vamos até a cidade. Você vai usar o anel de noivado hoje à noite.

- Você está pensando em anunciar o noivado? - perguntou ela, alarmada.

- Não vai ser preciso. Logo vão ficar sabendo. - Ross olhou para o relógio. - São duas horas. Se não encontrarmos o que queremos em Medfield vamos esperar até segunda e iremos a Leeds.

A ida à cidade foi para Kerry um sacrifício e um divertimento ao mesmo tempo. A agência de turismo os esperava. Entregaram folhetos da viagem e disseram que providenciariam os documentos até a próxima quarta-feira.

Na joalheria, Kerry acabou escolhendo um solitário, particularmente caro, e uma aliança larga de ouro, bem simples.

Ao servir chá para os dois, no restaurante do Hotel Royai, ficou constrangida ao ver como o diamante brilhava em seu dedo e, ao perceber que Ross olhava para ela, comentou:

- É lindo, mas estou morta de medo de perdê-lo.

- Está no seguro. Temos que nos apressar para ir à recepção.

- Vai dar tempo. Não demoramos muito para ficar prontos.

- Eu não demoro muito - disse ele, sorrindo. - Estava pensando em você. Até hoje não conheci mulher alguma que não demorasse horas para se embelezar.

Kerry esforçou-se para ficar alegre.

- Existem exceções para todas as regras. Aposto como estou pronta antes de você.

- Aposto. Mas, se eu ganhar, vou querer um prêmio.

Chegaram em casa antes das seis. Kerry já havia separado o vestido que iria usar, junto com a roupa de baixo e sandálias douradas. Vinte minutos depois, banhada, vestida e pintada, deu a última escovada nos cabelos e se olhou no espelho. O vestido era de jérsei bege, justo até os quadris, e depois abrindo em dobras graciosas até o chão, a gola alta e um cinto dourado, trançado e solto.

Escutou uma batida na porta. Ross chamou:

- Esteja ou não pronta, vou entrar.

Ela virou-se de frente para ele e viu que seus olhos brilharam.

- Você está linda - disse Ross e, chegando perto, sorriu. - Sem sutiã? O que os mais velhos irão pensar?

- Não posso usar. Não tenho nenhum que não apareça sob este vestido. - Olhou para si mesma, meio apreensiva. - Acha que eu deveria usar outra roupa?

- E estragar a minha noite? Você provavelmente não vai encontrar homem nenhum que a olhe nos olhos, mas são as mulheres que irão reclamar.

- E é isso mesmo - disse ela, levando-o a sério. - Não quero atrair esse tipo de atenção.

Desta vez ele sacudiu a cabeça com força.

- Kerry, nós somos donos da maldita loja... Dentro de certos limites, podemos fazer o que quisermos. Você não pode ficar em dúvida. Vai ser uma Sinclair, e os Sinclair não admitem incerteza, mesmo quando estão errados.

- Amém! - exclamou, animada, e viu que os olhos dele brilhavam ainda mais quando a tomou nos braços.

- Vamos chegar atrasados - disse ele um pouco depois, abraçando-a ainda. - Pelo menos quando estivermos naquele navio, ninguém vai nos incomodar. Vão saber que estamos em lua-de-mel, ou pelo menos vão desconfiar. Vamos ficar sem problemas pelo menos durante estas semanas.

- Você borrou meu batom e vou ter que ajeitar meu cabelo.

- Reclamações, reclamações... - disse ele, rindo. - Ainda bem que você não estava se preocupando com o cabelo enquanto eu a beijava. Vou descer e ligar o motor do carro.

A cúpula da Sinclairs estava esperando na entrada do Centro Cívico, e o grupo inteiro chegou para a frente para ter o privilégio de ficar perto deles.

Ao apertar as mãos da sra. Gregson, a quem via uma vez por ano, percebeu que ela notara o anel e arregalara os olhos. Um momento depois viu a dama cochichando com uma das outras esposas, que imediatamente deu uma olhada para ela. Ao se sentarem para jantar, Kerry calculou que a novidade já tivesse corrido por todo o salão. Claro que haveria curiosidade. Seria com Ross ou com algum outro? Mas se fosse outro, como é que não estava ali com ela? Talvez alguém não agüentasse e viesse perguntar. E por que não? Todos iriam acabar sabendo, e isso não seria nada comparado com as notícias da próxima sexta...

Sexta! Não parecia possível que ela fosse se casar com Ross em menos de uma semana. Olhando para ele agora, elegantíssimo no traje a rigor, quase não conseguia acreditar. Sabia que ele sentia grande atração física por ela, devia agarrar-se a isso. No momento seu amor tinha que ser suficiente para os dois.

A festa foi um sucesso. A formalidade do banquete desapareceu com quebra do protocolo: Ross pagou bebidas para todos os presentes no bar. Mais tarde Kerry viu Ross conversando muito à vontade com um grupo de jovens. Livrou-se da senhora com quem conversava e dirigiu-se para o grupo.

- Estávamos conversando sobre a reorganização do quadro de funcionários - disse ele.

- Oh, hoje não... nada de loja!

- Não foi o sr. Sinclair que começou - explicou um dos rapazes. - Fomos nós. Estamos interessados no que está acontecendo na Sinclairs.

- Os ventos da mudança... - comentou Kerry e, olhando para o interlocutor, perguntou: - Já nos conhecemos, não?

Ele corou um pouco, meio sem jeito.

- Achei que não ia se lembrar. - Falou baixo, depois tomou coragem. - Eu a tirei para dançar em uma das outras festas, mas o velho sr. Sinclairs disse que não. Fui muito atrevido...

- E por que não a convida outra vez? - disse Ross. - A discoteca já está estourando...

Kerry logo entendeu.

- Gostaria muito. Já faz tempo que não aproveito.

- Oh, bem... Nesse caso... quer me dar o prazer?

Rindo, ela o acompanhou, passando pelas portas duplas que separavam os dois ambientes. Já havia bastante gente na discoteca, o suficiente para que ela permanecesse anônima.

Kerry sentia que seu corpo se soltava e percebeu que não se divertia assim há anos. Sempre havia andado junto com pessoas mais velhas e se acostumara a isso. Nem Larry a fizera sentir-se jovem. Ainda bem que Ross interferira, mesmo usando o método que usara. E pensar que ela poderia estar usando o anel de Larry! A lembrança a deixava gelada. Sorriu feliz para o companheiro.

- Que agilidade! - gritou ele, admirado. - Você está tão diferente!

Diferente? Por quê? Mas Kerry sabia. Diferente do que ele esperava, diferente da imagem que se fazia dela.

A música ficou mais lenta e seu par segurou-a pela cintura. Kerry segurou nos ombros dele, como as outras moças faziam, e continuou dançando.

- Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal? - perguntou ele um pouco depois.

Kerry assustou-se mas, percebendo o que era, respondeu:

- Pode perguntar. Só que talvez eu não possa responder.

- Não é nada de mal - assegurou ele. - É que... alguém disse que você está noiva de Ross Sinclair, só isso.

Ela tentou falar normalmente:

- Eles têm razão. Estou mesmo. Aconteceu ontem, por isso é que não foi anunciado ainda.

- Mas que coisa! - comentou ele, satisfeito, provavelmente por ter sido o primeiro a ter a novidade confirmada.

- O que é que você está achando de todas as mudanças na Sinclairs? - perguntou ela, antes que ele continuasse com o interrogatório.

- Ótimo! É uma boa firma para se trabalhar, mas sempre foi muito séria. - Interrompeu-se, olhou para ela e continuou: - Bem, era.

- Concordo com você. Colocamos um pouco de animação.

- E até onde vão? Ninguém sabe, pelo menos no departamento de esportes.

- Oh, eu diria que até onde pudermos - disse sem pensar mas, depois de ter falado, sentiu-se aliviada. - É o diretor quem resolve, é ele o especialista.

- Ele é ótimo! O velho sr. Sinclair também era bom, mas quase não o víamos.

Ross ainda conversava com o mesmo grupo quando voltaram e levantou as sobrancelhas para ela, enquanto se afastava dos outros e dizia:

- Aproveitem, a noite ainda é uma criança...

- Acho que era melhor darmos um pouco de atenção ao pessoal mais velho - disse Kerry, enquanto se afastavam. - Parecem meio deslocados.

Dali para a frente tudo correu bem. Kerry dançou com dois dos senhores e, quando viu o rapaz com quem dançara junto com um grupo de jovens, não resistiu e fez uma careta de desgosto sobre o ombro do seu par.

Dançou apenas uma vez com Ross, e assim mesmo só por pouco tempo, até que a música terminasse. Em compensação, pouco depois viu que ele tirava Sharon West e, pelo modo como dançavam, devia haver muita intimidade entre os dois. Depois disso a festa perdeu a graça para Kerry e ela ficou feliz quando chegou a hora das despedidas.

Afinal saíram para a noite gelada e Ross a ajudou a entrar no Jaguar que havia sido trazido do estacionamento. Viu de relance o rapaz que fora seu par rindo, no meio de um grupo barulhento de garotas e rapazes, e de repente desejou ser um deles, ali, rindo e brincando, esperando a condução para ir para casa. Estava vivendo num sonho, imaginando que não se importava com o fato de que Ross não a amava. Era mentira, ela queria tudo... ou nada.

Ross não disse uma palavra durante o caminho, confirmando a suspeita dela de que estava com o pensamento longe. Kerry subiu para o quarto enquanto ele guardava o carro e fechou a porta. Ross que ficasse pensando por que é que ela não dissera nem boa-noite.

Já estava meio despida quando ouviu que ele subia e parava na porta do seu quarto. Deu tempo apenas de Kerry agarrar o vestido e colocá-lo na frente do corpo antes dele entrar sem bater.

- Não se atreva a ir entrando aqui desse jeito! - falou, zangada. - Ainda não estamos casados.

- Não antes de resolvermos um ou dois assuntos - retrucou ele, azedo. - Não vou passar o resto da minha vida evitando todas as mulheres do mundo!

- Não era uma mulher qualquer, não é?

- Não, era uma velha amiga com quem eu dancei durante dez minutos e, quando volto, encontro uma atmosfera carregada daquela!

- Vocês são mais do que amigos - contestou ela, sarcástica.

- Certo. Fomos mais do que amigos... há muito tempo. Se é que me lembro, você ainda estava na escola. Acho que não podia haver comparação.

- Mas eu já detestava você!

- Eu bem que me lembro. Uma idade ingrata, os quinze anos. Naquela época oito anos faziam muita diferença, concordo. Para mim você era apenas uma criança. - Fez uma pausa e acrescentou: - E hoje agiu como tal.

- Sharon e Margot. E quantas mais?

- E o que você quer? Uma lista por escrito? Combinamos esquecer o passado.

- E como posso esquecer, se ele é jogado toda hora na minha cara?! Gostaria de descobrir que eu também tive meus casos?

- Não - admitiu ele. - Já concordamos que é uma atitude egoísta, mas é assim que é. Vemos o comportamento sexual por ângulos diferentes. Você quer um anel no dedo e nossos nomes num pedaço de papel antes de ceder. Tudo bem, vai ganhar tudo isso, mas poucos homens se mantêm celibatários até encontrarem a mulher certa...

A raiva havia ido embora, mas não a dor.

- Não tenho certeza de que sou a mulher certa para você - disse ela. - É apenas sexo, não é?

- Você quer dizer que eu quero me casar com você por ser esse o único meio de possuí-la? - Havia ironia na voz dele. - Não está se esquecendo da Sinclairs?

- Não, não estou, e nem consigo. Mas duvido que você aceitasse se ligar a uma mulher por quem não sentisse nenhuma atração. Isso não é suficiente, Ross. Para mim, não é.

- Você não me deu a chance de provar que é suficiente. Mas não vai poder pular fora agora, Kerry. Tem meu anel em seu dedo, e na sexta-feira vai receber a aliança. Isso vai acontecer, haja o que houver, por isso você bem que poderia deixar que eu tirasse suas dúvidas agora mesmo.

Os lábios dela se ergueram num sorriso amargurado.

- Um momento atrás você estava furioso comigo, e agora quer me levar para a cama...

- É isso mesmo. Você fica mais provocante segurando o vestido assim, na sua frente.

- Não estou tentando provocá-lo. É por isso que não o tiro. - Sentia o peito apertado. - Por favor, Ross, vá agora. Vou tentar me lembrar dessas diferenças no futuro.

Ele foi saindo, um ar resignado no rosto.

- Seja como você quiser. Até amanhã.

Depois que Ross saiu, Kerry ficou pensando que na sexta-feira seria a esposa dele. Ross não iria mudar; ela é quem teria que ser diferente.

Capítulo IX

Billy Payne e a noiva vieram no domingo à tarde, conforme o combinado. Em meia hora acertaram tudo. Billy deixaria a Prefeitura imediatamente e Sheila tomaria o lugar da sogra dentro de cinco semanas, logo depois de se casarem. Adoraram o apartamento, apesar do mau aspecto.

- Logo o deixaremos como novo - disse Billy, recusando a oferta de Ross, que queria contratar um profissional para a reforma. - Já fiz muito disso. Só preciso do material.

- E fico feliz porque não está mobiliado. Tenho um monte de móveis guardados. Posso aproveitar as minhas peças preferidas e me desfazer das que não gosto.

- Um belo casal - comentou Ross, depois que os dois saíram. - Mas acho que vou ter que chamá-lo de sr. Payne. Não dá para chamar de Billy um homem daquele tamanho!

Kerry riu.

- Provavelmente só a mãe dele o chama assim. Para ela, ele ainda é um menino. - Ficou pensativa e indagou: - Você se lembra bem de sua mãe, Ross?

- Mais ou menos. Era uma pessoa muito quieta, muito delicada. Acho que nunca se refez depois que eu nasci. Era muito diferente de meu pai, completamente o oposto. Já sua mãe sabia lidar com ele muito melhor.

- Ainda acha que ela se casou com ele por dinheiro? - perguntou, baixinho, e viu que ele a olhava, zangado.

- Eu não era nada diplomata aos vinte e dois anos, não? Acho que, na verdade, eu me ressentia da idéia de vê-lo casado novamente. No fim, acabei gostando muito dela. Fiquei chocado com o acidente.

- Tão chocado que nem apareceu para o enterro? - Precisava perguntar, pois tinha isso atravessado na garganta.

Ele olhou sério para ela.

- Eu queria vir. Telefonei para papai e disse que vinha, e ele disse que eu só podia vir se estivesse preparado para ficar aqui de vez, e nos termos dele.

Kerry soltou um suspiro e sentiu como se tivesse se livrado de um peso.

- Desculpe-me, Ross. Durante todo esse tempo eu sempre achei que não viera porque não ligava mesmo.

- No fim ele estava certo - disse, seco. - Voltei, mas tenho que fazer como ele queria...

- Não. Não vou lutar mais contra você sobre a Sinclairs. Faça o que tem que ser feito para que a loja dê lucros novamente. Poderemos perder alguns fregueses, mas você tem razão, não podemos dirigir uma loja baseados em sentimentos. Só que, Ross... - hesitou, sem querer desanimá-lo - não tire toda a alma da loja, está bem?

- Não vou fazer nada disso, você vai ver. - Levantou-se e chegou perto dela, erguendo-a e beijando-a.

Na segunda-feira à tarde, Kate Antony trouxe um envelope grande e o estendeu para Kerry com um sorriso divertido.

- Acho que veio do departamento de esportes - disse ela.

Era um cartão com a figura de dois querubins e trazia, além da palavra "parabéns", uma dúzia de assinaturas. Devia ser do rapaz que dançara com ela e seus amigos.

- Não foi bacana eles terem se preocupado? - perguntou ela, rindo da ilustração.

Kerry colocou o cartão sobre sua mesa, vendo que o assunto já devia ser do conhecimento de toda a loja.

- Vai ser interessante observar as reações - comentou com Kate.

Kate esperou que ela se sentasse, antes de dizer, séria:

- Sabe, há algumas semanas eu achava que você e o sr. Sinclair não combinavam em nada, muito menos no casamento. Lembro-me de um dia ter entrado na sala da diretoria e encontrado vocês dois discutindo. Você parecia detestar o fato de ele ter voltado para casa.

- Muitas coisas podem acontecer em algumas semanas - disse Kerry. - Nós não temos família para contentar, a não ser os Barratt, claro, e por isso não precisamos esperar. - Ela já havia contado para a secretária os planos para sexta-feira, mas pedira segredo, por enquanto. - De qualquer modo, queremos estar de volta antes que a confusão comece.

- Tem razão, as coisas vão ficar complicadas durante alguns meses. - O comentário não era desaprovador. - As coisas começaram mesmo a mudar depois que o sr. Sinclair voltou!

Depois que Kate saiu, Kerry, num impulso, ligou para a sala de Ross.

- Está ocupado? Queria falar com você

- Claro, venha.

Ele achou o cartão engraçado e Kerry comentou:

- Estou querendo comprar algumas coisas para mim. Acho melhor ir até Leeds. Se eu for escolher aqui, o pessoal vai começar a falar.

- Se bem que vai haver falatório mesmo, depois que todos souberem que nos casaremos tão rápido, e bastará você engordar uns quilinhos para todo mundo dizer: "Eu não disse?!"

- E por acaso esse é mais um argumento para você não esperar até sexta? - perguntou Kerry, brincando, e ele sorriu de volta.

- Não, mas poderia ser. Você está enfraquecendo?

- Não - ela disse e riu.

- Que pena... - lamentou. - Por que não tira uns dois dias e vai até Londres? Poderia escolher melhor.

- E dormir lá? - perguntou ela, estranhando.

- Seria uma noite a menos para eu ter que me controlar...

Controle, pelo menos no que se referia a ela, pensou Kerry, e imediatamente se envergonhou. Não podia passar o resto da vida suspeitando de tudo o que ele falasse.

- Até que seria uma boa idéia. Eu poderia tomar o trem amanhã cedo e voltar na quarta à tarde.

- Ótimo. - Ele parecia à vontade, sem ter percebido a suspeita dela. - Eu disse à sra. Payne que não precisava preparar nada para hoje à noite. Vamos sair para jantar.

Ross acompanhou-a à estação no dia seguinte e, ao se despedir, disse:

- Tente ver se consegue assistir a um show hoje à noite. Será uma coisa diferente.

Durante o percurso, Kerry pensou em Larry. Não o havia visto desde a sexta-feira e, como ela não iria mais ao ensaio de quarta, ele teria que arranjar uma desculpa.

Já era mais de meio-dia quando chegou ao hotel em Londres. Largou as malas no quarto, se arrumou um pouco e saiu. Teria que almoçar rápido se quisesse aproveitar bem o tempo. No jantar, então, desforraria, prometeu a si mesma.

Aproveitou bastante a tarde. Sempre gostara mais de roupas simples, mas agora comprava pensando também se Ross iria gostar

Além das roupas, comprou muita lingerie. Ficou pensando como é que ficaria, com um conjunto de camisola e penhoar transparentes, tomando café na cabine do navio, arrumada e penteada... Graças a Deus não precisava enrolar os cabelos. Como é que faziam as mulheres que precisavam?

Conseguiu voltar para o hotel depois das seis horas, depois de esperar por mais de meia hora para conseguir um táxi. Estava esgotada e jurou que no dia seguinte iria levar as coisas com mais calma. Havia trazido uma segunda mala para colocar as compras e, no dia seguinte, deixaria as duas no guarda-malas antes de continuar comprando as coisas menores de que ainda precisava.

Gostaria que Ross estivesse ali com ela. Ainda era cedo para telefonar para ele, mas já era tarde para pensar em ir a algum espetáculo. Até que telefonasse para arranjar uma entrada e se arrumasse, não haveria tempo para jantar, e ela estava com fome. Não, ia jantar ali mesmo no hotel, dormiria cedo e no dia seguinte estaria mais bem-disposta para terminar as compras. Talvez desse até para pegar o trem de volta mais cedo.

Como não tinha pressa, demorou quase uma hora no banho e para se vestir para jantar. Às sete e meia pegou o telefone e discou o número direto para Underwood, com uma gostosa sensação de expectativa.

Meia hora depois tornou a ligar, e ainda ninguém respondia. Talvez ele tivesse ido jantar fora outra vez, pensou ela, mas não acreditava nisso. Ross é quem sugerira a ela para que dormisse em Londres. E para quê? Para que pudesse passar a última noite com Sharon. Ou, talvez, nem fosse a última. De qualquer modo, teria que esperar umas seis semanas até poder ver a loira dona da butique novamente.

Kerry não desceu para jantar; ficou tentando telefonar a cada meia hora até desistir, às nove horas. A noite foi longa; sentia fome e suspeita ao mesmo tempo.

Pela manhã, estava um trapo, mas bem resolvida: Ross ia ter que admitir a verdade para ela. O que aconteceria depois disso, nem ela sabia dizer, mas em algum canto do coração ainda esperava que estivesse errada.

O resto das compras foi um verdadeiro sacrifício. Comprou apenas aquilo que julgava muito necessário e dirigiu-se para a estação para pegar o trem do meio-dia, sentindo que todo aquele esforço talvez não tivesse valido a pena.

Apesar de tudo, tinha que comer alguma coisa e o almoço no trem serviu para distraí-la. Depois, sentada num banco da primeira classe, tingiu que cochilava para não ter que conversar com a companheira, que obviamente pretendia isso. Ouviu quando a outra descia do trem em Derby e depois disso caiu de verdade num sono profundo, embalada pelo movimento do trem.

O sonho era tão vívido que tinha até sons reais, não em sua mente, mas em seus ouvidos. Demorou algum tempo para perceber que não estava dormindo, mas deitada toda torta, com as pernas presas pelo banco da frente que parecia ter caído sobre elas. Havia muita fumaça e o teto parecia uma sanfona. De fato, o vagão inteiro parecia muito menor, as portas e janelas estavam arrebentadas. Seu casaco, que caíra do bagageiro, a protegera dos cacos de vidro que brilhavam aos milhares no sol da tarde.

Engavetamento. Fechando os olhos, tentou lembrar-se do que acontecera, mas estava tudo misturado com seus sonhos. Ross também estivera ali, eles haviam discutido e ele a empurrara, gritando, contra o assento do banco. Ainda havia gritaria, muitas vozes diferentes, vindas de fora e de dentro do trem. Alguém berrava, mais de histeria que de dor. Kerry não sentia dor alguma, suas pernas estavam amortecidas dos joelhos para baixo. Sua mente estava estranha, era como se tudo estivesse boiando. Ficou contente por suas malas terem resolvido cair longe dela, e nem terem se aberto!

Alguém ou alguma coisa puxava a porta para fora e a fumaça ficava mais densa, provocando-lhe tosse. Ouviu alguém dizer:

- Aguente aí, querida. Logo vamos dar um jeito de tirar você. - A respiração estava cada vez mais difícil; havia algo de estranho na fumaça. Se ela pudesse...

Voltou a si novamente na ambulância que corria com a sirene aberta, e por um instante imaginou quem é que estaria doente. Havia uma máscara em seu rosto e por ela vinha um ar diferente que entrava pelo seu nariz e por sua boca. Ergueu a mão e tentou tirá-la, mas alguém a segurou firme no lugar.

- Você respirou muita fumaça - disse-lhe o rapaz de branco. - O oxigênio vai ajudar a desintoxicá-la. Vamos chegar logo.

Onde?, pensou ela. Em casa? Sua consciência voltou de repente. Ross! E Ross? Será que alguém o avisou?

Depois, durante um longo tempo, foi como se estivesse de volta ao sonho. Percebeu vagamente que era transportada por um longo corredor com lâmpadas a intervalos regulares no meio do teto. Um elevador, depois outro corredor como o primeiro, e por fim uma cama, e mãos gentis que a ajudavam a tirar a roupa. Pela primeira vez sentia as pernas doloridas. Bebeu alguma coisa e sentiu uma picada. Lentamente tudo foi sumindo.

Desta vez havia luz no quarto. Ela estava deitada, apoiada em alguns travesseiros. Ross estava sentado na beirada da cama e segurava uma de suas mãos. Parecia esgotado, como se não dormisse há muito tempo.

- Oi - disse ele, baixinho. - Como está se sentindo?

- Morrendo de sede. Minha língua está tão seca que está grudando no céu da boca!

Ross largou da mão dela e despejou algo parecido com laranjada em um copo.

- Quer que eu segure para você?

- Não, estou bem. - Segurou o copo e bebeu. Era como se sentisse uma nova vida entrando junto com o líquido. - Que delícia! - Ficou olhando para o rosto dele, tentando descobrir alguma coisa. - Há quanto tempo está aqui?

- Faz algumas horas. Recebi o aviso às quatro e meia. São mais de oito agora. Só me avisaram que você tinha vindo para o hospital, vítima de um descarrilhamento. Eu tinha ouvido a notícia no rádio, mas pensei que você fosse pegar o trem da tarde.

- Mudei de idéia na última hora. - A mente se fechou sobre os motivos. - Pobre Ross, deve ter levado um susto.

- Susto? - Parecia estar experimentando o som da palavra. - Sim, acho que se pode dizer que foi isso. - Seu olhar percorria o rosto dela, detalhe por detalhe, a expressão dos olhos fazendo com que o coração de Kerry disparasse. - Só de pensar que, se você tivesse morrido, eu teria perdido tudo o que tem mais valor na minha vida! Eu amo você, Kerry. Não sabia o que isso queria dizer até esta tarde.

- Ross... - disse ela, trêmula, a mão estendida para ele. - Oh, Ross! Você não sabe como desejei ouvi-lo dizer isso! Você nunca disse isso, não assim...

Ele sorriu e apertou-lhe a mão.

- Se pensar bem, nem você disse isso. Apenas atração sexual, como você disse outro dia.

- É que eu estava tentando me conformar com a idéia. Eu amo você, Ross. Acho que sempre amei, mesmo quando o odiava. Queria que me notasse, que não me tratasse como criança. Quando você partiu, foi como o fim do mundo para mim.

Ele sacudiu a cabeça, devagar.

- Não era isso, era apenas um encantamento. Nós nos vimos de verdade pela primeira vez quando eu voltei para casa, só que outras coisas entraram no nosso caminho.

- As ações.

- Ao diabo com elas! Eu as teria queimado, se isso pudesse me devolver você!

Kerry olhou para a elevação formada por suas pernas, com medo de tentar mexê-las.

- Ross, não aconteceu nada de sério comigo, não é?

- Só alguns ferimentos e cortes pequenos, graças a Deus. Você ficou presa pelo banco, mas o estofamento a salvou. Eles tiveram que arrebentar metade do compartimento para tirá-la de lá.

- Houve mais gente ferida?

- Mais quatro pessoas, incluindo o maquinista. Ninguém morreu. Se pegarem quem colocou aquela pedra nos trilhos, a coisa vai ficar feia!

Kerry estremeceu ao se lembrar. Ross beijou-a e tudo ficou normal outra vez. Ela agarrou-se a ele, querendo que aquele braço a amparasse para o resto da vida.

- Quero ir para casa - disse ela, quando conseguiu falar novamente. - Ross, por favor, leve-me para casa.

- Não posso, pelo menos até amanhã. Eles querem que você fique em observação.

Uma enfermeira entrou para medir a pressão e a pulsação.

- Está um pouco rápida demais, mas isso deve ser pela presença de seu noivo - disse ela, rindo. - Acho que agora precisa ir, sr. Sinclair. Se tudo correr bem, amanhã ela poderá ir embora, depois que o dr. Baker a examinar.

- Certo. - Sem se importar com a presença da enfermeira, Ross abaixou-se e beijou Kerry na boca.

- Boa noite, querida. Volto amanhã.

Quando ele saiu, a enfermeira comentou:

- Lindo! Bem que eu gostaria que ele viesse me buscar amanhã.

Kerry deu uma resposta brincalhona, mas com dificuldade. Estava deprimida novamente. Ross havia dito que a amava, mas isso não alterava o fato de que não estivera em casa na noite passada...

No dia seguinte chegaram a Underwood a tempo para o almoço que a sra. Payne, cheia de preocupação, havia preparado.

- Teria sido uma pena se tivessem que adiar o casamento - disse ela. - Tem certeza de que está se sentindo bem?

- Oh, sim, sra. Payne. Estou ótima, só sentindo um pouco de dificuldade para andar, mas vai passar. E não vou precisar andar muito nos próximos dias.

Apenas quando viu o olhar maroto de Ross foi que caiu em si sobre o que acabara de dizer. Sentiu um nó no estômago. Em menos de vinte e quatro horas seria a sra. Sinclair, com todas as implicações. Será que um dia iria parar de suspeitar de Ross? Será que poderia haver felicidade sem confiança?

Ross fez com que ela tomasse um chá às quatro horas.

- Você pode não ter ficado ferida, mas foi um golpe sério. Se para mim foi, quanto mais para você.

- Foi mais emocional - disse ela, saboreando a palavra. Olhou para ele, alto e elegante, de pé perto da lareira. - Seis semanas. Ainda não acredito. Vamos ficar juntos durante seis semanas!

- Noite e dia - concordou ele. - Vai gostar do Rio, Kerry. Eu estive lá no último Carnaval.

Com quem? veio logo o mau pensamento... Ficou séria, odiando-se por não conseguir evitar aquele tipo de pensamento. Esperava que Ross não tivesse percebido nada.

- Imagino que o Natal lá também seja uma festa animada - disse depressa. - Vai ser o primeiro que vou passar em um país de clima quente. Acho que vai ser diferente...

- No entanto, aposto como no navio vai haver uma festa de Natal com árvore e tudo, tanto para as crianças pequenas quanto para as grandes.

Kerry fechou os olhos por um momento. Depois perguntou, sem agüentar mais:

- Ross, você tem certeza de que não vai se arrepender de se casar comigo? Quero dizer... depois de acabar a novidade... não vai se enjoar de mim?

- Está pensando novamente em Margot - disse ele, sério. - Quantas vezes terei que dizer que não é a mesma coisa? Eu não a amava e, na verdade, nem ela a mim. Apenas tínhamos a mesma necessidade básica. Só isso.

- Eu sei. Sinto muito. - Tentou encontrar as palavras certas para explicar: - É o fato de saber que você dormiu na mesma cama com ela, segurou-a em seus braços. Deve ter havido ocasiões em que achou que pudesse amá-la, pelo menos no começo.

Ele então se aproximou de Kerry, tirou-lhe a xícara da mão antes de se sentar a seu lado, o rosto sério.

- Kerry, você tem que entender que não há comparação entre o que eu sentia por Margot e o que sinto por você. Está certo, ela era boa companhia, e achei bom ficar com ela durante certo tempo, mas nunca pensei que fosse durar, porque sabia que isso não iria acontecer. Com você, sei que vai durar. Não me pergunte como sei, porque não poderia explicar. Você tem que acreditar na minha palavra.

Confiar nele... Essa era a questão. Esforçou-se para sorrir.

- Vou fazer isso, Ross. Juro que vou.

- Eu pretendia levá-la para dançar hoje, mas agora não dá. O melhor é jantarmos aqui e dormirmos cedo. A sra. Payne vai deixar tudo pronto antes de sair e só teremos que servir.

- Poderíamos acender velas para criar um ambiente diferente.

Ele riu e comentou:

- Acho que isso iria criar um ambiente até demais... Quer mais chá?

- Quero mais, mas eu mesma pego. Não estou inválida. Só vou ter que cobrir minhas pernas durante alguns dias. Vão ficar roxas.

Ross olhou para as pernas elegantes de Kerry e tocou de leve numa das bandagens.

- Graças a Deus foi só isso. Esses ferimentos desaparecem, apesar de na hora doerem feito o diabo.

A sra. Payne saiu às seis horas mas, antes de ir, entregou a Kerry um embrulhinho, com um sorriso sem jeito.

- É só uma coisinha, porque sei que vocês não precisam de nada. É meu, de Sheila e de Billy.

A coisinha acabou sendo um pequenino vaso de cristal, lindo.

- Oh, sra. Payne, é lindo! Muito obrigada.

- Não é muito grande - disse a sra. Payne. - Mas acho que vai ficar bem na prateleira pequena da sala de visitas, e combina com os outros enfeites, não acha?

- É, sim. Na verdade, acho que alguns deles eram da época do casamento de Andrew com a mãe de Ross. Agora posso juntar este à coleção. - Num impulso, beijou o rosto da sra. Payne. - Mais uma vez muito obrigada. Vou mostrar a Ross antes de você sair.

- Vai ter muito tempo para isso, depois. Vá e divirta-se naquele barco. Quando voltar, vai ser a sra. Sinclair. No começo vai ser engraçado. De qualquer modo, vejo vocês dentro de seis semanas.

Dali a seis semanas, pensou Kerry. Será que iria continuar a mesma? Ou ficaria mudada com o casamento? Ross tinha uma personalidade tão forte que poderia obscurecer a sua.

Por ser essa a última noite dos dois sem estarem casados, ela caprichou, colocando um vestido de veludo vermelho, de cintura justa. Desceu para dar uma olhada nas panelas e pegar uma caixa de fósforos para acender as velas. Estava passando pelo hall quando o telefone tocou. Esperando não ser nada que pudesse atrapalhar o programa daquela noite, atendeu com voz séria.

- É Bob Brown, senhorita - anunciou uma voz vagamente familiar. - Sou o vigia noturno da loja. Queria saber se o sr. Sinclair vai vir à loja hoje. É que ele sempre me avisa antes, por causa do alarme. Como eu disse a ele na noite passada, depois da tentativa de arrombamento precisamos ter muito cuidado.

- Noite passada? - Kerry sentia-se estranha, a mente se recusando a perceber o significado do que ele dizia. - O sr. Sinclair esteve na loja na noite passada?

- Isso mesmo senhorita. Veio às oito, como sempre, e saiu às onze. Ele trabalha duro. Toma uma xícara de café junto comigo às dez horas e conversa um pouquinho.

- E há quanto tempo ele vem fazendo isso? - perguntou ela, seca.

- Duas ou três noites por semana. - Ele parecia estar estranhando as perguntas. - Fez um pouco de companhia para mim. Sabe como é, à noite isto aqui é muito solitário.

- Sim, tenho certeza que é. - A desconfiança estava dando lugar a uma enorme vergonha, que deixou sua voz rouca: - Não, hoje ele não vai, sr. Brown. Nós... ele vai viajar durante algum tempo.

- Ah, então está bem. Posso ficar sossegado. - Fez uma pausa e acrescentou: - E, senhorita, espero que esteja melhor. Soube do desastre do trem. Soubemos também que não havia se machucado muito, mas essas coisas deixam a gente chocado.

- Está certo, sr. Brown. Obrigada por perguntar. Vou dizer ao sr. Sinclair que telefonou.

- Dizer ao sr. Sinclair que quem telefonou? - perguntou Ross, descendo as escadas. - Espero que não tenha que telefonar de volta, porque, seja quem for, vai ficar esperando seis semanas.

Kerry controlou a voz, querendo desabafar tudo de uma vez, mas preferiu contemporizar.

- Foi o guarda da noite. Queria saber se você ia para a loja hoje.

- Ora, diabos, me esqueci de avisá-lo. - Olhou para ela, rindo. - Acho que tinha outras coisas na cabeça.

- Ele disse que você tem ido trabalhar à noite. Achei que estava bem adiantado com os planos para a reforma, mas não dava para trabalhar em casa?

- Aqui me disperso muito. - Sacudiu os ombros. - Se eu ficasse aqui, junto com você, acabaríamos brigando outra vez e eu achei melhor adotar a política da resistência passiva. - Uma centelha brilhou em seus olhos. - E até que deu certo, não? Dava até para sentir sua frustração quando eu parei de persegui-la...

- Você nunca me perseguiu - respondeu ela no mesmo tom. - Pegou-me antes que eu tivesse chance de correr!

O jantar preparado pela sra. Payne foi, como sempre, delicioso, mas Kerry quase não tocou na comida. Sua consciência pesava demais. Se Ross chegou a notar que estava tensa, não disse nada. Talvez pensasse que ainda era efeito do acidente de trem.

Estavam na saleta, tomando café, quando se decidiu. Tinha que fazer uma confissão. Ainda bem que as luzes estavam fracas, e a música suave serviria como antídoto contra a raiva que talvez ele fosse sentir.

Disse tudo de uma vez, antes de se arrepender.

- Olhe, eu estava desconfiada de que você estivesse se encontrando com Sharon West durante todo esse tempo. Continuei acreditando, mesmo depois de você ter negado.

Ross estava recostado no sofá, a cabeça apoiada nos braços, o rosto mal aparecendo, iluminado apenas pela claridade da lareira.

- Eu sei - disse ele. - Estava vendo quanto tempo ia demorar para Bob Brown contar o que acontecia.

Ela não disse nada durante longo tempo, olhando para ele, tentando imaginar o que estava pensando.

- Isso não incomodava você?

- Claro que incomodava - afirmou, calmo. - Mas você tinha que descobrir por conta própria.

- E se eu não descobrisse?

- Acho que teria de viver com o que pensava ser verdade. Eu já havia dito uma vez que não era verdade, e não ia mais repetir. - Virou o rosto para o outro lado. - Existe uma enorme diferença em mentir e evitar contar uma coisa. Eu não contei a você sobre Margot porque, primeiro, o caso já havia acabado antes de eu voltar e, depois, sabia que você não ia agüentar.

Ela suspirou.

- E você não sabe do pior. Eu telefonei de Londres na quarta à noite.

- Pensei que você fosse a um show.

- Quando voltei das compras já era tarde demais.

- Se eu soubesse, teria ficado em casa. Fico distraído quando você está aqui e aflito quando não está.

- Sinto muito - disse ela.

- Por quê? Por não confiar em mim?

- No futuro vou confiar.

Ross sacudiu a cabeça.

- Vai demorar, não culpo você. Nunca revelei uma imagem muito digna de confiança. Eu usaria qualquer truque para evitar que você se casasse com aquele seu amigo e, pode me acreditar, não era por causa das ações!

- Mas deu essa impressão.

- Claro que dei essa impressão. Achava que qualquer outro motivo não teria tanta força.

- Oh, Ross, amo você...

Ele estendeu o braço e puxou-a para si, de modo que ela ficasse recostada em seu ombro. Beijou-a apaixonadamente, e ela respondeu do mesmo modo, excitando-o cada vez mais. Kerry não o evitou; agora não se importava mais em esperar, não se incomodava com nada a não ser com o que estava acontecendo naquele momento.

Foi o próprio Ross quem parou, depois de um grande esforço.

- Não - disse ele. - Se chegamos até aqui, não custa esperar até amanhã. - Abaixou o vestido de Kerry, levantou-se e deu-lhe um beijo rápido na testa. - O melhor lugar para você é na cama, fora da tentação. Vamos ter todo o tempo do mundo de amanhã em diante. Não fique triste. Você vai estar com a aliança no dedo quando acontecer. Vá subindo. Uma noiva tem que estar bem descansada.

Kerry obedeceu-o, mas cheia de dúvidas, achando que havia falhado, de algum modo e sem saber por quê.

Uma hora depois, já deitada, descobriu o que era. Ela havia dito a ele: "eu o amo, Ross" - que para ela significava tanto. Mas nunca dissera: "Ross, eu desejo você" - que para ele significava muito mais.

De repente, resolveu-se. Suas camisolas estavam guardadas na mala. Colocou o mesmo roupão que usara naquele dia no escritório. O corredor estava às escuras e ela foi tateando o caminho até o quarto de Ross, que subira há uma meia hora.

Ross estava deitado de costas, mas não dormia. Ergueu-se na cama ao ver Kerry entrando; o luar que entrava pela janela fazia seus cabelos brilharem.

- Há uma coisa que eu me esqueci de dizer para você lá embaixo - disse. Deixou cair o robe, vendo o rosto dele cheio de alegria e sabendo que era por ela. A emoção fez com que sua voz soasse rouca: - Desejo você, Ross. Não amanhã à noite, mas agora...

Sorrindo, ele ergueu as cobertas e disse:

- E amanhã à noite também, espero...

Um longo tempo depois, deitada nos braços dele, Kerry começou a rir.

- De qualquer modo, amanhã no navio, talvez eu ficasse enjoada...

 

 

                                                                  Kay Thorpe

 

 

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