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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TUDO POR ELE / Josiane da Veiga
TUDO POR ELE / Josiane da Veiga

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Eloise Hopp é uma famosa escritora que se vê diante de um fato enigmático. Quanto mais estuda sobre eventos ocorridos durante a Segunda Guerra, mais ela se convence de que fez parte de tudo aquilo.
Após uma entrevista em que narra sua determinação em falar sobre os campos de concentração, recebe ameaças de um grupo neonazista que jura vingança. Contra os vilões, existe apenas um obstáculo: Théo Garcia, um antigo detetive linha dura que mexe completamente com seu mundo.
Porém, não é apenas a guerra que Eloise sente viver. Théo parece fazer parte de sua alma, sua existência... De alguma maneira, ela sabe que é um amor que ela trouxe de outra vida.

 


 


Capítulo 01

O amor não existe

Brasil, Dias atuais.

Ele podia sentir o cheiro da carne queimada e das fezes, sangue e urina, que se alastravam por todo aquele lugar.

O chão era barrento, e havia algo naquela terra que se impregnava nas botas de couro e pareciam não querer sair de lá.

Era uma marca. Mais que física. Algo que levaria cravado a ferro na própria alma.

Caminhou reto, como se o destino estivesse puxando-o aonde devia estar. E, foi assim que a viu, em seguida, como uma peça do acaso, encaixando-se exatamente na posição que os deuses que regiam o universo queriam.

Deitada no chão molhado, morta.

Morta!

O fim da felicidade, e o começo do pesadelo.

— Não, Esther! — gritou.

Ele a havia perdido... Novamente.


— Não, Esther! — o grito ecoou pelas paredes do quarto.

Théo Garcia respirava rápido, enquanto tomava consciência de onde estava.

Deitado na cama, coberto por uma camada fina de suor, o coração aos saltos, o desespero de quem havia acabado de sair de um pesadelo latente.

Ergueu-se, rumando até à cozinha, buscando água no refrigerador.

O líquido gelado desceu por sua garganta, enquanto o homem visualizava a si mesmo pelo reflexo de um pequeno espelho postado na parede.

Há muitos anos tinha esse pesadelo recorrente. Uma mulher que não conhecia, deitada no chão, e a certeza de uma culpa avassaladora tomando-o.

Aqueles sonhos estavam tirando dele a sanidade. E, Deus sabia, uma mente sã era a única coisa que ele ainda tinha.

O homem estava desempregado, cheio de dívidas, e mal conseguia sair de casa. Abarrotado em problemas, desesperado num mundo que não se encaixava... Nada para ele parecia certo.

Tinha trinta e três anos, dos quais dez passou servindo no departamento de homicídios de Porto Alegre. Foi um erro, numa de suas missões, que fê-lo perder a carreira promissora e deixá-lo preso por um ano e meio. Depois que saiu da prisão militar, fez bicos para se sustentar, mas nada que lhe despertava qualquer sensação.

Era como se o coração dele não batesse, como se a comida não tivesse sabor, como se a vida fosse preto e branco. E tudo por causa dela...

Esther...

Alguém que ele nunca vira, mas que aparecia com frequência em seus sonhos, às vezes sorrindo para ele, às vezes morta.

E tudo que restava para aquele homem agoniado era viver dia após dia, sem esperança de solução.

Sentou-se no chão da cozinha, na escuridão daquela madrugada. Solitário, fez o que há muito não fazia, rezou.

Se havia um Deus no céu, que lhe mostrasse onde estava Esther, quem ela era, e porque não o deixava em paz.

Precisava resolver aquilo antes que ficasse louco.

 

O som dos saltos altos ecoou pelo piso de cerâmica clara.

Rafaela Albuquerque buscou o noivo com o olhar, e logo o encontrou, sentado na sala de espera, o semblante apático, como se estivesse encarando algo além do que os olhos podiam ver.

Sentou-se ao lado dele, buscando suas mãos, segurando-as firme, como se quisesse expressar o quanto estava ali para ele, e o quanto lutaria para que ele conseguisse superar mais aquela dificuldade.

O hospital de Emergências de Porto Alegre estava lotado, como de costume, mas a irmã de Caio Hopp havia sido atendida com rapidez, tão logo chegou ali.

Em muito porque o caso dela havia sido grave, os pulsos cortados haviam despejado muito sangue e ela estava num estado crítico, em muito porque eles tinham dinheiro suficiente para conseguir atendimento preferencial.

— A televisão estava ligada — Caio murmurou para a noiva, que apertou seus dedos, como se tentasse contê-lo. — Sabe o que diziam?

— Não importa o que dizem. Não conhecem Eloise...

— Num programa matutino questionaram a sanidade dela. Depois, agrediram-na com palavras. Chamaram-na de fraca.

— Caio...

— Como uma mulher famosa, uma autora internacionalmente conhecida, jovem, saudável, bonita... Como alguém como ela pode tentar suicídio?

— As pessoas têm dificuldades de compreender a depressão — Rafaela murmurou.

— Milhares de pessoas passando fome, doentes, cheias de problemas, e enfrentando seus problemas de cabeça erguida, mas minha irmã, ela sequer quer lutar...

— Não faça isso! — Rafaela retorquiu. — Não caia na armadilha de ficar contra sua irmã. Você é tudo que Eloise tem, Caio!

Ele respirou fundo. Na verdade, estava cansado. Gêmeos, sempre foram muito ligados. Eloise, desde criança nasceu com o dom da escrita, e ele sempre a apoiou. O pai, ao contrário, achava a filha medíocre e nunca lhe deu qualquer chance.

Quando o pai e a mãe se mudaram para o interior, e deixaram a Hopp Editora em suas mãos, ele investiu na carreira da irmã.

Foi um tiro certeiro.

Em pouco tempo, com a divulgação certa, ela se tornou uma das autoras mais vendidas do país. Após um diretor americano descobrir seus livros e levá-los ao cinema, ela conquistou o mundo.

Contudo, nada trazia um mero sorriso ao seu rosto. Eloise fugia de todos, inclusive do carinho dos fãs. Não frequentava eventos, evitava palestras, festas, ou qualquer ambiente em que sua presença poderia ser aclamada.

Seus romances, criticados por especialistas como “ literatura de mulherzinha ”, eram adorados por muita gente, mas massacrados por outro tanto. Na época em que as críticas se tornaram mais pesadas, chegaram a um consenso. Precisavam de outro nome forte na editora, a fim de salvar a irmã do ataque maciço dos ditos intelectuais.

Assim, nasceu um alter ego, Valentina Bianchi, que escrevia a literatura respeitável que Eloise Hopp jamais conseguiria, tamanha mancha em seu nome.

Aquele segredo guardado a sete chaves por Caio, fez com que ambos os nomes fossem referenciados na literatura nacional, mas de formas diferentes. Contudo, tanto sucesso não apagava na irmã a intensa condição de fracasso.

— Você sabe... — ele murmurou em direção à noiva. — Ainda me pergunto como ela conseguiu se apaixonar tanto pelas palavras. Quando éramos crianças, ela tinha uma enorme dificuldade com dicção. Sempre falava meu nome errado.

— É mesmo?

— Ela me chamava de “craus” — ele gargalhou, lembrando-se do apelido. — Nunca de Caio. Meu pai ficava muito chateado, achava que ela nunca conseguiria falar direito...

— Mas, aprendeu. E talvez não fosse Caio e sim caos. Ora, os dois irmãos juntos são bem intensos — brincou. — O talento dela para a escrita e o seu para os negócios tornaram ambos muito ricos.

— O que prova que o dinheiro definitivamente não traz felicidade.

No corredor surgiu um médico. Ele aproximou-se do homem e lhe estendeu a mão.

— Sua irmã está fora de perigo — disse, fazendo com que um suspiro de alívio escapasse dos lábios de Caio Hopp.

— Posso vê-la?

— Está sedada, mas sim... Pode ir vê-la.

Rafaela o seguiu, enquanto o homem de trinta e três anos aproximava-se da cama hospitalar. A irmã, da mesma idade, havia nascido alguns segundos após ele. A ligação era mais que algo de útero. Suas almas estavam conectadas, e ele importava-se tanto com ela ao ponto de sentir quando algo não estava certo.

Foi assim que deixou o escritório naquela manhã, tão logo uma potente sensação de horror o tomou. Dirigiu para a casa da escritora, afastada da capital, e a encontrou nua, na banheira, com os dois pulsos cortados.

— Eu não sei o que seria de mim se eu a perdesse — murmurou para Rafaela, que acariciou seus cabelos, dando-lhe um leve beijo na têmpora.

— Você não vai — a mulher afirmou, transmitindo forças.

Eles ainda não sabiam, mas aquela existência era uma nova oportunidade. E Eloise estava fazendo o possível para perder essa chance.

 


Capítulo 02

 

O amor que existe


Eloise Hopp havia mandado construir uma mansão em um lugar afastado na Grande Porto Alegre. Era um terreno baldio, cercado de árvores, próximo da rodovia — mas longe o suficiente das pessoas que pudessem querer ter algum contato — que ela encontrara, a uma pechincha, o lugar certo para morar. E lá se cercara de muros, e todo tipo de alarme e proteção.

Não era por medo da violência que a cada dia crescia mais no seu país. Eloise temia algo dentro de sua alma, um tormento que lhe tirava o sono, que fazia a mulher parar ao lado da janela como se a espera de alguém que viesse buscá-la e levá-la ao inferno.

O som de muita gente a destruía. O isolamento também lhe causava repulsa. Não havia espaço para sua pessoa, em canto nenhum. Tudo que restava na mulher era um medo infundado que ela desconhecia as raízes, mas que se tornava a cada dia mais forte e intenso.

Um dia uma turma de vizinhos em festa explodiu alguns fogos em comemoração. O som fê-la rastejar até o armário e esconder-se lá. Tremia tanto, que mal conseguia deixar o ambiente.

Foi uma amiga, Amanda, que a encontrou, no dia seguinte, após ela não retornar as ligações, completamente apavorada.

— Falta Deus na sua vida! — a mãe despejara, certa vez, diante de sua agonia.

Eloise chorou perante as palavras, porque ela acreditava em Deus, e porque sempre orava a Ele pedindo que a protegesse. Então, o que mais poderia fazer? Enfiar-se em uma igreja onde mais gente a desesperaria, ou simplesmente aceitar que aquele mundo não era seu lugar.

Optou várias vezes pela última alternativa.

Agora, ao retornar para casa depois de mais uma experiência no hospital, ela observou os móveis escolhidos com cuidado enquanto o abraço do irmão gêmeo, Caio, parecia acalmá-la como mais nada fazia.

— Vou preparar um café — Rafaela murmurou, muito mais para deixá-los a sós do que pela necessidade de bebida.

A cunhada era maravilhosa em todos os sentidos, e ela sentia que poderia deixar Caio porque ele jamais estaria sozinho enquanto a mulher de cabelos tingidos de loiros e olhar acinzentado estivesse ali.

Rafaela era parte de sua família como Caio.

Eloise desvencilhou-se dos braços do irmão e procurou uma bancada. Logo, encontrou uma carteira de cigarros e, mal o pegou, já vasculhava a procura do isqueiro.

— Pare com isso, Eloise — Caio reclamou, ele odiava vê-la fumar. — Venha cá.

Puxou-a diante do espelho para que ela visse seu reflexo. Os cabelos sem vida, a pele pálida, o peso que faltava, o olhar agoniado cercado por olheiras negras e profundas.

— Por que está fazendo todo o possível para se autodestruir?

A pergunta tinha uma resposta. Mas, Eloise não conseguia verbalizá-la. Simplesmente, ela não suportava a vida. Seus dias eram agonias sem fim, um medo irracional, um desespero descomedido.

A morte poderia ser um alívio, então ela a procurava, de todas as maneiras. No cigarro, na bebida, na automutilação...

A mulher afastou-se do irmão e voltou para o cigarro. Sentou-se no sofá, sugando a fumaça mentolada, acalmando seu pensamento desconexo.

Caio era tudo que lhe restava. Os pais nunca a amaram, sempre considerando-a excêntrica demais, diferente demais de todos, mas o irmão a colocava acima de qualquer coisa.

— Quero assumir que sou Valentina — ela contou, depois de um tempo.

Caio a encarou como se não a entendesse.

— A ideia de criar Valentina foi sua.

— Um pseudônimo para escapar do massacre dos críticos perante tudo que eu escrevo.

O irmão sentou-se ao seu lado, puxando suas mãos. Tentou ser compreensivo.

— Seria realmente um tapa de luvas nos pseudo intelectuais desse país — ele brincou. — A autora que eles veneram é a mesma autora que eles trucidam a cada obra lançada.

A irmã sorriu.

— Como está se sentindo? — Caio indagou.

— Bem. Agora, bem.

Ele compreendia. Estava sob o efeito da medicação. O problema é que o tempo corria, e com a passagem dos dias, a doença voltaria a atormentá-la.

— O que você acha de nós morarmos juntos?

— Eu lá sou mulher de ficar me enfiando na casa do irmão e da noiva dele?

— Rafaela também se preocupa contigo.

— E eu a amo por isso, mas eu preciso ficar sozinha, irmão.

Eles se recostaram no sofá. Eloise deitada no ombro másculo, enquanto Rafaela adentrava a sala com um bule e xícaras.

— A escrivã mais importante da polícia também é uma ótima secretária — Eloise brincou, ao bebericar o café.

— Então no seu próximo livro escreva sobre uma secretária que conquista o chefe fazendo bom café — riu.

Aquele pequeno e breve momento de descontração morreu nas palavras seguintes.

— Meu próximo livro será uma biografia.

Caio arqueou as sobrancelhas.

— Como assim? Você não é uma biógrafa.

— Não importa. — Levantou-se. — Sigam-me.

No escritório onde Eloise criava suas obras, o trio parou diante do um quadro sombrio, uma obra de cores intensas e quentes, antagonizando com uma nuvem negra que lembrava muito uma pessoa.

— Isso me dá arrepios — Rafaela murmurou.

— O nome da obra é “Perdida”. Comprei na galeria onde Amanda trabalha — explicou. — O artista se chamava Therron Esme. É muito famoso na Europa. Esse quadro me custou uma pequena fortuna.

— É desse artista que fará a biografia? Não vai vender, pois não tem fama popular.

Como sempre, o irmão era prático.

— Ele é famoso, e vai vender. A história da vida dele é muito interessante.

— Mesmo? Conte-me.

— Era uma artista de rua, que perdeu a esposa para os nazistas. A mulher era judia e foi levada para um campo de concentração. Ele enlouqueceu enquanto a buscava, mas só achou seu cadáver.

— Que triste... — murmurou Rafaela.

— Vou levar às pessoas a história de amor deles. Ainda tenho muito a pesquisar, mas tenho tempo.

Era até cômico que ela dissesse isso, quando estava voltando do hospital depois de ter tentado se matar. Tempo parecia exatamente o que faltava a Eloise.

— Não tenho certeza que esse tema vai te fazer bem, Eloise — Caio murmurou. — Por que não tira férias? Poderíamos ir à praia...

— Você ainda não entendeu, meu irmão? Não é o autor que escolhe seu livro, são os personagens que apontam seus dedos para nós e nos mandam dedilhar as palavras. Esme já me enfeitiçou, eu não terei paz enquanto não terminar essa obra.

Caio conhecia a irmã. Nada do que dissesse tiraria Eloise do caminho que escolheu. Ela iria escrever aquele livro, gostassem as pessoas ou não.

— Apenas, cuide de sua saúde, está bem? — Resolveu mudar o tópico da conversa. — Aliás, existe um convite para uma entrevista nacional sobre sua última obra. Gostaria de saber...

— Aceito.

— Mas, sabe que usaram seu tempo no hospital...

— Estou preparada para enfrentar as perguntas. Estou forte, hoje, irmão. Não sei se amanhã estarei, mas hoje estou. Então, me ajude a ficar assim, por enquanto.

Ele a abraçou, jurando ampará-la. Seu amor seria a fortaleza de ambos.

 

Capítulo 03

 

A coragem


Um homem parado em frente ao palco encarava a plateia enquanto fazia alguns comentários políticos, tema daquele dia.

Arthur Deval era um dos apresentadores mais aclamados da nova geração, e seu programa em horário nobre era assistido em todo país. Atrás do palco, Eloise encarou Caio, que apenas apertou seus ombros, enquanto lhe transmitia força.

— Se não gostar da pergunta, diga que está desconfortável e saía do palco, entendeu? — aconselhou. — Você aqui é convidada e eles te devem respeito.

A irmã sorriu, concordando. Contudo, no fundo, sabia que não iria fugir. Ela precisava enfrentar aqueles pequenos obstáculos, dia após dia.

— Estarei à sua direita, no palco — Caio avisou. — Bem no seu campo de visão.

“O campo nunca sairá de você”.

Aquele múrmuro em sua mente quase a fez perder a força nas pernas, mas ela se recompôs em seguida, não querendo preocupar o irmão.

Às vezes, ouvia vozes. Palavras como “ suja ”, “ imunda ”, “ sub-humana ”, costumavam pegá-la desprevenida. Normalmente tinham entonação masculina, mas agora o tom havia sido calmo e feminal.

Respirou fundo, tentando manter a tranquilidade. Precisava disso. Precisava saber que estava no controle, que não perderia para seus medos, suas dores.

— A nossa convidada de hoje é uma recordista de venda de livros no nosso país — ouviu a voz do apresentador, e Caio sorriu para ela, preparando-a para entrar no palco. — Eloise Hopp!

Enfim, ela entrou e rumou até o entrevistador, que a recebeu com um aperto de mão e a convidou a sentar-se diante de sua mesa.

As luzes tão brilhantes quase a impediam de ver a plateia, e ela ficou feliz por isso, porque pessoas aglomeradas lhe tiravam o chão.

— Esteve alguns dias no hospital. Está melhor? — começou Arthur, a queima roupa.

— Sim, estou. Obrigada por perguntar.

Havia um murmurinho baixo. Estavam-na julgando, ela sabia. Mas, ergueu o queixo e tentou aparentar força.

— Você é uma das autoras mais vendidas...

— Na verdade — interrompeu-o. — Se você juntar minhas vendas de meu nome real, e minhas vendas com meu pseudônimo, Valentina Bianchi, eu sou a autora mais vendida do momento.

Em seu canto, Caio sorriu diante da sagacidade da irmã. O golpe havia sido de mestre. Quem se importaria com seus problemas particulares quando aquela bomba era atirada diante de todos?

As duas autoras mais aclamadas do momento eram a mesma pessoa?

— Você é Valentina Bianchi?

A voz de Arthur denotava imediatamente que as coisas haviam desandado. Eloise percebeu que metade das perguntas que ele havia preparado era comparativos entre ela e sua “rival”.

— Sim, somos.

— Mas... Achávamos que a editora mantinha a identidade de Valentina em anonimato porque queriam destacar as suas vendas.

— Meu irmão, meu editor e dono da editora que detêm os direitos de minhas obras sempre manteve Valentina em anonimato por desejo meu.

Papeis foram mexidos e ela percebeu que o diretor do programa tentava ajudar o apresentador através de uma escuta. Em silêncio, Eloise aguardou.

— Me fale de seus próximos projetos, Eloise — ele mudou completamente o assunto. Ela quase riu.

— Estou preparando a biografia de Therron Esme, um pintor francês que viveu em meados da Segunda Grande Guerra.

Aquilo pareceu salvar a entrevista.

— E o que há de interessante na vida desse pintor?

— Ele lutou na resistência contra os nazistas. A esposa foi levada para um campo de concentração, e morreu em Auschwitz.

— Ah, falará sobre o holocausto?

— Sim. — A afirmação a surpreendeu. Não tinha intenção de falar sobre os campos de concentração, e sim focar na vida de Esme. Mas logo se viu a afirmar, sem conseguir se conter: — Quero narrar exatamente como era a vida nos campos da Polônia, e o quanto os alemães nazistas fizeram o possível para tirar das classes não aceitas por eles seu senso de humanidade. Meu próximo livro será um tributo às pessoas que não sobreviveram aos campos da morte.

Enquanto o entrevistador chamava o intervalo, algumas cenas passaram-se na mente de Eloise. O corredor com cercas de arame farpado, rostos desconhecidos banhados em sofrimento, e uma dor que parecia insuportável.

— Você está bem?

A voz do irmão a tirou do devaneio. Eloise encarou Caio, e não sabia se devia pedir ajuda ou continuar onde estava.

— Quer encerrar? — ele insistiu.

Ela pensou um pouco. Um membro da produção se aproximou avisando que eles estavam voltando ao ar.

— Peça para ele perguntar coisas alegres — ela murmurou, e o irmão assentiu.

Depois disso, a pauta do programa foram os romances leves que Eloise escrevia. Falaram dos filmes, dos atores, e dos fãs.


Arthur Deval não teve a melhor entrevista de sua vida, mas as revelações de Eloise naquela noite foram notícia no mundo todo.


Rafaela Albuquerque tinha vinte e dois anos quando conheceu o editor Caio Hopp. Ela estava começando seu trabalho de escrivã na polícia de Porto Alegre e o homem havia ido ao departamento prestar depoimento depois da primeira tentativa de suicídio da irmã, que foi um emaranhado tão grande de circunstâncias que mais parecia tentativa de assassinato.

Eles se encararam, sorriram um para o outro e, no dia seguinte já estavam se encontrando para tomar café.

Rafaela era uma mulher solitária, criada num lar desfeito. O amor de Caio por Eloise, e o cuidado que ele tinha pela irmã a encantou.

Enquanto muitos se intimidavam pela relação próxima dos gêmeos, ela ficara fascinada com o afeto que ele demonstrava pela irmã excêntrica.

Conhecia Eloise pelos livros que escrevia, mas apaixonou-se pela pessoa sincera que encontrou quando a viu pela primeira vez. Foi simpatia à primeira vista.

E, desde então, sempre cuidou da cunhada, da melhor maneira que conseguia.

Foi por conta disso que quando o nome dela surgiu nas conversas naquela manhã na delegacia, Rafaela interessou-se mais que o normal.

— Como assim, neonazistas? — indagou a um dos policiais, que comentou sobre os ataques cibernéticos que a cunhada estava recebendo no Twitter.

Então o homem mostrou o celular para Rafaela. A loira leu as mensagens de ódio, que incentivavam uma retaliação à escritora por endossar o “ holoconto ”.

— Holoconto? — murmurou, em questionamento.

— Os nazistas dizem que o holocausto foi uma mentira pós-guerra — explicou.

— Mas existem dezenas de relatos, fotos...

— Falam ser montagem. E, por causa da entrevista de ontem, Eloise Hopp acabou por entrar na lista negra deles. Estamos monitorando as conversas, mas seria bom ela ficar precavida — aconselhou. — Ela é sua cunhada, não é? Talvez deva conversar com ela.

— Como assim?

— Ela tem segurança em sua casa?

— O normal — apontou. — Alarmes, etc.

— Uma autora famosa devia ter um segurança armado — aproximou-se mais da loira e murmurou, em tom cúmplice. — Théo Garcia está desempregado, você sabe...

— Ele não tem posse de arma.

— Como se alguém precisasse disso — deu os ombros, sussurrando. — O homem odeia os nazistas, você sabe o que aconteceu, não é? Ele poderia ser segurança de Eloise — sugeriu.

— Você acha que aceitaria?

— Está desempregado — o outro apontou. — Me dá pena, era um grande policial, honesto, dedicado... Não merecia o que está passando. Então, se eu pudesse aconselhar sua cunhada, seria em contratar o homem. Ele vai cuidar dela.

Por algum motivo obscuro, Rafaela soube que era a melhor decisão que se poderiam tomar.

 

Capítulo 04

 

Decaída


As primeiras páginas da biografia de Therron Esme chegaram ao e-mail de Caio Hopp naquela manhã de quinta-feira.

Já fazia alguns dias que a irmã trabalhava no projeto, e ele esperava mais material, pois ela era muito prolífera. Contudo, o pouco que chegou a ele denotou o tamanho do tormento que Eloise estava conseguindo passar em palavras.

Era palpável. Cada linha transparecia a dor. Como ela havia descoberto tantos detalhes, o irmão desconhecia, mas sabia que ela estava enfurnada em livros e sites pesquisando tudo que conseguisse. Até obteve um modo de falar com a neta de um tal Pierre, médico amigo de Therron, que morreu nos anos setenta de câncer.

O projeto dela era sério, e merecia dele o máximo cuidado. Portanto, antes de começar a editar as linhas e observar atentamente cada detalhe, a fim de dar sua opinião à irmã, ele foi à cafeteira servir-se de uma xícara de café. Depois, tirou o telefone do gancho e pediu que a secretária não o chamasse.

Contudo, tão logo sentou-se à mesa, a porta se abriu. O rosto de Rafaela surgiu, e ela sorriu.

— Não brigue com Tereza — apontou a secretária. — Ela me explicou que está trabalhando, mas precisamos muito nos falar.

O homem assentiu e a noiva adentrou a sala.

— Sim? Aconteceu algo?

— O departamento de Polícia está preocupado com Eloise.

— Como assim? — seu tom denotava alarme.

— A entrevista dela mexeu com os brios de alguns grupos neonazistas. Parece que se ofenderam porque ela quer falar sobre o holocausto. E, você sabe, na capital, infelizmente, existem vários grupos agindo de tocaia.

Caio resvalou para trás na cadeira.

— A polícia irá falar com ela?

— Na verdade, estão monitorando tais elementos e tentando não criar alarde, pois pode ser apenas ameaças infundadas. Mas, por precaução, seria bom que ela tivesse um guarda-costas.

O noivo concordou.

— Irei ligar para uma empresa de segurança.

— Eu tenho alguém pra indicar — ela cortou. — Um ex-policial expulso da corporação.

Caio a encarou, embasbacado.

— Que excelente sugestão! — exclamou, irônico.

— Te garanto que a expulsão não foi por desonestidade. Na verdade, Théo Garcia é um homem bom, uma pessoa que todos no departamento gostavam muito. Mas, ele cometeu um erro durante uma investigação. Na verdade, sob meu ponto de vista, sequer foi um erro, mas infelizmente a imprensa não viu assim, e ele foi afastado.

— E você vai me dizer que erro é esse ou eu terei que pesquisar na internet?

— Eu gostaria que não pesquisasse. Deram uma imagem de um homem violento, e ele não é. Grosseirão, até pode ser, mas não é covarde. Além disso, confie em mim, Théo vai cuidar bem de Eloise. Estou te pedindo esse voto de confiança.

Eloise era preciosa demais para Caio, mas Rafaela era de sua mais absoluta confiança. A noiva não lhe indicaria alguém que não estivesse acima de qualquer suspeita.

— E como faço para encontrar esse homem?

 


Os dedos batiam com força no teclado. A visão na mente da autora remetia há um tempo que havia se findado, mas que ainda causava calafrios em gente do mundo todo.

Os muitos livros de história, onde ela fazia a pesquisa, estavam abandonados ao lado da escrivaninha.

Era como uma psicografia. Eloise não precisava dos papeis para saber o que narrar. Sentia, em cada momento, os fragmentos daquele passado aterrador, que parecia um poço sem fundo, algo que poderia destruí-la na mesma medida que salvá-la.

Subitamente, cegou-se. Talvez fosse a pressão que baixou, fruto da má alimentação somada ao excesso de fumo e bebida alcoólica, talvez fosse apenas mais um distúrbio que a tomava de assalto em momentos como aquele, em que ela criava.

Repentinamente, a visão voltou. Não para seu escritório, e sim para um quarto de colcha floreada e ar sufocante. Um cheiro de sabão velho encheu suas narinas, e a boca dela secou.

“ Senhor, Senhor... mate-me, por favor... Mate-me!” sua própria voz chegou até ela, fazendo com que a mulher se erguesse.

Seu escritório voltou ao seu raciocínio e ela logo se percebeu ao lado da gaveta onde guardava os remédios.

Pegou uma cartela cheia e abriu uma por uma das cápsulas de cores branca e azuis, colocando os medicamentos na palma da mão. Em seguida, voltou à cadeira e pegou o copo com Martini.

Bebeu o líquido em um único gole, junto com a medicação.

— Mate-me, por favor... — murmurou.

E então tudo foi escuridão.

 

Capítulo 05

 

Therron e Kraus


Théo Garcia encarou o amontoado de dívidas enquanto imaginava o que devia fazer. Na última semana havia conseguido um emprego informal de segurança numa festa, mas tal trabalho não conseguia suprir o montante de contas a pagar.

Desde que saíra da prisão, não conseguiu um emprego formal. Seus bicos mal estavam sustentando-o, e a vida estava cada vez mais difícil.

Subitamente, uma batida na porta. Seu primeiro impulso foi pegar a arma sem registro, que mantinha na cintura, através de posse irregular, antes de atender.

Não tinha amigos, nem parentes. Os pais morreram quando ele era jovem, e os policiais com quem trabalhou não permaneceram ao seu lado depois de ele se isolar pela culpa e dor por seus erros.

Assim sendo, ninguém nunca bateu naquela porta. Aproximou-se cautelosamente, e abriu apenas uma pequena fresta.

A mulher do outro lado sorriu, e ele tentou fechar a porta novamente, mas ela pôs o pé na divisória e o impediu.

— Prazer em vê-lo também, Théo — Rafaela empurrou-o e entrou no ambiente.

O local estava sujo e fedia.

— Meu Deus, o que diabos aconteceu com você? — indagou.

Atrás dela vinha um homem de cabelos escuros e olhos misteriosos.

Logo, o olhar deles se encontrou e houve uma troca magnética automática. Algo arrepiou o braço de Théo, que sentiu uma raiva potente dominando-o.

— O que quer? — indagou à mulher.

— Vim te oferecer um trabalho. — Apontou o homem que a seguia. — Esse é Caio, meu noivo.

Nenhum deles estendeu a mão, em cumprimento. Apenas se encararam, sentindo o tanto de vidas que se cruzavam naquele olhar.

— Eu não estou interessado. — Théo retrucou, numa clara sugestão de que fossem embora.

— Também não acho que seja uma boa ideia — Caio devolveu, preparando-se para sair.

Contudo, Rafaela permaneceu parada no mesmo lugar.

— Não está interessado? — A mulher indagou, apontando os papeis na mesa. — Está em condições de recusar trabalho?

— Isso não é problema seu — retrucou, abrindo a porta novamente, exigindo que saíssem.

— Estou aqui porque confio em você — a loira devolveu, firme, convicta. — Eu sei que você é a pessoa certa para proteger a irmã de Caio.

O antigo policial volveu o olhar para o outro homem. O que havia entre eles? Por que aquela antipatia automática e potente?

— Irmã?

— Meu noivo é Caio Hopp, da Editora Hopp. Irmão de...

— Eloise Hopp — Théo murmurou. — Já ouvi falar. Mas, do quê uma escritora famosa como ela precisaria ser protegida?

— Primeiramente, de si mesma — aquela resposta era misteriosa. — Depois, de algumas organizações neonazistas que estão em polvorosa por conta do atual trabalho de Eloise.

Théo riu, em deboche.

— E o que ela está escrevendo? Algum romancezinho bobo sobre um amor na Segunda Guerra?

Caio suspirou em tom recriminatório. Não estava com paciência para aguentar um homem como aquele ridicularizar o trabalho da irmã.

— Você não faz ideia do quanto ela se esforça e luta para fazer suas obras. Minha irmã enfrenta a depressão todos os dias, e permanece trabalhando com dignidade. É diferente de você que parece apenas um ninguém que já desistiu de tudo, e usa de agressividade para expulsar as pessoas.

Théo gargalhou diante das palavras ofensivas. Caio, então, volveu para a noiva.

— Isso tudo foi um erro.

E saiu do apartamento. Rafaela fez menção de ir até o noivo, mas parou diante do antigo amigo.

— Ela está falando sobre o holocausto — relatou, e então se afastou, deixando a consciência de Théo agoniá-lo pelas palavras ditas.


Rafaela alcançou o noivo próximo do elevador. Segurou seu braço, sentindo que ele estava nervoso.

— Precisa entender que Théo Garcia é a pessoa certa.

— E por quê? Por ser um fracassado? É isso que pensa de Eloise?

— Me ofende que diga tal coisa — retrucou. — Sabe o quanto eu sou apegada a sua irmã. Acontece que ele tem seus muros, suas barreiras de proteção. Théo ataca, porque quando não o faz, sempre é muito ferido.

— Que se foda o que ele pensa — retrucou. — Não preciso de um policial expulso da corporação – só Deus sabe o porquê – querendo insinuar que minha irmã é uma ninguém.

Rafaela respirou fundo. Então, contou:

— Théo era um policial incrível. No departamento de homicídios ele resolvia todos os casos. Era respeitado e estava as vésperas de uma promoção quando uma onda de assassinatos de jovens homossexuais, praticados por neonazistas, chegou até ele.

Então, havia mais que a simples simpatia nas intenções de Rafaela?

— Quando Théo começou a investigar e a quebrar o sigilo dos grupos, descobriu o próximo alvo. Era um menino de treze anos, que nem sabíamos se era mesmo gay, apenas aparentava... Bom, esse menino seria emboscado quando fosse para a escola. Théo soube disso pouco antes da emboscada e foi atrás. Mas, infelizmente, não chegou a tempo.

— E isso faz com que um policial seja expulso?

— Você não entende — Rafaela retrucou. — Théo não conseguiu salvá-lo, mas conseguiu ver quem o matou. Ele executou o grupo de quatro jovens neonazistas a sangue frio.

A boca de Caio abriu-se, pronta a declarar sua opinião, quando o telefone tocou. Olhou o visor, e atendeu imediatamente.

Ouviu alguém a falar do outro lado da linha, e desligou. Depois, encarou a noiva.

— Amanda encontrou Eloise — nem precisou completar.

A irmã de seu noivo havia tentado novamente tirar a própria vida.

 

Capítulo 06

 


O passado que se perdeu


Rafaela Albuquerque voltou para o apartamento de Théo Garcia pouco depois. O noivo, segundo ela, havia ido para o hospital, mas ela ainda não desistira de convencer o antigo companheiro de trabalho em aceitar o emprego proposto.

— O que te custa? — indagou.

— O meu resto de sanidade?

— Poderia ser a sua redenção.

A mulher estava nervosa, as mãos tremiam, e Théo, contra seus princípios, lhe ofereceu água.

— Não, obrigada. Preciso ir para o hospital. Aconteceu algo com a irmã de Caio.

— Você vai dirigir assim? — apontou as mãos.

— Eu iria com ele, mas quis tentar falar contigo novamente. Caio já foi para lá.

— Eu te dou uma carona.

Ela aceitou, muito mais porque queria ser feliz em seu intento do que pela necessidade de proteção. Rafaela já havia feito a corrida ao hospital por Eloise muitas vezes nos últimos anos.

— Então ela é suicida? — ele perguntou, aquele sorriso de deboche que nunca abandonava seus lábios surgiu, enquanto o homem trocava a marcha.

— Você não entenderia... — ela murmurou.

— Fracassei em tudo na vida, e nunca atentei contra eu mesmo — devolveu.

— Ela vive em tormento. Se você olhasse para ela, veria. É como se estivesse frequentemente em dor. Uma agonia tão grande... Por isso as pessoas se afastaram, até mesmo a família. Caio é tudo que lhe restou. Ninguém suporta ficar perto dela, sua energia negativa é tão forte que parece minar a todos ao seu redor.

— E você quer me enfiar nesse inferno?

— Sua energia não é melhor que a dela — devolveu, crua. — Talvez um possa ajudar ao outro.

Ele duvidava. Mas, não insistiu mais no assunto enquanto dirigia até a emergência.


Amanda surgiu diante do olhar atônito de Caio. A antiga amiga de escola dos gêmeos era uma remanescente de uma época que havia se findado.

E, como tal, também cumpria o papel de preocupar-se com o destino da amiga escritora.

— Tentei ligar para ela desde ontem. Não retornou minhas ligações — informou. — Então, eu me preocupei...

— Obrigado — ele murmurou.

— Quando cheguei, já estava inconsciente, chamei a ambulância...

— Obrigado — repetiu, apertando os ombros da amiga. — Obrigado, obrigado...

Eloise ficara em coma induzido, enquanto a equipe médica lutava para não perder sua vida.

— Ela estava tão bem, até havia me mandado um trecho do novo livro — ele comentou, enquanto sentava-se ao lado da amiga, na sala de espera. — Eu não consigo entender... Por quê?

Amanda segurou a mão masculina, num carinho pueril.

— Às vezes acho que a resposta está além da nossa compreensão. Mas, sei com toda a certeza do mundo, que a culpa não é sua.

— Mas sinto como se fosse — ele retrucou. — Algo dentro de mim me afirma isso todos os dias. Minha irmã está ali, deitada numa cama hospitalar, em coma após tentar contra si mesma, e eu tenho responsabilidade nisso. Não sei por que, nem como, mas eu tenho!

Rafaela surgiu pouco depois no corredor. Théo Garcia veio com ela. O olhar dos homens novamente se encontrou, e a cena se repetiu.

Repeliam-se imediatamente, algo além de qualquer explicação.

— Como ela está?

— Em coma — respondeu à noiva, evitando encarar o homem. — Desculpe deixá-la para trás.

— Théo me trouxe. Ainda insisto que ao menos eles possam se ver — Rafaela apontou. — Quem sabe assim, dessa maneira, não surja uma simpatia. Além disso, não seria bom Eloise ter uma presença a mais na casa? Evitaria situações como essa.

Caio Hopp volveu então o olhar para o outro homem.

— Mudou de ideia? Quer o emprego?

— Não quero o emprego, mas vou falar com sua irmã assim que ela estiver em condições. Diante do que me contou Rafaela, talvez eu possa ajudar.

Um médico de roupas claras surgiu. Caminhou reto até Caio e explicou que a irmã dele estava fora de perigo.

— Mais um golpe de sorte — apontou. — Mas, não sabemos até quando ela terá sorte, senhor Hopp. Eloise precisa de internação. Ela é um risco a si mesma.

A internação seria a condenação fatal à irmã. Eloise perderia o resto de sanidade que lhe restava.

— Estamos providenciando uma companhia que fique com ela vinte e quatro horas — Caio explicou. — Posso vê-la?

— Não poderão falar, mas sim, pode ir vê-la.

Caio então volveu para o outro. Naquele instante, as duas mulheres ali ficaram esquecidas.

— Acompanhe-me — pediu.

Théo Garcia o seguiu. Enquanto eles cruzavam por quartos que mais pareciam prisões sinistras, ele observou a postura do outro.

E parecia reconhecê-lo. Só não sabia de onde.

Entraram. O lugar estava um tanto na penumbra, mas logo Théo a visualizou.

Ali... ali...

Esther!

Ali...

Com tubos na boca, a pele translucida e apagada, as olheiras profundas e a quase morte e ceifá-la, mas ali...

A mulher que o atormentava em pesadelos, e que o fazia ver o paraíso quando lhe sorria em sonhos. Ele não se recordava direito de sua aparência, mas soube que ela era. Pelo cheiro, pelo instinto, pela alma.

Eles haviam se encontrado...

Quanto tempo até se perderem novamente?

 

Capítulo 07

 


O que ninguém mais vê

 

— Então você aceita o trabalho?

A dúvida de Caio tinha motivos. Até entrar naquele quarto, o antigo policial claramente desprezava a mulher acovardada diante da própria existência.

Contudo, bastou vê-la... E tudo mudou.

— Sim, estou disposto a ser seu guarda-costas. Nada vai lhe acontecer enquanto eu estiver por perto. Aliás, posso começar imediatamente.

Eles haviam voltado à sala de espera, e diante das palavras, Rafaela e Amanda trocaram um olhar estranho. Caio parecia prestes a expulsar o homem, mas a mulher interviu.

— Seria muito bom. Não sabemos o quanto os grupos que querem a morte dela estejam a par de sua localização. Se você pudesse cuidar dela aqui, no hospital, ficaríamos mais descansados. Os médicos irão acordá-la em breve e, quem sabe, até poderiam conversar e ficarem amigos. Deus sabe como Eloise precisa de novos amigos...

Amanda assentiu, como se concordasse, mas Caio ainda parecia em conflito. Contudo, ele sabia que Rafaela costumava ter instinto e razão.

— Precisa deixar — a mulher murmurou ao noivo ao notar a tempestade de sentimentos. — Você precisa — reafirmou, firme.

E era por mais que a simples confiança na segurança da irmã. Eles sabiam.

— Se algo acontecer a ela...

— Nada vai acontecer a ela — Théo afirmou, sem medo.

— Não falo apenas daqueles filhos da puta nazistas. Estou dizendo que se você a ofender...

— Eu farei meu trabalho com responsabilidade — retrucou.

Rafaela quase precisou arrastar o noivo para fora do local. Amanda a ajudou naquilo e, enfim, Théo conseguiu o que queria.

Agora, de volta ao quarto, ele encarava a mulher apagada.

— Esther... — ele murmurou, aproximando-se dela, tocando em seus dedos. — Eu te achei, Esther...

A instantânea sensação de pertencimento a acamada poderia deixá-lo louco, mas o homem não se sentia assim, feliz, desde... Nunca.

Agora, naquele instante, naquela brecha do tempo, finalmente, ele sentia o coração transbordando num contentamento incontrolável que fê-lo curvar-se à cama e beijar os dedos femininos.

A vida voltava a fazer sentido.

— Ela se chama Eloise. — Uma mulher surgiu à porta, fazendo com que ele se afastasse do leito num salto surpreso.

Era a mesma que estava ao lado de Caio quando ele chegara ao hospital. Ela havia retornado, provavelmente, passaria aquela noite ao lado da amiga.

— Eu sei...

— Não parece. Fala como se a conhecesse por outra identidade. — Porém, seu tom amenizou. — Eu me chamo Amanda — estendeu a mão.

Théo aceitou o cumprimento. Deu-se conta, imediatamente, que fazia muito tempo que ele não saudava alguém. Sempre bruto, rechaçava quem tentasse se aproximar. Mas, sua aproximação com aquela a quem buscava foi tão absurdamente motivadora, que mal conseguia esconder um sorriso.

— Théo — apresentou-se.

— Eu sei — ela sorriu. — Por que a chamou de Esther?

Ele pareceu receoso, mas ela insistiu.

— Você a tratou como se a conhecesse. Eu posso ligar para Caio agora e falar sobre essa situação estranha, mas prefiro indagar a ti. Tudo que peço é franqueza.

Ele assentiu, incomodado.

— Não vai acreditar em mim.

— Confie — ela murmurou. — Eu já ouvi de tudo nessa vida.

O homem então pareceu mais calmo.

— Tenho sonhos com ela — afirmou. — Isso têm anos, mas estão mais frequentes nos últimos dias.

— E nesses sonhos você a chama por Esther?

— Isso.

Amanda foi até a poltrona e se sentou.

— Não acho que seja loucura. Talvez, uma memória de outra vida. Não é comum, mas acontece, especialmente com artistas.

— Artistas?

— Você é?

— Abomino a arte — retrucou. — Qualquer tipo de arte, para mim é inútil.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Trabalho numa galeria de artes plásticas.

— Perdão, não quis ofendê-la, mas...

— Eu tenho minha fé — ela interrompeu. — A raiva, às vezes, também é manifestação do passado. Se você me dissesse que não gosta de pintura, ou de música, eu entenderia. Mas, você usou as palavras “ abomino a arte ”. Englobou todas as manifestações artísticas. Isso soa bem forte. Então, pode ser que você já tenha sido um artista em outra vida, e em nada seu talento tenha te ajudado em alguma questão importante. E cada dom tem um propósito, sabia? Deus o dá para que nós possamos usá-lo para o bem. Não sei o que você fez com o seu dom, mas ele, hoje, te causa repulsa.

— Não entendo o que diz...

— Não crê em vidas passadas?

— Sou uma pessoa um tanto descrente — murmurou.

Ela sorriu, compreensiva.

— Sou kardecista — contou. — E já tem muito tempo que tenho algumas desconfianças sobre a tortura mental que Eloise passa. Agora, sinto que sua presença aqui é uma confirmação.

— Confirmação?

— O destino tem seu jeito próprio de unir as pessoas destinadas. E não importa o quê se imponha no caminho, eles sempre acabam se encontrando.

Aquelas palavras tiveram uma conotação romântica. Théo observou a mulher na cama e pareceu meditar perante a afirmação.

— Não sei no que acredito, nem sei se suas palavras são sérias — ele admitiu, por fim. — Contudo, entendo que a encontrei, e não vou falhar com ela. Nunca mais.

O complemento fez Amanda sorrir. Era a confirmação que esperava.


Havia um pequeno ramo de rosas ao lado de sua cama.

O olhar de Eloise centralizou nas flores, enquanto as pupilas iam se acostumando a claridade.

O que havia feito? Novamente, decepcionado Caio?

Sentiu o olhar encher-se de lágrimas, a culpa voltando a avassalá-la, quando se deu conta de outra pessoa no ambiente.

Voltou o olhar para a porta. Um homem loiro, de porte atlético e especialmente bonito estava parado ali, com nítida emoção.

Quis questionar sua estranha presença. Todavia, de alguma maneira, ela sabia exatamente quem ele era. Apenas, havia esquecido.

— Sou Théo Garcia — ele se apresentou. — Seu irmão me contratou para cuidar de você — explicou-se.

— Você é médico?

A entonação em ambos causou frenesi. A voz... Aquele tom teria sido entoado em outros momentos?

— Quando ele chegar vai te explicar tudo. Porém, você acabou de acordar e precisa ficar calma, descansar.

O homem sentou-se ao lado da cama, numa poltrona. Sua presença era tão confortadora que os Eloise quase chorou. Um alívio imenso e desconhecido.

Queria estender a mão e tocá-lo, sabê-lo ser real. Mas, ao mesmo tempo, compreendia que não haveria uma explicação cabível para tal emoção.

— Rosas — ele murmurou, observando o vaso que Amanda havia colocado ali, momentos antes de ir para o trabalho, naquela manhã. — Estranho como elas se parecem com você.

Já havia ouvido aquilo antes?

— Por quê?

A pergunta também parecia repetitiva.

O homem aproximou-se, cuidadosamente. Seu olhar azul celeste parecia adentrar na alma feminina. Ela quis estender a mão e tocar na sua pele.

Era loucura... Loucura! Enfim, perdera a sanidade?

— Você também tem essa impressão forte? — ele indagou.

— Que impressão?

— Que a gente se conhece... — murmurou. — Eu tenho certeza que...

A porta abriu e Caio entrou. Aquela áurea magnética entre o par foi cortada instantaneamente.

— Como você está? — o irmão indagou.

Havia a nítida mágoa no tom.

— Me perdoe, Caio. Eu não sei como aconteceu.

— Você estava bêbada — retrucou. — Foi assim que aconteceu.

Théo sentiu uma imediata necessidade de proteger a mulher, mas compreendia que não devia. Era um assunto de família, e ele devia respeitar.

— Acho que vocês já conversaram — apontou o homem. — Ele será seu segurança pessoal.

— Segurança?

— Outra palavra para babá — Caio não escondeu o quanto estava possesso. — Espero que ele não te permita fazer mais uma burrada dessas, porque, francamente Eloise... Eu juro que eu irei te internar num sanatório se não parar.

Ela baixou o olhar, envergonhada.

— Me perdoe...

— Sempre pede desculpas, mas volta a praticar o mesmo erro. Estou cansado, Eloise. Exausto do seu egoísmo. Quando irá parar de sentir pena de si mesma, e lutar pelo seu futuro? Quando entenderá que está destruindo a minha saúde? Eu estou ficando louco. Fico assustado cada vez que o telefone toca, a espera de alguém me confirmar que você teve sucesso na sua empreitada egocêntrica de suicídio.

Silêncio. Afundada entre os lençóis, a irmã gêmea de Caio não sabia o que responder.

Como alguém poderia explanar o tamanho de sua dor, se sequer um motivo para senti-la ela tinha?

— Por que preciso de um segurança?

A indagação quebrou o clima pesado. Caio respirou fundo e se aproximou da cama.

— Lembra-se da entrevista que deu na televisão, esses dias? Parece que provocou revolta na ala nazista que transita por Porto Alegre.

— Nazistas? Aqui?

— Neonazistas. Não é surpresa, sabemos que eles andaram atacando algumas pessoas há algum tempo. Théo — apontou o outro homem — é ex-policial e já trabalhou num caso envolvendo esses grupos. Ele estará cuidando de você.

Ela concordou imediatamente, o que causou estranhamento no irmão. Acreditava que Eloise fosse recuar, já que odiava a presença de estranhos perto de si. Mas, ela aceitou aquele desconhecido sem sequer uma palavra de retruco.

Ao invés do alívio, sentiu o ciúme a tomá-lo. Encarou Théo, maldizendo Rafaela por tê-lo convencido a permitir aquele homem se aproximar da irmã.

Subitamente, contudo, seus pensamentos foram cortados. O toque feminino em seus dedos indicava a necessidade de um abraço.

Apertou a gêmea nos braços, beijando o topo de sua cabeça. Viu, pelo canto dos olhos, o outro desviar o olhar, como se compartilhasse a raiva por aquela aproximação.

— Eu preciso ir trabalhar, mas o médico irá vê-la hoje e talvez consiga alta. Assim, Théo irá levá-la para casa. Quero que descanse e não se ponha a trabalhar imediatamente, está bem?

Eloise assentiu.

 

O palacete de dois andares estava arejado e com vários arranjos de rosas por todo canto.

— Amanda esteve aqui — Eloise sorriu, acariciando uma pétala.

— Sua amiga se importa muito com você — Théo comentou, logo atrás.

A autora sorriu.

— Ela sabe que eu gosto de rosas — murmurou.

O homem largou a bolsa dela no chão, e a encarou.

Aquela estranha sensação de familiaridade permanecia. Nunca estiveram sozinhos num mesmo ambiente, mas estavam estranhamente confortáveis com a presença do outro.

— Vou mostrar seu quarto — ela apontou, num sorriso.

Théo a seguiu até o segundo andar.

A casa era grande, como se a mulher precisasse de muito espaço. Logo, chegaram até uma porta. O quarto de hóspedes tinha uma tonalidade clara, e era de um tamanho bastante acolhedor.

— É uma suíte — ela comentou. — Caio a usa quando fica comigo, aqui.

— Ele não vai se incomodar?

— Ele não precisará mais passar as noites aqui — ela riu. — Não vou mais me deixar levar pela dor.

Aquela certeza o surpreendeu, mas ele preferiu nada comentar.

— E seu quarto? Onde fica?

O rubor na face feminina fez com que um sorriso involuntário surgisse nos lábios de Théo.

— Apenas para eu ter conhecimento — explicou. — Se algo acontecer, preciso saber exatamente sua localização.

O rubor não sumiu da pele, mas ela apontou o dedo para o quarto no fundo do corredor.

— A última porta, à esquerda. — Volveu para o homem, novamente. — Seja bem vindo, Théo.

Ele assentiu.

Era o começo de uma nova existência.

 


O cheiro do café invadiu o escritório. Eloise tirou os olhos da tela do computador e encarou o homem à sua frente, com uma bandeja.

— Virei seu empregado doméstico — ele brincou, aproximando-se. — Está nesse computador desde a madrugada, achei que precisava de um descanso.

— Percebeu que eu vim cedo?

— Estou sempre a postos — fez uma continência. — Ouvi seus passos no corredor.

Ela riu.

— Sou mais produtiva de manhã. — Estendeu a mão e aceitou uma xícara do café. — E você? Depois que terminar seu trabalho comigo, pensa em fazer o quê?

— Ainda não sei — admitiu. — É difícil voltar à vida, depois de um tempo afastado de tudo.

— Rafaela me comentou que você foi policial.

— Eu cometi um erro e acabei com a minha carreira. Desde então, esse é o primeiro trabalho que tenho que posso considerar formal. Seu irmão até assinou minha carteira de trabalho, e vou receber um salário regular.

O café estava forte e doce. Exatamente como ela gostava. Não se apercebeu de que Théo sabia algo íntimo seu, seu paladar excêntrico, e simplesmente largou a xícara de lado.

— Além de salvar autoras ameaçadas de morte, você tem mais algum dom?

— Não que eu saiba... — ele murmurou.

Repentinamente, volveu para o lado. Num canto, o quadro de Therron Esme chamou imediatamente sua atenção.

Levantou-se da cadeira e caminhou até a tela. Seus olhos não escondiam a surpresa.

— O que foi? — Eloise indagou.

— Eu já vi isso... Já vi isso em algum lugar — ele murmurou.

— É um quadro famoso de um pintor francês, no qual estou trabalhando a biografia.

Théo estendeu a mão. Sabia ser gafe tocar uma tela, mas não resistiu. Seus dedos deslizaram pelas cores que pareciam escorrer, em sangue, como manchas de agonia.

— Você também sente, não é? — ela perguntou, a voz lacônica.

Ele a observou.

— Dor — a mulher completou, em resposta. — Eu sinto que o artista estava completamente transtornado quando o pintou.

— O que aconteceu com ele?

— Suicidou-se — contou. — Faz muitos anos, mais de meio século.

O som de uma batida fê-los volver para a porta. Caio surgiu com um sorriso.

Propositalmente, ele ignorou Théo e caminhou até a irmã. Aproximou-se dela, e a ergueu da cadeira, apertando-a nos braços.

O loiro desviou o olhar, incomodado.

— Vou deixá-los a sós — disse, e então saiu.

Tão logo a porta fechou, Caio sentou-se na cadeira diante da irmã.

— Ele está atrapalhando seu trabalho?

— Claro que não — negou. — Ele apenas veio me trazer um café.

— Ele não é pago para servir café. Nem para ficar a sua volta, como um gavião.

— Eu gosto que esteja, Caio — retrucou. — Me sinto confortável perto dele, como se estivesse em segurança.

O homem iria devolver as palavras, quando ela prosseguiu:

— Desde que Théo se mudou para cá, não bebi mais. E passei a fumar bem menos. Meu trabalho está correndo tranquilamente, no tempo certo. Até minha narrativa melhorou. Não sei por que, mas a presença dele me faz bem.

Obviamente, Caio não gostou das palavras. O que era completamente incompreensível. Tudo que ele sempre quis para a irmã foi sua felicidade. Porém, ele não conseguia sequer encarar aquele homem loiro. Parecia uma questão de tempo para que o investigador machucasse Eloise.

— Rafaela está em contato com os investigadores, para me manter atualizado sobre o andamento do processo dos neonazistas. Assim que estiver tudo bem, a presença dele não será mais necessária — apontou.

A mulher assentiu. Logo depois, o irmão saiu carregando suas vibrações negativas.

 

O frio tocou sua espinha, causando nele uma sensação desconfortável. Porém, não era apenas aquele ar gelado que o agoniava.

Tinha um jornal nas mãos. Em sua visão embaçada, não via a notícia, mas sabia que as palavras o preocupavam.

A sua volta, muitas pessoas andando nas ruas desconhecidas. Sentado em um banco, ele tentava captar algo além da completa surpresa.

— Estou nervosa — o som feminino fê-lo volver para o lado.

Era Eloise. Os cabelos atados em um coque, nas mãos um copo de chá. Ela o encarou.

— O que aconteceu ?

— Nada — viu-se dizendo.

— É um péssimo mentiroso .

Acordou, ofegante. Aquela cena, aquele lugar, aquela mulher que – antes – em sua mente era Esther e agora ele a conhecia por Eloise, causaram agitação em seu íntimo.

Puxou as cobertas, saindo da cama. Logo, estava no corredor, o coração em desespero, antecedendo o horror.

A porta do quarto dela estava entreaberta. Eloise, acordada, o encarou surpresa.

Só então ele deu-se conta de que invadira sua privacidade e intimidade.

— Desculpe... — murmurou, sem saber exatamente como se explicar. — Ouvi um barulho — mentiu.

Ela não pareceu surpresa.

— Derrubei um copo.

Ao lado da cama, vários vidros de medicação.

— Precisa de algo? — indagou, cortês.

— Não, estou apenas tomando remédio para minha dor de cabeça.

— Enxaqueca?

— Já fiz exames, e todos os médicos afirmam que não tenho nada. Mas, as dores na nuca são insuportáveis, queimam, não me deixam dormir.

O homem se aproximou, vagarosamente.

— Posso? — estendeu a mão para ela.

Aquilo não parecia certo, e provavelmente não era, mas Eloise se percebeu assentindo.

Théo sentou-se na cama, e pousou as mãos em sua têmpora, fazendo uma massagem lenta. Estranhamente, acalmou sua dor. Mas, ela sabia que não eram os movimentos ritmados das mãos masculinas e sim a presença do homem que estava mudando tudo.

Olharam-se. Mais uma vez, era como se seus corpos estivessem conectados por algo além da experiência física.

A sensação assustou a ambos, e logo Théo se afastou.

— Tenha uma boa noite — ele desejou, e ela sorriu.

Pela primeira vez em muitos anos, aquelas duas almas conseguiram descansar sem tormentos naquela noite ausente de estrelas.

 


Capítulo 08

 

Ódio


Aquele restaurante bonito próximo do Parcão era um dos lugares preferidos de Eloise. Com comida típica gaúcha, de churrasco com carnes bem assadas, ela costumava ir muito ali com Caio, quando eles eram mais jovens.

Naquele momento, era o ponto de encontro para mais um contrato de negócios.

Caio era seu editor e o responsável pelos seus livros impressos, mas quando o assunto era a adaptação para o cinema, ela fazia questão de tratar da questão.

Seu olhar encontrou Théo, que ficou numa mesa próxima, observando tudo com discrição.

— O dinheiro é bom — o produtor da agência interessada em levar seu livro para a televisão comentou.

— Uma série? — ela murmurou. — Sabe que esse é um romance distópico?

— Como tudo que Valentina Bianchi escreveu — ele murmurou. — Tentamos por anos fazer a agência Hopp nos dar o contato da autora, e ficamos muito surpresos quando descobrimos que ela era uma parte de você.

— Repito a pergunta: Um romance distópico na televisão?

— Séries assim estão fazendo muito sucesso — retrucou. — E Valentina é genial.

Ela quase riu. Ainda tinham dificuldades de entender que Valentina era ela. Admitir que a autora que eles desprezaram por anos era a autora que idolatravam parecia causar mal estar.

O olhar dela voltou para Théo, e o viu se levantando, caminhando até a porta, observando o movimento de lá.

— Vamos fechar o acordo, então?

— Não antes de eu ler o roteiro que pretendem levar a televisão. Uma coisa é querer basear uma série em minha obra, outra é eu, a autora, estar às cegas sobre o que levarão às telas usando meu nome.

Segundos depois, Théo retornou próximo dela, e a pegou pelo braço.

— Vamos ao banheiro? — indagou, numa pergunta muito estranha.

Mesmo assim, ela o seguiu.

Não havia ninguém nos toaletes, e eles entraram no banheiro feminino, trancando a porta.

— O que está acontecendo?

— Movimento estranho na rua — respondeu, sacando a arma.

— Você acha?

— Apenas precaução — afirmou. — Vamos aguardar alguns minutos, se nada acontecer...

O som de alguns gritos do lado externo cortou sua fala. Théo ergueu a arma e apontou para a porta.

No canto do banheiro, Eloise entrou em pânico. Aquele som de desespero, aquele momento antevendo a tragédia... Algo nela logo entrou em estado de horror.

O homem olhou para a escritora, num momento rápido, percebendo que a mulher se curvava, em tremores, até o chão.

— Fique calma — pediu.

— Eles vieram atrás de mim — ela murmurou. — Vão me levar...

— Acho que é um assalto — negou. — Logo vai passar.

— Vão me levar — ela negou, abraçando a si mesma. — Vão me levar...

— Levar para onde, Eloise?

— O inferno... O inferno...

Mais um grito do lado externo. Théo ficou na indecisão sobre o que fazer. Ajudar a mulher que estava tendo um colapso no chão, ou permanecer diante da porta, protegendo aquela passagem.

Então, veio o silêncio. Aqueles breves segundos pareciam tão temíveis quanto os gritos. Quando as vozes voltaram a soar, dessa vez mais calmas, ele colocou a arma de volta na cintura e foi até ela.

Ergueu-a do chão, ajudando-a a ficar de pé.

Os braços de Eloise cercaram seu pescoço, num abraço desesperado.

— Não deixe que me levem — ela pediu, algo que remetia a mais do que aquele momento de terror.

— Nunca — jurou. — Nunca.

 

O policial Moisés, antigo companheiro de farda de Théo aproximou-se do casal. Eloise estava sendo medicada. Mesmo que não houvesse se ferido, seu estado mental beirava a loucura.

— Um assalto mal executado? — Théo indagou ao outro.

— Pois é... — observou a mulher ao longe, que aceitava comprimidos de uma médica que viera junto com a emergência para atender alguém que pudesse ter se ferido no assalto. — Sua esposa?

Por alguns segundos, a palavra “sim” bailou nos lábios de Théo. Ele assustou-se com a intensidade daquela emoção.

— Sou o segurança dela. Eloise Hopp — explanou, indicando a moça com o olhar.

— A escritora?

— Ela mesma.

— Quem te chamou foi Rafaela, não é? Eu soube que tem um departamento todo tentando colocar a mão num grupo neonazista.

— Exatamente.

Logo, Eloise se aproximava dele. Naquela confusão, perdeu o contato visual com o produtor, mas não se importou.

Sentiu os braços de Théo cercá-la, com carinho e aceitou que ele a conduzisse ao veículo.

Théo dirigiu em silêncio e ela também nada disse. Com a cabeça encostada no vidro do carro, observava as luzes da cidade, naquela noite de outono.

O corpo parecia anestesiado. O medo e o alívio pelo final daquele encontro por fim a deixou em torpor.

Os remédios fizeram efeito e ela cochilou. Momentos depois, sentiu as mãos do homem a erguendo, pegando-a no colo e a levando para dentro.

— Não se preocupe — o tom masculino soprou contra sua testa, num beijo pueril. — Não importa o caminho, estarei ao seu lado, e vou protegê-la.

Já ouvira aquela promessa antes. E sentiu as lágrimas derramando-se em seu rosto, porque as palavras não haviam sido cumpridas.

Percebeu a cama contra as costas. No olhar entreaberto, viu o cabelo loiro de Théo contrastar com a escuridão do quarto.

A luz do corredor permitia que percebesse seu olhar claro observando atentamente seu rosto.

Acariciou sua face. Uma saudade absurda tomou conta de si, e ela o puxou contra si.

As bocas ficaram a pouca distância, uma da outra.

Ela queria aqueles lábios contra si, sentir o peso do corpo másculo contra seus músculos femininos. Queria algo além do contato carnal, queria se fundir com aquele homem e que nada mais a separasse dele.

Contudo, o som de passos no corredor cortou o momento, e Théo se afastou.

Só uma pessoa tinha as chaves da casa, e ela surgiu, em seguida, com o olhar apavorado.

— Como ela está?

Eloise percebeu ser Caio, mas a exaustão mental fê-la fingir dormir.

— Deram-lhe remédios, e ela apagou ainda no carro.

— Você acha que...?

— Foi um assalto. Sua irmã estava no lugar errado e na hora errada, apenas isso. Mas, nada lhe aconteceu.

Caio suspirou de alívio.

— No rádio disseram que algumas pessoas se machucaram. Eu...

Naquele instante, Eloise realmente pegou no sono. Não percebeu, portanto, a aproximação de Théo de seu irmão, e o aperto no ombro que o loiro deu no outro.

— Eu percebi que havia alguma coisa errada e a levei ao banheiro. Ninguém entraria por aquela porta, isso te garanto.

O outro assentiu.

— Eu faria qualquer coisa por Eloise, mas, ao mesmo tempo, sinto como se pudesse fracassar e perdê-la a qualquer momento.

Théo compartilhava aquele tormento. Mas, não deixou claro isso ao outro.

— Nada vai acontecer, tem minha palavra. Só por cima do meu cadáver alguém tocaria nela.

O outro assentiu. Então, afastou-se.

Ao menos nisso, havia verdade nas palavras de Théo Garcia.

 

Capítulo 09

 

Sina


A vida tinha que continuar. Apesar do abalo emocional, Eloise voltou ao trabalho dois dias depois do assalto, afundando-se no porto seguro que parecia ser Therron Esme.

Era como se o conhecesse... e o amasse. Algo tão profundo que a autora não pestanejava em atirar-se de cabeça em sua história e compartilhar seus tormentos.

Quando ela não surgiu na cozinha para almoçar, Théo decidiu ir até ela. Levou o que havia preparado consigo – algo simples, arroz, salada e peito de frango – e pôs diante dela, como se exigisse que ela se alimentasse.

— Quando você começa — apontou o computador — não para um minuto, não é? — brincou. — Deve ter muitas coisas para narrar sobre esse homem.

— A vida dele era muito interessante.

— Um pintor, você havia me dito...

— Isso.

— Francês — Théo apontou. Em seguida, completou — Um pintor francês. Devia ser um mulherengo.

— Ao contrário, amava sua esposa e foi fiel a ela. Li relatos que, dentro do grupo de resistência, muitas mulheres se encantaram por sua aparência, mas ele não se envolveu com nenhuma.

Estranhamente, Théo acreditou naquilo, mesmo sem conhecer direito a história.

— Como ele se chamava?

— Esme — ela respondeu. — Therron Esme.

Onde havia ouvido aquele nome antes? Voltou novamente o olhar para o quadro. As sobrancelhas uniram-se numa dúvida latente.

— Já ouvi falar desse cara — admitiu.

— É mesmo?

— Estranho, não é? Acho artes plásticas a coisa mais inútil que possa existir.

Ela riu.

— Amanda sempre diz que as artes são a manifestação da alma.

— A alma desse Therron estava completamente em agonia, para pintar algo do tipo — apontou a tela. — É sinistro.

— Esse quadro foi feito poucos dias antes de ele se matar. E sim, sua alma estava manchada em trevas. Therron fez coisas ruins para conseguir se infiltrar na Polônia atrás da esposa.

O olhar de Théo voltou a ela.

— Atrás da esposa?

— Ela era judia. Foi levada até um campo de concentração. Morreu lá, momentos antes de ele invadir Auschwitz com o exército soviético.

Subitamente, a imagem de uma mulher morta surgiu na mente de Théo. A lama, o cheiro de carne queimada, o sangue que parecia manchar sua mente e fundir-se com a tela há poucos metros de si.

— Théo?

Ele a encarou. Seu semblante denotava o quanto estava confuso e tocado.

— Você tem alguma foto dele? Ou dela?

Ela negou.

— Therron Esme rasgou todas as fotografias que tinha da esposa, após a guerra. Acho que queria se livrar do luto, mas não conseguiu.

O som de um carro parando diante da casa, interrompeu a conversa. Logo, Rafaela surgiu à porta do escritório, trazendo consigo um sorriso incentivador e um pedaço de torta de morango, a favorita da cunhada.

— Passei por uma confeitaria, e decidi te fazer um agrado.

Eloise se ergueu e a abraçou.

— Não precisava.

— Não pude vir desde o assalto, estava preocupada. — Tocou os cabelos da outra, num carinho gentil. — Mas, boas novas: foi realmente um assalto, sem nenhum envolvimento contigo. Já prenderam os assaltantes, uma turma de adolescentes que queria dinheiro para drogas.

Eloise pareceu aliviada. Ela pegou a torta e rumou até a cozinha, a fim de cortar o pedaço em três fatias.

— Caio me disse que você a protegeu — Rafaela volveu para ele, sorrindo. — Eu sabia que o faria. Muito obrigada.

Contudo, o retorno não foi o esperado.

— Não te incomoda a aproximação dos gêmeos? — indagou. — Caio é um tanto quanto obcecado pela irmã.

Aquela frase dita sem nenhum floreio fez a sobrancelha da loira erguer-se, num sorriso irônico.

— Eu jamais sentiria ciúmes de Eloise. Francamente, jamais sentiria ciúmes de qualquer pessoa. Caio está comigo porque me ama. É esse relacionamento que eu quero. Algo em que ambos saibamos o que desejamos, e ficamos juntos por vontade própria. Se um dia ele não me amar mais, ou eu não amá-lo, que possamos seguir em frente, sem ressentimentos.

— Meio calculista — criticou.

— Eu vejo como amadurecimento. Caio ama Eloise com intensidade, mas não é o mesmo tipo de amor que tem por mim. Sentimentos diferentes não devem ser comparados.

A escritora voltou. Trazia na mão uma bandeja com pratos de sobremesa. Serviu-os e depois se pôs a comer.

— Ela adora doces — Rafaela comentou para Théo. — Se um dia quiser agradá-la, basta lhe dar qualquer coisa com açúcar.

Eloise riu.

— Você quer me agradar? — perguntou à cunhada, piscando um dos olhos, sedutora.

— Sempre, amor — rebateu. — Eu fico imensamente feliz quanto te vejo feliz.

Eloise riu, uma felicidade soberana dominando-a. A paz que ela tanto ansiava, parecia enfim estar chegando até ela.

 

Capítulo 10

 

O sinal.


Caio saiu do banheiro secando os cabelos. Naquela manhã, ele se preparava para uma reunião para o lançamento de alguns novos autores nacionais, gente descoberta pela internet, mas que demonstrava um talento ímpar.

Volveu o olhar para a cama e percebeu Rafaela mexendo no celular. Ela não parecia pronta para ir ao trabalho.

— Vai tirar o dia de folga?

— Só algumas horas da manhã — respondeu. — Vou fazer as unhas, e depois irei para a delegacia. — riu baixinho, focada na pequena tela do aparelho.

— O que está vendo? — se interessou.

A mulher lhe mostrou o celular. Uma foto de Eloise no jardim de casa, bebendo chá e comendo o que sobrava da torta de morangos.

— Théo me mandou — ela contou. — Eloise está feliz — murmurou. — Quando tempo faz que eu não via esse sorriso nela?

Caio afastou-se, caminhando até o espelho, vestindo a camisa e arrumando a gravata. Seu rosto não escondia a insatisfação.

— Não gosto desse cara — confessou, depois de um breve silêncio.

— Ele não vai roubar o amor da sua irmã, da mesma forma que eu não roubei o seu dela.

— Está querendo insinuar alguma coisa?

Rafaela percebeu que ele buscava um pretexto para discutir.

— Sabe o que Amanda me comentou?

— Lá vem... — replicou. — Amanda e suas crendices.

— Acredito nela, porque sua óbvia antipatia por Théo tem que ter algo a ver com a espiritualidade.

— O que quer dizer?

— Vidas passadas — respondeu. — Algum conflito não resolvido que vocês insistem em trazer à tona. Ele também tem dificuldades de te encarar.

— Isso é ridículo.

— Ridículo é você menosprezar alguém que sequer viu antes na vida. Ridículo é você odiar qualquer pessoa que se aproxime de sua irmã. Nem sei como eu mesma consegui, pois eu reparava na forma como você parecia me fuzilar com os olhos quando eu conversava com Eloise.

— Isso nunca aconteceu! — defendeu-se.

— Você retrocedeu porque percebeu que eu não recuaria. Eu adorei sua irmã assim que a vi. Sabe o ditado: “meu santo bateu com o dela”? Foi essa a sensação que tive ao ver Eloise pela primeira vez. Eu me conectei automaticamente. Acho que Théo tem esse mesmo sentimento, e não vai se acovardar porque você faz cara feia sempre que o vê perto dela.

Caio terminou de vestir o paletó e se preparou para sair. Talvez a verdade nas palavras, talvez sua falta de tempo, ou o que quer que fosse, fê-lo retroceder. Simplesmente não entraria numa discussão tão improdutiva com a noiva.

— Fale com Amanda — Rafaela pediu. — Ela pode te ajudar. Ela tem uma amiga que é médium.

Caio gargalhou.

— Era só o que me faltava.

Contudo, assim que fechou a porta do apartamento, ele meditou nas palavras.

 

Amanda caminhou rapidamente pelo corredor da galeria. Havia feito uma ótima venda de manhã para um rico empresário local e queria organizar a entrega com detalhes, para que tudo saísse de acordo com o esperado.

Contudo, sua caminhada foi interrompida pela visão de Caio. Parado ao lado de um dos quadros, ele a encarava, enigmático.

Assim como era amiga de Eloise, ela sempre gostou de Caio. Quando mais jovens, até flertaram algumas vezes, mas nunca saiu disso. Depois de adultos, se viam pouco, pois a vendedora tinha mais contato com Eloise e Rafaela.

— Que surpresa... — murmurou.

— Podemos conversar?

Ela assentiu. Alguns princípios para Amanda eram primordiais. A atenção aos amigos era um deles.

— Rafaela me comentou sobre o que você disse...

— Eu disse?

— Sobre o segurança de Eloise e eu. Sobre a antipatia que um parece ter pelo outro.

— Não parece, vocês têm! — ela riu. — Mal conseguem se encarar.

— E você acredita que isso vem de outras vidas?

— Eu acredito que é algo forte demais para surgir do nada. Mas, o que eu penso não importa. O que você pensa, é que importa. Por que está aqui?

— Rafaela me falou sobre uma médium.

Amanda negou com a face.

— Vocês descrentes sempre pensam que tudo é resolvido da forma mais simples. Um médium não irá responder as suas questões se você não definir primeiro quais são as suas perguntas.

— Sempre misteriosa...

— Eu não brinco com as palavras, apenas... — respirou fundo. — Por que não esquece tudo isso e tenta se dar bem com Théo? Acredite, ele é um cara legal.

— Não quero me dar bem com ele. Tudo que quero é aquele homem longe da minha irmã — a resposta extremamente franca assustou Amanda.

— Mesmo sabendo que a presença dele acalmou os tormentos dela?

Caio a observou por alguns segundos, como se mastigasse aquelas palavras. A ideia de um homem – que não ele – confortar a irmã era terrível demais para o editor. Mas, havia mais que isso.

— Me dê o endereço dessa mulher — ordenou. — Quero falar com essa médium.

Amanda até pensou em recuar. Mas, como ela já havia aprendido, o destino sempre se cumpria. Diante disso, buscou sua agenda e escreveu o endereço em um papel perfumado.

 

A televisão noticiava alguns eventos políticos ocorridos naquela semana. O som do apresentador do telejornal era o único barulho humano dentro daquela casa.

Eloise o ouvia ao fundo, mas não prestava realmente atenção. Datilografando um trecho importante do livro, ela estava dominada pelas letras.

Subitamente, parou. Pegou a entrevista que fizera com a neta do médico amigo de Therron e voltou a lê-la. Havia algo ali que a incomodava demasiadamente.

Segundo a narrativa, Pierre tentou buscar pela esposa do amigo, tão logo percebeu que Therron havia perdido completamente o senso e a razão.

Enquanto o outro, dominado pela loucura, matava e castrava nazistas, o médico tentava encontrar meios de chegar à judia.

Leu o nome.

Esther...

Era um nome típico judeu e muito bonito, em sua opinião. Imaginou o que fez o médico Pierre tentar ajudar a mulher, mas nada lhe veio à mente.

“ Ele não a amava como um homem ama uma mulher. Não havia conotação sexual em suas ações. Era apenas como se ela fosse uma irmã. O mesmo carinho que nutria por Therron, nutria por Esther. Foi o padrinho de casamento deles ”, dissera-lhe a neta.

Depois da guerra, ele se afastou dos amigos. Therron havia sido levado ao estrelato e ao sucesso, e Vladimir (um amigo russo que também lutara pelos aliados), havia sumido e não dera mais notícias. Então, casou-se, teve filhos, netos e depois faleceu, doente.

Nunca mais teve qualquer contato com aqueles com quem dividiu suas primaveras mais floridas, seus melhores anos, mas narrou à neta com saudosismo sobre a juventude feliz.

E teria sido uma vida inteira feliz, não fosse à invasão alemã.

Contudo, a atenção de Eloise logo desviou-se para outro fato narrado. Pierre havia comprado algumas informações de um guarda nazista. Nos dias que a informação chegou à ele, descobriu que a jovem mulher do amigo estava presa no prostíbulo de Auschwitz.

Aquela notícia era completamente nova. Eloise não fazia ideia de que o campo de concentração havia tido um puteiro.

Jogou os dados coletados na internet, e logo o navegador lhe mostrou algumas imagens.

A pior delas, em seu coração, era a de uma cama vazia, coberta por uma colcha floreada, num quarto minúsculo...

... Cheirando a sabão.

A dor na nuca voltou. Não entendia os motivos, mas ao ver a foto, sentiu o forte cheiro de sabão amarelo. Um vômito surgiu em sua garganta e ela buscou uma garrafinha de água gaseificada para acalmar a ânsia.

— Uma pausa? — Théo surgiu na porta.

Foi um alívio. Ela quase lhe agradeceu por tirá-la daquele inferno mental.

— Sim, por Deus, sim — murmurou, levantando-se e indo até ele.

Na TV, agora o apresentador falava sobre esportes. Os dois times da capital haviam ganhado seus respectivos jogos e havia euforia na voz.

Sentou-se no sofá ao lado de Théo, que lhe ofereceu alguns salgadinhos.

Aquele clima calmo e aquele silêncio confortável — que sempre tinha ao lado dele —, lhe fez muito bem.

Subitamente, sentiu o toque masculino em suas mãos. Era simples e puro, apenas um enroscar de dedos.

Ela sorriu. Nunca assistir ao noticiário foi tão romântico e doce.

 

Capítulo 11

 

A busca


Caio Hopp ficou surpreso por não encontrar um local estereotipado, como imaginava.

A casa de cores claras, mesclada de branco e azul, era extremamente confortável e acolhedora. Não havia imagens de santos ou velas acesas, muito menos incenso, nada que lembrava o que ele imaginava como residência da casa de um médium.

O único cheiro no ambiente era do bolo que a mulher havia colocado no forno pouco antes de ele chegar.

Sentado no sofá, ele aguardou que ela verificasse a temperatura do fogão, e então voltasse a ele, com um sorriso nos lábios.

— Eu sou...

— Eu sei quem é — ela replicou. — Amanda me informou, dizendo que estava vindo.

Ele não havia dito que iria a amiga. Apenas, exigiu o endereço. Mas, não estava decidido. Não até sentar-se no banco do carro e pensar que a convivência de Théo e Eloise poderia progredir para algo a mais, algo a qual ele não estava preparado.

— E ela te disse por que queria vê-la?

— Você procura respostas — a mulher manteve o sorriso. — Bom, nem me apresentei. Sou Valéria, psicóloga e kardecista do centro...

— Olhe, desculpe — interrompeu-a. — Não estou interessado onde você pratica sua religião, nem nada do tipo. Estou aqui porque... — a voz morreu. — Porque... — repetiu. — Sinto-me um idiota por estar aqui — admitiu. — Não devia ter vindo.

Levantou-se. Estancou. Voltou a sentar-se.

— Você pode me ajudar? — indagou, por fim.

— Você quer ajuda?

— Eu preciso — confessou. — Muito.

— Está buscando respostas no lugar errado — ela foi sincera. — Deus nos dá a vida para que possamos vivê-la com intensidade. Não é no passado que conseguira resolver seus problemas. Ao contrário, poderá agravá-los. Você não sabe quem foi, não sabe quem é... E isso tem um propósito. Deus te deu uma nova chance, uma página em branco para que escreva um novo começo, aproveite essa oportunidade e...

— Mas você faz terapia de vidas passadas, não é? — indagou.

— Apenas em casos graves.

— O meu caso é grave.

— O seu caso é grave demais — ela o assustou. — Eu vejo que sua áurea é negra, coberta de culpa e vergonha. Imagino que você cometeu muitos erros, erros que te afogam, e acredito que descobrir quais erros são esses possam prejudicar a pessoa que você é agora.

Diante das palavras, por fim, o homem decidiu ir embora.

 


Os passos atrás dele eram cambaleantes. Caio respirou fundo, tentando diminuir o ritmo das passadas para que a mulher que se arrastava conseguisse acompanhá-lo. Subitamente, o som de um gemido de dor fê-lo volver-se para ela.

Eloise!

Não exatamente a irmã, um rosto um tanto diferente, marcado por manchas roxas de agressão, a boca repleta de marcas de dentes e os olhos apagados, cobertos por lágrimas espessas que resplandeciam mais que a agonia física.

A mesma dor que sempre enxergava no olhar da irmã durante todos aqueles anos, ainda estava ali, naquela mulher que ele desconhecia, mas reconhecia.

Ela havia sido estuprada. Mais que isso. A tortura física era nada perto do que ele sabia tê-la passado.

Então o olhar feminino desviou-se do seu. Ao longe, percebeu um grupo de homens de roupas listradas azul e branco, vestidos iguais a irmã.

Esqueléticos, eles cruzavam por um corredor de arame farpado.

Caio ouviu o latido forte dos cães. Sua pele arrepiou-se.

Eloise caminhou até os homens. Quis impedi-la, mas ficou imóvel. Tudo foi breve, logo ela retornava para si.

— Meu pai morreu .

A voz dela trouxe mais agonia.

Com lágrimas despencando nos olhos e uma dor insuportável no peito, ele acordou daquele pesadelo.

 

 

Capítulo 12

 

Entrega

 

O som breve de um farfalhar fez os olhos de Eloise se abrirem, naquela noite fresca.

Não havia realmente um som, apenas um ou outro estalo, vagaroso, que pareciam passos dados com cuidado sobre o piso de madeira, ecoando pelo corredor, lembrando-lhe de uma agonia que ela já vivenciara antes, mas que, agora, parecia mais intensa.

O breu noturno fê-la sentar-se na cama, e buscar pelo abajur. A luz fraca invadiu o quarto, fazendo sombras fantasmagóricas na parede, deixando-a momentaneamente sem reação.

A porta abriu, depois disso. Théo surgiu, o dedo indicador no lábio, pedindo silêncio.

— Eu ouvi um barulho lá embaixo — ele explicou, tentando manter a mulher em calma.

Seu revólver estava empunhado na mão direita e, com a esquerda, ele a chamou para perto.

Eloise levantou-se da cama, e segurou seus dedos. Vagarosamente, ele a levou até o roupeiro, abriu uma das portas, e pediu que ela entrasse.


Esconder-se assim... Tudo parecia um déjà vu .

— Fique aqui, está bem? — pediu.

— Não... Tenho medo — murmurou.

— Não precisa. Provavelmente não é nada. Só estou sendo cauteloso.

E então fechou a porta do móvel. Ela ouviu quando a porta do quarto fechou-se também, e tudo que restou foi o silêncio.

 


Théo Garcia tinha experiência suficiente para saber que alguma coisa não estava certa. Primeiro, o som que ouvira pouco depois de se deitar, não se assemelhava a nenhum outro que percebera naquela casa.

Não eram os galhos batendo na janela, nem as madeiras rangendo, comuns em casas como aquela.

Foi o som de uma pisada que denunciou que havia mais alguém na casa. Ergueu a arma, segurando-a com as duas mãos, e então desceu, devagar.

Mais passos.

Não era apenas uma pessoa. Havia mais gente ali, no escuro, procurando alguma coisa.

Talvez um roubo?

Francamente a situação estava até comum, ultimamente. Já fazia algum tempo que o Sul do Brasil se tornara perigoso.

Porém, não era com os bandidos comuns que ele se preocupava. Os neonazistas eram mais atrevidos, lutavam por algo além da ganância. Queriam limpar a imagem que – diziam – os aliados haviam dado ao governo de Adolf Hitler após a guerra.

Para os neonazistas, tudo era uma mentira. O holocausto, as perseguições... Até mesmo os livros lendários como os de Anne Frank, ou o testemunho preciso de Simon Wiesenthal pareciam uma história mal contada, para entreter gente curiosa.

O que era estranho...

Théo nunca fora dado à história, mas, certa vez, um velho pracinha com quem conversou num evento militar lhe comentara que, no pós-guerra, ninguém parecia querer falar sobre os eventos ocorridos na Europa.

— O povo queria esquecer... — o homem murmurara, como se muitas dores estivessem por trás das palavras. — Então, a gente precisou fingir que não viveu nada daquele horror.

Dessa forma, relatos do que ocorrera nos campos não eram bem vindos em lugar nenhum. Assim, como que os aliados usariam os mesmos para benefício próprio?

E ainda havia o intenso prazer pelo ódio. Fazer o mal deleitava os seguidores daquela ideologia. Mesmo que tanto tempo havia se passado, neonazistas costumavam ser bárbaros e cruéis, como se a guerra permanecesse.

Desvencilhou-se dos pensamentos, focando-se no som que agora se aproximava da escada. Encostou as costas na parede, tentando ficar bem camuflado sob a escuridão.

A figura adulta e grande de três homens surgiu, pouco depois.

Théo não pensou. Ele sabia o que aquilo representava. Mais, ele sentia que havia falhado de defender Eloise em outra época. Agora, nada o impediria de atirar.

 


Eloise gritou ao ouvir os disparos. Foram mais de cinco, estalos secos e altos, que emergiam sua alma em algo além daquele momento.

Repentinamente, muniu-se de coragem. Se Théo fora pego, ela precisava sair daquele esconderijo e fugir da casa.

— Não vão me capturar! — disse, alto, incontrolável.

Nunca colocariam as mãos nela! Nunca mais!

Abriu a porta do roupeiro e logo estava no corredor. Parou, repentina, ao perceber a luz na parte inferior, acesa.

De pé, Théo conversava com alguém por telefone, enquanto três homens jovens de cabelos raspados estavam deitados no chão.

Sangravam, mas não pareciam estar em risco de morte.

O olhar da escritora e do antigo policial se encontrou.

— Eles não me viram — O tom masculino parecia de alívio. — Então aproveitei que estavam transtornados por não saberem de onde as balas vinham, e os acertei.

Falava com calma. Aliás, tudo nele parecia comum.

— Nenhum morto — informou. — Apenas feridos. Um estava com arma de fogo, mas já estou de posse. Os outros dois estavam com arma branca. — Aproximou-se de um deles, deitado no chão. — Sim, neonazistas — ergueu a camiseta do maior, percebendo uma tatuagem antissemita. — Ele tem dois oitos tatuados no braço.

Oito. A simbologia da letra H. Dois oitos denotavam dois H.

Heil Hitler.

Eloise sentiu as pernas tremulas. Sentou-se na escada, encarando os homens que a olhavam com nítida raiva.

Eles haviam invadido sua casa para matá-la. Naquele instante, poderia ser o sangue dela a manchar o tapete, e não o daqueles jovens transtornados pelo ódio.

— Puta — um deles murmurou, a voz dolorida. — Você não vai escapar, cadela!

Théo aproximou-se deste e lhe deu uma coronhada. Apagou-o na hora.

Tudo, após isso, foi uma sucessão de eventos rápidos. A chegada dos policiais, da ambulância para levar os delinquentes, o agendamento para o depoimento, as muitas falas preocupadas e ansiosas.

Mas, em tudo, havia Théo, tomando à dianteira e respondendo a cada indagação.

Quando, por fim, todos saíram e o silêncio voltou a reinar na casa, ele aproximou-se dela.

Eloise ainda tremia. A voz mal conseguia sair de sua garganta, e o coração aflito batia com força no peito.

Ele a ergueu, protetor. Fechou os olhos, aceitando aquele conforto, aconchegando-se em seu peito masculino, sentindo o abrigo que emanava de sua postura firme e convicta.

Então, Théo deitou-a na cama. O olhar deles encontrou-se novamente. Ele sorriu.

— Você precisa descansar — disse.

Fez menção de se afastar, mas a mão firme da mulher segurou a sua .

 


Eloise não se lembrava da última vez que esteve à mercê de um homem.

Sempre envolvida pelos assombros de sua alma, seus namoros na escola não progrediam, e na faculdade ela aceitava o ciúme do irmão para com seus pretendentes com absoluto alívio.

Porque até aquele instante, até aquele momento em que Théo a encarava com desejo, ela jamais havia sido instigada por qualquer coisa.

Mas, de súbito, descobriu-se mulher. Sim, alguém com paixões e vontades, aquém da intensa agonia que parecia absorvê-la dia após dia. Ali, naquela cama, embaixo do corpo másculo de Théo, Eloise soube que estava no lugar certo.

A boca dele tomou-a, intensamente. Um beijo como jamais outro. O gosto, a saliva, a leve mordida no lábio inferior, o palpitar no coração, o latejar em seu baixo ventre, e o gemido de puro deleite a escapar da boca. Sim... Aquele era o momento certo. O momento certo deles.

Abraçou-o, apertando contra si, deixando com que os lábios masculinos deslizassem por todo um caminho que ia da boca ao pescoço, e então mais abaixo.

A camisola bonita e clara deslizou de seu corpo. Sua nudez, contudo, não intimidou-a. Aquele homem era perfeitamente feito para ela. E, nada mais justo que ele a tivesse de todas as maneiras que quisesse.

Théo ergueu o corpo, tirando a própria roupa. Havia algo completamente quente no gesto. Eloise adorou a maneira como ele estava firme, seguro do que queria, e da forma como a olhava com fome.

Uma fome que só ela poderia saciar.

As peles roçando-se, as bocas grudadas, o fervor que parecia aumentar de intensidade momento após momento e, por fim, a penetração.

Um encontro de corpos que parecia destinado e de extrema saudade.

— Théo — ela gemeu, contra a orelha dele, sentindo a carne dura invadindo-a com força, tendo dela tudo que merecia.

— Você é minha — ele gemeu, e ela aceitou.

Que tomasse posse!

O pênis duro saiu e entrou dela, várias vezes, num ritmo frenético.

Na semiescuridão do quarto, ela apertou o bumbum masculino contra si, sentindo os músculos se forçando, a dança erótica que suas almas preparavam desde que se viram pela primeira vez.

E então ele a molhou, sua semente escorrendo pelo centro feminino, deslizando pelas pernas, trazendo ainda mais calor nos corpos já encharcados de suor.

Em algum momento os pensamentos de Eloise pensaram numa criança. Um anjinho de cabelos loiros como os de Théo. Ah, como ela queria... E ela sabia que era algo que fazia falta, que se perdeu em tempos, que eles nunca puderam ter.

Quem sabe dessa vez... Apenas dessa vez... Poderiam ser felizes?

 

Capítulo 13

 

Em outra vida


— Eu sou um covarde...

O múrmuro ao lado da cama fê-la encarar o homem nu, que havia amanhecido ao seu lado.

Deslizou o dedo pelo peito musculoso, de pelos ralos, e sorriu.

— Por quê?

— Ontem à noite, eu tive a impressão que a perderia. E eu não poderia suportar isso. Então eu ataquei aqueles jovens sem sequer pensar em imobilizá-los. Eu poderia tê-los rendido, e chamado à polícia. Mas, eu preferi atirar primeiro. Simplesmente, não poderia arriscar.

Aquela confissão não causou nela nenhum sentimento de aversão. Sua vida estava em perigo, e Théo não quis aventurar-se. Almejou agradecê-lo, mas as palavras seguintes fizeram-na lacrimejar.

— Eu tenho uma sensação horrível de que irei perdê-la. Não sei se hoje, ou amanhã, ou daqui a dois, três, vinte anos... Não sei. Mas, sei que vou. Isso me desespera.

— Você não vai me perder — ela garantiu, aproximando-se dele, beijando seus lábios, unindo-se ainda mais ao homem. — Nunca, Théo.

— E se a vida não estiver em nossas mãos? — indagou. — E se nós não sejamos capazes de fazermos nosso próprio destino?

Ela lambeu o lábio inferior masculino. Sorriu diante de um leve gemido que ele deu.

— Então teremos que nos encontrar de novo — afirmou. — Em outra vida... — completou. — Em qualquer existência. Mas, nunca vamos desistir.

Ela fechou os olhos. O sol começava a despontar no horizonte. Um raio os tocou na cama. Não sabiam, mas era o divino abençoando aquele amor.

 


Caio Hopp entrou na casa com o semblante afobado. Ao contrário do que esperava, encontrou a irmã tomando café na cozinha tranquilamente, sem parecer que havia passado por terror na noite anterior.

— Por que você não me ligou? — questionou a Théo, que o observava a certa distância.

— Foi tudo resolvido... O departamento de polícia já conseguiu prender o chefe do grupo.

— Resolvido? Três neonazistas foram baleados dentro da casa da minha irmã...

— E ela está ilesa. — Arqueou as sobrancelhas. — Como soube?

— Rafaela foi informada assim que chegou para trabalhar na delegacia. Ela não veio porque disse que estava tudo sobre controle.

— E está.

Caio aproximou-se de Théo. Para eles, era difícil estarem assim, tão perto, mas o moreno não se impediu.

— Você não faz ideia de como isso pode abalar Eloise.

— Ela não está abalada.

Caio voltou-se para a mulher, que bebia café.

— Estou bem, irmão — garantiu, com um sorriso.

Mas, havia algo mais naquele semblante alegre. O brilho na pele, o olhar apaixonado... Caio bufou, e se afastou.

Théo o seguiu.

— Não confio em você — disse, perto da porta, pronto para sair.

— Sua irmã confia, e isso basta.

— Não basta pra mim — rebateu.

Em seguida, suspirou. O que diabos estava acontecendo? Desde que Théo Garcia havia entrado na vida de Eloise, ela nunca mais tentou contra si, nem havia feito alguma burrice que poderia colocar em risco tudo que construiu na carreira. Sequer o cheiro comum de cigarro na casa estava presente.

Era como se a presença daquele homem houvesse aliviado a alma da irmã. Não totalmente, mas de maneira visível e arrebatadora.

— Eu vou te tolerar por ela — disse.

— Eu também — o outro devolveu. — Eu não teria aceitado esse trabalho, não fosse por ela.

Subitamente, um riso frouxo surgiu nos lábios do editor.

— Rafaela disse que nosso problema deve ter vindo de outra vida — murmurou. — E estou começando a achar que ela tem razão.

— Não acredito nessas besteiras.

Pela primeira vez, houve conexão.

— É... Eu também não.

E então saiu.

O guarda-costas permaneceu a encarar a porta fechada, como se absorvesse a última informação.

“ Outra vida... ”.

Não acreditava em nada que não visse com seus próprios olhos. Contudo, encontrar Eloise era a prova de que nem tudo era preto no branco, como sempre creu.

A mulher surgiu na porta da cozinha e sorriu para ele.

— O que foi? — ela murmurou.

Ele negou, devolvendo o sorriso.

— Nada.

Mas, havia algo. Eloise sabia. Théo sabia. E, acima de tudo, o editor que acabava de entrar no carro, também sabia.


Capítulo 14

 


Esther


O cheiro delicioso do peixe ao forno invadiu a cozinha. Théo sentou-se à mesa, observando a mulher na tarefa de fazer o jantar daquela noite.

Ela era metódica em tudo. Na maneira como temperava o peixe, na forma como o colocava sobre o papel alumínio, e no jeito que arrumava tudo tão logo terminava o ofício.

Nem parecia que estava cozinhando. A cozinha brilhava, com cheiro de desengordurante e álcool.

Sorriu. Aquele silêncio confortável entre eles parecia um alento à vida difícil. Durante muitos anos, Théo imaginou se a vida era algo a que se valia a pena. Naquele instante, vendo Eloise cozinhar, ele percebeu que qualquer dor que houvesse passado valeu por aquele momento.

Em nada ele mudaria seu passado, se o futuro representava estar ao lado daquela mulher.

— No que está pensando? — ela indagou, num sussurro.

Ele sorriu.

— No quanto você é linda.

— Nunca me achei bonita, mas sinto que suas palavras são sinceras — ela riu.

— Pode acreditar que são, Esther.

Por alguns segundos, o silêncio confortador quebrou como um cristal frágil recebendo uma paulada.

O olhar de Eloise confrontou-se com o dele, em choque.

— Do que me chamou?

Théo sabia o que havia falado, mas, seu pavor fê-lo mentir.

— Eloise...

— Não me chamou de Eloise — ela afirmou, convicta.

— Não é nada do que você está pensando.

E o que ela devia estar pensando? Qualquer mulher imaginaria infidelidade ao ouvir o nome de outra. Mas, o olhar de Eloise não remetia a isso.

Não que eles tivessem qualquer compromisso. Bem da verdade, sequer o fato de que passaram a dormir juntos era discutido. No fundo, era como se não precisasse. Estavam um ao lado do outro, num vínculo que palavra nenhuma poderia classificar.

— Por que me chamou de Esther? — ela insistiu.

O que mais ele poderia fazer além de dizer a verdade?

Ergueu-se da cadeira e rumou até ela. Segurou seus ombros, como se quisesse encontrar as palavras certas para não assustá-la. Por fim, viu que nada do que diria poderia explicar exatamente o que ocorria em seu íntimo.

— Desde que me lembro, tenho sonhos com essa mulher...

— Esther?

— Isso... — assentiu. — Nunca a vi, não sei quem é, e em meus sonhos normalmente a assisto morta, deitada sobre um chão barrento, nos braços de um homem que eu desconheço. Às vezes, tenho outros sonhos, conversamos à margem de um rio, ou deitados na cama.

Eloise parecia acolher aquelas palavras com indefinida reação.

— E você crê que ela...

— Ela é você — ele afirmou. — Não tenho dúvidas de que ela é você. Eu soube exatamente que era, quando te vi naquele leito no hospital. Foi por isso que aceitei o emprego.

Eloise segurou a mão do homem e caminhou com ele até seu escritório. O olhar em dúvida de Théo remetia a muitas perguntas, mas todas elas obtiveram respostas quando ela lhe estendeu um punhado de páginas, onde, em letras garrafais ele leu:

“ Esther Wiesel passou a se chamar Esther Esme... ”.

Théo voltou o olhar para Eloise.

— Ela era esposa de Therron Esme, o pintor.

De alguma maneira, era como se Théo soubesse exatamente daquilo.

— Ele a roubou no dia do casamento com um judeu — as palavras chocantes saíram dos lábios masculinos. — E se casou com ela em uma pequena paróquia de um bairro pobre, em Paris.

— Como sabe disso? — Eloise arqueou as sobrancelhas.

— Eu simplesmente sei.

A mulher mordeu o lábio inferior, digerindo aquela informação.

— E ela sou eu? E você seria quem? Therron?

— Um artista? — duvidou. — Eu odeio quadros, odeio a arte.

— Já se perguntou os motivos?

— Amanda disse algumas coisas...

— Você já havia falado com ela sobre isso?

Ele assentiu.

— No hospital, quando te conheci, chamei-a por Esther e ela me flagrou no ato.

Eloise respirou fundo.

— Você disse que a viu morta — caminhou em direção ao computador, e abriu um arquivo. — Therron Esme encontrou a esposa morta no dia... — silêncio.

Théo aproximou-se por trás dela. O rosto da escritora parecia em choque.

— O que houve?

— Vinte e sete de janeiro — apontou. — O dia que libertaram o campo Auschwitz.

— E?

— É meu aniversário. Nasci dia vinte e sete de janeiro de oitenta e quatro.

— Caio também?

— Sim, somos gêmeos.

— Eu vi Esther morta nos braços de um homem. Poderia ser ele?

Ela somou algo nos dedos.

— Exatos trinta e nove anos depois... Você crê mesmo nisso ou talvez seja apenas uma coincidência assustadora?

Théo deu os ombros.

— Não sei o que pensar, e nem sei se quero pensar. Tudo isso me assusta, me apavora. Por que eu teria sonhos? Por que eu te encontrei?

— E por que esse quadro me chamou desde o instante que eu o vi? — ela completou. — Talvez precisamos de ajuda — murmurou.

— E você quer mexer nesse passado? — ele rebateu. — Eu prefiro continuar no futuro.

A mulher permaneceu em silêncio por alguns segundos. Por fim, percebeu que ele estava certo.

— Eu quero um futuro com você — disse, sorrindo.

Ele ajoelhou-se ao lado dela, beijando suas mãos.

— E teremos, meu amor. Teremos um futuro lindo.

 


“ De que adianta? ”

O jornal estava aberto na página em que teciam elogios fervorosos aos seus quadros.

“ De que adianta gostarem da minha arte, se ela está morta? ”

No íntimo, sempre sonhou com o sucesso. Mas, ganhar dinheiro era, num único propósito, a melhor maneira de dar uma vida mais confortável à esposa.

Agora, enquanto sua conta no banco crescia a cada dia, enquanto críticos lhe elogiavam com paixão, enquanto mulheres se atiravam em seus braços, ansiosas para serem as musas de sua devoção, tudo que ele via era que seu talento em nada lhe serviu.

Jogou um pequeno balde de tinta vermelha sobre um dos quadros. Manchou com a cor de sangue a imagem da esposa, uma nuvem escura que havia pintado ao fundo de uma cerca de arame farpado.

“ Perdida ”, murmurou. “ Perdida para sempre... ”.

A perpetuação de uma dor que parecia não ter fim.

“ De que adianta viver, Esther? ”

A arte e o amor não foram capazes de salvá-la.

A arte e o amor haviam destruído ele, igualmente.

 

Théo sentou-se na cama, respirando fundo, assustado. Ao seu lado, Eloise acordou imediatamente, e tentou acalmá-lo, acariciando seus ombros, dando-lhes pequenos beijos como conforto.

— Um pesadelo? Com ela, novamente?

Ele negou.

Se queria uma confirmação de quem era, naquela noite ele a teve.

 

 

Capítulo 15

 

O perdão.


— Você ficou maluco?

Caio Hopp não sabia se ria ou blasfemava diante da postura do homem à sua frente.

No seu confortável escritório na área nobre de Porto Alegre, ele tentava começar seu dia de trabalho sem percalços. Contudo, tão logo surgiu no corredor da empresa, foi interceptado pelo segurança da irmã, que parecia em desespero.

— Você estava lá — Théo afirmou. — Você a matou — repetiu, sem piedade. — No dia vinte e sete de janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco. Mais especificamente, no dia que invadiram o campo de Auschwitz.

Caio gargalhou.

— Eu matei Esther? Que seria Eloise?

Ouviu toda a história que o outro narrou com o semblante tomado pelo riso.

— Não se faça de idiota. Você entendeu?

— E depois me suicidei, assim, morremos juntos e nascemos juntos, anos depois. — Repetiu a ideia, escondendo uma gargalhada. — Então eu sou a porra de um nazista?

— Você “era” a porra de um nazista — destacou.

— E você devia ir tomar no cu.

Apontou a porta, denotando que queria que o homem fosse embora. Théo não se moveu.

— Esther se ligou pelo quadro, eu pelos sonhos. Mas, me pergunto: e você? Eu duvido que nada tenha ocorrido, nesses anos todos. Se existe uma ligação entre nós, que vem de outras vidas, você deve ter tentado decifrar isso antes.

A imagem da médium Valéria surgiu na mente de Caio. Ele poderia mentir, dizer que o outro estava louco, mas o pesadelo em que via a irmã em um campo, logo após nítida tortura, ainda lhe tirava o sono.

— Ela se chama Valéria — comentou, depois de um tempo em silêncio. — Foi Amanda que me indicou. É terapeuta. Mas, não aceitou fazer terapia de vidas passadas em mim.

— Por quê?

— Porque, pelo jeito, eu sou a porra de um nazista — retrucou. — O que você acha? Relembrar a morte de milhares de pessoas? Você acha que alguém não ficaria louco ao saber ser responsável e cúmplice de um genocídio? Valéria me disse que Deus havia me dado um recomeço, esquecido de meus erros. E que eu devia aproveitar essa oportunidade.

— Mas, não consegue — constatou. — Porque você sabe que existe algo errado. E, por Eloise, nós precisamos descobrir o que é.

 

Théo sentou-se diante da mulher de aparência gentil. Ela sorriu, tentando lhe trazer conforto.

— O caso é urgente — ele explicou.

Ao seu lado, Caio parecia incomodado.

— Eu queria ter um futuro ao lado dela, mas os pesadelos não param. Essas lembranças, esses momentos de terror...

— Mas, vocês não acreditam nisso? — ela indagou.

O ceticismo era nítido em ambos.

— Existe algum problema para que sua terapia funcione? Infelizmente, acho que não nasci com o dom da fé.

— Claro que não. Ninguém precisa crer em vidas passadas. O que a hipnose faz é uma terapia, uma técnica que nos submete a lembranças adormecidas, para curar feridas, algumas físicas, outras na alma. Eu não aceitaria fazer tal procedimento no rapaz — apontou Caio. — Mas, em você, depois de tudo que ouvi, acho poderia te ajudar a seguir em frente.

Depois, ela respirou fundo.

— E a moça? Eloise, não é?

— Ela já sofre demais com ou sem o conhecimento sobre o que se passou. Não quero que ela se lembre de nada.

— Mas, me disse que ela melhorou muito depois de encontrá-lo — Valéria apontou.

— Isso é verdade.

— Então é provável que o que Eloise buscava não era escapar do campo, e sim voltar para você. Todas as suas torturas psicológicas estão tendo fim com a sua presença. — Analisou, anotando em um bloco de páginas amarelas algumas informações. — Me disse que ela morreu no dia que o campo estava para ser liberto? Ou seja, ela morreu as vésperas de sua liberdade? Isso deve ter sido agoniante para a alma dela.

— E eu a matei... — Caio murmurou.

— Você não sabe disso — Valéria interpôs.

— Eu a vi morta nos braços dele.

As palavras de Théo não mudaram a opinião da terapeuta.

— Você o viu matando-a? Se não, não pode afirmar. O passado, às vezes, se revela de maneiras muito estranhas.

O homem concordou, apesar de no íntimo não querer.

— Você irá nos ajudar, então?

Valéria assentiu.

Era o início da busca pela verdade.

 

Théo sentou-se em um bonito divã, ainda sem acreditar que realmente estava prestes a se submeter a tal procedimento.

Naquele dia, acordou cedo e disse a Eloise que iria a uma entrevista de emprego. Rafaela e Caio o aguardavam de carro no final do quarteirão, e ele seguiu com a dupla até o consultório de Valéria.

Agora, na sala ao lado, Rafaela e Caio permaneciam à sua espera, como se, o que ele pudesse lembrar, também fosse salvá-los de alguma maneira.

Eloise era a única que desconhecia aquele momento. Se tudo que achavam ser verdade se confirmasse, toda a dor que ela vivenciou até então havia tido um motivo sinistro.

Assim sendo, tudo que restava era um homem sedento pela verdade, a fim de salvar também a sanidade da mulher que ele amava.

— Em que dia você nasceu? — Valéria indagou, batendo nas almofadas e o convidando a se deitar.

— Vinte e um de novembro — murmurou.

— Que ano?

— Oitenta e três.

— Você voltou antes dela — a mulher constatou. — E se o que me disseram era verdade, devia estar no umbral, pois Therron Esme era suicida.

— Você quer dizer, o inferno?

— Um estado de consciência em dor — ela rebateu. — Quem se mata, normalmente está em tal momento de desespero que não consegue ver a luz. Seu espírito, então, é atraído para essa amargura, e vive lá, até conseguir se libertar... Quase sempre isso leva muitos anos. E você voltou pouco depois do desencarne como Therron. É difícil entender os motivos, mas Deus sempre compreende nossas lutas e nos oferece chances de redenção.

Ela se interrompeu.

— Assim, provavelmente, aconteceu algo que fê-lo voltar antes. É como diz o ditado: existe mais coisas entre o céu e a terra...

— Que sonha nossa vã filosofia... — ele completou, num sorriso. — Me basta saber o que aconteceu entre Caio, Eloise e eu.

A mulher assentiu.

— Feche os olhos.

 

Nunca havia experimentado tal estado de relaxamento. Guiado pela voz doce de Valéria, ele quase poderia dormir.

Naquele instante era como se todo peso que carregou pela vida houvesse sido tirado de si. Ali, ele era apenas uma pessoa normal, serena, em total estado de paz.

— Onde você está, Théo?

A pergunta surgiu na sua mente no mesmo instante que uma cidade apareceu diante dele.

Monumentos com cal branco se erigiam quase até o céu, resplandecendo glória. Ele sorriu, diante do que se mostrava. Era uma beleza que o tocava, mas nada comparado à visão da mulher diante dele.

Ela era linda. Cabelos longos, à altura da cintura, negros como a noite, em cachos brilhantes, contrastando com o vestido branco.

— Estou em Roma — murmurou. — Com Helena.

— Helena?

— Um dos nomes de Eloise.

Valéria anotou aquilo.

— E você está feliz?

— Muito.

— Por quê?

— Porque eu confessei meus sentimentos, e ela corresponde a cada um deles.

Subitamente, o rosto de Théo entrou em pavor.

— O que aconteceu, Théo?

Silêncio.

— Théo?

 

Naquela existência, se chamava Gaius. E, francamente, não era dotado da mesma beleza e aparência que agora tinha. Mesmo assim, os cabelos ainda traziam um tom claro, e o olhar permanecia azul.

De qualquer maneira, indiferente a isso, Helena o amava. Poetisa, ela lhe declarava em versos seus sentimentos, e tudo se encaminharia para um final feliz, não fosse por Cezar.

Foi assim... Como sempre, ele a perdeu.

“ Você é meu irmão! ”, Cezar lhe disse, com raiva. “ Meu irmão mais novo. Eu te amo tanto, e você quer roubar minha noiva? ”

Começou ali. Naquele instante, naquela fagulha acesa do fogo do tempo, a separação. Cezar, a quem conhecia agora por Caio, olhava-lhe com lágrimas nos olhos, um ódio descomunal a tomá-lo, massacrando a antiga fraternidade.

“ Ela não ama você ”, defendeu-se. “ Você precisa deixá-la livre. ”

Sentiu a dor forte de uma facada. Olhou para baixo e percebeu a arma manchada de sangue nas mãos de Cezar. Seu olhar cruzou com o do irmão, e ele tentou entender o que exatamente havia acontecido.

Como puderam romper os laços daquela forma?

“ Não... ” Cezar murmurou. “ Não, eu não queria... ”.

Cezar segurou Gaius nos braços. Havia lágrimas nos olhos de ambos.

Era tarde demais.

 


— Théo?

O suspiro triste dele fez Valéria respirar aliviada.

— Théo, não quero mais que me abandone. Preciso que fique comigo, está bem?

— Ok — o murmuro dele era embargado pelas lágrimas. — Caio me matou — contou. — Porque Eloise me amava, mas era sua noiva.

Valéria escreveu aquilo.

— Continue. Avance no tempo. — Pausa. — Onde você está, agora?

 

Os gritos da mulher invadiram sua mente. Agoniantes, desesperados e, estranhamente, esperançosos.

A casa de tábuas dava vista para os canais. Estava em Veneza, em uma época antiga, mas que lhe trouxe alento.

“ Nasceu! ”

Uma felicidade sem precedentes tomou conta de si. Encarou o rosto de uma mulher bonita, sua irmã, Francesca, e segurou a criança no colo.

— É um menino, Marco — seu tom, contudo, escondia algo.

Voltou o olhar para ela. Reconheceu o brilho de Rafaela naquela bondade.

— Maria não resistiu.

Se estivesse com a criança nos braços, ele a teria derrubado. Pois, tudo nele, subitamente, perdeu-se.

— Você precisa ser forte — a irmã afirmou. — Precisa ser forte por ele... Por Kaius.


— Você o amava? — Valéria indagou, seu tom era calmo, e aquela paz era tudo que segurava Théo enquanto seu rosto encharcava-se de lágrimas.

— Meu filho?

— Sim.

— Ele me roubou a esposa — a resposta cruel foi sincera, e Théo se condenou por ela.

Subitamente, um gemido.

— Théo? Você está bem?

— Eu a matei — murmurou.

— O quê?

— No navio que nos levava ao mundo novo. Eu a matei...

 

“ Você me ama, Eleanor? ”

Eloise o encarou. Na proa do navio, ela permitiu que as lágrimas corressem pelo seu rosto em amargura.

Vestia negro, roupas bastante recatadas. Ele soube que eram imigrantes assim que a viu. Protestantes em busca de um lugar melhor para viver.

“ Eu te amo, Thomas ”, ela admitiu. “ Mas, eu sou e sempre serei prometida de Charles. ”

“ Você prefere uma vida ao lado dele que ao meu? ”

“ Você sequer me ama! ”, a mulher rebateu. “ Tudo que te importa é me roubar de Charles porque você o odeia ”.

“ Isso não é verdade ”.

“ Tudo que fez durante toda a sua vida foi provocá-lo, tentando fazê-lo lutar contra ti. Onde está seu lado cristão? Até um duelo já tentou... E tudo para quê? Eu não vou deixá-lo, ele é meu melhor amigo, e ficarei ao seu lado... ”.

Seu som foi interrompido pelas mãos fortes que apertavam a garganta feminina. Théo visualizou a si mesmo agredindo aquela que ele amava mais que tudo.

— Não! — Théo gritou.

Valéria se ergueu e tentou segurá-lo.

— Solte-a! — ordenou para o homem que ele fora, mas aquele protestante de barba rasa não o ouvia.

Ouvi-a engasgar, em sofrimento. Então, o homem a largou quando a percebeu desfalecer.

Enquanto Thomas olhava para suas mãos manchadas para sempre pelas trevas daquele assassinato, outra figura surgiu na proa.

— O que você fez? — indagou, em choque.

Era Charles. Era Caio.

 

“ O amor não existe ”.

O som da sua própria voz em um jardim cercado de rosas por fim o acalmou novamente.

Ao seu lado, Valéria voltou a guiá-lo.

— O que vê?

— Ela.

A palavra apaixonada fez a mulher sorrir.

— Uma nova chance — ela murmurou. — Você aproveitou essa chance?

“ Como vou conseguir pintar algo decente depois de vê-la assim? ”.

Valéria percebeu o sorriso que se alargava.

— Sim — ele respondeu. — Céus, aproveitei sim.

O semblante, subitamente, tornou-se horror.

— O que foi?

— Caio. Como eu pensava, ele está vestido com o uniforme da S.S.

— Está no campo de concentração?

— Não, estamos na França. Ele está observando um dos quadros que fiz para Esther.

“ Eu não negocio com nazistas ”.

O som seguinte fez a pele do braço de Théo se arrepiar.

— Ele se chamava Kraus. Ouvi um dos homens o chamando.

“ Minha querida amiga, não é seguro tirá-la de Paris, nesse momento. ”

— O que houve, agora, Théo? Parece assombrado.

— Pierre — explicou. — Meu amigo Pierre. Ele e Esther, nunca percebi... — murmurou. — Ele é Rafaela — completou.

— O que tem Esther e Pierre?

— Desde o instante que vi Eloise pela primeira vez, pensei que fosse minha alma gêmea. Mas, não...

— É ele?

— É ele — confirmou. — Mas, eles nunca se envolveram romanticamente. Agora, por exemplo, são cunhadas.

Valéria sorriu.

— O verdadeiro amor nem sempre é romântico. Aposto que Rafaela é uma força para Eloise, assim como Pierre deve ter sido para Esther. A conexão era pura e forte, mas sem envolvimento carnal.

Em sua mente, a imagem voltou a correr. Esther sendo levada, seu tempo na resistência, as coisas que fez para tentar chegar até ela, as vezes que conseguia espiá-la da floresta e, finalizando, quando a encontrou morta nos braços de Caio.

— Você precisa voltar — Valéria pediu. — Théo, preste atenção em minha voz.

Momentos depois ele abria os olhos. A sala da terapeuta parecia um mundo fictício, depois da realidade enfrentada em suas lembranças.

— Você descobriu o que buscava?

Levou certo tempo, mas enfim ele respondeu.

— Sim.

 


Capítulo 16

 


O recomeço


Eloise volveu o olhar para a mulher que chegava. Amanda havia recebido a chamada da amiga durante o horário de almoço, e foi até ela rapidamente.

Normalmente, quando a escritora lhe ligava, era algum pedido de ajuda. Desde que o detetive Théo surgira na vida de Eloise, as ligações cessaram, mas Amanda imaginou que alguma coisa havia ocorrido, e que agora a amiga precisava novamente dela.

— Ele mentiu para mim — a outra disse, tão logo a viu. — Disse que foi procurar trabalho, mas eu sei que não. Os telefones de Caio e de Rafaela estão desligados. Mas, eu imagino que você saiba onde o trio está.

A loira assentiu. Valéria havia ligado para ela avisando sobre a terapia que faria em Théo. Assim sendo, narrou à amiga tudo que sabia.

— Mas, você sabe... — disse, doce. — Ele apenas está buscando a verdade porque precisa dela para seguir em frente.

— Nós dois havíamos combinado que seguiríamos em frente sem remexer no passado — Eloise retrucou.

— Acho que, para Théo, o passado não envolve apenas você. Se Caio está junto nessa, é porque o que existe entre eles é forte e precisa ser esclarecido.

Quando a porta frontal abriu e o rosto de Théo surgiu, seguido pelo irmão gêmeo de Eloise e pela cunhada Rafaela, ela soube que, fosse o que estivessem buscando, eles haviam encontrado.

Assim sendo, levantou-se do sofá e ficou diante deles, aguardando as palavras.

— Você foi Esther — ele confirmou.

Não era uma surpresa. De alguma maneira, ela sabia.

— E eu fui Therron Esme.

Amanda deu um pequeno gritinho ao fundo. Era como se dissesse “Eu sabia!”.

— O que pretende com essa informação?

— Seguir em frente — disse, convicto. — Voltar a fazer o que minha alma sabe e se sente bem. Vou voltar a pintar. Sei que não posso usar o nome de Therron, mas posso construir um novo artista com o talento que está adormecido dentro de mim. — Puxou a arma da cintura, observou-a, e depois voltou-se para Rafaela. Entregou-a à mulher. — Não sou esse homem violento — afirmou. — Fui, é verdade. Em muitas vidas. Mas, quando me vi machucando você — volveu para Eloise. — Eu percebi que meus atos para não perdê-la podem me tornar um monstro.

Rafaela segurou a arma. Então, apertou o braço de Théo.

— É sua redenção, meu amigo — ela murmurou.

— Sim... — ele concordou.

Do outro lado da sala, Caio também se pronunciou.

— E minha também. Eu matei Esther, Eloise. Eu a matei.

O olhar espantado fê-lo continuar.

— Fui o comandante Kraus Fritz. Joguei o nome no google e vi algumas informações, mas preferi ignorar quase todas as notícias. Valéria, a terapeuta que ajudou Théo, me disse que essa vida é uma chance de recomeço, e é assim que eu pretendo segui-la.

Eloise caminhou até o irmão, e lhe apertou as mãos.

— Você acha que Kraus matou Esther?

— Foi isso que aconteceu — deu os ombros.

— Está enganado. Num julgamento pós Nuremberg, algumas verdades vieram à tona.

A mulher deixou-os na sala e foi até o escritório. Voltou de lá com alguns papeis, fruto de sua pesquisa.

— Quando alguns membros da S.S foram à julgamento, um dos homens... — folheou as páginas. — Becker — explanou. — Esse soldado confessou que havia matado o comandante Kraus Fritz e sua amante judia. Ele achou que isso o ajudaria a evitar a forca.

Estendeu o papel a seu irmão, que ficou nitidamente emocionado.

— Então...

— Você nunca me machucou, Caio. Apenas me protegeu.

Abraçaram-se. Enfim, toda a barreira que parecia erguida desde que aquelas visões entre nuvens surgiram, foram derrubadas.

— É um alívio — murmurou.

— Mas, tudo isso, toda essa busca, foi para descobrirem o que no fundo já sabiam? — Eloise murmurou, afastando-se deles.

— Não — Théo negou. — Havia algo entre Caio e eu que me incomodava muito, e era necessário que eu soubesse o que era...

— E? O que descobriu?

— Caio e eu — apontou. — Nós dois somos predestinados. Almas gêmeas.

Um silêncio perturbador tomou o ambiente.

— Eu não sou gay — Caio defendeu-se, deveras incomodado com a frase.

— Espiritualidade nada tem a ver com sexualidade — Amanda contrapôs.

— Exatamente — Théo confirmou. — Rafaela e Eloise também são. Em muitas vidas foram amigas, cunhadas e, na anterior a essa, Rafaela foi um médico que fez o que pôde para tentar salvar Esther das mãos da gestapo.

As mulheres sorriram uma para a outra, diante das palavras.

— Tudo começou entre nós, há muitos anos, quando deixamos que o ciúme nos separasse. Em todas as vidas, tivemos a chance de voltarmos a ficarmos unidos, mas desperdiçamos isso. Houve vidas em que fui seu pai, mas não te quis; houve vidas em que éramos irmãos, mas nos rejeitávamos. Nessa última, através de Esther, teríamos um reencontro, mas o assassinato de vocês nos impediu. Contudo, agora, nós temos outra chance. Uma chance para mudarmos tudo, para refazermos o nosso destino. Uma chance para termos paz.

Caio pestanejou. Mas, por fim, a alma interligada deles falou mais alto. Aproximaram-se e trocaram um abraço. Uma nova vida que recomeçava.

Recomeços eram sempre especiais.

 


Meses depois...

No centro oval do salão de festas, Rafaela recostou sua cabeça no ombro de Caio.

Enfim, depois de tantos anos de noivado, eles estavam se casando sobre a benção de Deus, da família e dos amigos.

Num dos cantos, Eloise sorriu.

Estava linda, num vestido rendado de rosa, os cabelos escuros presos num penteado bonito, e a pele brilhando pela expectativa que crescia em seu ventre.

— Amanda me comentou que a galeria está interessada nos meus quadros — o marido aproximou-se por trás, e cercou sua cintura com as mãos. — Enfim, parece que vão me oferecer um bom contrato.

— Eu sabia que conseguiria — ela disse com convicção.

— Agora que a família vai crescer — alisou seu ventre —, faz-se necessário que eu tenha um emprego mais sério que segurança noturno.

— Todo emprego é digno.

— Mas sou machista — ele brincou. — Quero pagar as contas de casa.

— Comigo vendendo tantos livros, acho que será meio impossível — ela brincou.

Trocaram um beijo carinhoso.

Subitamente, o olhar dela ficou triste.

— O que foi?

— Acha que Esther e Therron queriam ter filhos?

— Provavelmente — apontou. — Não tiveram a chance, mas nós temos esse tempo.

Ela apertou suas mãos e voltou a olhar o casal que dançava.

O tempo, agora, parecia apenas uma brincadeira do destino.

— Sempre vamos nos encontrar, não é? — ela indagou, num murmuro.

Ele assentiu.

Aquele vínculo jamais se quebraria.


~Fim~

 


“Se um dom especial

É dado pra alguém

É pra ajudar o bem

Na luta contra o mal...”

 

Ivo Pessoa

 


DEMAIS LIVROS DA AUTORA


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Josiane Biancon da Veiga nasceu no Rio Grande do Sul. Desde cedo, apaixonou-se por literatura, e teve em Alexandre Dumas e Moacyr Scliar seus primeiros amores.
Aos doze anos, lançou o primeiro livro “A caminho do céu”, e até então já escreveu mais de vinte livros, dos quais, vários destacaram-se em vendas na Amazon Brasileira.Tudo

Por Ele


Almas Gêmeas – Duologia – Livro 02


É proibida a distribuição total ou parcial dessa obra sem a prévia autorização da autora.

Essa é uma obra de ficção com elementos históricos. Qualquer semelhança com nomes ou situações informadas é mera coincidência.

Todos os direitos pertencem a Josiane Biancon da Veiga.

ISBN: 9781521036990

 

 

“ É como o som do mar
Que vem nos alcançar

Pra nos mostrar o amor

O amor que existe além do olhar”

 

Ivo Pessoa

 

Sinopse

“Nem a morte nos separará”

Brasil, 2017

Eloise Hopp é uma famosa escritora que se vê diante de um fato enigmático. Quanto mais estuda sobre eventos ocorridos durante a Segunda Guerra, mais ela se convence de que fez parte de tudo aquilo.

Após uma entrevista em que narra sua determinação em falar sobre os campos de concentração, recebe ameaças de um grupo neonazista que jura vingança. Contra os vilões, existe apenas um obstáculo: Théo Garcia, um antigo detetive linha dura que mexe completamente com seu mundo.

Porém, não é apenas a guerra que Eloise sente viver. Théo parece fazer parte de sua alma, sua existência... De alguma maneira, ela sabe que é um amor que ela trouxe de outra vida.

 


Dedicatória:

 


Ao Deus que me mostra todos os dias que a melhor maneira de estarmos com Ele é praticarmos o perdão e o amor.

 

Nota da Autora:


Se você chegou até aqui, acredito que devo meus parabéns. Suportar o final do primeiro livro da duologia deve ter sido uma sensação de soco no estômago. E isso, claro, que eu lutei bravamente para tentar amaciar as palavras como podia, antevendo que muitos desistiriam das linhas como ocorreu em Kinshi na Karada (que teve o material bruto exposto, sem eufemismos).

Mas toda a questão relativa à Duologia Almas Gêmeas era relatar o reencontro de almas. Agora, entenderão muito das coisas que ficaram mascaradas no livro Um. E, especialmente, que o amor dos protagonistas não morreu, mesmo que eles tenham morrido.

Eu não sou espírita, apesar de ter usado a base nessa obra. Aqui, faço um agradecimento especial à escritora Rafaela Rocha, que me explicou bastante sobre kardecismo.

Acredito em Deus, e acredito em perdão. Essa duologia fala sobre isso.

De coração, obrigada pelo carinho, e vejo vocês no futuro em outros livros;

Josiane Biancon da Veiga

Abril de 2017.

 


Capítulo 01

 

O amor não existe


Brasil, Dias atuais.

Ele podia sentir o cheiro da carne queimada e das fezes, sangue e urina, que se alastravam por todo aquele lugar.

O chão era barrento, e havia algo naquela terra que se impregnava nas botas de couro e pareciam não querer sair de lá.

Era uma marca. Mais que física. Algo que levaria cravado a ferro na própria alma.

Caminhou reto, como se o destino estivesse puxando-o aonde devia estar. E, foi assim que a viu, em seguida, como uma peça do acaso, encaixando-se exatamente na posição que os deuses que regiam o universo queriam.

Deitada no chão molhado, morta.

Morta!

O fim da felicidade, e o começo do pesadelo.

— Não, Esther! — gritou.

Ele a havia perdido... Novamente.


— Não, Esther! — o grito ecoou pelas paredes do quarto.

Théo Garcia respirava rápido, enquanto tomava consciência de onde estava.

Deitado na cama, coberto por uma camada fina de suor, o coração aos saltos, o desespero de quem havia acabado de sair de um pesadelo latente.

Ergueu-se, rumando até à cozinha, buscando água no refrigerador.

O líquido gelado desceu por sua garganta, enquanto o homem visualizava a si mesmo pelo reflexo de um pequeno espelho postado na parede.

Há muitos anos tinha esse pesadelo recorrente. Uma mulher que não conhecia, deitada no chão, e a certeza de uma culpa avassaladora tomando-o.

Aqueles sonhos estavam tirando dele a sanidade. E, Deus sabia, uma mente sã era a única coisa que ele ainda tinha.

O homem estava desempregado, cheio de dívidas, e mal conseguia sair de casa. Abarrotado em problemas, desesperado num mundo que não se encaixava... Nada para ele parecia certo.

Tinha trinta e três anos, dos quais dez passou servindo no departamento de homicídios de Porto Alegre. Foi um erro, numa de suas missões, que fê-lo perder a carreira promissora e deixá-lo preso por um ano e meio. Depois que saiu da prisão militar, fez bicos para se sustentar, mas nada que lhe despertava qualquer sensação.

Era como se o coração dele não batesse, como se a comida não tivesse sabor, como se a vida fosse preto e branco. E tudo por causa dela...

Esther...

Alguém que ele nunca vira, mas que aparecia com frequência em seus sonhos, às vezes sorrindo para ele, às vezes morta.

E tudo que restava para aquele homem agoniado era viver dia após dia, sem esperança de solução.

Sentou-se no chão da cozinha, na escuridão daquela madrugada. Solitário, fez o que há muito não fazia, rezou.

Se havia um Deus no céu, que lhe mostrasse onde estava Esther, quem ela era, e porque não o deixava em paz.

Precisava resolver aquilo antes que ficasse louco.

 

O som dos saltos altos ecoou pelo piso de cerâmica clara.

Rafaela Albuquerque buscou o noivo com o olhar, e logo o encontrou, sentado na sala de espera, o semblante apático, como se estivesse encarando algo além do que os olhos podiam ver.

Sentou-se ao lado dele, buscando suas mãos, segurando-as firme, como se quisesse expressar o quanto estava ali para ele, e o quanto lutaria para que ele conseguisse superar mais aquela dificuldade.

O hospital de Emergências de Porto Alegre estava lotado, como de costume, mas a irmã de Caio Hopp havia sido atendida com rapidez, tão logo chegou ali.

Em muito porque o caso dela havia sido grave, os pulsos cortados haviam despejado muito sangue e ela estava num estado crítico, em muito porque eles tinham dinheiro suficiente para conseguir atendimento preferencial.

— A televisão estava ligada — Caio murmurou para a noiva, que apertou seus dedos, como se tentasse contê-lo. — Sabe o que diziam?

— Não importa o que dizem. Não conhecem Eloise...

— Num programa matutino questionaram a sanidade dela. Depois, agrediram-na com palavras. Chamaram-na de fraca.

— Caio...

— Como uma mulher famosa, uma autora internacionalmente conhecida, jovem, saudável, bonita... Como alguém como ela pode tentar suicídio?

— As pessoas têm dificuldades de compreender a depressão — Rafaela murmurou.

— Milhares de pessoas passando fome, doentes, cheias de problemas, e enfrentando seus problemas de cabeça erguida, mas minha irmã, ela sequer quer lutar...

— Não faça isso! — Rafaela retorquiu. — Não caia na armadilha de ficar contra sua irmã. Você é tudo que Eloise tem, Caio!

Ele respirou fundo. Na verdade, estava cansado. Gêmeos, sempre foram muito ligados. Eloise, desde criança nasceu com o dom da escrita, e ele sempre a apoiou. O pai, ao contrário, achava a filha medíocre e nunca lhe deu qualquer chance.

Quando o pai e a mãe se mudaram para o interior, e deixaram a Hopp Editora em suas mãos, ele investiu na carreira da irmã.

Foi um tiro certeiro.

Em pouco tempo, com a divulgação certa, ela se tornou uma das autoras mais vendidas do país. Após um diretor americano descobrir seus livros e levá-los ao cinema, ela conquistou o mundo.

Contudo, nada trazia um mero sorriso ao seu rosto. Eloise fugia de todos, inclusive do carinho dos fãs. Não frequentava eventos, evitava palestras, festas, ou qualquer ambiente em que sua presença poderia ser aclamada.

Seus romances, criticados por especialistas como “ literatura de mulherzinha ”, eram adorados por muita gente, mas massacrados por outro tanto. Na época em que as críticas se tornaram mais pesadas, chegaram a um consenso. Precisavam de outro nome forte na editora, a fim de salvar a irmã do ataque maciço dos ditos intelectuais.

Assim, nasceu um alter ego, Valentina Bianchi, que escrevia a literatura respeitável que Eloise Hopp jamais conseguiria, tamanha mancha em seu nome.

Aquele segredo guardado a sete chaves por Caio, fez com que ambos os nomes fossem referenciados na literatura nacional, mas de formas diferentes. Contudo, tanto sucesso não apagava na irmã a intensa condição de fracasso.

— Você sabe... — ele murmurou em direção à noiva. — Ainda me pergunto como ela conseguiu se apaixonar tanto pelas palavras. Quando éramos crianças, ela tinha uma enorme dificuldade com dicção. Sempre falava meu nome errado.

— É mesmo?

— Ela me chamava de “craus” — ele gargalhou, lembrando-se do apelido. — Nunca de Caio. Meu pai ficava muito chateado, achava que ela nunca conseguiria falar direito...

— Mas, aprendeu. E talvez não fosse Caio e sim caos. Ora, os dois irmãos juntos são bem intensos — brincou. — O talento dela para a escrita e o seu para os negócios tornaram ambos muito ricos.

— O que prova que o dinheiro definitivamente não traz felicidade.

No corredor surgiu um médico. Ele aproximou-se do homem e lhe estendeu a mão.

— Sua irmã está fora de perigo — disse, fazendo com que um suspiro de alívio escapasse dos lábios de Caio Hopp.

— Posso vê-la?

— Está sedada, mas sim... Pode ir vê-la.

Rafaela o seguiu, enquanto o homem de trinta e três anos aproximava-se da cama hospitalar. A irmã, da mesma idade, havia nascido alguns segundos após ele. A ligação era mais que algo de útero. Suas almas estavam conectadas, e ele importava-se tanto com ela ao ponto de sentir quando algo não estava certo.

Foi assim que deixou o escritório naquela manhã, tão logo uma potente sensação de horror o tomou. Dirigiu para a casa da escritora, afastada da capital, e a encontrou nua, na banheira, com os dois pulsos cortados.

— Eu não sei o que seria de mim se eu a perdesse — murmurou para Rafaela, que acariciou seus cabelos, dando-lhe um leve beijo na têmpora.

— Você não vai — a mulher afirmou, transmitindo forças.

Eles ainda não sabiam, mas aquela existência era uma nova oportunidade. E Eloise estava fazendo o possível para perder essa chance.

 


Capítulo 02

 

O amor que existe


Eloise Hopp havia mandado construir uma mansão em um lugar afastado na Grande Porto Alegre. Era um terreno baldio, cercado de árvores, próximo da rodovia — mas longe o suficiente das pessoas que pudessem querer ter algum contato — que ela encontrara, a uma pechincha, o lugar certo para morar. E lá se cercara de muros, e todo tipo de alarme e proteção.

Não era por medo da violência que a cada dia crescia mais no seu país. Eloise temia algo dentro de sua alma, um tormento que lhe tirava o sono, que fazia a mulher parar ao lado da janela como se a espera de alguém que viesse buscá-la e levá-la ao inferno.

O som de muita gente a destruía. O isolamento também lhe causava repulsa. Não havia espaço para sua pessoa, em canto nenhum. Tudo que restava na mulher era um medo infundado que ela desconhecia as raízes, mas que se tornava a cada dia mais forte e intenso.

Um dia uma turma de vizinhos em festa explodiu alguns fogos em comemoração. O som fê-la rastejar até o armário e esconder-se lá. Tremia tanto, que mal conseguia deixar o ambiente.

Foi uma amiga, Amanda, que a encontrou, no dia seguinte, após ela não retornar as ligações, completamente apavorada.

— Falta Deus na sua vida! — a mãe despejara, certa vez, diante de sua agonia.

Eloise chorou perante as palavras, porque ela acreditava em Deus, e porque sempre orava a Ele pedindo que a protegesse. Então, o que mais poderia fazer? Enfiar-se em uma igreja onde mais gente a desesperaria, ou simplesmente aceitar que aquele mundo não era seu lugar.

Optou várias vezes pela última alternativa.

Agora, ao retornar para casa depois de mais uma experiência no hospital, ela observou os móveis escolhidos com cuidado enquanto o abraço do irmão gêmeo, Caio, parecia acalmá-la como mais nada fazia.

— Vou preparar um café — Rafaela murmurou, muito mais para deixá-los a sós do que pela necessidade de bebida.

A cunhada era maravilhosa em todos os sentidos, e ela sentia que poderia deixar Caio porque ele jamais estaria sozinho enquanto a mulher de cabelos tingidos de loiros e olhar acinzentado estivesse ali.

Rafaela era parte de sua família como Caio.

Eloise desvencilhou-se dos braços do irmão e procurou uma bancada. Logo, encontrou uma carteira de cigarros e, mal o pegou, já vasculhava a procura do isqueiro.

— Pare com isso, Eloise — Caio reclamou, ele odiava vê-la fumar. — Venha cá.

Puxou-a diante do espelho para que ela visse seu reflexo. Os cabelos sem vida, a pele pálida, o peso que faltava, o olhar agoniado cercado por olheiras negras e profundas.

— Por que está fazendo todo o possível para se autodestruir?

A pergunta tinha uma resposta. Mas, Eloise não conseguia verbalizá-la. Simplesmente, ela não suportava a vida. Seus dias eram agonias sem fim, um medo irracional, um desespero descomedido.

A morte poderia ser um alívio, então ela a procurava, de todas as maneiras. No cigarro, na bebida, na automutilação...

A mulher afastou-se do irmão e voltou para o cigarro. Sentou-se no sofá, sugando a fumaça mentolada, acalmando seu pensamento desconexo.

Caio era tudo que lhe restava. Os pais nunca a amaram, sempre considerando-a excêntrica demais, diferente demais de todos, mas o irmão a colocava acima de qualquer coisa.

— Quero assumir que sou Valentina — ela contou, depois de um tempo.

Caio a encarou como se não a entendesse.

— A ideia de criar Valentina foi sua.

— Um pseudônimo para escapar do massacre dos críticos perante tudo que eu escrevo.

O irmão sentou-se ao seu lado, puxando suas mãos. Tentou ser compreensivo.

— Seria realmente um tapa de luvas nos pseudo intelectuais desse país — ele brincou. — A autora que eles veneram é a mesma autora que eles trucidam a cada obra lançada.

A irmã sorriu.

— Como está se sentindo? — Caio indagou.

— Bem. Agora, bem.

Ele compreendia. Estava sob o efeito da medicação. O problema é que o tempo corria, e com a passagem dos dias, a doença voltaria a atormentá-la.

— O que você acha de nós morarmos juntos?

— Eu lá sou mulher de ficar me enfiando na casa do irmão e da noiva dele?

— Rafaela também se preocupa contigo.

— E eu a amo por isso, mas eu preciso ficar sozinha, irmão.

Eles se recostaram no sofá. Eloise deitada no ombro másculo, enquanto Rafaela adentrava a sala com um bule e xícaras.

— A escrivã mais importante da polícia também é uma ótima secretária — Eloise brincou, ao bebericar o café.

— Então no seu próximo livro escreva sobre uma secretária que conquista o chefe fazendo bom café — riu.

Aquele pequeno e breve momento de descontração morreu nas palavras seguintes.

— Meu próximo livro será uma biografia.

Caio arqueou as sobrancelhas.

— Como assim? Você não é uma biógrafa.

— Não importa. — Levantou-se. — Sigam-me.

No escritório onde Eloise criava suas obras, o trio parou diante do um quadro sombrio, uma obra de cores intensas e quentes, antagonizando com uma nuvem negra que lembrava muito uma pessoa.

— Isso me dá arrepios — Rafaela murmurou.

— O nome da obra é “Perdida”. Comprei na galeria onde Amanda trabalha — explicou. — O artista se chamava Therron Esme. É muito famoso na Europa. Esse quadro me custou uma pequena fortuna.

— É desse artista que fará a biografia? Não vai vender, pois não tem fama popular.

Como sempre, o irmão era prático.

— Ele é famoso, e vai vender. A história da vida dele é muito interessante.

— Mesmo? Conte-me.

— Era uma artista de rua, que perdeu a esposa para os nazistas. A mulher era judia e foi levada para um campo de concentração. Ele enlouqueceu enquanto a buscava, mas só achou seu cadáver.

— Que triste... — murmurou Rafaela.

— Vou levar às pessoas a história de amor deles. Ainda tenho muito a pesquisar, mas tenho tempo.

Era até cômico que ela dissesse isso, quando estava voltando do hospital depois de ter tentado se matar. Tempo parecia exatamente o que faltava a Eloise.

— Não tenho certeza que esse tema vai te fazer bem, Eloise — Caio murmurou. — Por que não tira férias? Poderíamos ir à praia...

— Você ainda não entendeu, meu irmão? Não é o autor que escolhe seu livro, são os personagens que apontam seus dedos para nós e nos mandam dedilhar as palavras. Esme já me enfeitiçou, eu não terei paz enquanto não terminar essa obra.

Caio conhecia a irmã. Nada do que dissesse tiraria Eloise do caminho que escolheu. Ela iria escrever aquele livro, gostassem as pessoas ou não.

— Apenas, cuide de sua saúde, está bem? — Resolveu mudar o tópico da conversa. — Aliás, existe um convite para uma entrevista nacional sobre sua última obra. Gostaria de saber...

— Aceito.

— Mas, sabe que usaram seu tempo no hospital...

— Estou preparada para enfrentar as perguntas. Estou forte, hoje, irmão. Não sei se amanhã estarei, mas hoje estou. Então, me ajude a ficar assim, por enquanto.

Ele a abraçou, jurando ampará-la. Seu amor seria a fortaleza de ambos.

 

Capítulo 03

 

A coragem


Um homem parado em frente ao palco encarava a plateia enquanto fazia alguns comentários políticos, tema daquele dia.

Arthur Deval era um dos apresentadores mais aclamados da nova geração, e seu programa em horário nobre era assistido em todo país. Atrás do palco, Eloise encarou Caio, que apenas apertou seus ombros, enquanto lhe transmitia força.

— Se não gostar da pergunta, diga que está desconfortável e saía do palco, entendeu? — aconselhou. — Você aqui é convidada e eles te devem respeito.

A irmã sorriu, concordando. Contudo, no fundo, sabia que não iria fugir. Ela precisava enfrentar aqueles pequenos obstáculos, dia após dia.

— Estarei à sua direita, no palco — Caio avisou. — Bem no seu campo de visão.

“O campo nunca sairá de você”.

Aquele múrmuro em sua mente quase a fez perder a força nas pernas, mas ela se recompôs em seguida, não querendo preocupar o irmão.

Às vezes, ouvia vozes. Palavras como “ suja ”, “ imunda ”, “ sub-humana ”, costumavam pegá-la desprevenida. Normalmente tinham entonação masculina, mas agora o tom havia sido calmo e feminal.

Respirou fundo, tentando manter a tranquilidade. Precisava disso. Precisava saber que estava no controle, que não perderia para seus medos, suas dores.

— A nossa convidada de hoje é uma recordista de venda de livros no nosso país — ouviu a voz do apresentador, e Caio sorriu para ela, preparando-a para entrar no palco. — Eloise Hopp!

Enfim, ela entrou e rumou até o entrevistador, que a recebeu com um aperto de mão e a convidou a sentar-se diante de sua mesa.

As luzes tão brilhantes quase a impediam de ver a plateia, e ela ficou feliz por isso, porque pessoas aglomeradas lhe tiravam o chão.

— Esteve alguns dias no hospital. Está melhor? — começou Arthur, a queima roupa.

— Sim, estou. Obrigada por perguntar.

Havia um murmurinho baixo. Estavam-na julgando, ela sabia. Mas, ergueu o queixo e tentou aparentar força.

— Você é uma das autoras mais vendidas...

— Na verdade — interrompeu-o. — Se você juntar minhas vendas de meu nome real, e minhas vendas com meu pseudônimo, Valentina Bianchi, eu sou a autora mais vendida do momento.

Em seu canto, Caio sorriu diante da sagacidade da irmã. O golpe havia sido de mestre. Quem se importaria com seus problemas particulares quando aquela bomba era atirada diante de todos?

As duas autoras mais aclamadas do momento eram a mesma pessoa?

— Você é Valentina Bianchi?

A voz de Arthur denotava imediatamente que as coisas haviam desandado. Eloise percebeu que metade das perguntas que ele havia preparado era comparativos entre ela e sua “rival”.

— Sim, somos.

— Mas... Achávamos que a editora mantinha a identidade de Valentina em anonimato porque queriam destacar as suas vendas.

— Meu irmão, meu editor e dono da editora que detêm os direitos de minhas obras sempre manteve Valentina em anonimato por desejo meu.

Papeis foram mexidos e ela percebeu que o diretor do programa tentava ajudar o apresentador através de uma escuta. Em silêncio, Eloise aguardou.

— Me fale de seus próximos projetos, Eloise — ele mudou completamente o assunto. Ela quase riu.

— Estou preparando a biografia de Therron Esme, um pintor francês que viveu em meados da Segunda Grande Guerra.

Aquilo pareceu salvar a entrevista.

— E o que há de interessante na vida desse pintor?

— Ele lutou na resistência contra os nazistas. A esposa foi levada para um campo de concentração, e morreu em Auschwitz.

— Ah, falará sobre o holocausto?

— Sim. — A afirmação a surpreendeu. Não tinha intenção de falar sobre os campos de concentração, e sim focar na vida de Esme. Mas logo se viu a afirmar, sem conseguir se conter: — Quero narrar exatamente como era a vida nos campos da Polônia, e o quanto os alemães nazistas fizeram o possível para tirar das classes não aceitas por eles seu senso de humanidade. Meu próximo livro será um tributo às pessoas que não sobreviveram aos campos da morte.

Enquanto o entrevistador chamava o intervalo, algumas cenas passaram-se na mente de Eloise. O corredor com cercas de arame farpado, rostos desconhecidos banhados em sofrimento, e uma dor que parecia insuportável.

— Você está bem?

A voz do irmão a tirou do devaneio. Eloise encarou Caio, e não sabia se devia pedir ajuda ou continuar onde estava.

— Quer encerrar? — ele insistiu.

Ela pensou um pouco. Um membro da produção se aproximou avisando que eles estavam voltando ao ar.

— Peça para ele perguntar coisas alegres — ela murmurou, e o irmão assentiu.

Depois disso, a pauta do programa foram os romances leves que Eloise escrevia. Falaram dos filmes, dos atores, e dos fãs.


Arthur Deval não teve a melhor entrevista de sua vida, mas as revelações de Eloise naquela noite foram notícia no mundo todo.


Rafaela Albuquerque tinha vinte e dois anos quando conheceu o editor Caio Hopp. Ela estava começando seu trabalho de escrivã na polícia de Porto Alegre e o homem havia ido ao departamento prestar depoimento depois da primeira tentativa de suicídio da irmã, que foi um emaranhado tão grande de circunstâncias que mais parecia tentativa de assassinato.

Eles se encararam, sorriram um para o outro e, no dia seguinte já estavam se encontrando para tomar café.

Rafaela era uma mulher solitária, criada num lar desfeito. O amor de Caio por Eloise, e o cuidado que ele tinha pela irmã a encantou.

Enquanto muitos se intimidavam pela relação próxima dos gêmeos, ela ficara fascinada com o afeto que ele demonstrava pela irmã excêntrica.

Conhecia Eloise pelos livros que escrevia, mas apaixonou-se pela pessoa sincera que encontrou quando a viu pela primeira vez. Foi simpatia à primeira vista.

E, desde então, sempre cuidou da cunhada, da melhor maneira que conseguia.

Foi por conta disso que quando o nome dela surgiu nas conversas naquela manhã na delegacia, Rafaela interessou-se mais que o normal.

— Como assim, neonazistas? — indagou a um dos policiais, que comentou sobre os ataques cibernéticos que a cunhada estava recebendo no Twitter.

Então o homem mostrou o celular para Rafaela. A loira leu as mensagens de ódio, que incentivavam uma retaliação à escritora por endossar o “ holoconto ”.

— Holoconto? — murmurou, em questionamento.

— Os nazistas dizem que o holocausto foi uma mentira pós-guerra — explicou.

— Mas existem dezenas de relatos, fotos...

— Falam ser montagem. E, por causa da entrevista de ontem, Eloise Hopp acabou por entrar na lista negra deles. Estamos monitorando as conversas, mas seria bom ela ficar precavida — aconselhou. — Ela é sua cunhada, não é? Talvez deva conversar com ela.

— Como assim?

— Ela tem segurança em sua casa?

— O normal — apontou. — Alarmes, etc.

— Uma autora famosa devia ter um segurança armado — aproximou-se mais da loira e murmurou, em tom cúmplice. — Théo Garcia está desempregado, você sabe...

— Ele não tem posse de arma.

— Como se alguém precisasse disso — deu os ombros, sussurrando. — O homem odeia os nazistas, você sabe o que aconteceu, não é? Ele poderia ser segurança de Eloise — sugeriu.

— Você acha que aceitaria?

— Está desempregado — o outro apontou. — Me dá pena, era um grande policial, honesto, dedicado... Não merecia o que está passando. Então, se eu pudesse aconselhar sua cunhada, seria em contratar o homem. Ele vai cuidar dela.

Por algum motivo obscuro, Rafaela soube que era a melhor decisão que se poderiam tomar.

 

Capítulo 04

 

Decaída


As primeiras páginas da biografia de Therron Esme chegaram ao e-mail de Caio Hopp naquela manhã de quinta-feira.

Já fazia alguns dias que a irmã trabalhava no projeto, e ele esperava mais material, pois ela era muito prolífera. Contudo, o pouco que chegou a ele denotou o tamanho do tormento que Eloise estava conseguindo passar em palavras.

Era palpável. Cada linha transparecia a dor. Como ela havia descoberto tantos detalhes, o irmão desconhecia, mas sabia que ela estava enfurnada em livros e sites pesquisando tudo que conseguisse. Até obteve um modo de falar com a neta de um tal Pierre, médico amigo de Therron, que morreu nos anos setenta de câncer.

O projeto dela era sério, e merecia dele o máximo cuidado. Portanto, antes de começar a editar as linhas e observar atentamente cada detalhe, a fim de dar sua opinião à irmã, ele foi à cafeteira servir-se de uma xícara de café. Depois, tirou o telefone do gancho e pediu que a secretária não o chamasse.

Contudo, tão logo sentou-se à mesa, a porta se abriu. O rosto de Rafaela surgiu, e ela sorriu.

— Não brigue com Tereza — apontou a secretária. — Ela me explicou que está trabalhando, mas precisamos muito nos falar.

O homem assentiu e a noiva adentrou a sala.

— Sim? Aconteceu algo?

— O departamento de Polícia está preocupado com Eloise.

— Como assim? — seu tom denotava alarme.

— A entrevista dela mexeu com os brios de alguns grupos neonazistas. Parece que se ofenderam porque ela quer falar sobre o holocausto. E, você sabe, na capital, infelizmente, existem vários grupos agindo de tocaia.

Caio resvalou para trás na cadeira.

— A polícia irá falar com ela?

— Na verdade, estão monitorando tais elementos e tentando não criar alarde, pois pode ser apenas ameaças infundadas. Mas, por precaução, seria bom que ela tivesse um guarda-costas.

O noivo concordou.

— Irei ligar para uma empresa de segurança.

— Eu tenho alguém pra indicar — ela cortou. — Um ex-policial expulso da corporação.

Caio a encarou, embasbacado.

— Que excelente sugestão! — exclamou, irônico.

— Te garanto que a expulsão não foi por desonestidade. Na verdade, Théo Garcia é um homem bom, uma pessoa que todos no departamento gostavam muito. Mas, ele cometeu um erro durante uma investigação. Na verdade, sob meu ponto de vista, sequer foi um erro, mas infelizmente a imprensa não viu assim, e ele foi afastado.

— E você vai me dizer que erro é esse ou eu terei que pesquisar na internet?

— Eu gostaria que não pesquisasse. Deram uma imagem de um homem violento, e ele não é. Grosseirão, até pode ser, mas não é covarde. Além disso, confie em mim, Théo vai cuidar bem de Eloise. Estou te pedindo esse voto de confiança.

Eloise era preciosa demais para Caio, mas Rafaela era de sua mais absoluta confiança. A noiva não lhe indicaria alguém que não estivesse acima de qualquer suspeita.

— E como faço para encontrar esse homem?

 


Os dedos batiam com força no teclado. A visão na mente da autora remetia há um tempo que havia se findado, mas que ainda causava calafrios em gente do mundo todo.

Os muitos livros de história, onde ela fazia a pesquisa, estavam abandonados ao lado da escrivaninha.

Era como uma psicografia. Eloise não precisava dos papeis para saber o que narrar. Sentia, em cada momento, os fragmentos daquele passado aterrador, que parecia um poço sem fundo, algo que poderia destruí-la na mesma medida que salvá-la.

Subitamente, cegou-se. Talvez fosse a pressão que baixou, fruto da má alimentação somada ao excesso de fumo e bebida alcoólica, talvez fosse apenas mais um distúrbio que a tomava de assalto em momentos como aquele, em que ela criava.

Repentinamente, a visão voltou. Não para seu escritório, e sim para um quarto de colcha floreada e ar sufocante. Um cheiro de sabão velho encheu suas narinas, e a boca dela secou.

“ Senhor, Senhor... mate-me, por favor... Mate-me!” sua própria voz chegou até ela, fazendo com que a mulher se erguesse.

Seu escritório voltou ao seu raciocínio e ela logo se percebeu ao lado da gaveta onde guardava os remédios.

Pegou uma cartela cheia e abriu uma por uma das cápsulas de cores branca e azuis, colocando os medicamentos na palma da mão. Em seguida, voltou à cadeira e pegou o copo com Martini.

Bebeu o líquido em um único gole, junto com a medicação.

— Mate-me, por favor... — murmurou.

E então tudo foi escuridão.

 

Capítulo 05

 

Therron e Kraus


Théo Garcia encarou o amontoado de dívidas enquanto imaginava o que devia fazer. Na última semana havia conseguido um emprego informal de segurança numa festa, mas tal trabalho não conseguia suprir o montante de contas a pagar.

Desde que saíra da prisão, não conseguiu um emprego formal. Seus bicos mal estavam sustentando-o, e a vida estava cada vez mais difícil.

Subitamente, uma batida na porta. Seu primeiro impulso foi pegar a arma sem registro, que mantinha na cintura, através de posse irregular, antes de atender.

Não tinha amigos, nem parentes. Os pais morreram quando ele era jovem, e os policiais com quem trabalhou não permaneceram ao seu lado depois de ele se isolar pela culpa e dor por seus erros.

Assim sendo, ninguém nunca bateu naquela porta. Aproximou-se cautelosamente, e abriu apenas uma pequena fresta.

A mulher do outro lado sorriu, e ele tentou fechar a porta novamente, mas ela pôs o pé na divisória e o impediu.

— Prazer em vê-lo também, Théo — Rafaela empurrou-o e entrou no ambiente.

O local estava sujo e fedia.

— Meu Deus, o que diabos aconteceu com você? — indagou.

Atrás dela vinha um homem de cabelos escuros e olhos misteriosos.

Logo, o olhar deles se encontrou e houve uma troca magnética automática. Algo arrepiou o braço de Théo, que sentiu uma raiva potente dominando-o.

— O que quer? — indagou à mulher.

— Vim te oferecer um trabalho. — Apontou o homem que a seguia. — Esse é Caio, meu noivo.

Nenhum deles estendeu a mão, em cumprimento. Apenas se encararam, sentindo o tanto de vidas que se cruzavam naquele olhar.

— Eu não estou interessado. — Théo retrucou, numa clara sugestão de que fossem embora.

— Também não acho que seja uma boa ideia — Caio devolveu, preparando-se para sair.

Contudo, Rafaela permaneceu parada no mesmo lugar.

— Não está interessado? — A mulher indagou, apontando os papeis na mesa. — Está em condições de recusar trabalho?

— Isso não é problema seu — retrucou, abrindo a porta novamente, exigindo que saíssem.

— Estou aqui porque confio em você — a loira devolveu, firme, convicta. — Eu sei que você é a pessoa certa para proteger a irmã de Caio.

O antigo policial volveu o olhar para o outro homem. O que havia entre eles? Por que aquela antipatia automática e potente?

— Irmã?

— Meu noivo é Caio Hopp, da Editora Hopp. Irmão de...

— Eloise Hopp — Théo murmurou. — Já ouvi falar. Mas, do quê uma escritora famosa como ela precisaria ser protegida?

— Primeiramente, de si mesma — aquela resposta era misteriosa. — Depois, de algumas organizações neonazistas que estão em polvorosa por conta do atual trabalho de Eloise.

Théo riu, em deboche.

— E o que ela está escrevendo? Algum romancezinho bobo sobre um amor na Segunda Guerra?

Caio suspirou em tom recriminatório. Não estava com paciência para aguentar um homem como aquele ridicularizar o trabalho da irmã.

— Você não faz ideia do quanto ela se esforça e luta para fazer suas obras. Minha irmã enfrenta a depressão todos os dias, e permanece trabalhando com dignidade. É diferente de você que parece apenas um ninguém que já desistiu de tudo, e usa de agressividade para expulsar as pessoas.

Théo gargalhou diante das palavras ofensivas. Caio, então, volveu para a noiva.

— Isso tudo foi um erro.

E saiu do apartamento. Rafaela fez menção de ir até o noivo, mas parou diante do antigo amigo.

— Ela está falando sobre o holocausto — relatou, e então se afastou, deixando a consciência de Théo agoniá-lo pelas palavras ditas.


Rafaela alcançou o noivo próximo do elevador. Segurou seu braço, sentindo que ele estava nervoso.

— Precisa entender que Théo Garcia é a pessoa certa.

— E por quê? Por ser um fracassado? É isso que pensa de Eloise?

— Me ofende que diga tal coisa — retrucou. — Sabe o quanto eu sou apegada a sua irmã. Acontece que ele tem seus muros, suas barreiras de proteção. Théo ataca, porque quando não o faz, sempre é muito ferido.

— Que se foda o que ele pensa — retrucou. — Não preciso de um policial expulso da corporação – só Deus sabe o porquê – querendo insinuar que minha irmã é uma ninguém.

Rafaela respirou fundo. Então, contou:

— Théo era um policial incrível. No departamento de homicídios ele resolvia todos os casos. Era respeitado e estava as vésperas de uma promoção quando uma onda de assassinatos de jovens homossexuais, praticados por neonazistas, chegou até ele.

Então, havia mais que a simples simpatia nas intenções de Rafaela?

— Quando Théo começou a investigar e a quebrar o sigilo dos grupos, descobriu o próximo alvo. Era um menino de treze anos, que nem sabíamos se era mesmo gay, apenas aparentava... Bom, esse menino seria emboscado quando fosse para a escola. Théo soube disso pouco antes da emboscada e foi atrás. Mas, infelizmente, não chegou a tempo.

— E isso faz com que um policial seja expulso?

— Você não entende — Rafaela retrucou. — Théo não conseguiu salvá-lo, mas conseguiu ver quem o matou. Ele executou o grupo de quatro jovens neonazistas a sangue frio.

A boca de Caio abriu-se, pronta a declarar sua opinião, quando o telefone tocou. Olhou o visor, e atendeu imediatamente.

Ouviu alguém a falar do outro lado da linha, e desligou. Depois, encarou a noiva.

— Amanda encontrou Eloise — nem precisou completar.

A irmã de seu noivo havia tentado novamente tirar a própria vida.

 

Capítulo 06

 


O passado que se perdeu


Rafaela Albuquerque voltou para o apartamento de Théo Garcia pouco depois. O noivo, segundo ela, havia ido para o hospital, mas ela ainda não desistira de convencer o antigo companheiro de trabalho em aceitar o emprego proposto.

— O que te custa? — indagou.

— O meu resto de sanidade?

— Poderia ser a sua redenção.

A mulher estava nervosa, as mãos tremiam, e Théo, contra seus princípios, lhe ofereceu água.

— Não, obrigada. Preciso ir para o hospital. Aconteceu algo com a irmã de Caio.

— Você vai dirigir assim? — apontou as mãos.

— Eu iria com ele, mas quis tentar falar contigo novamente. Caio já foi para lá.

— Eu te dou uma carona.

Ela aceitou, muito mais porque queria ser feliz em seu intento do que pela necessidade de proteção. Rafaela já havia feito a corrida ao hospital por Eloise muitas vezes nos últimos anos.

— Então ela é suicida? — ele perguntou, aquele sorriso de deboche que nunca abandonava seus lábios surgiu, enquanto o homem trocava a marcha.

— Você não entenderia... — ela murmurou.

— Fracassei em tudo na vida, e nunca atentei contra eu mesmo — devolveu.

— Ela vive em tormento. Se você olhasse para ela, veria. É como se estivesse frequentemente em dor. Uma agonia tão grande... Por isso as pessoas se afastaram, até mesmo a família. Caio é tudo que lhe restou. Ninguém suporta ficar perto dela, sua energia negativa é tão forte que parece minar a todos ao seu redor.

— E você quer me enfiar nesse inferno?

— Sua energia não é melhor que a dela — devolveu, crua. — Talvez um possa ajudar ao outro.

Ele duvidava. Mas, não insistiu mais no assunto enquanto dirigia até a emergência.


Amanda surgiu diante do olhar atônito de Caio. A antiga amiga de escola dos gêmeos era uma remanescente de uma época que havia se findado.

E, como tal, também cumpria o papel de preocupar-se com o destino da amiga escritora.

— Tentei ligar para ela desde ontem. Não retornou minhas ligações — informou. — Então, eu me preocupei...

— Obrigado — ele murmurou.

— Quando cheguei, já estava inconsciente, chamei a ambulância...

— Obrigado — repetiu, apertando os ombros da amiga. — Obrigado, obrigado...

Eloise ficara em coma induzido, enquanto a equipe médica lutava para não perder sua vida.

— Ela estava tão bem, até havia me mandado um trecho do novo livro — ele comentou, enquanto sentava-se ao lado da amiga, na sala de espera. — Eu não consigo entender... Por quê?

Amanda segurou a mão masculina, num carinho pueril.

— Às vezes acho que a resposta está além da nossa compreensão. Mas, sei com toda a certeza do mundo, que a culpa não é sua.

— Mas sinto como se fosse — ele retrucou. — Algo dentro de mim me afirma isso todos os dias. Minha irmã está ali, deitada numa cama hospitalar, em coma após tentar contra si mesma, e eu tenho responsabilidade nisso. Não sei por que, nem como, mas eu tenho!

Rafaela surgiu pouco depois no corredor. Théo Garcia veio com ela. O olhar dos homens novamente se encontrou, e a cena se repetiu.

Repeliam-se imediatamente, algo além de qualquer explicação.

— Como ela está?

— Em coma — respondeu à noiva, evitando encarar o homem. — Desculpe deixá-la para trás.

— Théo me trouxe. Ainda insisto que ao menos eles possam se ver — Rafaela apontou. — Quem sabe assim, dessa maneira, não surja uma simpatia. Além disso, não seria bom Eloise ter uma presença a mais na casa? Evitaria situações como essa.

Caio Hopp volveu então o olhar para o outro homem.

— Mudou de ideia? Quer o emprego?

— Não quero o emprego, mas vou falar com sua irmã assim que ela estiver em condições. Diante do que me contou Rafaela, talvez eu possa ajudar.

Um médico de roupas claras surgiu. Caminhou reto até Caio e explicou que a irmã dele estava fora de perigo.

— Mais um golpe de sorte — apontou. — Mas, não sabemos até quando ela terá sorte, senhor Hopp. Eloise precisa de internação. Ela é um risco a si mesma.

A internação seria a condenação fatal à irmã. Eloise perderia o resto de sanidade que lhe restava.

— Estamos providenciando uma companhia que fique com ela vinte e quatro horas — Caio explicou. — Posso vê-la?

— Não poderão falar, mas sim, pode ir vê-la.

Caio então volveu para o outro. Naquele instante, as duas mulheres ali ficaram esquecidas.

— Acompanhe-me — pediu.

Théo Garcia o seguiu. Enquanto eles cruzavam por quartos que mais pareciam prisões sinistras, ele observou a postura do outro.

E parecia reconhecê-lo. Só não sabia de onde.

Entraram. O lugar estava um tanto na penumbra, mas logo Théo a visualizou.

Ali... ali...

Esther!

Ali...

Com tubos na boca, a pele translucida e apagada, as olheiras profundas e a quase morte e ceifá-la, mas ali...

A mulher que o atormentava em pesadelos, e que o fazia ver o paraíso quando lhe sorria em sonhos. Ele não se recordava direito de sua aparência, mas soube que ela era. Pelo cheiro, pelo instinto, pela alma.

Eles haviam se encontrado...

Quanto tempo até se perderem novamente?

 

Capítulo 07

 


O que ninguém mais vê

 

— Então você aceita o trabalho?

A dúvida de Caio tinha motivos. Até entrar naquele quarto, o antigo policial claramente desprezava a mulher acovardada diante da própria existência.

Contudo, bastou vê-la... E tudo mudou.

— Sim, estou disposto a ser seu guarda-costas. Nada vai lhe acontecer enquanto eu estiver por perto. Aliás, posso começar imediatamente.

Eles haviam voltado à sala de espera, e diante das palavras, Rafaela e Amanda trocaram um olhar estranho. Caio parecia prestes a expulsar o homem, mas a mulher interviu.

— Seria muito bom. Não sabemos o quanto os grupos que querem a morte dela estejam a par de sua localização. Se você pudesse cuidar dela aqui, no hospital, ficaríamos mais descansados. Os médicos irão acordá-la em breve e, quem sabe, até poderiam conversar e ficarem amigos. Deus sabe como Eloise precisa de novos amigos...

Amanda assentiu, como se concordasse, mas Caio ainda parecia em conflito. Contudo, ele sabia que Rafaela costumava ter instinto e razão.

— Precisa deixar — a mulher murmurou ao noivo ao notar a tempestade de sentimentos. — Você precisa — reafirmou, firme.

E era por mais que a simples confiança na segurança da irmã. Eles sabiam.

— Se algo acontecer a ela...

— Nada vai acontecer a ela — Théo afirmou, sem medo.

— Não falo apenas daqueles filhos da puta nazistas. Estou dizendo que se você a ofender...

— Eu farei meu trabalho com responsabilidade — retrucou.

Rafaela quase precisou arrastar o noivo para fora do local. Amanda a ajudou naquilo e, enfim, Théo conseguiu o que queria.

Agora, de volta ao quarto, ele encarava a mulher apagada.

— Esther... — ele murmurou, aproximando-se dela, tocando em seus dedos. — Eu te achei, Esther...

A instantânea sensação de pertencimento a acamada poderia deixá-lo louco, mas o homem não se sentia assim, feliz, desde... Nunca.

Agora, naquele instante, naquela brecha do tempo, finalmente, ele sentia o coração transbordando num contentamento incontrolável que fê-lo curvar-se à cama e beijar os dedos femininos.

A vida voltava a fazer sentido.

— Ela se chama Eloise. — Uma mulher surgiu à porta, fazendo com que ele se afastasse do leito num salto surpreso.

Era a mesma que estava ao lado de Caio quando ele chegara ao hospital. Ela havia retornado, provavelmente, passaria aquela noite ao lado da amiga.

— Eu sei...

— Não parece. Fala como se a conhecesse por outra identidade. — Porém, seu tom amenizou. — Eu me chamo Amanda — estendeu a mão.

Théo aceitou o cumprimento. Deu-se conta, imediatamente, que fazia muito tempo que ele não saudava alguém. Sempre bruto, rechaçava quem tentasse se aproximar. Mas, sua aproximação com aquela a quem buscava foi tão absurdamente motivadora, que mal conseguia esconder um sorriso.

— Théo — apresentou-se.

— Eu sei — ela sorriu. — Por que a chamou de Esther?

Ele pareceu receoso, mas ela insistiu.

— Você a tratou como se a conhecesse. Eu posso ligar para Caio agora e falar sobre essa situação estranha, mas prefiro indagar a ti. Tudo que peço é franqueza.

Ele assentiu, incomodado.

— Não vai acreditar em mim.

— Confie — ela murmurou. — Eu já ouvi de tudo nessa vida.

O homem então pareceu mais calmo.

— Tenho sonhos com ela — afirmou. — Isso têm anos, mas estão mais frequentes nos últimos dias.

— E nesses sonhos você a chama por Esther?

— Isso.

Amanda foi até a poltrona e se sentou.

— Não acho que seja loucura. Talvez, uma memória de outra vida. Não é comum, mas acontece, especialmente com artistas.

— Artistas?

— Você é?

— Abomino a arte — retrucou. — Qualquer tipo de arte, para mim é inútil.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Trabalho numa galeria de artes plásticas.

— Perdão, não quis ofendê-la, mas...

— Eu tenho minha fé — ela interrompeu. — A raiva, às vezes, também é manifestação do passado. Se você me dissesse que não gosta de pintura, ou de música, eu entenderia. Mas, você usou as palavras “ abomino a arte ”. Englobou todas as manifestações artísticas. Isso soa bem forte. Então, pode ser que você já tenha sido um artista em outra vida, e em nada seu talento tenha te ajudado em alguma questão importante. E cada dom tem um propósito, sabia? Deus o dá para que nós possamos usá-lo para o bem. Não sei o que você fez com o seu dom, mas ele, hoje, te causa repulsa.

— Não entendo o que diz...

— Não crê em vidas passadas?

— Sou uma pessoa um tanto descrente — murmurou.

Ela sorriu, compreensiva.

— Sou kardecista — contou. — E já tem muito tempo que tenho algumas desconfianças sobre a tortura mental que Eloise passa. Agora, sinto que sua presença aqui é uma confirmação.

— Confirmação?

— O destino tem seu jeito próprio de unir as pessoas destinadas. E não importa o quê se imponha no caminho, eles sempre acabam se encontrando.

Aquelas palavras tiveram uma conotação romântica. Théo observou a mulher na cama e pareceu meditar perante a afirmação.

— Não sei no que acredito, nem sei se suas palavras são sérias — ele admitiu, por fim. — Contudo, entendo que a encontrei, e não vou falhar com ela. Nunca mais.

O complemento fez Amanda sorrir. Era a confirmação que esperava.


Havia um pequeno ramo de rosas ao lado de sua cama.

O olhar de Eloise centralizou nas flores, enquanto as pupilas iam se acostumando a claridade.

O que havia feito? Novamente, decepcionado Caio?

Sentiu o olhar encher-se de lágrimas, a culpa voltando a avassalá-la, quando se deu conta de outra pessoa no ambiente.

Voltou o olhar para a porta. Um homem loiro, de porte atlético e especialmente bonito estava parado ali, com nítida emoção.

Quis questionar sua estranha presença. Todavia, de alguma maneira, ela sabia exatamente quem ele era. Apenas, havia esquecido.

— Sou Théo Garcia — ele se apresentou. — Seu irmão me contratou para cuidar de você — explicou-se.

— Você é médico?

A entonação em ambos causou frenesi. A voz... Aquele tom teria sido entoado em outros momentos?

— Quando ele chegar vai te explicar tudo. Porém, você acabou de acordar e precisa ficar calma, descansar.

O homem sentou-se ao lado da cama, numa poltrona. Sua presença era tão confortadora que os Eloise quase chorou. Um alívio imenso e desconhecido.

Queria estender a mão e tocá-lo, sabê-lo ser real. Mas, ao mesmo tempo, compreendia que não haveria uma explicação cabível para tal emoção.

— Rosas — ele murmurou, observando o vaso que Amanda havia colocado ali, momentos antes de ir para o trabalho, naquela manhã. — Estranho como elas se parecem com você.

Já havia ouvido aquilo antes?

— Por quê?

A pergunta também parecia repetitiva.

O homem aproximou-se, cuidadosamente. Seu olhar azul celeste parecia adentrar na alma feminina. Ela quis estender a mão e tocar na sua pele.

Era loucura... Loucura! Enfim, perdera a sanidade?

— Você também tem essa impressão forte? — ele indagou.

— Que impressão?

— Que a gente se conhece... — murmurou. — Eu tenho certeza que...

A porta abriu e Caio entrou. Aquela áurea magnética entre o par foi cortada instantaneamente.

— Como você está? — o irmão indagou.

Havia a nítida mágoa no tom.

— Me perdoe, Caio. Eu não sei como aconteceu.

— Você estava bêbada — retrucou. — Foi assim que aconteceu.

Théo sentiu uma imediata necessidade de proteger a mulher, mas compreendia que não devia. Era um assunto de família, e ele devia respeitar.

— Acho que vocês já conversaram — apontou o homem. — Ele será seu segurança pessoal.

— Segurança?

— Outra palavra para babá — Caio não escondeu o quanto estava possesso. — Espero que ele não te permita fazer mais uma burrada dessas, porque, francamente Eloise... Eu juro que eu irei te internar num sanatório se não parar.

Ela baixou o olhar, envergonhada.

— Me perdoe...

— Sempre pede desculpas, mas volta a praticar o mesmo erro. Estou cansado, Eloise. Exausto do seu egoísmo. Quando irá parar de sentir pena de si mesma, e lutar pelo seu futuro? Quando entenderá que está destruindo a minha saúde? Eu estou ficando louco. Fico assustado cada vez que o telefone toca, a espera de alguém me confirmar que você teve sucesso na sua empreitada egocêntrica de suicídio.

Silêncio. Afundada entre os lençóis, a irmã gêmea de Caio não sabia o que responder.

Como alguém poderia explanar o tamanho de sua dor, se sequer um motivo para senti-la ela tinha?

— Por que preciso de um segurança?

A indagação quebrou o clima pesado. Caio respirou fundo e se aproximou da cama.

— Lembra-se da entrevista que deu na televisão, esses dias? Parece que provocou revolta na ala nazista que transita por Porto Alegre.

— Nazistas? Aqui?

— Neonazistas. Não é surpresa, sabemos que eles andaram atacando algumas pessoas há algum tempo. Théo — apontou o outro homem — é ex-policial e já trabalhou num caso envolvendo esses grupos. Ele estará cuidando de você.

Ela concordou imediatamente, o que causou estranhamento no irmão. Acreditava que Eloise fosse recuar, já que odiava a presença de estranhos perto de si. Mas, ela aceitou aquele desconhecido sem sequer uma palavra de retruco.

Ao invés do alívio, sentiu o ciúme a tomá-lo. Encarou Théo, maldizendo Rafaela por tê-lo convencido a permitir aquele homem se aproximar da irmã.

Subitamente, contudo, seus pensamentos foram cortados. O toque feminino em seus dedos indicava a necessidade de um abraço.

Apertou a gêmea nos braços, beijando o topo de sua cabeça. Viu, pelo canto dos olhos, o outro desviar o olhar, como se compartilhasse a raiva por aquela aproximação.

— Eu preciso ir trabalhar, mas o médico irá vê-la hoje e talvez consiga alta. Assim, Théo irá levá-la para casa. Quero que descanse e não se ponha a trabalhar imediatamente, está bem?

Eloise assentiu.

 

O palacete de dois andares estava arejado e com vários arranjos de rosas por todo canto.

— Amanda esteve aqui — Eloise sorriu, acariciando uma pétala.

— Sua amiga se importa muito com você — Théo comentou, logo atrás.

A autora sorriu.

— Ela sabe que eu gosto de rosas — murmurou.

O homem largou a bolsa dela no chão, e a encarou.

Aquela estranha sensação de familiaridade permanecia. Nunca estiveram sozinhos num mesmo ambiente, mas estavam estranhamente confortáveis com a presença do outro.

— Vou mostrar seu quarto — ela apontou, num sorriso.

Théo a seguiu até o segundo andar.

A casa era grande, como se a mulher precisasse de muito espaço. Logo, chegaram até uma porta. O quarto de hóspedes tinha uma tonalidade clara, e era de um tamanho bastante acolhedor.

— É uma suíte — ela comentou. — Caio a usa quando fica comigo, aqui.

— Ele não vai se incomodar?

— Ele não precisará mais passar as noites aqui — ela riu. — Não vou mais me deixar levar pela dor.

Aquela certeza o surpreendeu, mas ele preferiu nada comentar.

— E seu quarto? Onde fica?

O rubor na face feminina fez com que um sorriso involuntário surgisse nos lábios de Théo.

— Apenas para eu ter conhecimento — explicou. — Se algo acontecer, preciso saber exatamente sua localização.

O rubor não sumiu da pele, mas ela apontou o dedo para o quarto no fundo do corredor.

— A última porta, à esquerda. — Volveu para o homem, novamente. — Seja bem vindo, Théo.

Ele assentiu.

Era o começo de uma nova existência.

 


O cheiro do café invadiu o escritório. Eloise tirou os olhos da tela do computador e encarou o homem à sua frente, com uma bandeja.

— Virei seu empregado doméstico — ele brincou, aproximando-se. — Está nesse computador desde a madrugada, achei que precisava de um descanso.

— Percebeu que eu vim cedo?

— Estou sempre a postos — fez uma continência. — Ouvi seus passos no corredor.

Ela riu.

— Sou mais produtiva de manhã. — Estendeu a mão e aceitou uma xícara do café. — E você? Depois que terminar seu trabalho comigo, pensa em fazer o quê?

— Ainda não sei — admitiu. — É difícil voltar à vida, depois de um tempo afastado de tudo.

— Rafaela me comentou que você foi policial.

— Eu cometi um erro e acabei com a minha carreira. Desde então, esse é o primeiro trabalho que tenho que posso considerar formal. Seu irmão até assinou minha carteira de trabalho, e vou receber um salário regular.

O café estava forte e doce. Exatamente como ela gostava. Não se apercebeu de que Théo sabia algo íntimo seu, seu paladar excêntrico, e simplesmente largou a xícara de lado.

— Além de salvar autoras ameaçadas de morte, você tem mais algum dom?

— Não que eu saiba... — ele murmurou.

Repentinamente, volveu para o lado. Num canto, o quadro de Therron Esme chamou imediatamente sua atenção.

Levantou-se da cadeira e caminhou até a tela. Seus olhos não escondiam a surpresa.

— O que foi? — Eloise indagou.

— Eu já vi isso... Já vi isso em algum lugar — ele murmurou.

— É um quadro famoso de um pintor francês, no qual estou trabalhando a biografia.

Théo estendeu a mão. Sabia ser gafe tocar uma tela, mas não resistiu. Seus dedos deslizaram pelas cores que pareciam escorrer, em sangue, como manchas de agonia.

— Você também sente, não é? — ela perguntou, a voz lacônica.

Ele a observou.

— Dor — a mulher completou, em resposta. — Eu sinto que o artista estava completamente transtornado quando o pintou.

— O que aconteceu com ele?

— Suicidou-se — contou. — Faz muitos anos, mais de meio século.

O som de uma batida fê-los volver para a porta. Caio surgiu com um sorriso.

Propositalmente, ele ignorou Théo e caminhou até a irmã. Aproximou-se dela, e a ergueu da cadeira, apertando-a nos braços.

O loiro desviou o olhar, incomodado.

— Vou deixá-los a sós — disse, e então saiu.

Tão logo a porta fechou, Caio sentou-se na cadeira diante da irmã.

— Ele está atrapalhando seu trabalho?

— Claro que não — negou. — Ele apenas veio me trazer um café.

— Ele não é pago para servir café. Nem para ficar a sua volta, como um gavião.

— Eu gosto que esteja, Caio — retrucou. — Me sinto confortável perto dele, como se estivesse em segurança.

O homem iria devolver as palavras, quando ela prosseguiu:

— Desde que Théo se mudou para cá, não bebi mais. E passei a fumar bem menos. Meu trabalho está correndo tranquilamente, no tempo certo. Até minha narrativa melhorou. Não sei por que, mas a presença dele me faz bem.

Obviamente, Caio não gostou das palavras. O que era completamente incompreensível. Tudo que ele sempre quis para a irmã foi sua felicidade. Porém, ele não conseguia sequer encarar aquele homem loiro. Parecia uma questão de tempo para que o investigador machucasse Eloise.

— Rafaela está em contato com os investigadores, para me manter atualizado sobre o andamento do processo dos neonazistas. Assim que estiver tudo bem, a presença dele não será mais necessária — apontou.

A mulher assentiu. Logo depois, o irmão saiu carregando suas vibrações negativas.

 

O frio tocou sua espinha, causando nele uma sensação desconfortável. Porém, não era apenas aquele ar gelado que o agoniava.

Tinha um jornal nas mãos. Em sua visão embaçada, não via a notícia, mas sabia que as palavras o preocupavam.

A sua volta, muitas pessoas andando nas ruas desconhecidas. Sentado em um banco, ele tentava captar algo além da completa surpresa.

— Estou nervosa — o som feminino fê-lo volver para o lado.

Era Eloise. Os cabelos atados em um coque, nas mãos um copo de chá. Ela o encarou.

— O que aconteceu ?

— Nada — viu-se dizendo.

— É um péssimo mentiroso .

Acordou, ofegante. Aquela cena, aquele lugar, aquela mulher que – antes – em sua mente era Esther e agora ele a conhecia por Eloise, causaram agitação em seu íntimo.

Puxou as cobertas, saindo da cama. Logo, estava no corredor, o coração em desespero, antecedendo o horror.

A porta do quarto dela estava entreaberta. Eloise, acordada, o encarou surpresa.

Só então ele deu-se conta de que invadira sua privacidade e intimidade.

— Desculpe... — murmurou, sem saber exatamente como se explicar. — Ouvi um barulho — mentiu.

Ela não pareceu surpresa.

— Derrubei um copo.

Ao lado da cama, vários vidros de medicação.

— Precisa de algo? — indagou, cortês.

— Não, estou apenas tomando remédio para minha dor de cabeça.

— Enxaqueca?

— Já fiz exames, e todos os médicos afirmam que não tenho nada. Mas, as dores na nuca são insuportáveis, queimam, não me deixam dormir.

O homem se aproximou, vagarosamente.

— Posso? — estendeu a mão para ela.

Aquilo não parecia certo, e provavelmente não era, mas Eloise se percebeu assentindo.

Théo sentou-se na cama, e pousou as mãos em sua têmpora, fazendo uma massagem lenta. Estranhamente, acalmou sua dor. Mas, ela sabia que não eram os movimentos ritmados das mãos masculinas e sim a presença do homem que estava mudando tudo.

Olharam-se. Mais uma vez, era como se seus corpos estivessem conectados por algo além da experiência física.

A sensação assustou a ambos, e logo Théo se afastou.

— Tenha uma boa noite — ele desejou, e ela sorriu.

Pela primeira vez em muitos anos, aquelas duas almas conseguiram descansar sem tormentos naquela noite ausente de estrelas.

 


Capítulo 08

 

Ódio


Aquele restaurante bonito próximo do Parcão era um dos lugares preferidos de Eloise. Com comida típica gaúcha, de churrasco com carnes bem assadas, ela costumava ir muito ali com Caio, quando eles eram mais jovens.

Naquele momento, era o ponto de encontro para mais um contrato de negócios.

Caio era seu editor e o responsável pelos seus livros impressos, mas quando o assunto era a adaptação para o cinema, ela fazia questão de tratar da questão.

Seu olhar encontrou Théo, que ficou numa mesa próxima, observando tudo com discrição.

— O dinheiro é bom — o produtor da agência interessada em levar seu livro para a televisão comentou.

— Uma série? — ela murmurou. — Sabe que esse é um romance distópico?

— Como tudo que Valentina Bianchi escreveu — ele murmurou. — Tentamos por anos fazer a agência Hopp nos dar o contato da autora, e ficamos muito surpresos quando descobrimos que ela era uma parte de você.

— Repito a pergunta: Um romance distópico na televisão?

— Séries assim estão fazendo muito sucesso — retrucou. — E Valentina é genial.

Ela quase riu. Ainda tinham dificuldades de entender que Valentina era ela. Admitir que a autora que eles desprezaram por anos era a autora que idolatravam parecia causar mal estar.

O olhar dela voltou para Théo, e o viu se levantando, caminhando até a porta, observando o movimento de lá.

— Vamos fechar o acordo, então?

— Não antes de eu ler o roteiro que pretendem levar a televisão. Uma coisa é querer basear uma série em minha obra, outra é eu, a autora, estar às cegas sobre o que levarão às telas usando meu nome.

Segundos depois, Théo retornou próximo dela, e a pegou pelo braço.

— Vamos ao banheiro? — indagou, numa pergunta muito estranha.

Mesmo assim, ela o seguiu.

Não havia ninguém nos toaletes, e eles entraram no banheiro feminino, trancando a porta.

— O que está acontecendo?

— Movimento estranho na rua — respondeu, sacando a arma.

— Você acha?

— Apenas precaução — afirmou. — Vamos aguardar alguns minutos, se nada acontecer...

O som de alguns gritos do lado externo cortou sua fala. Théo ergueu a arma e apontou para a porta.

No canto do banheiro, Eloise entrou em pânico. Aquele som de desespero, aquele momento antevendo a tragédia... Algo nela logo entrou em estado de horror.

O homem olhou para a escritora, num momento rápido, percebendo que a mulher se curvava, em tremores, até o chão.

— Fique calma — pediu.

— Eles vieram atrás de mim — ela murmurou. — Vão me levar...

— Acho que é um assalto — negou. — Logo vai passar.

— Vão me levar — ela negou, abraçando a si mesma. — Vão me levar...

— Levar para onde, Eloise?

— O inferno... O inferno...

Mais um grito do lado externo. Théo ficou na indecisão sobre o que fazer. Ajudar a mulher que estava tendo um colapso no chão, ou permanecer diante da porta, protegendo aquela passagem.

Então, veio o silêncio. Aqueles breves segundos pareciam tão temíveis quanto os gritos. Quando as vozes voltaram a soar, dessa vez mais calmas, ele colocou a arma de volta na cintura e foi até ela.

Ergueu-a do chão, ajudando-a a ficar de pé.

Os braços de Eloise cercaram seu pescoço, num abraço desesperado.

— Não deixe que me levem — ela pediu, algo que remetia a mais do que aquele momento de terror.

— Nunca — jurou. — Nunca.

 

O policial Moisés, antigo companheiro de farda de Théo aproximou-se do casal. Eloise estava sendo medicada. Mesmo que não houvesse se ferido, seu estado mental beirava a loucura.

— Um assalto mal executado? — Théo indagou ao outro.

— Pois é... — observou a mulher ao longe, que aceitava comprimidos de uma médica que viera junto com a emergência para atender alguém que pudesse ter se ferido no assalto. — Sua esposa?

Por alguns segundos, a palavra “sim” bailou nos lábios de Théo. Ele assustou-se com a intensidade daquela emoção.

— Sou o segurança dela. Eloise Hopp — explanou, indicando a moça com o olhar.

— A escritora?

— Ela mesma.

— Quem te chamou foi Rafaela, não é? Eu soube que tem um departamento todo tentando colocar a mão num grupo neonazista.

— Exatamente.

Logo, Eloise se aproximava dele. Naquela confusão, perdeu o contato visual com o produtor, mas não se importou.

Sentiu os braços de Théo cercá-la, com carinho e aceitou que ele a conduzisse ao veículo.

Théo dirigiu em silêncio e ela também nada disse. Com a cabeça encostada no vidro do carro, observava as luzes da cidade, naquela noite de outono.

O corpo parecia anestesiado. O medo e o alívio pelo final daquele encontro por fim a deixou em torpor.

Os remédios fizeram efeito e ela cochilou. Momentos depois, sentiu as mãos do homem a erguendo, pegando-a no colo e a levando para dentro.

— Não se preocupe — o tom masculino soprou contra sua testa, num beijo pueril. — Não importa o caminho, estarei ao seu lado, e vou protegê-la.

Já ouvira aquela promessa antes. E sentiu as lágrimas derramando-se em seu rosto, porque as palavras não haviam sido cumpridas.

Percebeu a cama contra as costas. No olhar entreaberto, viu o cabelo loiro de Théo contrastar com a escuridão do quarto.

A luz do corredor permitia que percebesse seu olhar claro observando atentamente seu rosto.

Acariciou sua face. Uma saudade absurda tomou conta de si, e ela o puxou contra si.

As bocas ficaram a pouca distância, uma da outra.

Ela queria aqueles lábios contra si, sentir o peso do corpo másculo contra seus músculos femininos. Queria algo além do contato carnal, queria se fundir com aquele homem e que nada mais a separasse dele.

Contudo, o som de passos no corredor cortou o momento, e Théo se afastou.

Só uma pessoa tinha as chaves da casa, e ela surgiu, em seguida, com o olhar apavorado.

— Como ela está?

Eloise percebeu ser Caio, mas a exaustão mental fê-la fingir dormir.

— Deram-lhe remédios, e ela apagou ainda no carro.

— Você acha que...?

— Foi um assalto. Sua irmã estava no lugar errado e na hora errada, apenas isso. Mas, nada lhe aconteceu.

Caio suspirou de alívio.

— No rádio disseram que algumas pessoas se machucaram. Eu...

Naquele instante, Eloise realmente pegou no sono. Não percebeu, portanto, a aproximação de Théo de seu irmão, e o aperto no ombro que o loiro deu no outro.

— Eu percebi que havia alguma coisa errada e a levei ao banheiro. Ninguém entraria por aquela porta, isso te garanto.

O outro assentiu.

— Eu faria qualquer coisa por Eloise, mas, ao mesmo tempo, sinto como se pudesse fracassar e perdê-la a qualquer momento.

Théo compartilhava aquele tormento. Mas, não deixou claro isso ao outro.

— Nada vai acontecer, tem minha palavra. Só por cima do meu cadáver alguém tocaria nela.

O outro assentiu. Então, afastou-se.

Ao menos nisso, havia verdade nas palavras de Théo Garcia.

 

Capítulo 09

 

Sina


A vida tinha que continuar. Apesar do abalo emocional, Eloise voltou ao trabalho dois dias depois do assalto, afundando-se no porto seguro que parecia ser Therron Esme.

Era como se o conhecesse... e o amasse. Algo tão profundo que a autora não pestanejava em atirar-se de cabeça em sua história e compartilhar seus tormentos.

Quando ela não surgiu na cozinha para almoçar, Théo decidiu ir até ela. Levou o que havia preparado consigo – algo simples, arroz, salada e peito de frango – e pôs diante dela, como se exigisse que ela se alimentasse.

— Quando você começa — apontou o computador — não para um minuto, não é? — brincou. — Deve ter muitas coisas para narrar sobre esse homem.

— A vida dele era muito interessante.

— Um pintor, você havia me dito...

— Isso.

— Francês — Théo apontou. Em seguida, completou — Um pintor francês. Devia ser um mulherengo.

— Ao contrário, amava sua esposa e foi fiel a ela. Li relatos que, dentro do grupo de resistência, muitas mulheres se encantaram por sua aparência, mas ele não se envolveu com nenhuma.

Estranhamente, Théo acreditou naquilo, mesmo sem conhecer direito a história.

— Como ele se chamava?

— Esme — ela respondeu. — Therron Esme.

Onde havia ouvido aquele nome antes? Voltou novamente o olhar para o quadro. As sobrancelhas uniram-se numa dúvida latente.

— Já ouvi falar desse cara — admitiu.

— É mesmo?

— Estranho, não é? Acho artes plásticas a coisa mais inútil que possa existir.

Ela riu.

— Amanda sempre diz que as artes são a manifestação da alma.

— A alma desse Therron estava completamente em agonia, para pintar algo do tipo — apontou a tela. — É sinistro.

— Esse quadro foi feito poucos dias antes de ele se matar. E sim, sua alma estava manchada em trevas. Therron fez coisas ruins para conseguir se infiltrar na Polônia atrás da esposa.

O olhar de Théo voltou a ela.

— Atrás da esposa?

— Ela era judia. Foi levada até um campo de concentração. Morreu lá, momentos antes de ele invadir Auschwitz com o exército soviético.

Subitamente, a imagem de uma mulher morta surgiu na mente de Théo. A lama, o cheiro de carne queimada, o sangue que parecia manchar sua mente e fundir-se com a tela há poucos metros de si.

— Théo?

Ele a encarou. Seu semblante denotava o quanto estava confuso e tocado.

— Você tem alguma foto dele? Ou dela?

Ela negou.

— Therron Esme rasgou todas as fotografias que tinha da esposa, após a guerra. Acho que queria se livrar do luto, mas não conseguiu.

O som de um carro parando diante da casa, interrompeu a conversa. Logo, Rafaela surgiu à porta do escritório, trazendo consigo um sorriso incentivador e um pedaço de torta de morango, a favorita da cunhada.

— Passei por uma confeitaria, e decidi te fazer um agrado.

Eloise se ergueu e a abraçou.

— Não precisava.

— Não pude vir desde o assalto, estava preocupada. — Tocou os cabelos da outra, num carinho gentil. — Mas, boas novas: foi realmente um assalto, sem nenhum envolvimento contigo. Já prenderam os assaltantes, uma turma de adolescentes que queria dinheiro para drogas.

Eloise pareceu aliviada. Ela pegou a torta e rumou até a cozinha, a fim de cortar o pedaço em três fatias.

— Caio me disse que você a protegeu — Rafaela volveu para ele, sorrindo. — Eu sabia que o faria. Muito obrigada.

Contudo, o retorno não foi o esperado.

— Não te incomoda a aproximação dos gêmeos? — indagou. — Caio é um tanto quanto obcecado pela irmã.

Aquela frase dita sem nenhum floreio fez a sobrancelha da loira erguer-se, num sorriso irônico.

— Eu jamais sentiria ciúmes de Eloise. Francamente, jamais sentiria ciúmes de qualquer pessoa. Caio está comigo porque me ama. É esse relacionamento que eu quero. Algo em que ambos saibamos o que desejamos, e ficamos juntos por vontade própria. Se um dia ele não me amar mais, ou eu não amá-lo, que possamos seguir em frente, sem ressentimentos.

— Meio calculista — criticou.

— Eu vejo como amadurecimento. Caio ama Eloise com intensidade, mas não é o mesmo tipo de amor que tem por mim. Sentimentos diferentes não devem ser comparados.

A escritora voltou. Trazia na mão uma bandeja com pratos de sobremesa. Serviu-os e depois se pôs a comer.

— Ela adora doces — Rafaela comentou para Théo. — Se um dia quiser agradá-la, basta lhe dar qualquer coisa com açúcar.

Eloise riu.

— Você quer me agradar? — perguntou à cunhada, piscando um dos olhos, sedutora.

— Sempre, amor — rebateu. — Eu fico imensamente feliz quanto te vejo feliz.

Eloise riu, uma felicidade soberana dominando-a. A paz que ela tanto ansiava, parecia enfim estar chegando até ela.

 

Capítulo 10

 

O sinal.


Caio saiu do banheiro secando os cabelos. Naquela manhã, ele se preparava para uma reunião para o lançamento de alguns novos autores nacionais, gente descoberta pela internet, mas que demonstrava um talento ímpar.

Volveu o olhar para a cama e percebeu Rafaela mexendo no celular. Ela não parecia pronta para ir ao trabalho.

— Vai tirar o dia de folga?

— Só algumas horas da manhã — respondeu. — Vou fazer as unhas, e depois irei para a delegacia. — riu baixinho, focada na pequena tela do aparelho.

— O que está vendo? — se interessou.

A mulher lhe mostrou o celular. Uma foto de Eloise no jardim de casa, bebendo chá e comendo o que sobrava da torta de morangos.

— Théo me mandou — ela contou. — Eloise está feliz — murmurou. — Quando tempo faz que eu não via esse sorriso nela?

Caio afastou-se, caminhando até o espelho, vestindo a camisa e arrumando a gravata. Seu rosto não escondia a insatisfação.

— Não gosto desse cara — confessou, depois de um breve silêncio.

— Ele não vai roubar o amor da sua irmã, da mesma forma que eu não roubei o seu dela.

— Está querendo insinuar alguma coisa?

Rafaela percebeu que ele buscava um pretexto para discutir.

— Sabe o que Amanda me comentou?

— Lá vem... — replicou. — Amanda e suas crendices.

— Acredito nela, porque sua óbvia antipatia por Théo tem que ter algo a ver com a espiritualidade.

— O que quer dizer?

— Vidas passadas — respondeu. — Algum conflito não resolvido que vocês insistem em trazer à tona. Ele também tem dificuldades de te encarar.

— Isso é ridículo.

— Ridículo é você menosprezar alguém que sequer viu antes na vida. Ridículo é você odiar qualquer pessoa que se aproxime de sua irmã. Nem sei como eu mesma consegui, pois eu reparava na forma como você parecia me fuzilar com os olhos quando eu conversava com Eloise.

— Isso nunca aconteceu! — defendeu-se.

— Você retrocedeu porque percebeu que eu não recuaria. Eu adorei sua irmã assim que a vi. Sabe o ditado: “meu santo bateu com o dela”? Foi essa a sensação que tive ao ver Eloise pela primeira vez. Eu me conectei automaticamente. Acho que Théo tem esse mesmo sentimento, e não vai se acovardar porque você faz cara feia sempre que o vê perto dela.

Caio terminou de vestir o paletó e se preparou para sair. Talvez a verdade nas palavras, talvez sua falta de tempo, ou o que quer que fosse, fê-lo retroceder. Simplesmente não entraria numa discussão tão improdutiva com a noiva.

— Fale com Amanda — Rafaela pediu. — Ela pode te ajudar. Ela tem uma amiga que é médium.

Caio gargalhou.

— Era só o que me faltava.

Contudo, assim que fechou a porta do apartamento, ele meditou nas palavras.

 

Amanda caminhou rapidamente pelo corredor da galeria. Havia feito uma ótima venda de manhã para um rico empresário local e queria organizar a entrega com detalhes, para que tudo saísse de acordo com o esperado.

Contudo, sua caminhada foi interrompida pela visão de Caio. Parado ao lado de um dos quadros, ele a encarava, enigmático.

Assim como era amiga de Eloise, ela sempre gostou de Caio. Quando mais jovens, até flertaram algumas vezes, mas nunca saiu disso. Depois de adultos, se viam pouco, pois a vendedora tinha mais contato com Eloise e Rafaela.

— Que surpresa... — murmurou.

— Podemos conversar?

Ela assentiu. Alguns princípios para Amanda eram primordiais. A atenção aos amigos era um deles.

— Rafaela me comentou sobre o que você disse...

— Eu disse?

— Sobre o segurança de Eloise e eu. Sobre a antipatia que um parece ter pelo outro.

— Não parece, vocês têm! — ela riu. — Mal conseguem se encarar.

— E você acredita que isso vem de outras vidas?

— Eu acredito que é algo forte demais para surgir do nada. Mas, o que eu penso não importa. O que você pensa, é que importa. Por que está aqui?

— Rafaela me falou sobre uma médium.

Amanda negou com a face.

— Vocês descrentes sempre pensam que tudo é resolvido da forma mais simples. Um médium não irá responder as suas questões se você não definir primeiro quais são as suas perguntas.

— Sempre misteriosa...

— Eu não brinco com as palavras, apenas... — respirou fundo. — Por que não esquece tudo isso e tenta se dar bem com Théo? Acredite, ele é um cara legal.

— Não quero me dar bem com ele. Tudo que quero é aquele homem longe da minha irmã — a resposta extremamente franca assustou Amanda.

— Mesmo sabendo que a presença dele acalmou os tormentos dela?

Caio a observou por alguns segundos, como se mastigasse aquelas palavras. A ideia de um homem – que não ele – confortar a irmã era terrível demais para o editor. Mas, havia mais que isso.

— Me dê o endereço dessa mulher — ordenou. — Quero falar com essa médium.

Amanda até pensou em recuar. Mas, como ela já havia aprendido, o destino sempre se cumpria. Diante disso, buscou sua agenda e escreveu o endereço em um papel perfumado.

 

A televisão noticiava alguns eventos políticos ocorridos naquela semana. O som do apresentador do telejornal era o único barulho humano dentro daquela casa.

Eloise o ouvia ao fundo, mas não prestava realmente atenção. Datilografando um trecho importante do livro, ela estava dominada pelas letras.

Subitamente, parou. Pegou a entrevista que fizera com a neta do médico amigo de Therron e voltou a lê-la. Havia algo ali que a incomodava demasiadamente.

Segundo a narrativa, Pierre tentou buscar pela esposa do amigo, tão logo percebeu que Therron havia perdido completamente o senso e a razão.

Enquanto o outro, dominado pela loucura, matava e castrava nazistas, o médico tentava encontrar meios de chegar à judia.

Leu o nome.

Esther...

Era um nome típico judeu e muito bonito, em sua opinião. Imaginou o que fez o médico Pierre tentar ajudar a mulher, mas nada lhe veio à mente.

“ Ele não a amava como um homem ama uma mulher. Não havia conotação sexual em suas ações. Era apenas como se ela fosse uma irmã. O mesmo carinho que nutria por Therron, nutria por Esther. Foi o padrinho de casamento deles ”, dissera-lhe a neta.

Depois da guerra, ele se afastou dos amigos. Therron havia sido levado ao estrelato e ao sucesso, e Vladimir (um amigo russo que também lutara pelos aliados), havia sumido e não dera mais notícias. Então, casou-se, teve filhos, netos e depois faleceu, doente.

Nunca mais teve qualquer contato com aqueles com quem dividiu suas primaveras mais floridas, seus melhores anos, mas narrou à neta com saudosismo sobre a juventude feliz.

E teria sido uma vida inteira feliz, não fosse à invasão alemã.

Contudo, a atenção de Eloise logo desviou-se para outro fato narrado. Pierre havia comprado algumas informações de um guarda nazista. Nos dias que a informação chegou à ele, descobriu que a jovem mulher do amigo estava presa no prostíbulo de Auschwitz.

Aquela notícia era completamente nova. Eloise não fazia ideia de que o campo de concentração havia tido um puteiro.

Jogou os dados coletados na internet, e logo o navegador lhe mostrou algumas imagens.

A pior delas, em seu coração, era a de uma cama vazia, coberta por uma colcha floreada, num quarto minúsculo...

... Cheirando a sabão.

A dor na nuca voltou. Não entendia os motivos, mas ao ver a foto, sentiu o forte cheiro de sabão amarelo. Um vômito surgiu em sua garganta e ela buscou uma garrafinha de água gaseificada para acalmar a ânsia.

— Uma pausa? — Théo surgiu na porta.

Foi um alívio. Ela quase lhe agradeceu por tirá-la daquele inferno mental.

— Sim, por Deus, sim — murmurou, levantando-se e indo até ele.

Na TV, agora o apresentador falava sobre esportes. Os dois times da capital haviam ganhado seus respectivos jogos e havia euforia na voz.

Sentou-se no sofá ao lado de Théo, que lhe ofereceu alguns salgadinhos.

Aquele clima calmo e aquele silêncio confortável — que sempre tinha ao lado dele —, lhe fez muito bem.

Subitamente, sentiu o toque masculino em suas mãos. Era simples e puro, apenas um enroscar de dedos.

Ela sorriu. Nunca assistir ao noticiário foi tão romântico e doce.

 

Capítulo 11

 

A busca


Caio Hopp ficou surpreso por não encontrar um local estereotipado, como imaginava.

A casa de cores claras, mesclada de branco e azul, era extremamente confortável e acolhedora. Não havia imagens de santos ou velas acesas, muito menos incenso, nada que lembrava o que ele imaginava como residência da casa de um médium.

O único cheiro no ambiente era do bolo que a mulher havia colocado no forno pouco antes de ele chegar.

Sentado no sofá, ele aguardou que ela verificasse a temperatura do fogão, e então voltasse a ele, com um sorriso nos lábios.

— Eu sou...

— Eu sei quem é — ela replicou. — Amanda me informou, dizendo que estava vindo.

Ele não havia dito que iria a amiga. Apenas, exigiu o endereço. Mas, não estava decidido. Não até sentar-se no banco do carro e pensar que a convivência de Théo e Eloise poderia progredir para algo a mais, algo a qual ele não estava preparado.

— E ela te disse por que queria vê-la?

— Você procura respostas — a mulher manteve o sorriso. — Bom, nem me apresentei. Sou Valéria, psicóloga e kardecista do centro...

— Olhe, desculpe — interrompeu-a. — Não estou interessado onde você pratica sua religião, nem nada do tipo. Estou aqui porque... — a voz morreu. — Porque... — repetiu. — Sinto-me um idiota por estar aqui — admitiu. — Não devia ter vindo.

Levantou-se. Estancou. Voltou a sentar-se.

— Você pode me ajudar? — indagou, por fim.

— Você quer ajuda?

— Eu preciso — confessou. — Muito.

— Está buscando respostas no lugar errado — ela foi sincera. — Deus nos dá a vida para que possamos vivê-la com intensidade. Não é no passado que conseguira resolver seus problemas. Ao contrário, poderá agravá-los. Você não sabe quem foi, não sabe quem é... E isso tem um propósito. Deus te deu uma nova chance, uma página em branco para que escreva um novo começo, aproveite essa oportunidade e...

— Mas você faz terapia de vidas passadas, não é? — indagou.

— Apenas em casos graves.

— O meu caso é grave.

— O seu caso é grave demais — ela o assustou. — Eu vejo que sua áurea é negra, coberta de culpa e vergonha. Imagino que você cometeu muitos erros, erros que te afogam, e acredito que descobrir quais erros são esses possam prejudicar a pessoa que você é agora.

Diante das palavras, por fim, o homem decidiu ir embora.

 


Os passos atrás dele eram cambaleantes. Caio respirou fundo, tentando diminuir o ritmo das passadas para que a mulher que se arrastava conseguisse acompanhá-lo. Subitamente, o som de um gemido de dor fê-lo volver-se para ela.

Eloise!

Não exatamente a irmã, um rosto um tanto diferente, marcado por manchas roxas de agressão, a boca repleta de marcas de dentes e os olhos apagados, cobertos por lágrimas espessas que resplandeciam mais que a agonia física.

A mesma dor que sempre enxergava no olhar da irmã durante todos aqueles anos, ainda estava ali, naquela mulher que ele desconhecia, mas reconhecia.

Ela havia sido estuprada. Mais que isso. A tortura física era nada perto do que ele sabia tê-la passado.

Então o olhar feminino desviou-se do seu. Ao longe, percebeu um grupo de homens de roupas listradas azul e branco, vestidos iguais a irmã.

Esqueléticos, eles cruzavam por um corredor de arame farpado.

Caio ouviu o latido forte dos cães. Sua pele arrepiou-se.

Eloise caminhou até os homens. Quis impedi-la, mas ficou imóvel. Tudo foi breve, logo ela retornava para si.

— Meu pai morreu .

A voz dela trouxe mais agonia.

Com lágrimas despencando nos olhos e uma dor insuportável no peito, ele acordou daquele pesadelo.

 

 

Capítulo 12

 

Entrega

 

O som breve de um farfalhar fez os olhos de Eloise se abrirem, naquela noite fresca.

Não havia realmente um som, apenas um ou outro estalo, vagaroso, que pareciam passos dados com cuidado sobre o piso de madeira, ecoando pelo corredor, lembrando-lhe de uma agonia que ela já vivenciara antes, mas que, agora, parecia mais intensa.

O breu noturno fê-la sentar-se na cama, e buscar pelo abajur. A luz fraca invadiu o quarto, fazendo sombras fantasmagóricas na parede, deixando-a momentaneamente sem reação.

A porta abriu, depois disso. Théo surgiu, o dedo indicador no lábio, pedindo silêncio.

— Eu ouvi um barulho lá embaixo — ele explicou, tentando manter a mulher em calma.

Seu revólver estava empunhado na mão direita e, com a esquerda, ele a chamou para perto.

Eloise levantou-se da cama, e segurou seus dedos. Vagarosamente, ele a levou até o roupeiro, abriu uma das portas, e pediu que ela entrasse.


Esconder-se assim... Tudo parecia um déjà vu .

— Fique aqui, está bem? — pediu.

— Não... Tenho medo — murmurou.

— Não precisa. Provavelmente não é nada. Só estou sendo cauteloso.

E então fechou a porta do móvel. Ela ouviu quando a porta do quarto fechou-se também, e tudo que restou foi o silêncio.

 


Théo Garcia tinha experiência suficiente para saber que alguma coisa não estava certa. Primeiro, o som que ouvira pouco depois de se deitar, não se assemelhava a nenhum outro que percebera naquela casa.

Não eram os galhos batendo na janela, nem as madeiras rangendo, comuns em casas como aquela.

Foi o som de uma pisada que denunciou que havia mais alguém na casa. Ergueu a arma, segurando-a com as duas mãos, e então desceu, devagar.

Mais passos.

Não era apenas uma pessoa. Havia mais gente ali, no escuro, procurando alguma coisa.

Talvez um roubo?

Francamente a situação estava até comum, ultimamente. Já fazia algum tempo que o Sul do Brasil se tornara perigoso.

Porém, não era com os bandidos comuns que ele se preocupava. Os neonazistas eram mais atrevidos, lutavam por algo além da ganância. Queriam limpar a imagem que – diziam – os aliados haviam dado ao governo de Adolf Hitler após a guerra.

Para os neonazistas, tudo era uma mentira. O holocausto, as perseguições... Até mesmo os livros lendários como os de Anne Frank, ou o testemunho preciso de Simon Wiesenthal pareciam uma história mal contada, para entreter gente curiosa.

O que era estranho...

Théo nunca fora dado à história, mas, certa vez, um velho pracinha com quem conversou num evento militar lhe comentara que, no pós-guerra, ninguém parecia querer falar sobre os eventos ocorridos na Europa.

— O povo queria esquecer... — o homem murmurara, como se muitas dores estivessem por trás das palavras. — Então, a gente precisou fingir que não viveu nada daquele horror.

Dessa forma, relatos do que ocorrera nos campos não eram bem vindos em lugar nenhum. Assim, como que os aliados usariam os mesmos para benefício próprio?

E ainda havia o intenso prazer pelo ódio. Fazer o mal deleitava os seguidores daquela ideologia. Mesmo que tanto tempo havia se passado, neonazistas costumavam ser bárbaros e cruéis, como se a guerra permanecesse.

Desvencilhou-se dos pensamentos, focando-se no som que agora se aproximava da escada. Encostou as costas na parede, tentando ficar bem camuflado sob a escuridão.

A figura adulta e grande de três homens surgiu, pouco depois.

Théo não pensou. Ele sabia o que aquilo representava. Mais, ele sentia que havia falhado de defender Eloise em outra época. Agora, nada o impediria de atirar.

 


Eloise gritou ao ouvir os disparos. Foram mais de cinco, estalos secos e altos, que emergiam sua alma em algo além daquele momento.

Repentinamente, muniu-se de coragem. Se Théo fora pego, ela precisava sair daquele esconderijo e fugir da casa.

— Não vão me capturar! — disse, alto, incontrolável.

Nunca colocariam as mãos nela! Nunca mais!

Abriu a porta do roupeiro e logo estava no corredor. Parou, repentina, ao perceber a luz na parte inferior, acesa.

De pé, Théo conversava com alguém por telefone, enquanto três homens jovens de cabelos raspados estavam deitados no chão.

Sangravam, mas não pareciam estar em risco de morte.

O olhar da escritora e do antigo policial se encontrou.

— Eles não me viram — O tom masculino parecia de alívio. — Então aproveitei que estavam transtornados por não saberem de onde as balas vinham, e os acertei.

Falava com calma. Aliás, tudo nele parecia comum.

— Nenhum morto — informou. — Apenas feridos. Um estava com arma de fogo, mas já estou de posse. Os outros dois estavam com arma branca. — Aproximou-se de um deles, deitado no chão. — Sim, neonazistas — ergueu a camiseta do maior, percebendo uma tatuagem antissemita. — Ele tem dois oitos tatuados no braço.

Oito. A simbologia da letra H. Dois oitos denotavam dois H.

Heil Hitler.

Eloise sentiu as pernas tremulas. Sentou-se na escada, encarando os homens que a olhavam com nítida raiva.

Eles haviam invadido sua casa para matá-la. Naquele instante, poderia ser o sangue dela a manchar o tapete, e não o daqueles jovens transtornados pelo ódio.

— Puta — um deles murmurou, a voz dolorida. — Você não vai escapar, cadela!

Théo aproximou-se deste e lhe deu uma coronhada. Apagou-o na hora.

Tudo, após isso, foi uma sucessão de eventos rápidos. A chegada dos policiais, da ambulância para levar os delinquentes, o agendamento para o depoimento, as muitas falas preocupadas e ansiosas.

Mas, em tudo, havia Théo, tomando à dianteira e respondendo a cada indagação.

Quando, por fim, todos saíram e o silêncio voltou a reinar na casa, ele aproximou-se dela.

Eloise ainda tremia. A voz mal conseguia sair de sua garganta, e o coração aflito batia com força no peito.

Ele a ergueu, protetor. Fechou os olhos, aceitando aquele conforto, aconchegando-se em seu peito masculino, sentindo o abrigo que emanava de sua postura firme e convicta.

Então, Théo deitou-a na cama. O olhar deles encontrou-se novamente. Ele sorriu.

— Você precisa descansar — disse.

Fez menção de se afastar, mas a mão firme da mulher segurou a sua .

 


Eloise não se lembrava da última vez que esteve à mercê de um homem.

Sempre envolvida pelos assombros de sua alma, seus namoros na escola não progrediam, e na faculdade ela aceitava o ciúme do irmão para com seus pretendentes com absoluto alívio.

Porque até aquele instante, até aquele momento em que Théo a encarava com desejo, ela jamais havia sido instigada por qualquer coisa.

Mas, de súbito, descobriu-se mulher. Sim, alguém com paixões e vontades, aquém da intensa agonia que parecia absorvê-la dia após dia. Ali, naquela cama, embaixo do corpo másculo de Théo, Eloise soube que estava no lugar certo.

A boca dele tomou-a, intensamente. Um beijo como jamais outro. O gosto, a saliva, a leve mordida no lábio inferior, o palpitar no coração, o latejar em seu baixo ventre, e o gemido de puro deleite a escapar da boca. Sim... Aquele era o momento certo. O momento certo deles.

Abraçou-o, apertando contra si, deixando com que os lábios masculinos deslizassem por todo um caminho que ia da boca ao pescoço, e então mais abaixo.

A camisola bonita e clara deslizou de seu corpo. Sua nudez, contudo, não intimidou-a. Aquele homem era perfeitamente feito para ela. E, nada mais justo que ele a tivesse de todas as maneiras que quisesse.

Théo ergueu o corpo, tirando a própria roupa. Havia algo completamente quente no gesto. Eloise adorou a maneira como ele estava firme, seguro do que queria, e da forma como a olhava com fome.

Uma fome que só ela poderia saciar.

As peles roçando-se, as bocas grudadas, o fervor que parecia aumentar de intensidade momento após momento e, por fim, a penetração.

Um encontro de corpos que parecia destinado e de extrema saudade.

— Théo — ela gemeu, contra a orelha dele, sentindo a carne dura invadindo-a com força, tendo dela tudo que merecia.

— Você é minha — ele gemeu, e ela aceitou.

Que tomasse posse!

O pênis duro saiu e entrou dela, várias vezes, num ritmo frenético.

Na semiescuridão do quarto, ela apertou o bumbum masculino contra si, sentindo os músculos se forçando, a dança erótica que suas almas preparavam desde que se viram pela primeira vez.

E então ele a molhou, sua semente escorrendo pelo centro feminino, deslizando pelas pernas, trazendo ainda mais calor nos corpos já encharcados de suor.

Em algum momento os pensamentos de Eloise pensaram numa criança. Um anjinho de cabelos loiros como os de Théo. Ah, como ela queria... E ela sabia que era algo que fazia falta, que se perdeu em tempos, que eles nunca puderam ter.

Quem sabe dessa vez... Apenas dessa vez... Poderiam ser felizes?

 

Capítulo 13

 

Em outra vida


— Eu sou um covarde...

O múrmuro ao lado da cama fê-la encarar o homem nu, que havia amanhecido ao seu lado.

Deslizou o dedo pelo peito musculoso, de pelos ralos, e sorriu.

— Por quê?

— Ontem à noite, eu tive a impressão que a perderia. E eu não poderia suportar isso. Então eu ataquei aqueles jovens sem sequer pensar em imobilizá-los. Eu poderia tê-los rendido, e chamado à polícia. Mas, eu preferi atirar primeiro. Simplesmente, não poderia arriscar.

Aquela confissão não causou nela nenhum sentimento de aversão. Sua vida estava em perigo, e Théo não quis aventurar-se. Almejou agradecê-lo, mas as palavras seguintes fizeram-na lacrimejar.

— Eu tenho uma sensação horrível de que irei perdê-la. Não sei se hoje, ou amanhã, ou daqui a dois, três, vinte anos... Não sei. Mas, sei que vou. Isso me desespera.

— Você não vai me perder — ela garantiu, aproximando-se dele, beijando seus lábios, unindo-se ainda mais ao homem. — Nunca, Théo.

— E se a vida não estiver em nossas mãos? — indagou. — E se nós não sejamos capazes de fazermos nosso próprio destino?

Ela lambeu o lábio inferior masculino. Sorriu diante de um leve gemido que ele deu.

— Então teremos que nos encontrar de novo — afirmou. — Em outra vida... — completou. — Em qualquer existência. Mas, nunca vamos desistir.

Ela fechou os olhos. O sol começava a despontar no horizonte. Um raio os tocou na cama. Não sabiam, mas era o divino abençoando aquele amor.

 


Caio Hopp entrou na casa com o semblante afobado. Ao contrário do que esperava, encontrou a irmã tomando café na cozinha tranquilamente, sem parecer que havia passado por terror na noite anterior.

— Por que você não me ligou? — questionou a Théo, que o observava a certa distância.

— Foi tudo resolvido... O departamento de polícia já conseguiu prender o chefe do grupo.

— Resolvido? Três neonazistas foram baleados dentro da casa da minha irmã...

— E ela está ilesa. — Arqueou as sobrancelhas. — Como soube?

— Rafaela foi informada assim que chegou para trabalhar na delegacia. Ela não veio porque disse que estava tudo sobre controle.

— E está.

Caio aproximou-se de Théo. Para eles, era difícil estarem assim, tão perto, mas o moreno não se impediu.

— Você não faz ideia de como isso pode abalar Eloise.

— Ela não está abalada.

Caio voltou-se para a mulher, que bebia café.

— Estou bem, irmão — garantiu, com um sorriso.

Mas, havia algo mais naquele semblante alegre. O brilho na pele, o olhar apaixonado... Caio bufou, e se afastou.

Théo o seguiu.

— Não confio em você — disse, perto da porta, pronto para sair.

— Sua irmã confia, e isso basta.

— Não basta pra mim — rebateu.

Em seguida, suspirou. O que diabos estava acontecendo? Desde que Théo Garcia havia entrado na vida de Eloise, ela nunca mais tentou contra si, nem havia feito alguma burrice que poderia colocar em risco tudo que construiu na carreira. Sequer o cheiro comum de cigarro na casa estava presente.

Era como se a presença daquele homem houvesse aliviado a alma da irmã. Não totalmente, mas de maneira visível e arrebatadora.

— Eu vou te tolerar por ela — disse.

— Eu também — o outro devolveu. — Eu não teria aceitado esse trabalho, não fosse por ela.

Subitamente, um riso frouxo surgiu nos lábios do editor.

— Rafaela disse que nosso problema deve ter vindo de outra vida — murmurou. — E estou começando a achar que ela tem razão.

— Não acredito nessas besteiras.

Pela primeira vez, houve conexão.

— É... Eu também não.

E então saiu.

O guarda-costas permaneceu a encarar a porta fechada, como se absorvesse a última informação.

“ Outra vida... ”.

Não acreditava em nada que não visse com seus próprios olhos. Contudo, encontrar Eloise era a prova de que nem tudo era preto no branco, como sempre creu.

A mulher surgiu na porta da cozinha e sorriu para ele.

— O que foi? — ela murmurou.

Ele negou, devolvendo o sorriso.

— Nada.

Mas, havia algo. Eloise sabia. Théo sabia. E, acima de tudo, o editor que acabava de entrar no carro, também sabia.


Capítulo 14

 


Esther


O cheiro delicioso do peixe ao forno invadiu a cozinha. Théo sentou-se à mesa, observando a mulher na tarefa de fazer o jantar daquela noite.

Ela era metódica em tudo. Na maneira como temperava o peixe, na forma como o colocava sobre o papel alumínio, e no jeito que arrumava tudo tão logo terminava o ofício.

Nem parecia que estava cozinhando. A cozinha brilhava, com cheiro de desengordurante e álcool.

Sorriu. Aquele silêncio confortável entre eles parecia um alento à vida difícil. Durante muitos anos, Théo imaginou se a vida era algo a que se valia a pena. Naquele instante, vendo Eloise cozinhar, ele percebeu que qualquer dor que houvesse passado valeu por aquele momento.

Em nada ele mudaria seu passado, se o futuro representava estar ao lado daquela mulher.

— No que está pensando? — ela indagou, num sussurro.

Ele sorriu.

— No quanto você é linda.

— Nunca me achei bonita, mas sinto que suas palavras são sinceras — ela riu.

— Pode acreditar que são, Esther.

Por alguns segundos, o silêncio confortador quebrou como um cristal frágil recebendo uma paulada.

O olhar de Eloise confrontou-se com o dele, em choque.

— Do que me chamou?

Théo sabia o que havia falado, mas, seu pavor fê-lo mentir.

— Eloise...

— Não me chamou de Eloise — ela afirmou, convicta.

— Não é nada do que você está pensando.

E o que ela devia estar pensando? Qualquer mulher imaginaria infidelidade ao ouvir o nome de outra. Mas, o olhar de Eloise não remetia a isso.

Não que eles tivessem qualquer compromisso. Bem da verdade, sequer o fato de que passaram a dormir juntos era discutido. No fundo, era como se não precisasse. Estavam um ao lado do outro, num vínculo que palavra nenhuma poderia classificar.

— Por que me chamou de Esther? — ela insistiu.

O que mais ele poderia fazer além de dizer a verdade?

Ergueu-se da cadeira e rumou até ela. Segurou seus ombros, como se quisesse encontrar as palavras certas para não assustá-la. Por fim, viu que nada do que diria poderia explicar exatamente o que ocorria em seu íntimo.

— Desde que me lembro, tenho sonhos com essa mulher...

— Esther?

— Isso... — assentiu. — Nunca a vi, não sei quem é, e em meus sonhos normalmente a assisto morta, deitada sobre um chão barrento, nos braços de um homem que eu desconheço. Às vezes, tenho outros sonhos, conversamos à margem de um rio, ou deitados na cama.

Eloise parecia acolher aquelas palavras com indefinida reação.

— E você crê que ela...

— Ela é você — ele afirmou. — Não tenho dúvidas de que ela é você. Eu soube exatamente que era, quando te vi naquele leito no hospital. Foi por isso que aceitei o emprego.

Eloise segurou a mão do homem e caminhou com ele até seu escritório. O olhar em dúvida de Théo remetia a muitas perguntas, mas todas elas obtiveram respostas quando ela lhe estendeu um punhado de páginas, onde, em letras garrafais ele leu:

“ Esther Wiesel passou a se chamar Esther Esme... ”.

Théo voltou o olhar para Eloise.

— Ela era esposa de Therron Esme, o pintor.

De alguma maneira, era como se Théo soubesse exatamente daquilo.

— Ele a roubou no dia do casamento com um judeu — as palavras chocantes saíram dos lábios masculinos. — E se casou com ela em uma pequena paróquia de um bairro pobre, em Paris.

— Como sabe disso? — Eloise arqueou as sobrancelhas.

— Eu simplesmente sei.

A mulher mordeu o lábio inferior, digerindo aquela informação.

— E ela sou eu? E você seria quem? Therron?

— Um artista? — duvidou. — Eu odeio quadros, odeio a arte.

— Já se perguntou os motivos?

— Amanda disse algumas coisas...

— Você já havia falado com ela sobre isso?

Ele assentiu.

— No hospital, quando te conheci, chamei-a por Esther e ela me flagrou no ato.

Eloise respirou fundo.

— Você disse que a viu morta — caminhou em direção ao computador, e abriu um arquivo. — Therron Esme encontrou a esposa morta no dia... — silêncio.

Théo aproximou-se por trás dela. O rosto da escritora parecia em choque.

— O que houve?

— Vinte e sete de janeiro — apontou. — O dia que libertaram o campo Auschwitz.

— E?

— É meu aniversário. Nasci dia vinte e sete de janeiro de oitenta e quatro.

— Caio também?

— Sim, somos gêmeos.

— Eu vi Esther morta nos braços de um homem. Poderia ser ele?

Ela somou algo nos dedos.

— Exatos trinta e nove anos depois... Você crê mesmo nisso ou talvez seja apenas uma coincidência assustadora?

Théo deu os ombros.

— Não sei o que pensar, e nem sei se quero pensar. Tudo isso me assusta, me apavora. Por que eu teria sonhos? Por que eu te encontrei?

— E por que esse quadro me chamou desde o instante que eu o vi? — ela completou. — Talvez precisamos de ajuda — murmurou.

— E você quer mexer nesse passado? — ele rebateu. — Eu prefiro continuar no futuro.

A mulher permaneceu em silêncio por alguns segundos. Por fim, percebeu que ele estava certo.

— Eu quero um futuro com você — disse, sorrindo.

Ele ajoelhou-se ao lado dela, beijando suas mãos.

— E teremos, meu amor. Teremos um futuro lindo.

 


“ De que adianta? ”

O jornal estava aberto na página em que teciam elogios fervorosos aos seus quadros.

“ De que adianta gostarem da minha arte, se ela está morta? ”

No íntimo, sempre sonhou com o sucesso. Mas, ganhar dinheiro era, num único propósito, a melhor maneira de dar uma vida mais confortável à esposa.

Agora, enquanto sua conta no banco crescia a cada dia, enquanto críticos lhe elogiavam com paixão, enquanto mulheres se atiravam em seus braços, ansiosas para serem as musas de sua devoção, tudo que ele via era que seu talento em nada lhe serviu.

Jogou um pequeno balde de tinta vermelha sobre um dos quadros. Manchou com a cor de sangue a imagem da esposa, uma nuvem escura que havia pintado ao fundo de uma cerca de arame farpado.

“ Perdida ”, murmurou. “ Perdida para sempre... ”.

A perpetuação de uma dor que parecia não ter fim.

“ De que adianta viver, Esther? ”

A arte e o amor não foram capazes de salvá-la.

A arte e o amor haviam destruído ele, igualmente.

 

Théo sentou-se na cama, respirando fundo, assustado. Ao seu lado, Eloise acordou imediatamente, e tentou acalmá-lo, acariciando seus ombros, dando-lhes pequenos beijos como conforto.

— Um pesadelo? Com ela, novamente?

Ele negou.

Se queria uma confirmação de quem era, naquela noite ele a teve.

 

 

Capítulo 15

 

O perdão.


— Você ficou maluco?

Caio Hopp não sabia se ria ou blasfemava diante da postura do homem à sua frente.

No seu confortável escritório na área nobre de Porto Alegre, ele tentava começar seu dia de trabalho sem percalços. Contudo, tão logo surgiu no corredor da empresa, foi interceptado pelo segurança da irmã, que parecia em desespero.

— Você estava lá — Théo afirmou. — Você a matou — repetiu, sem piedade. — No dia vinte e sete de janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco. Mais especificamente, no dia que invadiram o campo de Auschwitz.

Caio gargalhou.

— Eu matei Esther? Que seria Eloise?

Ouviu toda a história que o outro narrou com o semblante tomado pelo riso.

— Não se faça de idiota. Você entendeu?

— E depois me suicidei, assim, morremos juntos e nascemos juntos, anos depois. — Repetiu a ideia, escondendo uma gargalhada. — Então eu sou a porra de um nazista?

— Você “era” a porra de um nazista — destacou.

— E você devia ir tomar no cu.

Apontou a porta, denotando que queria que o homem fosse embora. Théo não se moveu.

— Esther se ligou pelo quadro, eu pelos sonhos. Mas, me pergunto: e você? Eu duvido que nada tenha ocorrido, nesses anos todos. Se existe uma ligação entre nós, que vem de outras vidas, você deve ter tentado decifrar isso antes.

A imagem da médium Valéria surgiu na mente de Caio. Ele poderia mentir, dizer que o outro estava louco, mas o pesadelo em que via a irmã em um campo, logo após nítida tortura, ainda lhe tirava o sono.

— Ela se chama Valéria — comentou, depois de um tempo em silêncio. — Foi Amanda que me indicou. É terapeuta. Mas, não aceitou fazer terapia de vidas passadas em mim.

— Por quê?

— Porque, pelo jeito, eu sou a porra de um nazista — retrucou. — O que você acha? Relembrar a morte de milhares de pessoas? Você acha que alguém não ficaria louco ao saber ser responsável e cúmplice de um genocídio? Valéria me disse que Deus havia me dado um recomeço, esquecido de meus erros. E que eu devia aproveitar essa oportunidade.

— Mas, não consegue — constatou. — Porque você sabe que existe algo errado. E, por Eloise, nós precisamos descobrir o que é.

 

Théo sentou-se diante da mulher de aparência gentil. Ela sorriu, tentando lhe trazer conforto.

— O caso é urgente — ele explicou.

Ao seu lado, Caio parecia incomodado.

— Eu queria ter um futuro ao lado dela, mas os pesadelos não param. Essas lembranças, esses momentos de terror...

— Mas, vocês não acreditam nisso? — ela indagou.

O ceticismo era nítido em ambos.

— Existe algum problema para que sua terapia funcione? Infelizmente, acho que não nasci com o dom da fé.

— Claro que não. Ninguém precisa crer em vidas passadas. O que a hipnose faz é uma terapia, uma técnica que nos submete a lembranças adormecidas, para curar feridas, algumas físicas, outras na alma. Eu não aceitaria fazer tal procedimento no rapaz — apontou Caio. — Mas, em você, depois de tudo que ouvi, acho poderia te ajudar a seguir em frente.

Depois, ela respirou fundo.

— E a moça? Eloise, não é?

— Ela já sofre demais com ou sem o conhecimento sobre o que se passou. Não quero que ela se lembre de nada.

— Mas, me disse que ela melhorou muito depois de encontrá-lo — Valéria apontou.

— Isso é verdade.

— Então é provável que o que Eloise buscava não era escapar do campo, e sim voltar para você. Todas as suas torturas psicológicas estão tendo fim com a sua presença. — Analisou, anotando em um bloco de páginas amarelas algumas informações. — Me disse que ela morreu no dia que o campo estava para ser liberto? Ou seja, ela morreu as vésperas de sua liberdade? Isso deve ter sido agoniante para a alma dela.

— E eu a matei... — Caio murmurou.

— Você não sabe disso — Valéria interpôs.

— Eu a vi morta nos braços dele.

As palavras de Théo não mudaram a opinião da terapeuta.

— Você o viu matando-a? Se não, não pode afirmar. O passado, às vezes, se revela de maneiras muito estranhas.

O homem concordou, apesar de no íntimo não querer.

— Você irá nos ajudar, então?

Valéria assentiu.

Era o início da busca pela verdade.

 

Théo sentou-se em um bonito divã, ainda sem acreditar que realmente estava prestes a se submeter a tal procedimento.

Naquele dia, acordou cedo e disse a Eloise que iria a uma entrevista de emprego. Rafaela e Caio o aguardavam de carro no final do quarteirão, e ele seguiu com a dupla até o consultório de Valéria.

Agora, na sala ao lado, Rafaela e Caio permaneciam à sua espera, como se, o que ele pudesse lembrar, também fosse salvá-los de alguma maneira.

Eloise era a única que desconhecia aquele momento. Se tudo que achavam ser verdade se confirmasse, toda a dor que ela vivenciou até então havia tido um motivo sinistro.

Assim sendo, tudo que restava era um homem sedento pela verdade, a fim de salvar também a sanidade da mulher que ele amava.

— Em que dia você nasceu? — Valéria indagou, batendo nas almofadas e o convidando a se deitar.

— Vinte e um de novembro — murmurou.

— Que ano?

— Oitenta e três.

— Você voltou antes dela — a mulher constatou. — E se o que me disseram era verdade, devia estar no umbral, pois Therron Esme era suicida.

— Você quer dizer, o inferno?

— Um estado de consciência em dor — ela rebateu. — Quem se mata, normalmente está em tal momento de desespero que não consegue ver a luz. Seu espírito, então, é atraído para essa amargura, e vive lá, até conseguir se libertar... Quase sempre isso leva muitos anos. E você voltou pouco depois do desencarne como Therron. É difícil entender os motivos, mas Deus sempre compreende nossas lutas e nos oferece chances de redenção.

Ela se interrompeu.

— Assim, provavelmente, aconteceu algo que fê-lo voltar antes. É como diz o ditado: existe mais coisas entre o céu e a terra...

— Que sonha nossa vã filosofia... — ele completou, num sorriso. — Me basta saber o que aconteceu entre Caio, Eloise e eu.

A mulher assentiu.

— Feche os olhos.

 

Nunca havia experimentado tal estado de relaxamento. Guiado pela voz doce de Valéria, ele quase poderia dormir.

Naquele instante era como se todo peso que carregou pela vida houvesse sido tirado de si. Ali, ele era apenas uma pessoa normal, serena, em total estado de paz.

— Onde você está, Théo?

A pergunta surgiu na sua mente no mesmo instante que uma cidade apareceu diante dele.

Monumentos com cal branco se erigiam quase até o céu, resplandecendo glória. Ele sorriu, diante do que se mostrava. Era uma beleza que o tocava, mas nada comparado à visão da mulher diante dele.

Ela era linda. Cabelos longos, à altura da cintura, negros como a noite, em cachos brilhantes, contrastando com o vestido branco.

— Estou em Roma — murmurou. — Com Helena.

— Helena?

— Um dos nomes de Eloise.

Valéria anotou aquilo.

— E você está feliz?

— Muito.

— Por quê?

— Porque eu confessei meus sentimentos, e ela corresponde a cada um deles.

Subitamente, o rosto de Théo entrou em pavor.

— O que aconteceu, Théo?

Silêncio.

— Théo?

 

Naquela existência, se chamava Gaius. E, francamente, não era dotado da mesma beleza e aparência que agora tinha. Mesmo assim, os cabelos ainda traziam um tom claro, e o olhar permanecia azul.

De qualquer maneira, indiferente a isso, Helena o amava. Poetisa, ela lhe declarava em versos seus sentimentos, e tudo se encaminharia para um final feliz, não fosse por Cezar.

Foi assim... Como sempre, ele a perdeu.

“ Você é meu irmão! ”, Cezar lhe disse, com raiva. “ Meu irmão mais novo. Eu te amo tanto, e você quer roubar minha noiva? ”

Começou ali. Naquele instante, naquela fagulha acesa do fogo do tempo, a separação. Cezar, a quem conhecia agora por Caio, olhava-lhe com lágrimas nos olhos, um ódio descomunal a tomá-lo, massacrando a antiga fraternidade.

“ Ela não ama você ”, defendeu-se. “ Você precisa deixá-la livre. ”

Sentiu a dor forte de uma facada. Olhou para baixo e percebeu a arma manchada de sangue nas mãos de Cezar. Seu olhar cruzou com o do irmão, e ele tentou entender o que exatamente havia acontecido.

Como puderam romper os laços daquela forma?

“ Não... ” Cezar murmurou. “ Não, eu não queria... ”.

Cezar segurou Gaius nos braços. Havia lágrimas nos olhos de ambos.

Era tarde demais.

 


— Théo?

O suspiro triste dele fez Valéria respirar aliviada.

— Théo, não quero mais que me abandone. Preciso que fique comigo, está bem?

— Ok — o murmuro dele era embargado pelas lágrimas. — Caio me matou — contou. — Porque Eloise me amava, mas era sua noiva.

Valéria escreveu aquilo.

— Continue. Avance no tempo. — Pausa. — Onde você está, agora?

 

Os gritos da mulher invadiram sua mente. Agoniantes, desesperados e, estranhamente, esperançosos.

A casa de tábuas dava vista para os canais. Estava em Veneza, em uma época antiga, mas que lhe trouxe alento.

“ Nasceu! ”

Uma felicidade sem precedentes tomou conta de si. Encarou o rosto de uma mulher bonita, sua irmã, Francesca, e segurou a criança no colo.

— É um menino, Marco — seu tom, contudo, escondia algo.

Voltou o olhar para ela. Reconheceu o brilho de Rafaela naquela bondade.

— Maria não resistiu.

Se estivesse com a criança nos braços, ele a teria derrubado. Pois, tudo nele, subitamente, perdeu-se.

— Você precisa ser forte — a irmã afirmou. — Precisa ser forte por ele... Por Kaius.


— Você o amava? — Valéria indagou, seu tom era calmo, e aquela paz era tudo que segurava Théo enquanto seu rosto encharcava-se de lágrimas.

— Meu filho?

— Sim.

— Ele me roubou a esposa — a resposta cruel foi sincera, e Théo se condenou por ela.

Subitamente, um gemido.

— Théo? Você está bem?

— Eu a matei — murmurou.

— O quê?

— No navio que nos levava ao mundo novo. Eu a matei...

 

“ Você me ama, Eleanor? ”

Eloise o encarou. Na proa do navio, ela permitiu que as lágrimas corressem pelo seu rosto em amargura.

Vestia negro, roupas bastante recatadas. Ele soube que eram imigrantes assim que a viu. Protestantes em busca de um lugar melhor para viver.

“ Eu te amo, Thomas ”, ela admitiu. “ Mas, eu sou e sempre serei prometida de Charles. ”

“ Você prefere uma vida ao lado dele que ao meu? ”

“ Você sequer me ama! ”, a mulher rebateu. “ Tudo que te importa é me roubar de Charles porque você o odeia ”.

“ Isso não é verdade ”.

“ Tudo que fez durante toda a sua vida foi provocá-lo, tentando fazê-lo lutar contra ti. Onde está seu lado cristão? Até um duelo já tentou... E tudo para quê? Eu não vou deixá-lo, ele é meu melhor amigo, e ficarei ao seu lado... ”.

Seu som foi interrompido pelas mãos fortes que apertavam a garganta feminina. Théo visualizou a si mesmo agredindo aquela que ele amava mais que tudo.

— Não! — Théo gritou.

Valéria se ergueu e tentou segurá-lo.

— Solte-a! — ordenou para o homem que ele fora, mas aquele protestante de barba rasa não o ouvia.

Ouvi-a engasgar, em sofrimento. Então, o homem a largou quando a percebeu desfalecer.

Enquanto Thomas olhava para suas mãos manchadas para sempre pelas trevas daquele assassinato, outra figura surgiu na proa.

— O que você fez? — indagou, em choque.

Era Charles. Era Caio.

 

“ O amor não existe ”.

O som da sua própria voz em um jardim cercado de rosas por fim o acalmou novamente.

Ao seu lado, Valéria voltou a guiá-lo.

— O que vê?

— Ela.

A palavra apaixonada fez a mulher sorrir.

— Uma nova chance — ela murmurou. — Você aproveitou essa chance?

“ Como vou conseguir pintar algo decente depois de vê-la assim? ”.

Valéria percebeu o sorriso que se alargava.

— Sim — ele respondeu. — Céus, aproveitei sim.

O semblante, subitamente, tornou-se horror.

— O que foi?

— Caio. Como eu pensava, ele está vestido com o uniforme da S.S.

— Está no campo de concentração?

— Não, estamos na França. Ele está observando um dos quadros que fiz para Esther.

“ Eu não negocio com nazistas ”.

O som seguinte fez a pele do braço de Théo se arrepiar.

— Ele se chamava Kraus. Ouvi um dos homens o chamando.

“ Minha querida amiga, não é seguro tirá-la de Paris, nesse momento. ”

— O que houve, agora, Théo? Parece assombrado.

— Pierre — explicou. — Meu amigo Pierre. Ele e Esther, nunca percebi... — murmurou. — Ele é Rafaela — completou.

— O que tem Esther e Pierre?

— Desde o instante que vi Eloise pela primeira vez, pensei que fosse minha alma gêmea. Mas, não...

— É ele?

— É ele — confirmou. — Mas, eles nunca se envolveram romanticamente. Agora, por exemplo, são cunhadas.

Valéria sorriu.

— O verdadeiro amor nem sempre é romântico. Aposto que Rafaela é uma força para Eloise, assim como Pierre deve ter sido para Esther. A conexão era pura e forte, mas sem envolvimento carnal.

Em sua mente, a imagem voltou a correr. Esther sendo levada, seu tempo na resistência, as coisas que fez para tentar chegar até ela, as vezes que conseguia espiá-la da floresta e, finalizando, quando a encontrou morta nos braços de Caio.

— Você precisa voltar — Valéria pediu. — Théo, preste atenção em minha voz.

Momentos depois ele abria os olhos. A sala da terapeuta parecia um mundo fictício, depois da realidade enfrentada em suas lembranças.

— Você descobriu o que buscava?

Levou certo tempo, mas enfim ele respondeu.

— Sim.

 


Capítulo 16

 


O recomeço


Eloise volveu o olhar para a mulher que chegava. Amanda havia recebido a chamada da amiga durante o horário de almoço, e foi até ela rapidamente.

Normalmente, quando a escritora lhe ligava, era algum pedido de ajuda. Desde que o detetive Théo surgira na vida de Eloise, as ligações cessaram, mas Amanda imaginou que alguma coisa havia ocorrido, e que agora a amiga precisava novamente dela.

— Ele mentiu para mim — a outra disse, tão logo a viu. — Disse que foi procurar trabalho, mas eu sei que não. Os telefones de Caio e de Rafaela estão desligados. Mas, eu imagino que você saiba onde o trio está.

A loira assentiu. Valéria havia ligado para ela avisando sobre a terapia que faria em Théo. Assim sendo, narrou à amiga tudo que sabia.

— Mas, você sabe... — disse, doce. — Ele apenas está buscando a verdade porque precisa dela para seguir em frente.

— Nós dois havíamos combinado que seguiríamos em frente sem remexer no passado — Eloise retrucou.

— Acho que, para Théo, o passado não envolve apenas você. Se Caio está junto nessa, é porque o que existe entre eles é forte e precisa ser esclarecido.

Quando a porta frontal abriu e o rosto de Théo surgiu, seguido pelo irmão gêmeo de Eloise e pela cunhada Rafaela, ela soube que, fosse o que estivessem buscando, eles haviam encontrado.

Assim sendo, levantou-se do sofá e ficou diante deles, aguardando as palavras.

— Você foi Esther — ele confirmou.

Não era uma surpresa. De alguma maneira, ela sabia.

— E eu fui Therron Esme.

Amanda deu um pequeno gritinho ao fundo. Era como se dissesse “Eu sabia!”.

— O que pretende com essa informação?

— Seguir em frente — disse, convicto. — Voltar a fazer o que minha alma sabe e se sente bem. Vou voltar a pintar. Sei que não posso usar o nome de Therron, mas posso construir um novo artista com o talento que está adormecido dentro de mim. — Puxou a arma da cintura, observou-a, e depois voltou-se para Rafaela. Entregou-a à mulher. — Não sou esse homem violento — afirmou. — Fui, é verdade. Em muitas vidas. Mas, quando me vi machucando você — volveu para Eloise. — Eu percebi que meus atos para não perdê-la podem me tornar um monstro.

Rafaela segurou a arma. Então, apertou o braço de Théo.

— É sua redenção, meu amigo — ela murmurou.

— Sim... — ele concordou.

Do outro lado da sala, Caio também se pronunciou.

— E minha também. Eu matei Esther, Eloise. Eu a matei.

O olhar espantado fê-lo continuar.

— Fui o comandante Kraus Fritz. Joguei o nome no google e vi algumas informações, mas preferi ignorar quase todas as notícias. Valéria, a terapeuta que ajudou Théo, me disse que essa vida é uma chance de recomeço, e é assim que eu pretendo segui-la.

Eloise caminhou até o irmão, e lhe apertou as mãos.

— Você acha que Kraus matou Esther?

— Foi isso que aconteceu — deu os ombros.

— Está enganado. Num julgamento pós Nuremberg, algumas verdades vieram à tona.

A mulher deixou-os na sala e foi até o escritório. Voltou de lá com alguns papeis, fruto de sua pesquisa.

— Quando alguns membros da S.S foram à julgamento, um dos homens... — folheou as páginas. — Becker — explanou. — Esse soldado confessou que havia matado o comandante Kraus Fritz e sua amante judia. Ele achou que isso o ajudaria a evitar a forca.

Estendeu o papel a seu irmão, que ficou nitidamente emocionado.

— Então...

— Você nunca me machucou, Caio. Apenas me protegeu.

Abraçaram-se. Enfim, toda a barreira que parecia erguida desde que aquelas visões entre nuvens surgiram, foram derrubadas.

— É um alívio — murmurou.

— Mas, tudo isso, toda essa busca, foi para descobrirem o que no fundo já sabiam? — Eloise murmurou, afastando-se deles.

— Não — Théo negou. — Havia algo entre Caio e eu que me incomodava muito, e era necessário que eu soubesse o que era...

— E? O que descobriu?

— Caio e eu — apontou. — Nós dois somos predestinados. Almas gêmeas.

Um silêncio perturbador tomou o ambiente.

— Eu não sou gay — Caio defendeu-se, deveras incomodado com a frase.

— Espiritualidade nada tem a ver com sexualidade — Amanda contrapôs.

— Exatamente — Théo confirmou. — Rafaela e Eloise também são. Em muitas vidas foram amigas, cunhadas e, na anterior a essa, Rafaela foi um médico que fez o que pôde para tentar salvar Esther das mãos da gestapo.

As mulheres sorriram uma para a outra, diante das palavras.

— Tudo começou entre nós, há muitos anos, quando deixamos que o ciúme nos separasse. Em todas as vidas, tivemos a chance de voltarmos a ficarmos unidos, mas desperdiçamos isso. Houve vidas em que fui seu pai, mas não te quis; houve vidas em que éramos irmãos, mas nos rejeitávamos. Nessa última, através de Esther, teríamos um reencontro, mas o assassinato de vocês nos impediu. Contudo, agora, nós temos outra chance. Uma chance para mudarmos tudo, para refazermos o nosso destino. Uma chance para termos paz.

Caio pestanejou. Mas, por fim, a alma interligada deles falou mais alto. Aproximaram-se e trocaram um abraço. Uma nova vida que recomeçava.

Recomeços eram sempre especiais.

 


Meses depois...

No centro oval do salão de festas, Rafaela recostou sua cabeça no ombro de Caio.

Enfim, depois de tantos anos de noivado, eles estavam se casando sobre a benção de Deus, da família e dos amigos.

Num dos cantos, Eloise sorriu.

Estava linda, num vestido rendado de rosa, os cabelos escuros presos num penteado bonito, e a pele brilhando pela expectativa que crescia em seu ventre.

— Amanda me comentou que a galeria está interessada nos meus quadros — o marido aproximou-se por trás, e cercou sua cintura com as mãos. — Enfim, parece que vão me oferecer um bom contrato.

— Eu sabia que conseguiria — ela disse com convicção.

— Agora que a família vai crescer — alisou seu ventre —, faz-se necessário que eu tenha um emprego mais sério que segurança noturno.

— Todo emprego é digno.

— Mas sou machista — ele brincou. — Quero pagar as contas de casa.

— Comigo vendendo tantos livros, acho que será meio impossível — ela brincou.

Trocaram um beijo carinhoso.

Subitamente, o olhar dela ficou triste.

— O que foi?

— Acha que Esther e Therron queriam ter filhos?

— Provavelmente — apontou. — Não tiveram a chance, mas nós temos esse tempo.

Ela apertou suas mãos e voltou a olhar o casal que dançava.

O tempo, agora, parecia apenas uma brincadeira do destino.

— Sempre vamos nos encontrar, não é? — ela indagou, num murmuro.

Ele assentiu.

Aquele vínculo jamais se quebraria.

 

 

                                                                  Josiane da Veiga

 

 

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