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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM TIRO NA ALMA / Lou Carrigan
UM TIRO NA ALMA / Lou Carrigan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

— Senhores, vou apresentar-lhes o assunto com a maior brevidade possível. Espero contar com a atenção de todos.

Os homens reunidos naquela sala da Central da CIA, em Langley, ergueram a cabeça, apagaram os cigarros e fixaram toda a sua atenção no chefe da assembleia convocada em caráter urgente, o qual havia enfim deposto os papéis que estivera lendo.

— Bem... O caso é o seguinte: temos em Boston, numa das escalas de sua volta ao mundo em viagem de estudos, o jovem príncipe de Saamadia, Omar Ibn Muza, filho mais velho e predileto do emir de Saamadia; quer dizer, o herdeiro do emirado. Completam-se agora... — consultou seu relógio de pulso — trinta e quatro horas do falecimento do velho emir, vítima de um colapso cardíaco. A respeito de seu falecimento, nossos agentes naquele país informam o seguinte...

Franziu a testa, olhou novamente os papéis e acendeu um cigarro.

Prosseguiu: — Em tais circunstâncias, certos setores descontentes de Saamadia estão se mobilizando para derrubar os Muza e encarregar-se do governo do país. Se tal fato vier a consumar-se, a situação já mais que delicada no Oriente Médio se complicará de tal modo que todos os esforços até agora realizados para a manutenção de uma paz relativa de nada terão servido. Evidentemente, uma exacerbação das hostilidades nessa parte do mundo poderia comprometer muitíssimo os Estados Unidos, considerando-se que seria possivelmente Israel o primeiro país que os revolucionários de Saamadia atacariam. Um ataque traria outro, uma represália originaria outra e o resultado seria uma cadeia de guerras que poderiam levar, finalmente, à tão temida Terceira Guerra Mundial Nem os russos nem nós desejamos semelhante coisa...

— Como podemos saber que os russos não querem isso? — perguntou alguém.

— Porque fizemos um pacto com eles.

— Com os russos? — estranhou outro alguém.

— Claro. Uma... entente cordiale. Digamos que houve um intercâmbio de informações e sugestões entre representantes nossos e dos russos. Ambas as partes chegaram à conclusão de que deve ser evitada uma guerra em Saamadia. Como os senhores bem sabem, não é a primeira vez que se faz um pacto secreto entre a Rússia e os Estados Unidos. Aliás, é fato sabido do mundo inteiro, embora nem eles nem nós o admitamos abertamente. Mas o fato real é este: fizemos um pacto para evitar essa guerra em Saamadia.

— E como faremos para evitá-la? Se o emir morreu e os descontentes estavam esperando esta oportunidade, já têm o caminho preparado... Ou não?

— Sim. Entretanto, os agentes russos e os nossos informam com toda a clareza que, se o príncipe herdeiro chegar o quanto antes a Saamadia, sua simples presença servirá para que o povo não se deixe convencer pelas promessas dos revolucionários.

— Muito bem... Então, teremos apenas que levar o príncipe de volta a seu país.

 

 

 

 

— O que não é tão fácil como parece. Nossos agentes informam que se organizou um complô mundial para assassiná-lo antes que regresse a Saamadia. Assim, sabemos que portos e aeroportos estão sendo vigiados. Querem localizar o príncipe e eliminá-lo. As informações de nossos homens são bem claras: os revolucionários, sabedores de que Omar Ibn Muza está nos Estados Unidos, revelam-se dispostos a tudo, inclusive a sabotar aviões. A ordem é clara e taxativa: o jovem príncipe não deve chegar vivo nem morto a Saamadia.

 

— Podemos levá-lo diretamente num de nossos aviões...

 

— Já se pensou nisso. Mas é um risco excessivo.

 

— Risco? Ora, vamos...

 

— Um risco terrível Nosso avião teria que chegar até Saamadia e, uma vez em céu saamadiano, quem nos garante que não saísse a recebê-lo uma esquadrilha clandestina de aparelhos revolucionários?

 

Durante uns segundos, reinou silêncio na sala parcamente iluminada. Por fim, outro dos ali reunidos perguntou: — Que dizem os russos disso?

 

— No princípio, pensamos que, sendo os russos amigos dos árabes de Saamadia, não haveria inconveniente em que uns quantos caças soviéticos estivessem esperando nosso avião para escoltá-lo até o aeroporto. Mas tal ideia foi rapidamente posta de lado, por dois motivos. Primeiro, essa escolta não implicaria segurança absoluta para o príncipe, já que, em caso de combate aéreo, o avião que o transportasse seria o alvo preferencial e talvez conseguissem derrubá-lo.

 

Segundo, a presença de aparelhos russos protegendo um avião sem insígnias não enganaria ninguém, pois todo o mundo saberia tratar-se de avião nosso. E isso seria demasiado revelador das boas relações que, em casos de apuro, podem existir entre a Rússia e os Estados Unidos.

 

Muitos dos respectivos aliados não achariam graça nenhuma nessa entente cordiale, podendo mesmo considerar-se como simples marionetes bem manejadas.

 

— E não são?

 

Houve alguns risos discretos na sala. O chefe da reunião sorriu levemente.

 

— Nós não somos políticos, senhores: somos membros do serviço de segurança americano para altos personagens estrangeiros.

 

— Enfim, que plano definitivo ficou acertado?

 

— O seguinte: os componentes do séquito do príncipe seguirão num aparelho alugado a uma linha aérea comercial.

 

Tomarão esse aparelho à noite, muito discretamente, todos juntos, e, para todos os efeitos, poder-se-á deduzir que o jovem príncipe esteja entre eles. Os revolucionários estarão à espera de tal avião nos céus de Saamadia, porém ele nunca lá chegará. Em certo aeroporto de escala os componentes do séquito se separarão e, como cidadãos particulares, regressarão a seu país. Podemos, portanto, desinteressar-nos desses cavalheiros.

 

— E o príncipe?

 

— O príncipe irá de navio — houve um murmúrio na sala. — Sim, embarcará no transatlântico “Titânia”, chegando dentro de uma semana ao Havre, onde será recebido por agentes do MVD, que desde esse momento assumirão inteira responsabilidade por sua chegada são e salvo a Saamadia, através de toda a Europa e do Oriente Médio. Assim teremos cumprido nossa parte.

 

— E os russos cumprirão a deles, sem dúvida. Temos que admitir isto a seu respeito: quando querem conservar uma vida, conservam.

 

— Esperemos que sim. E não creio que se descuidem no que concerne à sua responsabilidade neste grave assunto.

 

Além disso, dispõem na Europa de fabulosos meios de segurança, com os quais não contamos. Do Havre, poderão transportar o príncipe até a Rússia, por via aérea, depois descer até o Cáspio, sempre por território soviético, e daí, com toda a facilidade, levá-lo a Saamadia.

 

— Parece que lhes compete a parte mais fácil, não?

 

— Teoricamente, sim. Mas não estamos discriminando aqui este tipo de detalhes. É uma cooperação e cada um tem sua parte a cumprir. Eles farão a deles. Nós também temos que fazer a nossa.

 

— Sem dúvida... Mas pergunto-me se não será perigoso utilizar um navio. Quantos homens dos nossos custodiarão o príncipe durante essa viagem por mar?

 

— Nenhum.

 

O espanto emudeceu por alguns segundos todos ah reunidos. Finalmente, alguém exclamou: — Como, nenhum?! Vamos deixar esse rapaz sozinho no navio?

 

— Eu disse que não irá nenhum de nossos homens, mas não que o jovem príncipe viajará sozinho.

 

— Pode explicar-se melhor, chefe?

 

— Sim, com uma só palavra: Baby.

 

O murmúrio foi mais acentuado na sala. Soeram também alguns suspiros de alívio.

 

— Podia ter começado por aí, chefe. Que tal se agora fôssemos almoçar? Já passa de uma hora.

 

Novos murmúrios, todos de aprovação. O chefe ergueu as mãos, sorrindo.

 

— Senhores, senhores... Ainda não terminei.

 

— Ora, chefe... Para que falar mais? Se Baby está encarregada do caso, podemos ir almoçar, completamente convencidos de que não haverá guerra em Saamadia.

 

— Faz tempo que não a vemos... — disse outra voz. — Ultimamente, tem dado poucas altercações, levando-se em conta seu caráter individualista. Para falar a verdade, bem que gostaria que ela cometesse alguma de suas assombrosas... infrações. Assim, seria novamente chamada a comparecer perante o Conselho e poderíamos deliciar-nos novamente... contemplando-a.

 

Novos risos.

 

— Bom... — riu também o chefe. — Estimo que estejam todos convencidos da eficiência de Baby. Ela e miss Macguillicudy serão toda a proteção com que contará o príncipe durante a viagem.

 

— Miss... o quê?

 

— Rita Macguillicudy. É a professora de Omar Ibn Muza. Uma jovem inglesa que passou quase toda a vida em Saamadia. Sua maior virtude é que nunca chamou a atenção.

 

Nunca apareceu em jornais ou revistas. Recentemente o emir escolheu-a para ensinar inglês ao príncipe, à razão de duas aulas por semana. Sua incorporação à comitiva que acompanha Omar foi decidida à última hora. Ela é pessoa austera e não muito bonita. Como disse, nunca chamou a atenção. Será a acompanhante do príncipe no navio e, na sombra, sempre oculta, teremos Baby. É uma boa combinação, que esperamos dê resultado.

 

— Bem, com Baby presente, creio que tudo está solucionado de antemão. Uma pergunta: os russos sabem que ela está encarregada do caso?

 

— Os russos sabem apenas que vão receber o príncipe no Havre em uma semana.

 

— Ah... Isso me agrada mais. Embora tenhamos feito um pacto, não me agradaria que os soviéticos soubessem da presença de Baby nesse navio. Correm boatos de que a recompensa por sua linda cabeça foi elevada para cinco milhões de rublos. Digamos que não têm muita... simpatia por ela.

 

Novamente soaram risos.

 

Sovershenno sekretno2

 

— É só, camaradas — disse o diretor do MVD soviético, tirando uma baforada de seu longo cigarro. — Fizemos um pacto com os americanos e vamos cumpri-lo. À nossa maneira, naturalmente.

 

— Isso quer dizer que vamos jogar sujo, camarada Okof?

 

— De modo nenhum. Disse apenas que cumpriremos a parte que nos corresponde à nossa maneira. Sem jogo sujo do nenhuma espécie, entenda-se bem isto. O assunto não comporta pequenas falsetas: não nos interessa a Terceira Guerra Mundial.

 

— Tampouco aos americanos.

 

O diretor assentiu com a cabeça. Durante uns segundos, olhou a fumaça subir para o teto da sala de Decisões Internacionais, misturando-se com a dos outros cigarros.

 

— Tampouco a eles, evidentemente. E como a nenhuma das duas partes interessa a guerra, ambas jogarão com absoluta limpeza. Fez-se um pacto e, salvo por interferências de fatores imponderáveis, não seremos nós que deixaremos de cumpri-lo. Faremos jogo limpo... — suspirou, enquanto um sorriso irônico aparecia em seus lábios. — O que é uma pena!

 

— É uma pena jogar limpo? — perguntou alguém.

 

— Foi o que eu disse.

 

— Por quê? Num caso desta importância...

 

O camarada Okof fez calar com um gesto o camarada Novenko, que o olhou com a testa franzida. Ato contínuo, Okof dirigiu-se à parede e deteve-se junto a um pano que cobria algo pendurado. Quando se certificou de que a atenção de todos se fixava nele, puxou o pano. Um murmúrio percorreu a sala quando foi visto o que o pano ocultava: a figura em grande tamanho de uma mulher de formas esculturais, toda coberta por aderente malha negra.

 

Mais propriamente uma silhueta. Uma sombra. A figura tinha longos cabelos ondulados. No centro do rosto, onde deveriam estar os olhos, o nariz e a boca, via-se em tinta vermelha um grande ponto de interrogação.

 

— Imagino que todos saibam de quem é este... retrato. Também sabemos que se trata de uma mulher muito bonita.

 

Um murmúrio surdo, quase colérico, encheu a sala. O diretor tomou a sorrir com ironia.

 

— Os altos chefes resolveram aumentar a recompensa por ela: cinco milhões de rublos. Uma fortuna... Nunca avaliamos tanto a cabeça de um agente inimigo.

 

— Essa recompensa nunca será paga — murmurou um dos homens ali reunidos. — Já devíamos estar convencidos de que é impossível capturar a agente Baby. É astuta, exímia no manejo de armas, pode também matar um homem só com as mãos, possui uma inteligência extraordinariamente lúcida... Mas, sobretudo parece ter uma sorte fantástica.

 

— A sorte pode terminar qualquer dia, camarada Ivanovitch.

 

— Mas Baby continuará sendo inteligente, astuta e perigosa como cem panteras juntas. Já em muitas ocasiões tentamos eliminá-la e...

 

— Um momento — interrompeu outro. — A que vem isto? Que tem a ver a agente Baby com o assunto de que estamos falando?

 

O diretor olhou-o fixamente.

 

— Ela acompanhará o príncipe Omar Ibn Muza.

 

Houve uma exclamação coletiva e, em seguida, soou uma voz excitada: — Há certeza disso?

 

— Absoluta.

 

— Absoluta?

 

— Quero dizer que os Estados Unidos, ou mais exatamente a CIA, que se arrisca a essa jogada de transportar o príncipe num navio de passageiros, não incumbirá da responsabilidade de cuidar de personagem tão importante um agente de segunda ordem. Nem sequer de primeira... A CIA vai utilizar o seu melhor elemento. Não esqueçamos que o fracasso desta missão poderia significar uma guerra mundial.

 

Portanto, parece absolutamente certa a intervenção de Baby.

 

Soou uma voz: — E o que foi que pensamos a respeito?

 

— Identificá-la durante a travessia do “Titânia”. Para tal fim, também nós vamos utilizar o nosso melhor agente.

 

— Está-se referindo a Val Angelof?

 

— Estou. Não sei de nenhum outro capaz de tal façanha.

 

Houve uma troca de olhares esperançosos entre os homens ali reunidos.

 

— Bem... Suponhamos que Angelof identifique Baby.

 

Tem ordem de matá-la?

 

— Claro que não! Trata-se de um trabalho conjunto russo-americano no qual o jogo limpo será a tônica mais relevante. Nada de mortes. Fez-se um pacto e ele será cumprido. Entretanto, nem sequer a própria Baby poderia censurar-nos pelo fato de um de nossos agentes aproveitar a oportunidade para averiguar seu nome verdadeiro, seu endereço e obter algumas fotos que, mais adiante, pudessem servir a nossos homens nos Estados Unidos para localizá-la e eliminá-la. Jogaremos limpo nesta missão. Mais tarde, porém, dentro de oito, dez ou quinze dias... Bom: creio que nosso tesoureiro já pode começar a contar os cinco milhões de rublos oferecidos pela cabeça da agente Baby. Nós a teremos aqui, sobre esta mesa, antes de decorrido um mês. É só, camaradas.

 

1 Em inglês, supersecreto. (N. T.)

2 Em russo, supersecreto. (N. T.)

 

Os simpáticos rapazes de Moscou

 

— Mas como estou bonita esta manhã... Não concorda comigo, tio Charlie? Viu alguma vez uma cabecinha mais linda que a minha?

 

— Não... — resmungou Pitzer. — Mas tome muito cuidado com ela, Brigitte. Sua cotação subiu para cinco milhões de rublos, entre os russos.

 

Brigitte Montfort, ou simplesmente Baby, a mais inteligente, astuta e sensacional espiã de todos os tempos, deixou de contemplar-se no espelho do living de seu formidável apartamento da Quinta Avenida, sobre o Central Park de Nova Iorque. Virou-se para Charles Pitzer, ainda mantendo no alto seus magníficos cabelos negros, num delicioso gesto de coqueteria. Seus maravilhosos olhos azuis brilharam mais ainda, de puro júbilo.

 

— É verdade? — exclamou. — Como são amáveis esses rapazes de Moscou!

 

— Não é coisa para brincadeira, Brigitte. Os russos não sossegarão enquanto sua cabeça não estiver sobre a mesa da sala de Decisões Internacionais do MVD.

 

— Com o que demonstrariam possuir muito bom gosto — sorriu ela. — Qualidade que geralmente não é atribuída aos soviéticos. Mas é certo esse aumento do preço de minha cabeça?

 

— Parece ser.

 

— Muito amáveis, repito. Não deixarei de enviar-lhes uma carta de agradecimento na primeira oportunidade.

 

— Vai deixar de brincadeira, Brigitte?

 

— Não estou brincando, tio Charlie. Vejamos... Posso mandar-lhes uma carta com as seguintes palavras, mais ou menos: “Profundamente comovida pela generosa reavaliação do preço de minha cabeça, venho expressar-lhes meu reconhecimento. Considero, entretanto, a recompensa de cinco milhões de rublos ainda insuficiente, tendo em vista minha beleza. Não podem chegar a dez milhões? Um cordial “alô” aos meus colegas de ação. Assinado: Baby. Que lhe parecer — Não está mal. Espero que não me peça para enviar essa carta ao MVD.

 

— Nada disso. Eu a entregarei pessoalmente ao caçador.

 

— A quem?

 

— Ao caçador... Ao homem que enviarem para me caçar durante a travessia.

 

— Não diga tolices. Este assunto é demasiado sério: não haverá jogo sujo.

 

— Eu sei. Jogo limpo no que se refere ao transporte desse jovem árabe. Mas... Ah, querido tio Charlie, como devem estar assanhados em Moscou, pensando que vão ter Baby, pelo menos durante uma semana, ao alcance de uma câmara!

 

Algumas fotos, uns quantos dados e, logo em seguida, zás!

 

Lá vai a minha linda cabecinha para a Rússia.

 

Pitzer empalideceu.

 

— Não creio que façam isso...

 

— Claro... Estou apenas brincando. Sabe, tio Charlie, que fiquei muito zangada com você?

 

— Comigo? Que lhe fiz esta vez?

 

— A gente nunca para de aprender. Devia ter pedido sua ficha na Central, para lê-la com atenção... Por que nunca me disse que possuía e Medalha de Honra do Congresso?

 

— Oh, bem... Não sei... — gaguejou Pitzer.

 

— Isso foi há tanto tempo...

 

— Bonita resposta! Então porque já existo há muitos anos vou esquecer que nasci?

 

— Puxa, você me atordoa com esses intempestivos desvios na conversa... Além do que, não é tão velha... Quantos anos completou? Vinte e cinco?

 

— Tio Charlie! Você acaba de me fazer o melhor dos cumprimentos! Ganhou um magnífico beijo!

 

Brigitte sentou-te no sofá, junto a Pitzer, com um grande revolutear de seu estupendo deshabillée, lançou-lhe os braços ao pescoço e, antes que ele pudesse reagir, beijou-o nos lábios.

 

— Mmm...! Como estou orgulhosa de você, tio Charlie! Sabe! Eu imaginava que não passasse de um velhote resmungão, sempre trabalhando na sombra, lúgubre como um cipreste, calculador, egoísta sem nunca arriscar nada... E acontece que possui há anos a Medalha de Honra do Congresso! Como fui má! E como você é bravo, tio Charlie...! Outro beijo!

 

Tornou a beijá-lo com exagerada efusão. Depois olhou-o, sorridente. Pitzer estava arquejante e gotas de suor orvalhavam sua testa. Demorou quase um minuto a reagir.

 

— Pe-pelo amor de Deus, Brigitte... Não torne a fazer isso!

 

— Por quê? Será que lhe causo repugnância?

 

— Repugnância! — exclamou Pitzer. — Você está sempre zombando de mim e... e isso começa a me encher...

 

— Mas, tio Charlie, eu o admiro e estou orgulhosa, repito...

 

— Chega de gozação! Se tenho uma medalha, você tem outra e mereceria ter cem. De modo que é melhor mudarmos de assunto e falarmos seriamente...

 

— Mas, homem, não fique assim.

 

— Fico como quiser! E faça o favor de escutar-me, pois para isso vim. Está claro?

 

— Sou toda ouvidos — riu Brigitte. — Já não quer mais meus beijos?

 

— Se quiser beijar-me, terá que ser sob minhas condições!

 

— Hum... Nesse caso, será mesmo melhor mudarmos de assunto. Você é um bocado sem-vergonha, tio Charlie.

 

— Eu sou um bocado sem-vergonha! Sou é um homem de carne e osso. E, além disso, sou seu chefe direto em Nova Iorque, de modo que...

 

— De modo que tem todo o direito de gritar em minha casa, para que todos os vizinhos saibam que sou uma espiã.

 

Pitzer mordeu os lábios e baixou a voz. Falou num sussurro: — Está bem... Como lhe ia dizendo, esse rapaz tem que chegar são e salvo ao Havre, onde... Com todos os diabos!

 

Por que estou falando assim, se este apartamento e à prova de som?

 

— Não sei. Mas prefiro seus sussurros aos seus gritos.

 

— Bom, eu estava dizendo...

 

— Ora, vamos, tio Charlie: você já explicou tudo. Desde quando tem que repetir suas instruções à Baby?

 

O chefe do Setor Nova Iorque da CIA lançou uma imprecação, para logo em seguida suspirar, derrotado.

 

— De acordo. Você tem as passagens, o endereço dessa casa em Boston, todos os dados... Vá pensando num sistema para levar esse rapaz e sua professora ao navio, de Boston ao cais de Nova Iorque...

 

— Já pensei.

 

— Já pen... Mas se acabo de explicar o assunto!

 

— Eu sei. Entretanto, já está tudo pensado.

 

— Com um milhão de...! Como vai fazer?

 

— Entendo que sou a única guarda-costas desse jovem e que tenho carta branca.

 

— Já faz tempo que você tem carta branca, não? — resmungou Pitzer.

 

— O que prova que os chefões da Central, finalmente, acabaram por conhecer-me. De acordo, tio Charlie: eu lhe mandarei um postal quando chegarmos ao Havre.

 

— Ma-mas... eu deveria saber... Só lhe dei as passagens e disse-lhe que o navio é o “Titânia”, que zarpa amanhã às oito...

 

— É suficiente. Tem notícias de seu amigo Carmody, o outro valoroso cavalheiro?3

 

— Sim, telefonou-me. Ainda não saíram de seu assombroso, ele e a esposa. Perguntou que espécie de mulher é você.

 

— Oh! E que lhe respondeu?

 

— Que ainda não pudera averiguar isso.

 

— Por Deus! Você não foi amável, tio Charlie. Devia dizer-lhe que eu era uma jovem inteligente, amável, carinhosa, além de belíssima... Ou não?

 

— Bom... Isso ele mesmo pôde verificar.

 

— Santo Deus, você está maravilhoso hoje... Menos os gritos de há pouco e sua grosseira resposta. Adeus, tio Charlie.

 

— Adeus?

 

— Sim. Você vai embora e eu começo a preparar minha próxima missão. Okay?

 

— Está bem... Mas pense no que lhe disse, Brigitte. Os russos não deixarão passar esta oportunidade. Devem ter compreendido que Baby intervirá no assunto, de modo que...

 

— De modo que, como sempre acontece quando pretendem molestar-me, eles só conseguirão bancar os palhaços. Bom, mais uma vez adeus... Ah! — ela olhou severamente para Pitzer. — Suponho que me terá instalado no camarote mais luxuoso deste transatlântico, tio Charlie.

 

— Claro. Seu camarote é contíguo ao do príncipe. Do outro lado está o de miss Macguillicudy, a professora.

 

— De acordo. Vou acompanhá-lo até a porta.

 

Pouco depois, ainda sorrindo, Brigitte Montfort regressava ao living. Mas o sorriso logo desapareceu.

 

Sentou-se no sofá, pensativa... e preocupada. A missão não era exatamente fácil, embora não tivesse querido atribuir-lhe maior importância diante de Pitzer. Não. Nada tinha de fácil.

 

Mas, enfim, se lhe haviam dito que devia levar o príncipe Omar Ibn Muza são e salvo ao Havre, assim faria .

 

Naturalmente.

 

E que se apresentasse quem fosse capaz de impedir isso.

 

O homem deslizava na escuridão da noite, por entre os arbustos, como uma sombra a mais no frondoso jardim daquela mansão dos arredores de Boston. Por fim, chegou o suficientemente perto para ver o primeiro dos guardas, o que estava diante do portão. Um homenzarrão de ombros largos.

 

 

Dois minutos mais tarde, viu o outro, não sem dificuldade, pois confundia-se com um maciço de flores.

 

Rodeou a casa, pelo lado esquerdo, onde estava o terraço que dava para o jardim. E lá, na extremidade do terraço, viu ainda o terceiro homem. Igual aos outros: alto, robusto, vigilante... Finas gotas de suor umedeceram a testa do sigiloso intruso, mas a pistola permaneceu firme em sua mão e em seu rosto mantinha-se inalterável a expressão resoluta, decidida.

 

Finalmente, chegou tão perto da piscina que só um estreito canteiro florido o separava da borda. Esteve uns segundos olhando para todos os lados, especialmente o atlético guarda do outro extremo do terraço. Então, aproveitando a luz das amplas porta-janelas protegidas por brancas cortinas, que chegava até ali, olhou seu relógio, com certa impaciência. Franziu a testa, endireitou-se e ficou atrás de um grosso plátano, algumas de cujas folhas já tinham caído, à aproximação do outono. Um inconveniente, pois se não se movesse com muito cuidado poderia fazê-las ranger sob seus pés. Mas não... Já tinha sido suficientemente cauteloso, estava certo. Além disso, sentia-se orgulhoso de seu sigilo: decerto não havia ninguém que pudesse caminhar tão silenciosamente sobre aquelas folhas...

 

Algo brilhante passou de súbito pela frente de seus olhos e, ato contínuo, ele sentiu na garganta como que uma brusca facada, seca, fortíssima. Emitiu um gemido rouco e quis virar-se para apontar a pistola...

 

— Quieto... — sussurrou uma voz junto a seu ouvido. — Quieto, ou morrerá.

 

Era uma voz suave. Mas o homem devia ter captado claramente a autenticidade da ameaça contida naquelas três palavras. Entretanto, o que fez foi uma nova tentativa para virar-se, começando a torcer o braço para trás, disposto a atirar... Imediatamente, o fino arame de aço apertou-se mais em tomo de seu pescoço e a voz de veludo tomou a soar: — Deixe cair a pistola.

 

Um arquejar rouco do intruso capturado...

 

O estrangulamento se estava produzindo lentamente, muito bem controlado. Tão bem controlado e tão seguro ao mesmo tempo, que também isto devia ter sido revelador para o intruso.

 

Seria um homem muito teimoso, ou talvez julgasse que não se devia assustar com as ameaças de uma mulher...

 

Talvez fosse isso. De qualquer modo, insistiu em virar-se, movendo bruscamente o braço, para disparar por cima do ombro. Sentiu a violenta pressão do arame, enquanto era puxado irresistivelmente para trás. Caiu de costas sobre a pessoa que o estava estrangulando, que por sua vez tinha-se deixado tombar de costas sobre as folhas secas para, ato contínuo, passar as pernas por sua cintura, imobilizando-o por completo.

 

Plop.

 

Plop.

 

Os dois tiros dados pelo homem soaram como leves estalidos no silêncio do jardim. As balas foram uma para o céu, outra passou quase tocando o telhado da casa...

 

— Pela última vez: solte a pistola! — murmurou a voz feminina.

 

O homem tentou ainda desprender-se daquela criatura que o dominava pelas costas... Tentou-o com todas as suas forças, torcendo novamente o braço a fim de atirar para trás...

 

Plop.

 

A terceira bala cravou-se no chão, muito perto de ambos, e, animado por este relativo êxito, o intruso tentou novamente disparar por cima do ombro.

 

Já não houve mais avisos: o arame de aço acabou de incrustar-se em seu pescoço e, ato continuo, seus olhos se encheram de uma escuridão muito mais densa que a da noite.

 

A escuridão total, a escuridão da morte, que estava chegando rapidamente.

 

— Aaaggg...

 

O gemido rouco foi cortado de chofre. Durante uns segundos, os olhos arregalados do homem pareceram fixar-se nas estrelas, enquanto sua língua pendente começava a inchar de um modo incrível e repugnante. Súbito ele deu um salto: foi simplesmente atirado para um lado pela mulher sobre a qual estava estendido de costas. Esta levantou-se, devagar, olhando para todos os lados.

 

Nem uma só folha seca estalou quando os pequenos pés deslizaram por entre elas. Uma delicada mão estendeu-se um instante, levantando algo do chão... uma pequena maleta.

 

Depois, sempre em silêncio, a vencedora daquela surda e trágica peleja dirigiu-se para o terraço, pela extremidade oposta. Chegou rente aos maciços de flores e surgiu em cheio à luz que vinha da casa, arrastando um pouco os pés.

 

Ato contínuo, o homem que ali estava de vigia virou-se para lá, enquanto sua mão direita sacava um revólver da funda axilar, em gesto hábil.

 

— Quem está aí? — perguntou com a voz crispada.

 

A sombra materializou-se diante dele, muito perto, de súbito, forçando-o a um quase cômico sobressalto. A voz feminina anunciou: — A espiã mais bonita do mundo.

 

— Não se mova e levante as mãos!

 

A recém-chegada obedeceu. Ficou claramente visível a forma de sua maleta, pendendo de uma das mãos. O vigia aproximou-se e, à claridade difusa que vinha das portas-janelas, contemplou-a durante uns segundos. Captou seu adorável sorriso, o brilho de seus olhos maravilhosos...

 

— Baby! — exclamou.

 

— Boa-noite, Johnny. Tenho um presente para você.

 

— Um presente?

 

— Está entre aqueles arbustos... — indicou-os com um dedo. — Do outro lado da piscina.

 

— Que espécie de presente?

 

— Um defunto. Quer ir buscá-lo, por favor, Johnny?

 

O agente da CIA, Seção de Segurança, passou a língua pelos lábios. Súbito, sacou uma radinho do bolso, acionou-o e disse: — Ela chegou. No terraço da piscina.

 

Guardou o rádio e o revólver, depois se dirigiu para a piscina. Rodeou-a e desapareceu entre os floridos arbustos do outro lado. Enquanto isso, outro homem chegava da frente da casa, caminhando apressado. E, ao mesmo tempo, uma das portas-janelas do terraço se abria, dando passagem a uma mulher, que se encaminhou para os degraus de tijolos vermelhos. Deteve-se em seco ao ver o homem que se aproximava pela esquerda, e justamente então, ouviu a voz: — Boa-noite, miss Macguillicudy.

 

A mulher virou-se, com um estremecimento, para a borda do terraço. Olhos muito abertos, contemplou a jovem de cabelos negros que lhe sorria amistosamente. Usava um vestido preto, simples, próprio para não se destacar na escuridão.

 

— Quem... quem é você...?

 

Naquele momento o homem que viera da frente da casa chegava junto a elas. Olhou para Rita Macguillicudy com o cenho carregado, mas em seguida dedicou sua atenção e um amplo sorriso à também sorridente Brigitte.

 

— Estávamos à sua espera — disse. — Fez boa viagem?

 

— Boa e curta, Johnny, obrigada. Tudo bem por aqui?

 

— Até agora, sim. E Ste... Johnny, meu companheiro?

 

Baby indicou o outro lado da piscina, onde aparecia então o outro agente, trazendo ao ombro o corpo de um homem. Durante uns segundos, os três ficaram em silêncio, vendo como os braços do cadáver balançavam a cada passo do homem que o transportava.

 

— Que aconteceu? — perguntou Johnny, por fim.

 

— Quando cheguei, tive a ideia de verificar a eficácia do seu sistema de segurança. E parece que não é eficaz.

 

— Esse homem não teria podido entrar na casa.

 

— Claro. Mas estava o bastante próximo para lançar uma granada por qualquer janela, não acha? Ou para atirar contra miss Macguillicudy, que cometeu a imprudência de sair para o ar livre.

 

Johnny olhou sério para a professora do príncipe.

 

— Eu disse bem claramente a miss Macguillicudy que nem ela nem Ornar Ibn Muza deviam sair da casa, ou colocar-se diante de uma das janelas.

 

Brigitte olhou amavelmente para a inglesa.

 

— Está vendo, miss Macguillicudy? Não devia ter saído.

 

— Eu... só queria... Como é de noite, pensei que... que não houvesse perigo...

 

O outro Johnny chegou, carregado com o cadáver. Olhou para Brigitte.

 

— Onde deixo o “pacote”? — perguntou.

 

— O príncipe está lá em cima, dormindo? — quis saber Baby.

 

— Está... — murmurou Rita Macguillicudy. — Já faz tempo que se recolheu.

 

— Então, leve o “pacote” para dentro, Johnny. Vamos ver se conseguimos descobrir sua identidade.

 

— Descobriríamos mais coisas se ele estivesse vivo.

 

— Eu sei. Mas se este homem ainda estivesse vivo, a morta seria eu. Tentei poupá-lo, mas era um teimoso.

 

Entremos, miss Macguillicudy.

 

Segurou-a por um braço e entraram as duas em primeiro lugar. O agente que transportava o cadáver seguiu-as, enquanto o outro, utilizando seu rádio de bolso, dava ordens no sentido de que fossem extremadas as precauções.

 

Dentro do grande living, já em plena luz, Brigitte contemplava com expressão amável a professora, que não podia desviar os olhos do cadáver. Dominava-se bastante bem, mas suas mãos tremiam e estava intensamente pálida.

 

— Tranquilize-se — sugeriu-lhe. — A partir deste momento, pode considerar-se definitivamente a salvo, bem como o príncipe. Não é verdade, Johnny?

 

— Eu diria que sim — sorriu o agente. — Diabo, eu estava morrendo de vontade de fumar. Posso fazê-lo agora, antes de voltar ao jardim?

 

— Só um cigarrinho, Johnny.

 

Rita Macguillicudy olhava-os com expressão de espanto.

 

Era uma mulher de pouco mais de trinta e cinco anos, estatura mediana, magra, destituída de seios e quadris. Usava óculos redondos, parecia nunca ter-se maquilado na vida e tinha os cabelos castanhos presos em austero coque, sobre a nuca. Com seus olhos cinzentos, seu aspecto quase masculino, seus sapatões, seus lábios secos e apertados, nada tinha de uma criatura encantadora. Parecia um retrato da clássica, séria, severa preceptora inglesa.

 

— Pode crer que não somos uns monstros... — sorriu Baby. — Estamos apenas fazendo nosso trabalho, miss Macguillicudy.

 

Esta a olhou, espantada.

 

— Oh, eu... eu não estava pensando isso...

 

— Não? Pois tanto melhor. Johnny, dê-lhe um cigarro, para vermos se se tranquiliza um pouco.

 

A professora ergueu o queixo e seus lábios se apertaram mais.

 

— Eu não fumo — disse energicamente.

 

— Pois eu sim — Brigitte acendeu um cigarro e olhou o homem morto, que já estava sendo revistado pelo Johnny que viera após as ordens pelo rádio. — Algo interessante?

 

— Hum... Suponho que tenha reparado tratar-se de um árabe. E aqui temos seus documentos: Mustafá Dirama — ergueu a cabeça e sorriu. — De Saamadia, naturalmente.

 

Vejamos... Dinheiro nosso, cigarros... O comum. A pistola é de fabricação russa.

 

— Bah... — sorriu Brigitte. — Há centenas, milhares de pistolas russas e americanas espalhadas pelo mundo. Isso não significa nada.

 

— Também acho... Upa! — Johnny lançou a exclamação depois de dar uma olhadela a um papel extraído da carteira do tal Mustafá Dirama. — Isto sim, é interessante!

 

Estendeu o papel a Brigitte, que o olhou e sorriu com ironia.

 

— Um cheque ao portador contra um banco suíço, de cem mil dólares.

 

— Bonita quantia — sorriu também Johnny I.

 

— Diabo, a isso chamo eu pagar bons preços... Que tal se repartirmos entre nós esse dinheiro?

 

— Volte para fora — sorriu Brigitte. — Logo nos iremos daqui, mas não descuide a vigilância.

 

— Vamos partir já? — perguntou Rita Macguillicudy.

 

— Sim. Eu vim com a intenção de retirá-los desta casa, e agora há mais motivos para isso, pois já foram localizados.

 

Tem toda a bagagem pronta, miss Macguillicudy?

 

— Tenho sim... claro...

 

— Johnny, ajude-a levá-la para o carro. Acorde o príncipe, miss Macguillicudy, e preparem-se ambos para partir dentro de dez minutos.

 

— Mas... para onde iremos? O “Titânia” só zarpará amanhã às oito...

 

— Não se preocupe por esses detalhes, que correm por minha conta.

 

A professora olhou para Johnny, como esperando que este revogasse a ordem da bela espiã, mas naturalmente isso não aconteceu. Pelo contrário, o agente de segurança dava a impressão de que já considerava todo o mal como coisa do passado.

 

— Bem... Vou acordar Sua Alteza...

 

— Eu me ocuparei da bagagem — disse Johnny.

 

E foi atrás da professora, após piscar um olho para Brigitte, que lhe retribuiu a piscadela, divertida.

 

Dez minutos mais tarde, miss Macguillicudy reaparecia no living acompanhada do sonolento Omar Ibn Muza, cujos grandes olhos escuros fixaram-se admirativos em Brigitte, que parecia não se dar conta de sua presença. Estava sentada numa poltrona, com um cigarro entre os dedos, contemplando o cadáver de Mustafá Dirama. A professora pigarreou e ela ergueu a cabeça, lentamente. Sorriu ao ver o esbelto rapazola de doze anos, bonitas feições e cabelos encaracolados, que a olhava tão fixamente. Levantou-se e caminhou para ele. Fez uma leve, graciosa inclinação de cabeça, sempre sorrindo.

 

— Lamento tê-lo acordado, Alteza.

 

— Isso não importa, se for para eu chegar o quanto antes ao meu país, miss.

 

— Obrigado. Bom, receio que não lhe seja possível chegar lá muito depressa. Achamos que um avião seria perigoso, por isso teremos que viajar de navio.

 

— Já fui informado disso por miss Macguillicudy. Pode me dizer quem é?

 

— Bem... Digamos que sou sua escolta pessoal, Alteza.

 

Omar Ibn Muza pestanejou.

 

— Sozinha?

 

— Assim é, Alteza. Isso lhe causa temor?

 

O rapazola ergueu orgulhosamente a cabeça.

 

— Nada me causa temor — afirmou.

 

— Ótimo. Creio que...

 

— Mas causa temor a mim — cortou Rita Macguillicudy.

 

— Não creio que uma jovem sozinha seja a escolta adequada. Considerando...

 

— Miss Macguillicudy: Sua Alteza viajará comigo com tanta segurança como se estivesse em seu palácio de Saamadia. Posso garantir-lhe que estarei tão perto dele, durante todo o tempo, que para atentar contra sua vida terão que passar por cima de meu cadáver. Está claro?

 

— Não sei... Eu... eu pensava que, se nos encontraram aqui, saberão também que viajaremos pelo “Titânia”...

 

— Já me dei conta de que os inimigos do príncipe sabem muitas coisas. Mas isso não importa. Em primeiro lugar, iremos agora a um local onde ambos receberão passaportes novos. Em segundo, eu jamais falhei numa missão.

 

— Eu não a quis ofender... — tentou sorrir conciliatoriamente a professora. — Minha intenção... Bom...

 

Brigitte deixou de contemplar os dois dentes de ouro que a inglesa tinha deixado ver em sua tentativa de sorriso; agora olhava a verruga que sobressaía a um lado de seu pescoço.

 

Decididamente, era uma mulher bastante feia.

 

— Compreendo qual é sua intenção — disse em tom amável — Mas insisto em que já não se deve preocupar pela segurança de Sua Alteza, que fica sob minha proteção direta.

 

Com isso e a troca de nomes, tudo irá bem. Amanhã, ao embarcar no “Titânia”, Sua Alteza se chamará Pepito Fernández, natural de Cádiz, Espanha. Pode passar muito bem por um jovem espanhol do sul. Tudo está previsto, asseguro-lhe.

 

— Bem... E eu? Como me chamarei? Porque se eu não trocar de nome...

 

— Oh, também pensei nisso, naturalmente. Seu nome será Hortense Lamb, inglesa, pois tentar fazê-la passar por uma espanhola, parece-me que seria levar as coisas demasiado longe. Bem... — consultou seu reloginho. — Creio que meus amigos de Nova Iorque devem ter os passaportes prontos. Só faltará colocar neles as fotografias, por isso vamos fotografar-nos. De acordo, Alteza?

 

— Ainda não me disse qual é o seu nome — reclamou o príncipe.

 

— O meu? Oh... Vossa Alteza pode chamar-me de “Miss Paz”, daqui por diante.

 

— Miss Paz?

 

— Exato — riu Baby. — Então: em marcha?

 

3 Ver UM PASSO, OUTRO PASSO, número 138 desta coleção. (N. T.)

 

Five o’clock tea...

 

Às oito em ponto da manhã seguinte, o “Titânia” zarpava de Nova Iorque rumo à Europa. E, possivelmente, o jovem Pepito Fernández e sua acompanhante, miss Hortense Lamb, foram os dois únicos passageiros que não estavam na coberta quando o transatlântico passou relativamente perto da Estátua da Liberdade, recebendo esta o alegre adeus de centenas de lenços que se agitavam para ela, já perdidos de vista os familiares e amigos que tinham ficado no cais.

 

Possivelmente, também, miss Lamb e o jovem Pepito foram os únicos passageiros que, durante os três primeiros dias de viagem, quase não saíram de seus respectivos camarotes, nem sequer para as refeições, que eram levadas ao do jovem Pepito, onde passava o dia lendo, ouvindo música, conversando sobre lugares exóticos no mundo, ou vendo televisão em circuito fechado.

 

Até que, finalmente, na tarde do quarto dia miss Lamb pôs de lado o livro espanhol que estivara lendo em voz alta para o interessadíssimo Pepito.

 

— Que há? — perguntou este.

 

— Nada de importância, Pepito — miss Lamb, tirou os óculos e limpou cuidadosamente suas lentes com um lenço rendado. — Só que começo a ter vontade de dar um passeio pelo tombadilho.

 

— Oh, compreendo... Eu também gostaria...

 

— Entretanto, isso não pode ser.

 

— Acho que estamos tomando precauções excessivas, miss Lamb. Já viajamos há quatro dias e nada aconteceu.

 

— Sim... Uma viagem tranquila. Você gostaria de se chamar Pepito?

 

— Não muito — sorriu o rapazola. — Mas gosto quando lê para mim em espanhol. Já vou entendendo muitas coisas.

 

— Mas não as suficientes para poder se passar por espanhol... Não esqueça que se alguém lhe falar, ainda que seja o camareiro que vem nos trazer as refeições, deve responder sempre em inglês. Sempre. Não importa o que lhe digam. Se for necessária uma explicação, eu a darei.

 

— Que explicação? A de que meus pais querem que eu aprenda bem depressa o inglês e por isso só fale nesta língua?

 

— Exatamente. Bem, creio que vou sair por uns minutos.

 

— Não posso ir também?

 

— De maneira nenhuma. Ficará aqui, com a porta bem fechada, e não abrirá para ninguém. Como se não estivesse. Mas se de qualquer modo alguém conseguir entrar, já sabe o que deve fazer.

 

— Gostaria de dar um passeio...

 

— Sinto muito, acredite. Voltarei logo que puder.

 

— Você é uma egoísta — murmurou o rapazola.

 

Hortense Lamb, que já se encaminhava para a porta, virou-se e olhou-o sorridente, mostrando seus dois dentes de ouro.

 

— Quanto a isso, não tenha dúvida — concordou.

 

Saiu ao corredor, esperou até ouvir Pepito fechar a porta por dentro, depois se afastou em direção à escada que levava ao convés principal, balançando seu guarda-chuva preto.

 

Parecia um soldado com seu fuzil, andando em passos firmes, uma expressão seca no rosto feioso, como se desaprovasse tudo, Subiu ao convés e estremeceu ao receber a fresca lufada do ar livre. Eram apenas cinco horas da tarde, mas já parecia noite. O céu estava coberto de espessas nuvens cinzentas. Ao redor do barco, crespas ondas franjadas de branco nasciam e morriam continuamente.

 

— Brrr...! — exclamou a meia voz. — Não vale a pena estar aqui.

 

Meteu-se na galeria envidraçada, onde em cadeiras extensíveis algumas pessoas liam pachorrentamente, enquanto outras olhavam o mar e outras conversavam em tom discreto. Quando se dirigiu para o bar, alguns olhares nela se fixaram e houve alguns sorrisos entre divertidos e comiserativos. Mas, pisando firme com seus grossos sapatões, a professora continuou sua marcha, aparentemente alheia a tudo. Já devia estar acostumada a ser feia, ter uma verruga no pescoço, dois dentes de ouro e pernas que certamente não mereciam um segundo olhar. Como se isto ainda fosse pouco, com sua expressão quase hostil, não era provável que alguém se desse ao incômodo de abordá-la.

 

Entrou no bar, situado no fim do convés principal, e foi diretamente a uma mesinha junto à parede toda de vidro.

 

Durante uns segundos, esteve contemplando a larga esteira branca que o “Titânia” ia deixando à sua passagem.

 

— Às suas ordens.

 

Hortense Lamb olhou o garçom, pestanejou e disse: — Chá, por favor. Só.

 

— Pois não.

 

Alguns dos ocupantes do bar tinham-na olhado, mas logo se desinteressaram de sua pessoa. Ao balcão havia um ruidoso grupo de jovens, que riam alegremente, tomando Coca-Cola e coisas parecidas. Gente sadia, divertida, elegante, mas que mereceu o olhar reprovador da professora, que voltou novamente seus olhos para o mar.

 

Pouco depois o garçom trouxe-lhe o chá. Ela consultou seu reloginho. Ah: cinco em ponto, five o’clock tea... Tomou um gole curto, enquanto seus olhos voltavam-se para a porta.

 

Naquele momento entrava um homem, que pareceu deixá-la momentaneamente petrificada: mais de metro e oitenta de altura, louro, olhos azuis, rosto simpático e cheio de sardas, queixo forte, expressão sorridente... Ninguém deixou de olhá-lo, sobretudo as mulheres, e inclusive as garotas que estavam junto ao balcão.

 

O espadaúdo, bonito e simpático indivíduo dirigiu-se a uma mesa contígua à de Hortense Lamb, olhou-a, sorriu-lhe como se a conhecesse e sentou-se. Trazia um grande bloco, que deixou sobre a mesa. Esfregou as mãos, sacou dois lápis do bolso e olhou com enorme satisfação para o mar.

 

Quando o garçom aproximou-se, já estava lançando rápidas linhas sobre uma folha do bloco.

 

Miss Lamb ouviu perfeitamente seu pedido.

 

— Pernod sur des glaçons.

 

— Oui, monsieur.

 

O garçom afastou-se e o formidável personagem, assobiando baixinho, tornou a dedicar sua atenção ao oceano e ao bloco, segundo parecia. Súbito, levantou a cabeça, captou o olhar severo de Hortense Lamb e deixou de assobiar, ficando com o lápis no alto.

 

— Pardon — murmurou.

 

Olhou-a amavelmente, mas a inglesa virou a cabeça, olhando também para o mar. O garçom chegou com o pernod sobre o gelo.

 

— Merci.

 

Tomou um gole, olhou novamente para miss Lamb, olhou o que estivera desenhando até então e franziu a testa. Com um movimento resoluto, virou aquela folha, deixando outra em branco diante de si. Começou a mover o lápis, com uma velocidade espantosa, dirigindo frequentes olhares à professora, que aparentemente o ignorava, concentrando toda a sua atenção no mar. Uma pena que já fosse outubro.

 

Aquela mesma viagem, feita no verão, teria sido maravilhosa.

 

— Madame...

 

A inglesa virou bruscamente a cabeça ao ouvir a voz tão próxima. Olhou, como sobressaltada.

 

O enorme personagem agora à sua frente, tendo nos lábios um sorriso de simpatia irresistível.

 

— Que... que deseja...? — perguntou em sua língua.

 

— Oh, uma súdita britânica, claro... — falava o inglês perfeitamente, embora com certo sotaque francês. — Aceitaria um presente meu, senhora?

 

Hortense contraiu severamente as sobrancelhas.

 

— Senhorita. — esclareceu. — E não aceito presentes de ninguém, senhor.

 

O gigantesco atleta pareceu ruborizar-se. Ficou sobre um pé, depois sobre o outro...

 

— Desculpe... Fiz isto várias vezes durante estes dias de navegação e pareceu-me que todos aceitavam com agrado meu presente... Sinto muito tê-la incomodado.

 

Arrancou a folha do bloco, deixou-a sobre a mesa, fez meia-volta e saiu rapidamente do bar.

 

Cinco minutos mais tarde, Hortense Lamb levantou-se e o garçom se aproximou, olhando-a com certa acritude: — Deseja mais alguma coisa? — perguntou-lhe.

 

— Somente pagar.

 

— Não vai levar o retrato? — estranhou o garçom.

 

— O quê?

 

— O retrato — deu volta à folha, mostrando o lado onde o simpático desenhista estivera traçando linhas. — Se não o quer, poderei devolvê-lo eu mesmo a monsieur Laverne.

 

Ela contemplou, com expressão incrédula, seu próprio retrato. Feito com umas poucas linhas, mas de uma perfeição admirável. Ali estava ela, de meio perfil, com os olhos fixos num ponto distante, os lábios antipaticamente apertados...

 

Enrubesceu de súbito.

 

— Está... muito bom — tartamudeou.

 

— Sem dúvida. Monsieur Laverne tem feito diversos durante estes dias. Na verdade, há muitas pessoas desejando ser objeto de sua atenção. Eu diria que é um delicado presente, miss.

 

— Sim, com efeito... Eu pensei que... Oh, creio que não fui gentil para com ele...

 

— Monsieur partiu muito aborrecido. Sei que não é de minha conta, mas...

 

— Sinto muito... Eu não podia saber... Bom, como ele é tão... tão...

 

— É um cavalheiro muito amável e correto, asseguro-lhe.

 

Um verdadeiro artista.

 

— Bem, creio que vou ficar com o retrato... Sabe qual é o camarote que ele ocupa?

 

— O camarote K. De luxo, naturalmente.

 

— Ah... Obrigada.

 

Apanhou a folha e saiu do bar, seguida por olhares de escassa simpatia. Pouco depois, detinha-se diante da porta do camarote K e batia timidamente. A porta se abriu quase em seguida e Laverne surgiu no umbral, com um cigarro entre os lábios, em mangas de camisa. Tirou rapidamente o cigarro e pareceu incomodado por estar sem paletó. Seus inteligentes olhos azuis fixaram-se nos de Hortense, expectantes, — Monsieur Laverne, eu... Bem, gostaria de dizer-lhe...

 

— Sim?

 

— Peço-lhe que me perdoe... desejo... ficar com o retrato...

 

O rosto de Laverne tomou uma expressão quase infantil.

 

— Achou-o bom?

 

— Oh, sim! É ótimo, realmente!

 

— Neste caso — o francês ergueu a mão —, está perdoada. Paz.

 

— Sim, sim, paz! Foi... foi muito amável, monsieur Laverne...

 

— Observo que sabe meu nome.

 

Hortense Lamb enrubesceu.

 

— Oh, é que o garçom... Eu não lhe perguntei, mas...

 

— Compreendo — sorriu ele. — Eu é que não sei o seu.

 

— Oh... Hortense Lamb.

 

— Hortense... É um nome muito bonito. E adequado à sua pessoa.

 

A professora enrubesceu mais intensamente ainda.

 

— Adequado...?

 

— Não vai me dizer que ignora que é bonita?

 

— Eu?!

 

— Claro. Oh, talvez eu a esteja incomodando novamente... Na verdade não costumo dizer estas coisas. Sou um tanto tímido, asseguro-lhe, mas... Acho-a tão serena... Pertence a essa classe de pessoas com as quais me atrevo a falar...

 

Atônita, miss Lamb pestanejava.

 

— Está zombando de mim, monsieur Laverne? — balbuciou.

 

— Não, não...! Mon Dieu! Como lhe ocorreu semelhante coisa?

 

— É que tenho um espelho, monsieur. E a imagem que vejo nele difere um pouco de sua... amável opinião.

 

— Oh, compreendo... Sim, realmente, como se veste e sem se cuidar como deveria... Quero dizer que... não sabe tirar partido de seu... Bem...

 

— Talvez me esteja sugerindo que use minissaia?

 

— Não, não... — Laverne engoliu em seco. — Creio que não estou me explicando bem, miss Lamb. O que queria dizer é que se fosse menos... séria no vestir e... se usasse um pouco de maquiagem... e se se penteasse de outro modo... Mon Dieu! — ele parecia assustado consigo mesmo. — Estou me enrascando cada vez mais, não é mesmo? Minha intenção, porém...

 

— Boa tarde, monsieur Laverne.

 

— Oh, não...! Peço-lhe que me perdoe, miss Lamb! Eu...

 

Mas a inglesa já não queria escutar mais nada, evidentemente. Afastava-se pisando firme pelo corredor.

 

Algumas portas mais além, deteve-se e bateu de leve. Ainda à sua porta, consternado, Laverne ouviu-a dizer: — Sou eu, Pepito.

 

A porta se abriu e ela desapareceu no interior daquele camarote. Então o francês sorriu, fechou sua porta e dirigiu-se ao armário. Tirou uma maleta, abriu-lhe o fundo falso onde havia uma pistola, pequenas peças metálicas e uma garrafa achatada, também metálica, cuja tampa desenroscou.

 

Bebeu um trago de seu conteúdo e estirou-se no sofá. Sentia na boca o gosto de vodca, em seus lábios persistia o sorriso, mas sua testa se franzia, embora com expressão um tanto divertida.

 

— Enfim... — suspirou. — O primeiro passo não foi de todo mal. Só que é feia de verdade. Puxa!

 

Enquanto isso, dentro do camarote, miss Lamb tinha entrecerrado as pálpebras ao ouvir a notícia da boca de Pepito Fernández: — Chamaram você pelo telefone.

 

— A mim? A miss Lamb?

 

— Não foi isso... Perguntaram por miss Macguillicudy.

 

— Quem era?

 

— Não sei. Era a voz de um homem. Perguntou: miss Macguillicudy? Eu demorei um pouco a responder, mas logo desligaram.

 

— Bem... Isso quer dizer que sabem que estamos aqui, e, naturalmente, quem somos na realidade. Daremos o aviso.

 

Miss Lamb tomou uma folha de papel e começou a escrever, enquanto o falso Pepito Fernández olhava com assombro o esquemático, mas perfeito retrato da professora.

 

— Quem foi que fez este retrato? — perguntou por fim.

 

— Um senhor muito simpático. Deixe-me terminar.

 

Continuou escrevendo, até completar a nota, que releu:

 

 

 

Como você predisse, um homem tentou iniciar contatos amistosos comigo. Disse que sou bonita...

 

Chama-se Laverne, camarote K, de luxo. Neste mesmo corredor. Pepito disse que alguém me chamou pelo telefone, mas perguntando por Rita Macguillicudy. Não sabe quem foi. Desligaram.

 

Mas sem dúvida isso significa que sabem quem somos e que temos a bordo os inimigos de Pepito.

 

Por favor, não nos abandone agora: só contamos com você.

 

Rita

 

— É necessária esta nota? — perguntou Pepito.

 

— Claro.

 

— É comprometedora, não?

 

— Sim, com efeito. Não se mova daqui.

 

A inglesa abriu a porta, olhou para ambos os lados ao corredor e, não vendo ninguém, decidiu-se a sair. Dirigiu-se rapidamente para a porta do camarote da direita, inclinou-se e meteu o papel dobrado por baixo. Depois regressou não menos rapidamente ao camarote de Pepito Fernández.

 

Fechou a porta e ficou olhando para o rapazola.

 

— Se alguém perguntar novamente por mim, responda que estou no meu camarote. Só isso, Pepito.

 

— Está bem. Que vai fazer agora em seu camarote?

 

— Pôr roupa mais quente.

 

— Mas aqui há calefação...

 

— Aqui, sim, mas se eu voltar ao convés ficarei congelada. Não demoro.

 

Saiu novamente do camarote, agora sem cuidar de não ser vista, e encaminhou-se para o da esquerda. Entrou, fechou a porta com a chave e foi ao armário, de onde tirou uma fina malha. Ainda a estava examinando, criticamente, ao soar o telefone. Esperou até que tocasse pela terceira vez, antes de atender.

 

— Miss Macguillicudy? — perguntaram, do outro lado da linha.

 

— Não, não... Está enganado.

 

— Tem certeza?

 

— Completa. Meu nome é Hortense Lamb.

 

— Oh, desculpe... Estou tentando localizar miss Macguillicudy para pedir-lhe que jante comigo esta noite, mas não consigo encontrá-la... Queira desculpar-me.

 

— Por nada, cavalheiro.

 

— Obrigado... Adeus.

 

— Adeus.

 

Desligou, ficando uns segundos pensativa. Depois olhou a malha que segurava com uma das mãos e franziu a testa.

 

Entrou no banheiro, olhou-se no espelho e tomou a franzir a testa. Tirou os óculos e soltou os cabelos, observando-se com grande atenção. Depois voltou ao armário, extraiu um pequeno nécessaire da maleta e dele um batom. Voltou ao banheiro, deu um toque vermelho nos lábios e sorriu.

 

— Por que não? — murmurou.

 

Espelhinho meu...

 

O recém-chegado à sala de jantar trocou algumas palavras com o garçom, o qual assentiu com a cabeça e virou-se para a mesa ocupada por uma só pessoa... Um mulher de algo mais de trinta anos e cabelos castanhos, soltos. Tinha olhos cinzentos, aceitavelmente maquilados para a noite. Em seus lábios finos havia um toque de batom.

 

Conforme se movesse, era inevitável aparecer a verruga a um lado de seu pescoço. Usava um vestido cor de malva, um tanto antiquado e bastante horrível, com uma flor no centro do decote, como querendo fazer-lhe avultar o busto. Em seus ombros nus notava-se a presença de pó de arroz... Uma figura quase patética.

 

O homem chegou diante da mesa e olhou-a com expressão dubitativa. Era um tipo de estatura mediana, quarentão, ruivo, de frios olhos verdes. Trajava o smoking com certa elegância, pelo menos não parecendo tão contrafeito como a dama que estava observando.

 

— Miss... Lamb?

 

Ela o olhou um tanto amedrontada.

 

— Sim...

 

— Sou Oscar Laglen. Podemos jantar juntos?

 

— Não o conheço, mister... Laglen.

 

— Logo me conhecerá, miss Macguillicudy.

 

Ela assentiu com a cabeça, olhando nervosamente para todos os lados. Mas, ao que parecia, ninguém lhes prestava atenção. Muita gente jantando na luxuosa sala decorada em vermelho, mas ninguém olhava para eles. O homem sentou-se, sorrindo.

 

— É um ambiente agradável, não acha? — comentou ele.

 

— Muito agradável, com efeito.

 

— E luxuoso. Neste barco viajam pessoas de categoria... Pelo menos de categoria econômica, entende-se. Mulheres bonitas, joias caras, grandes toilettes... Tudo de boa qualidade. Já pediu o jantar?

 

— Já...

 

— Bem. Pedirei o mesmo... Há coisas mais importantes que um simples cardápio com que se preocupar. É um tanto surpreendente vê-la, por fim. Há quatro dias que embarcamos.

 

— Realmente.

 

O homem sorriu.

 

— Bem, acho que chegou o momento de atuar. Naturalmente, faremos de modo que você não saia comprometida em absoluto.

 

— A que se refere?

 

— Ora, vamos... Não complique as coisas. Tenha em conta que neste assunto, tanto quanto você, trato apenas de desincumbir-me de um... encargo. E se quer que lhe fale ainda mais claro, posso fazê-lo: temos que eliminar esse rapaz. Não é isso?

 

— Por favor, podem ouvi-lo...

 

— Não creio. Todos estão muito ocupados com seus assuntos. Vejamos... Em primeiro lugar, alguém espera uma explicação a respeito do que ocorreu em Boston.

 

— Quem?

 

— Não lhe posso revelar isso. As coisas estão deste modo: um árabe chamado Mustafá Dirama, que conhecia você de Saamadia, fez-lhe há dias uma oferta de cem mil dólares em troca de que lhe facilitasse o assassinato de Omar Ibn Muza... Não é assim?

 

Hortense Lamb assentiu. Oscar Laglen, carregando o cenho, continuou: — Você disse a Mustafá Dirama saber apenas que embarcariam no “Titânia”. Ele lhe disse que era suficiente, no momento, mas que a visitaria na noite seguinte para entregar-lhe um cheque de cem mil dólares, ao portador, contra um banco suíço. Ao mesmo tempo lhe daria instruções sobre como deveria proceder uma vez no navio.

 

Assim, de acordo com o combinado, ele aproximou-se da casa, esperando que você saísse ao jardim para que pudessem ter uma entrevista sem que a vigilância disposta pela CIA se inteirasse de nada. Você, simplesmente, sairia da casa para um pequeno passeio. Correto?

 

— Sim...

 

— Quero que compreenda que nada tenho pessoalmente com isto. Fui contratado para embarcar no “Titânia” e, uma vez em alto-mar, já perto do Havre, eliminar esse rapaz...

 

— Você está sozinho?

 

— Oh, tenho amigos a bordo, claro — sorriu Oscar Laglen. — Não se preocupe por isso. Como estava dizendo, sou apenas um elemento contratado. Digamos... — tomou a sorrir — que sou um profissional competente.

 

— Um assassino profissional?

 

— Exato. A pessoa que contratou meus serviços não quer se envolver com os fatos que ocorram neste barco, de modo que deixou em minhas mãos a solução do problema. Paga bem e tenciono cumprir minha parte... Entretanto, parece que você falhou no cumprimento da sua.

 

— Eu...

 

— Espere, espere, Rita Macguillicudy. Sempre faço bem as coisas. Tenho que dar uma explicação a certa pessoa e, como essa explicação será a que você me facilite, quero saber exatamente o que deverei dizer. A pessoa que nos contratou a ambos me conhece, mas não a você. Só a conhecia de nome, indiretamente, por intermédio do tal Mustafá Dirama, que garantia estar você disposta a trair esse rapaz por uma soma aceitável, fixada em cem mil dólares.

 

Agora, a pessoa que me contratou diretamente e indiretamente a você quer saber por que Mustafá Dirama não regressou aonde o esperavam. Que houve com ele?

 

— Mataram.

 

— Gente da CIA?

 

— Sim... Bem, foi uma mulher...

 

— Uma mulher? Quem é ela?

 

— Disse que podíamos chamá-la Miss Paz, só isso. Eu... eu vi o cadáver de Mustafá Dirama. Ela o havia estrangulado com um arame, ou algo assim. Vi o arame incrustado em seu pescoço... Não sei o que fizeram do cadáver, pois Omar e eu fomos com ela a Nova Iorque, para que nos fizessem passaportes falsos. Levaram-nos a uma floricultura... Não sei em que rua, nem o número. Só sei que era uma floricultura. Depois dormimos numa camionete e, às sete, com toda a nossa bagagem e os passaportes falsos, partimos para o cais. É tudo que sei.

 

— E o cheque de cem mil dólares?

 

— Ficou com eles.

 

— Compreendo. Suspeitaram algo de você?

 

— Claro que não.

 

— Nesse caso, não a vigiam agora.

 

— Não. Além disse, ela não o poderia fazer...

 

— Ela? Refere-se a essa Miss Paz?

 

— Sim.

 

— E por que não o poderia fazer?

 

— Porque quando eu me afasto de Omar, fica protegendo-o. Ele nunca está sozinho.

 

— Quer dizer que essa mulher está com ele agora?

 

— Não, não. Ela tem um camarote junto ao de Omar... O camarote G. Omar ocupa o H e eu o I.

 

— Bem... Se ela não está com o rapaz, deve encontrar-se em seu próprio camarote, não?

 

— Creio que sim. Não o juraria, pois é uma mulher... estranha.

 

— Estranha? Refere-se a seu aspecto?

 

— Oh, não! Seu aspecto é... encantador. Quem me dera possuir a metade de sua beleza! O que eu queria dizer é que nunca se sabe o que faz, ou onde está... Não me dá explicações de nenhuma espécie. Mais ainda: desde que subimos a bordo, não a vi.

 

— Mas está no navio, não?

 

— Claro. É nossa única... guarda-costas, como diz ela.

 

— Viajam protegidos apenas por uma mulher?

 

— Sim. Mas não esqueça que essa mulher estrangulou um homem.

 

— Não esquecerei — sorriu friamente Laglen.

 

— Deixe esses detalhes por minha conta. Conosco não achará as coisas tão fáceis. Olhe a seu redor: está certa de que ela não nos vigia agora?

 

Rita Macguillicudy olhou dissimuladamente em tomo de si, aproveitando que naquele momento lhe serviam o jantar e que Oscar Laglen encomendava o seu. Durante meio minuto, examinou atentamente todas as pessoas que os rodeavam.

 

Por fim, moveu negativamente a cabeça.

 

— Não está.

 

— Bem. Depois nos ocuparemos dela. Agora o que interessa é preparar o assassinato desse rapaz...

 

— Não deveria falar assim...

 

— Tolice. Estamos cobrando um preço por isso, não?

 

— Eu ainda nada recebi.

 

— Oh, sim... Compreendo. E, segundo penso, você não teve culpa, mas sim o próprio Mustafá Dirama, por sua torpeza. Direi isto ao nosso... contratante. Dar-lhe-ei toda a explicação que recebi de você. De certo modo — riu sarcasticamente —, você e eu somos colegas, pelo que farei o possível para que lhe seja paga sua parte. Entretanto, não garanto que nosso amigo esteja disposto a desembolsar outros cem mil dólares.

 

— Mas tenho direito a esse pagamento. Você mesmo compreendeu que a culpa foi de Mustafá... Quero receber meu dinheiro, afastar-me desse menino, não voltar nunca mais àquele horrível país! Sempre foi o meu sonho, Laglen. Com cem mil dólares, meu futuro estará garantido, modestamente. Vou viver na Itália... Não estou fazendo tudo isto em troca de nada.

 

— Repito que estou de seu lado, Rita. Bem, ainda uma pergunta: está disposta a continuar colaborando?

 

— Se me pagarem, sim.

 

— Okay! Amanhã lhe transmito a decisão do nosso amigo.

 

— Seria preferível que não nos tornássemos a ver, Laglen. Ela poderia suspeitar... E confesso que lhe tenho muito medo.

 

— Dessa tal Miss Paz? Ora, vamos...

 

— Você não viu seus olhos. São... Não sei... Pareceram-me pedaços de gelo. E depois, quando estivemos naquela floricultura de Nova Iorque, havia lá dois homens, um jovem e outro já maduro, que... que a tratavam como se fosse algo especial. Davam a impressão de considerá-la uma espécie de... de máquina infalível.

 

— Acho que você está exagerando — observou Oscar Laglen —, mas teremos em conta a personalidade dessa mulher. Naturalmente, conviria que você nos deixasse vê-la.

 

— Mas se não se aproxima de nós! Garantiu que não nos abandonaria um só momento, mas o fato é que não a vi nem uma só vez. Comunico-me com ela por meio de bilhetes que passo por debaixo de sua porta. E ela faz o mesmo. Como posso mostrá-la, se nem sei onde está?

 

— O lógico seria que estivesse em seu camarote, vigiando.

 

— Não sei... Talvez.

 

— Bem... De acordo, então: falarei com nosso contratante e voltarei a comunicar-me com você... discretamente, se possível. Agora, jantemos. Pensa mesmo instalar-se na Itália com seus cem mil dólares?

 

— Sim... É um país alegre e formoso. Talvez me decida pela Espanha, à última hora.

 

— E por que não por sua própria pátria, a Inglaterra?

 

— Oh, prefiro um país ensolarado. Acostumei-me ao sol de Saamadia. Quando era menina...

 

Meia hora mais tarde, ambos se levantaram, terminado o jantar, dirigindo-se para a saída da suntuosa sala. Ao passar junto a uma mesa, a professora saudou, timidamente: — Boa-noite, monsieur Laverne.

 

O gigante louro virou a cabeça para ela, sorridente, com uma saudação à flor dos lábios. Olhou-a, desconcertado...

 

Súbito, lançou uma exclamação e pôs-se de pé.

 

— Miss Lamb! Por Deus, no primeiro momento não a reconheci!

 

— Bem... achei que devia cumprimentar...

 

— Naturalmente! Mas... é incrível! Quanto me alegra que tenha seguido meu conselho... Mas, já jantou? — perguntou indicando sua mesa.

 

— Já. Com meu amigo, o senhor Laglen... — mostrou-o.

 

— E estou de saída. De qualquer modo, muito obrigada, monsieur.

 

— Oh, que pouca sorte a minha... e que sorte a do senhor Laglen! Mas em outra ocasião, talvez, miss Lamb?

 

— Ah, sim... Claro... Boa-noite, monsieur.

 

Saíram da sala de jantar. Laglen olhou-a seriamente.

 

— Não devia ter parado, Rita: muito menos referir-se à minha pessoa.

 

— Sinto muito... Não pensei que.

 

— Parece que não se dá conta da situação... — resmungou o assassino profissional. — Nem você nem a mim convém entrar em intimidade com quem quer que seja. Quanto mais despercebidos passarmos, melhor.

 

— Sim, tem razão... Lamento deveras...

 

Laglen emitiu outro resmungo.

 

— Entrarei em contato com você quando convier.

 

Afastou-se a passo rápido. A professora ficou a olhá-lo, como perplexa. Mas, sem os óculos, parecia não ver muito bem... Pestanejando, tirou-os da bolsa e, após colocá-los, continuou pelo corredor, sozinha, atrás do mal-humorado Laglen, que logo abriu uma das portas e desceu para o convés de primeira classe.

 

Chegando a este, virou a cabeça, mas não viu ninguém.

 

Entrou por um corredor, percorreu-o, virou à direita e pouco depois se detinha diante da porta marcada com o número 124. Bateu de teve. Sem demora, a porta se abriu e um homem magro, evidentemente de raça árabe, olhou-o fixamente um instante, antes de afastar-se do umbral. Oscar Laglen entrou, defrontando imediatamente outro árabe que ocupava o camarote. Um tipo gordo, com barbicha, que usava óculos escuros e um grande anel no dedo mínimo da mão esquerda. Estava sentado no sofá, que afundava sob seu tremendo peso. Seus grossos lábios recurvavam-se num sorriso sinistro, enquanto seus olhos permaneciam escondidos pelas lentes quase negras.

 

— Como foi a coisa? — perguntou, num inglês passável.

 

— Ela quer os cem mil dólares.

 

— E já não os tem?

 

— Não. Aconteceu que...

 

Oscar Laglen explicou o que havia escutado da boca da professora. Quando terminou, o gordíssimo árabe puxava o avultado lábio inferior, pensativo.

 

— Diga-lhe que será paga — murmurou por fim.

 

— De acordo. Preparamos os detalhes agora, ou...?

 

— Não. Faremos isso amanhã. Não é necessário precipitar-se. Depois, quanto mais perto estivermos do Havre, mais confiante estará essa mulher perigosa chamada Miss Paz e mais oportunidade teremos de escapar do navio, e — Entretanto, senhor Fijek, não conviria confiarmos demasiado. Sempre é melhor preparar tudo com tempo.

 

— Mas há tempo... — assegurou Muhammad Fijek. — Pensarei durante esta noite e amanhã tomaremos a falar. Há uma coisa que deve ter presente durante todo o tempo, Laglen: não quero escândalos. Tudo deverá ser feito de tal modo que ninguém se dê canta do ocorrido. Nada de tiros e coisas assim... Compreende?

 

— Compreendo. Meus homens e eu sabemos trabalhar bem, acredite.

 

— Foi o que me disseram. Espero que sejam eficientes e discretos. Pode ir. Amanhã lhe direi o que resolvi.

 

— Muito bem. Boa-noite... Adeus, Ahmed.

 

— Adeus — sussurrou o árabe de cara ossuda e olhos fundos.

 

Abriu a porta e Laglen saiu. Começou a percorrer o mesmo caminho de antes, ao inverso. Ao dobrar a primeira esquina, esbarrou numa pessoa, que emitiu um pequeno grito de sobressalto. Instintivamente, adiantou as mãos e segurou a jovem por um braço, evitando que caísse.

 

— Desculpe — murmurou. — Sinto muito...

 

A jovem, uma esplêndida loura de magníficos olhos azuis, olhou-o sorridente, uma vez passado o susto e recuperado o pacote que tinia caído no chão.

 

— Não foi nada... Eu também ia distraída.

 

— Peço-lhe que me perdoe.

 

— Está perdoado. Adeus.

 

Ela seguiu seu caminho e Oscar Laglen virou-se, olhando suas pernas de fantástico tom dourado. Depois sacudiu a cabeça, quase incrédulo.

 

— Santo Deus! Que maravilha...”

 

Prosseguiu pelo corredor, ainda virando a cabeça, embora isto fosse inútil, pois a beldade havia dobrado a esquina...

 

Talvez ficasse mais petrificado ainda, se soubesse que também ela virara a cabeça, detinha-se, depois voltava sobre seus passos. Segundos depois, passava diante da porta marcada com o número 124. Um sorriso irônico surgiu em seus bonitos lábios. Um sorriso surpreendente naquele formoso rosto.

 

Seguiu em frente, entrou num dos sanitários, fechou-se por dentro e a primeira coisa que fez foi tirar a peruca loura, deixando livres seus longos cabelos negros. Olhou-se no espelho e sorriu para si mesma.

 

— Primeiro trabalho de amanhã, querida — murmurou: — verificar quem ocupa o camarote 124 da primeira classe. E agora, descansar... Mas antes, espelhinho, diga-me: quem é a espiã mais linda do mundo?

 

Um duplo banho de imersão

 

— Bom-dia, miss Lamb.

 

A professora ergueu vivamente a cabeça, ruborizou-se e, deixando o livro sobre o regaço, tirou vivamente os óculos.

 

— Bom-dia, monsieur Laverne.

 

— Receei encontrá-la com o seu admirador de ontem à noite... Pior ainda, receei não a encontrar. É a primeira vez que a vejo à luz do sol. Posso sentar-me?

 

— Sem dúvida... As cadeiras são de todos, monsieur.

 

O gigante louro ocupou a cadeira contígua.

 

— Perguntei se não lhe incomodava minha companhia.

 

— Já pude observar que é um homem educado... Por que haveria de incomodar-me?

 

— Bom, talvez incomodasse ao seu admirador.

 

— Eu não tenho nenhum admirador, monsieur. Se se refere ao senhor Laglen, saiba que simplesmente o conheci por acaso nos Estados Unidos.

 

— Ah... Tanto melhor, então, porque assim tenho o campo livre.

 

— Livre... para quê?

 

— Para ser eu o seu admirador. Vou lhe dizer uma coisa: é mais bonita de dia que de noite. E os cabelos soltos ficam-lhe muito bem Por que me olha assim?

 

— Não gosto que zombem de mim.

 

Laverne pestanejou.

 

— Por que pensa isso?

 

— Já lhe disse que tenho um espelho.

 

— Oh... — o francês sorriu encantadoramente. — Bom, é sabido que a opinião de uma pessoa sobre si mesma nem sempre é exata. Quanto a mim, por exemplo, considero-me o tipo do sujeito simpático, no entanto, parece que pensa exatamente o contrário a meu respeito. Assim, por que não posso vê-la de um modo bem diverso daquele pelo qual se vê a si mesma?

 

— Está me confundindo com suas palavras, monsieur...

 

— Henri. Simplesmente, Henri. Posso chamá-la Hortense? Já lhe disse que seu nome me agrada... Posso?

 

— Bem... Por que não, monsieur Lav... Henri?

 

— Ótimo! Não está um dia bonito? E como é agradável apanhar sol, no convés! Quer um cigarro?

 

— Eu não fumo. Mas pode fazê-lo, naturalmente.

 

— Obrigado — ele acendeu o cigarro com um isqueiro muito bonito, mas que não funcionava bem, pois teve que acioná-lo várias vezes. — Não sou um grande fumante, mas em dias de descanso posso permitir-me este luxo.

 

— Fumar é um luxo?

 

— Para mim, é. Sou um esportista.

 

— Espor...? Mas pensei que você fosse um artista, Henri.

 

— Oh, não — riu o simpático gigante. — Desenhar é meu hobby, como dizem vocês. Sou tenista. Regresso a Paris depois de ter disputado uns quantos campeonatos nos Estados Unidos... Não tive muito boa sorte, na verdade.

 

— Não ganhou nenhum jogo?

 

— Sim, claro. Sou osso duro de roer... — sorriu, como desculpando-se. — Trago mesmo comigo um bom punhado de dólares e dois troféus. Mas no penúltimo jogo sofri uma distensão muscular no ombro direito e fui forçado a desistir. Falta de sorte... Mas não há mal que por bem não venha.

 

— Não?

 

— Pensei em voar de volta, a Paris, mas, estando impossibilitado de atender a alguns compromissos com clubes de lá, por que não voltar de barco, instalado como um marajá, descansando, tomando as coisas com calma? E aqui me tem, encantado por ter sofrido essa distensão... Não fosse por ela, eu não a teria encontrado, Hortense. Poderei vê-la em Paris?

 

— Você vai tão depressa, Henri, que... que... Além disso, não irei a Paris.

 

— Ah... Aonde vai?

 

— Do Havre, seguirei diretamente para Orly, onde tomarei um avião para Roma. Temos que estar lá no dia...

 

— Temos? Julguei que viajasse sozinha...

 

— Não... Não exatamente.

 

— Não me diga que tem um marido trancado no camarote!

 

— Nada disso... — riu miss Lamb. — Sou professora e viajo com um menino, que devo entregar a seus pais em Roma.

 

— Um menino... Bem: onde está?

 

— No camarote... Acha-se um pouco indisposto.

 

— Sinto muito... Por isso você não tem aparecido estes dias no convés?

 

— Sim. Mas como agora tem passado melhor... Comprei umas histórias em quadrinhos e pensei que poderia vir apanhar sol por uns minutos.

 

— Fez bem! Puxa, uma professora... Assombroso! Não imaginava que fosse nada assim.

 

— Lamento tê-lo decepcionado.

 

— Absolutamente! Isto me encanta, acredite. Em geral, as professoras são pessoas equilibradas, pacientes, cultas... A propósito: que estava lendo?!

 

— História caldaica.

 

— História... quê?

 

— Caldaica.

 

— Mon Dieu! E para que lê isso?

 

— É que estou preparando um livro sobre a cultura babilônica.

 

— A cultura bab...? — Henri Laverne parecia a ponto de desmaiar. — Você é cada vez mais assombrosa! Dá-se conta de que tenho um bom golpe de vista?

 

— Não sei a que se refere...

 

— Quando a vi, pensei: “Eis aí uma garota que parece feita sob medida para você, Henri; tranquila, calada, tímida... Bem como você é! Será que, afinal, você encontrou sua companheira, rapaz?”... Pois acertei.

 

Miss Lamb tornou a enrubescer.

 

— Henri, você diz cada coisa... Quem o ouvisse, pensaria que... que está apaixonado por mim...

 

— E estaria certo.

 

A professora mordeu os lábios, esquecida de que naquela manhã lhes aplicara batom. Estava um cromo, com o batom, o pó de arroz, as pálpebras maquiladas...

 

— Monsieur Laverne — disse com voz um tanto rouca —, se insiste em zombar de mim, terei que retirar-me. Não me de escárnio.

 

Levantou-se, evidentemente disposta a partir, mas Laverne reteve-a pela mão.

 

— Hortense, por favor... Não estou brincando. Sente-se...

 

— Estou com pressa.

 

— Esse menino pode esperar — conseguiu com que ela se sentasse de novo, puxando-a suavemente pela mão. — Acha que estou tentando uma... conquista de travessia, Hortense? É isso que pensa?

 

— Não... Nem sequer para isso eu serviria. Henri. Há neste navio muitas garotas mais merecedoras de sua atenção...

 

— Se está dizendo que são mais bonitas que você, de acordo. Oh, não sou um pobre tolo, Hortense. Você é que é.

 

— Eu...?

 

— Você. Procure sorrir mais, ponha vestidos mais jovens, aprenda a maquilar-se, tire esses óculos, ou, se lhe são indispensáveis, arranje outros mais de acordo com seu rosto. Você não é uma jovem das que se dizem bonitas, mas, não sei... Há em você algo especial, algo que não sei definir... E faça o favor de não tentar esconder mais essa pequena verruga! Eu já a vi; logo, para que escondê-la?

 

Hortense Lamb estava terrivelmente constrangida.

 

— Eu... eu preciso ir... Por favor, Henri...

 

Ele a olhou atento, subitamente sério.

 

— Está bem... Você é tola, Hortense. Uma professora que, por sua vez, deveria arranjar outra, que a ensinasse algumas coisas importantes. Já lhe disse que me apaixonei por você, mas, se assim prefere, deixarei de incomodá-la. É isso o que quer?

 

— Preciso ir, Henri...

 

— Esse menino não correrá perigo por mais alguns minutos de solidão.

 

— Oh, não é isso... Ele não está só... Quero dizer...

 

— Compreendo. Viaja mais alguém com vocês, não? E, nesse caso, por que tanta pressa?

 

— Não... — sobressaltou-se Hortense. — Estamos viajando sozinhos... Sim, sozinhos — Quer que eu vá com você? Poderíamos...

 

— Não, não... Adeus, Henri...

 

— Lamento meu fracasso — murmurou ele. — Não a esquecerei nunca, Hortense.

 

— Adeus...

 

— Adeus.

 

Henri Laverne deixou-se cair para trás em sua cadeira extensível e fechou os olhos, enquanto miss Lamb se afastava apressadamente, transtornada por completo. Entrou pela galeria de estibordo e viu Oscar Laglen fazendo-lhe sinais, desde a escada que levava ao convés inferior.

 

Precipitou-se para lá e reuniram-se embaixo. Ele tinha o cenho carregado, parecendo furioso.

 

— Estou há mais de cinco minutos lhe fazendo sinais... — resmungou. — Não me viu, Rita?

 

— Vi, sim, mas esse... esse homem estava me falando e eu não o podia deixar bruscamente. Apressei-me o quanto pude...

 

— Que há com ele?

 

— Não sei...

 

— Por que estava com você? É o mesmo de ontem à noite, não?

 

— É... Bem, ele... ele disse que está apaixonado por mim...

 

Oscar Laglen pestanejou, atônito. Finalmente, riu com vontade.

 

— Pois tem muito bom gosto, não há dúvida! — disse, sarcástico.

 

— Você é bem grosseiro...

 

— Ora, vamos. Menos tolices, Rita. Nós dois estamos aqui para trabalhar, portanto esqueça esse sujeito enquanto dure a travessia, de acordo? Sei que é bonitão e tudo o mais... Contudo, você tem que evitá-lo. Falei com o nosso amigo: ele concorda em lhe pagar de novo os cem mil dólares.

 

— De novo, não. Eu não recebi os anteriores.

 

— Bem, bem, você não precisa enfatizar tanto este ponto. Ele pagará e isso é tudo. Agora, preste atenção: depois de amanhã de manhã chegaremos ao Havre, de modo que precisamos fazer nosso trabalho. Cada um tratará da sua parte. Está bem?

 

— Está. Mas eu... eu não quero ver o que será feito com Omar...

 

— Rita, eu acabo mandando-o para o inferno. Praticamente, não precisamos de você para nada. Só nos servirá para evitar que entremos no camarote desse arabezinho, com possível escândalo. O plano é atirá-lo no mar, não deixando o corpo de delito à visita. Assim, poder-se-á pensar num acidente, ou coisa parecida... Você só tem que parecer desesperada, procurando pelo rapazola. Faça bem seu papel e estará a salvo de toda suspeita. Entendido?

 

— Sim... Posso dizer que ele saiu do camarote sem minha permissão... e que isso é tudo o que sei.

 

— Perfeito. Agora, falemos dessa Miss Paz: você tem que certificar-se de que, quando subir com o garoto ao convés, ela não se encontre por lá. Nada de complicações. Pode conseguir isto?

 

— Creio que posso. Ela deve descansar enquanto estou com o rapaz no camarote. Quando me vir entrar, suponho que logo se dedicará ao seu repouso.

 

— É exatamente disso que se trata. Ela a verá entrar no camarote do garoto, considerará estar em segurança e fará o seu descanso, ou irá comer, ou... Enfim, se afastará ainda que por poucos minutos. Então, você entrará às dez em ponto da noite, dirá ao garoto que vão dar um passeio e ambos subirão ao convés de estibordo. Caminharão até o terceiro bote de salvamento. Lá, justamente sob esse terceiro bote, vocês dois se debruçarão à amurada. E, naturalmente, você se certificará de que ninguém os veja juntos. Entendido?

 

— Sim... O que acontecerá então?

 

Laglen olhou-a com o cenho carregado e, súbito, disse brutalmente: — Atiraremos esse garoto ao mar, de cabeça. Você voltará ao seu camarote e representará seu papel. É tudo.

 

— Tem que... que ser esta noite?

 

— Sim. Mas se algo falhar, ainda disporemos da de amanhã. Entretanto, quanto antes o fizermos, melhor. Alguma dúvida?

 

— Não, não... Nenhuma.

 

— Adeus, então...

 

— Adeus...

 

— Ela aceitou?

 

Oscar Laglen acabou de entrar no camarote e, enquanto o seco e mal-encarado Ahmed fechava a porta, instalou-se numa das poltronas.

 

Acendeu um cigarro, olhando atentamente o inexpressivo e obeso Muhammad Fijek.

 

— Sim, aceitou.

 

— Tudo como eu lhe disse, Laglen?

 

— Claro. Às dez irá buscar o garoto e às der e cinco estará no convés de estibordo, no lugar indicado... Tudo como o senhor planejou.

 

— Bem... Espero que você e seus homens não falhem.

 

Oscar Laglen sorriu desdenhosamente.

 

— Meus homens não falharão. Quanto a mim, tenho algo melhor a fazer: ficarei no corredor dos camarotes de luxo, para o caso de que essa Miss Paz, em vez de dedicar-se a dormir, tenha a fantasia de pretender continuar vigiando e queira subir ao convés.

 

— Esplêndido — aprovou Fijek. — Seus homens poderão fazer sozinhos o trabalho?

 

— Com toda a facilidade. Ora, vamos, senhor Fijek... Trata-se apenas de um menino.

 

— E de uma mulher.

 

Laglen olhou-o sem compreender.

 

— Como? — perguntou por fim.

 

— Está me parecendo um tanto ingênuo, amigo... Parece-lhe prudente deixar viva essa miss Macguillicudy?

 

— Ora...

 

— Pense bem. Essa jovem sabe coisas demais, especialmente a respeito de você, que deveria ser o primeiro interessado em... afastá-la de seu caminho.

 

— Mas...

 

— Isso não lhe havia ocorrido? Vejamos: se houver algum contratempo, é mais que possível que ela dê com a língua nos dentes. A menor dificuldade, o mais leve temor — e ela dirá tudo o que sabe. Ou pensa você que não?

 

Oscar Laglen, carrancudo, levou tempo demasiado a refletir.

 

— Sim... — admitiu. — Realmente, assim é. E se ela me acusar, o senhor teme que eu faça o mesmo acusando-o também.

 

— Com efeito. Se tudo isso acontecesse depois de meu regresso a Saamadia pouco me importaria. Mas se acontecer estando eu ainda no “Titânia” a situação se tornará muito perigosa para mim. Portanto, acho que daríamos prova de... um grande instinto de conservação se tanto você como eu eliminássemos essa possível contingência.

 

— Está-me ocorrendo que, talvez amanhã, o senhor considere mais seguro eliminar a mim também...

 

— Não seja absurdo, meu amigo. Você é um profissional: sei que não falará. Miss Macguillicudy é outra coisa. Nunca se terá visto metida em algo tão sério e, por pouco que lhe apertem as cravelhas, dirá tudo. Você não. Estou certo disso. Além do que, se fizer as coisas bem, nenhum de nós dois terá nada a temer.

 

— Quisera estar seguro de que eu nada teria a temer.

 

— E eu que entendesse que os bons profissionais como você não abundam. Em meu país, certamente, temos assassinos que não recuam diante de nada. São capazes de tentar e até de conseguir qualquer coisa. Mas são... primários, rudes, pouco inteligentes. Não me interessam de modo algum.

 

— Não sei se estou entendendo, senhor Fijek.

 

— Pois é simples: se mais tarde, uma vez instalado no meu posto em Saamadia, eu precisar de determinados serviços, você receberá um conste para passar alguns dias na capital. E uma vez lá, certamente teria um encargo a cumprir. Não sou nenhum estúpido: necessito e necessitarei de homens como você.

 

— Compreendo — sorriu finalmente Laglen. — Digamos que posso considerá-lo como... cliente fixo, senhor Fijek.

 

— Exatamente.

 

— Bem, sua explicação me convence. E penso que, se faço um trabalho duplo, o senhor economizará cem mil dólares... Os de miss Macguillicudy. Ou não?

 

— Sem dúvida. Mas o dinheiro não é problema para mim. Não preciso desses cem mil dólares. E acho que você não teria inconveniente em aceitá-los como uma gratificação especial pelo seu bom trabalho.

 

— Além do preço estipulado pelo resto? — duvidou Laglen.

 

— Naturalmente.

 

Oscar Laglen acabou sorrindo de orelha a orelha.

 

Esmagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se.

 

— Receio bastante que esta noite miss Macguillicudy acompanhe seu pupilo no banho de imersão — Sem falhas, Laglen. E sem escândalo — Considere o fato consumado.

 

— Você está pronto, Pepito?

 

— Estou sim, Hortense.

 

— Bem. Vamos dar esse passeio... Mas agasalhe-se, que está um frio tremendo no convés.

 

— Poderíamos ir a outro lugar, então.

 

— Pensei nisso — murmurou a professora —, mas nos outros lugares haverá gente, compreende? Não me parece conveniente que o vejam. Apesar de todas as medidas de segurança, sempre é melhor você não correr o risco de ser reconhecido.

 

— Ninguém me conhece neste navio.

 

— Penso que não, mas não esqueça que sua fotografia tem aparecido ultimamente em jornais de todo o mundo. E há pessoas que têm grande memória para fisionomias. É melhor não arriscar nada.

 

— De acordo. Iremos ao convés, Hortense.

 

Ela passou a mão um tanto crispada pelos cabelos do rapazola.

 

— Não lhe acontecerá nada... — sussurrou.

 

— Estarei vigiando, como sempre.

 

Omar Ibn Muza assentiu com a cabeça, dirigiu-se para a porta, abriu-a e, muito cortesmente, deu passagem à sua professora. Esta fechou a porta com a chave, que guardou na bolsa. Depois passou-lhe um braço pelos ombros e ambos caminharam para a escadinha que levava ao convés de estibordo.

 

Subiram lentamente, enquanto ela consultava seu relógio: dez e dois minutos da noite.

 

Quando chegaram ao convés, um frio terrível açoitou seus rostos. O céu estava cheio de estrelas, mas justamente esta limpidez atmosférica fazia baixar a temperatura. Não havia ninguém ali, naturalmente. De longe, muito tênue, chegava um som de música, proveniente de uma das salas de festa do enorme transatlântico. Para o lado da popa, o resplendor da galeria envidraçada do bar.

 

Durante uns segundos, estiveram ah, como hesitantes. Por fim, Hortense empurrou suavemente o rapazola.

 

— Vamos para debaixo de um dos botes... Espero que lá estaremos mais protegidos.

 

Sempre com um braço sobre seus ombros, caminhou até chegar ao terceiro bote, suspenso acima deles em seus turcos de arreação. Debruçaram-se à amurada, olhando para o mar...

 

Tudo negro, mas, perto do navio, via-se como que uma onda permanente, que se ia abrindo à sua passagem. À luz que ali chegava era uma visão de ondas investindo contra uma praia.

 

— Está com frio, Pepito?

 

— Um pouco, Hortense.

 

— Também eu estou gelada até aos ossos. Este não é nosso clima, hem?

 

— Não... — sorriu o rapazola. — Não é nosso clima. Quando chegar a Saamadia...

 

Súbito, soaram golpes surdos atrás deles. Viraram-se ao mesmo tempo, quando os dois homens que tinham saltado do bote ao convés ainda estavam recuperando o equilíbrio.

 

Omar Ibn Muza lançou uma exclamação, que se confundiu com as palavras tensas de um dos homens: — Eu me encarrego da mulher, Ralph.

 

Os dois avançaram para Hortense e Omar... Não exatamente com muita sorte. A professora soltou um gritinho de terror, empurrou o rapazola para um lado, ao mesmo tempo que tentava afastar-se, sem o conseguir, pois o homem que ia se encarregar dela caiu-lhe em cima, abraçando-a pela cintura...

 

— Não... — gemeu Hortense. — A mim, não... Não!

 

Enquanto Omar, agilmente, esquivava a acometida do chamado Ralph, ela pôde empurrar o outro indivíduo, que aparentemente tropeçou em alguma coisa e caiu de costas.

 

Mas levantou-se de um salto, agarrou-a por um tornozelo quando passava junto a ele e fê-la tombar de bruços.

 

Imediatamente, atirou-se sobre ela e pôs-lhe a mão na boca, com força brutal.

 

Plop.

 

O estalido pareceu intrigar aquele homem, que ergueu bruscamente a cabeça e pôde ver seu companheiro, com Omar entre os braços, mas crispando-se, soltando em seguida sua presa e levando ambas as mãos às costas... Virou a cabeça para o outro lado, mas só pôde ver a sombra que lhe caía em cima: uma enorme mão, poderosíssima, que o agarrou pela gola e arrancou-o de sobre a professora.

 

Por um instante, o indivíduo viu-se suspenso no ar, pendente daquela mão hercúlea. Depois algo brilhou diante de seus olhos e recebeu o tremendo golpe da pistola em pleno rosto, um golpe, que lhe achatou o nariz e despedaçou-lhe os dentes. Mas ainda recebeu outro, agora na testa, que retumbou tragicamente no solitário convés. Pendeu ainda um instante daquela poderosa mão, até que os dedos se abriram e despencou como um saco, ficando inerte.

 

O gigante ajoelhou-se junto a Hortense.

 

— Você está bem?

 

— Meu Deus...

 

Henri Laverne compreendeu que ela estava bem e, rapidamente, dirigiu-se ao rapazola, que tentava esconder-se atrás de um dos grandes suportes metálicos do último bote.

 

— Nada tema, Alteza — disse em inglês. — Sou um amigo.

 

Omar olhava-o fixamente, sem um gesto. Sorrindo, o louro atleta colocou-lhe a mão na nuca, tirando-o de seu esconderijo com um gesto amável, mas firme.

 

— Vejamos o que há com miss Lamb... Pelo menos, é de esperar uma crise de histeria.

 

O rosto de Amar Ibn Muza aparecia claramente na relativa obscuridade. Devia estar tão assustado, que não podia falar. Mas foi com Laveme até onde Hortense Lamb, apoiando-se em seu recuperado guarda-chuva, estava-se levantando, gemendo.

 

— Oh, meu Deus...! Foi tão horrível...!

 

— Tranquilize-se — disse Laverne. — E esperem aqui uns segundos. Já não há nada a temer.

 

Agarrou um dos homens pelas lapelas, levantou-o e fez uma careta ao verificar que estava morto. O segundo golpe com a pistola tinha-lhe partido a testa. Sem aparentar o menor esforço, subiu-o ao mesmo bote em que ele e seu companheiro tinham estado escondidos. Depois fez o mesmo com o outro. Subindo também ele, tapou-os bem com a lona.

 

Saltou para o convés e voltou para junto dos trêmulos coprotagonistas do atentado.

 

— Será melhor que nos afastemos daqui... Não, por aí não: pelo outro lado. E seria boa ideia que ambos viessem ao meu camarote.

 

— É que queremos... voltar para os nossos...

 

— De acordo, Hortense, porém mais tarde. Vamos para o meu agora, darei uma olhadela nos de vocês e depois disso poderão recolher-se. Vamos.

 

Passaram ao outro lado do navio e Laverne desceu a escada rapidamente, em silêncio. Chegou ao corredor.

 

Quando estava a ponto de virar-se para fazer um sinal tranquilizador, viu tão só um bocado de pano que desaparecia pelo outro extremo do corredor. Esteve quase a correr para lá, mas logo desistiu. O importante era o príncipe e este já havia corrido riscos demasiados. Fez o sinal a Hortense e Omar, que desceram. Não havia ninguém no corredor, não se ouvia nada... Ele abriu a porta de seu camarote, deixou os dois entrar, entrou ele também e fechou com chave.

 

Olhando para ambos, sorriu e tirou o paletó, deixando então perfeitamente visível o coldre subaxilar, com a pistola de grosso calibre. Foi ao armário, apanhou a maleta e, do fundo falso, extraiu o frasco metálico de vodca, do qual tomou um trago. Estalou a língua e novamente dedicou sua atenção aos dois assustados personagens.

 

— Nunca em minha vida vi imprudência maior que a de vocês esta noite — disse de súbito. — Pergunto-me, Hortense, se sua cabeça funciona bem. Que estava pretendendo?

 

— Eu... eu... não... não estava pretendendo...

 

— Peço-lhe que procure não tartamudear. Compreendo que esteja assustada, mas trate de acalmar-se. Depois falaremos. Quer um pouco de vodca?

 

— Acho que... que me fará bem...

 

Tomou o frasco com mãos trêmulas e levou-o aos lábios, enquanto Laverne a contemplava amavelmente. Quando ela terminou de beber, perguntou-lhe: — Um cigarro?

 

— Eu não... não fumo...

 

— Oh, tinha esquecido. Bem, que pretendia com esse estúpido passeio pelo convés a semelhante hora?

 

— Eu... eu... eu não... não...

 

— Deixe de gaguejar. Está me deixando nervoso.

 

— Eu não... não pretendia nada. Omar estava sempre me pedindo para sair e... pareceu-me que de noite seria mais conveniente...

 

— Que barbaridade!

 

— Quem é o senhor? — perguntou o garoto. Henri Laverne sorriu e olhou para Hortense, que o contemplava estupefata, como se até então não lhe tivesse ocorrido fazer tal pergunta.

 

— Um amigo de Vossa Alteza — respondeu o gigantesco atleta. — E creio tê-lo demonstrado.

 

— Como é seu nome?

 

— Chama-se Hen... — começou Hortense.

 

— Val Angelof, Alteza — disse Laverne: — cidadão soviético. Às suas ordens.

 

— É russo?

 

— Evidentemente, Alteza.

 

— Pensei que os americanos é que me deviam proteger até o Havre.

 

— Esse foi o trato. Mas, parece-me bastante claro, não o souberam fazer muito bem. Se não fosse miss Lamb — sorriu amplamente —, que já podemos chamar de miss Macguillicudy, ambos estariam mortos agora. Quero dizer ambos devem a vida à previsão de miss Macguillicudy, não à eficiência da CIA.

 

— À minha previsão? — assombrou-se miss Macguillicudy.

 

— Claro.

 

— Mas... mas eu... eu não fiz nada! Não sei de que está falando, Henri... ou como se chama!

 

— Val Angelof, já disse. Que significa sua atitude agora?

 

— Não estou entendendo o que você diz.

 

Como que um lampejo de cólera passou pelas pupilas do russo. Foi até onde havia atirado o paletó, meteu a mão num bolso e entregou um papel a Rita.

 

— Que me diz disto?

 

A professora olhou o papel. Apenas algumas palavras, em inglês:

 

Às dez e quatro minutos no convés de estibordo, sob o terceiro bote. Leve sua pistola.

 

Hortense

 

Pasma, ficou olhando para Angelof, que fez um gesto de impaciência.

 

— E então?

 

— Eu não lhe mandei este bilhete!

 

— Não?

 

— Claro que não!

 

— Nesse caso... quem foi?

 

— Como posso saber?

 

Os inteligentes olhos do russo fixaram-na. Depois, lentamente, em seus lábios foi aparecendo um sorriso, que se ampliou até chegar à gargalhada.

 

— De acordo, de acordo... Vamos aceitar que não foi você. Então, quem terá sido? Não o imagina, ao menos?

 

— Não... não...

 

— Pois eu lhe direi, Rita. Importa-se que deixemos de tolices e nos chamemos por nossos verdadeiros nomes?

 

— Não...

 

— Bem. Quem me enviou esse bilhete assinado com seu nome foi a pessoa que os acompanha nesta viagem, mas sem se deixar ver. Francamente, foi uma das melhores jogadas de que tenho notícia!

 

— Que... que jogada?

 

— Ainda não compreendeu? Vou explicar. Uma pessoa, seja quem for, soube que vocês iam subir ao convés...

 

— Eu não o disse a ninguém, exceto a Sua Alteza.

 

— Não? — Angelof contraiu as sobrancelhas — Tem certeza?

 

— Tenho... claro.

 

— Ele passou a mão pela nuca, pensativo.

 

— Dê-me as chaves de seu camarote e do de Sua Alteza.

 

Sem discutir. E esperem-me aqui, sem abrir para ninguém. Absolutamente ninguém.

 

Hortense entregou-lhe as duas chaves e ele saiu.

 

Regressou dez minutos mais tarde, tornou a fechar a porta e plantou-se diante dela, sorridente.

 

— Bem. Eu os acompanharei a seus camarotes. Fechem-se por dentro e novamente insisto em que não abram para ninguém... salvo para seus amigos, naturalmente. Se acontecer alguma coisa e precisarem de ajuda, têm apenas que chamar-me pelo telefone. De acordo?

 

— De que lado o senhor está? — perguntou Omar.

 

— Do seu, Alteza. Quando chegarmos a Paris, uns companheiros meus o receberão, para levá-lo são e salvo a Saamadia. Pensei que estivesse ao corrente da situação.

 

— Melhor do que o senhor — disse altivamente o rapazola. — Boa-noite, senhor... Angelo!

 

— Sim, Angelof. Boa-noite, Alteza. Boa-noite, Rita.

 

Abriu-lhes a porta, viu-os entrar em seus camarotes respectivos, fechou e ficou olhando para todos os lados.

 

Segundos depois deu início à busca, que terminou antes de decorridos três minutos, ao encontrar o pequeno microfone sob o beliche. Contemplou-o na palma de sua mão, em seguida sacou do bolso outros dois, idênticos: os que havia encontrado nos camarotes de Omar Ibn Muza e Rita Macguillicudy.

 

A partir desse instante, seu inteligente cérebro começou a funcionar, chegando às seguintes conclusões: uma pessoa vigiava e protegia Omar e a professora; essa pessoa, por meio de microfones instalados em seus camarotes, se inteirara de que os dois iam subir ao convés; e como, além disso, estava vigiando os movimentos de pessoas suspeitas, talvez mesmo conhecendo os planos dessas pessoas, avisara Henri Laverne para que também subisse ao convés no momento oportuno. Tão oportuno que essa pessoa, sem fazer ato de presença, salvara a vida do jovem príncipe e sua professora pelo simples processo de mandá-lo em auxílio dos dois. Conclusão definitiva: essa pessoa não só estava à espreita, mas sabia ou presumia que Henri Laverne era na realidade um agente soviético e o utilizara, demonstrando assim que dominava perfeitamente a situação, embora não se deixando ver.

 

— Fantástico! — exclamou Angelof, em voz alta. — Absolutamente fantástico...

 

A campainha do telefone sobressaltou-o.

 

— Alô — atendeu.

 

— Muito grata por sua opinião a respeito de minha jogada — disse uma alegre voz feminina em russo: — E também por sua eficiente intervenção: tinha a certeza de que podia confiar em você, camarada Angelof.

 

— Com quem estou falando? — sorriu o russo.

 

— Ora, vamos... Não faça perguntas tolas, camarada. Ou devo dizer colega?

 

— Você é muito astuta, colega — ele agora riu. — Poderemos ver-nos?

 

— Quem sabe? Bem, eu já o vi. Entretanto, você só sabe de mim uma coisa: que coloquei um microfone em seu camarote.

 

— É verdade... Devo conservá-lo aberto?

 

— Não, não... Pode até destruí-lo, se quiser. A menos que prefira conservá-lo como recordação. Agora, colega, ouça bem isto. Não vou repetir, pois desligarei em seguida.

 

Atenção: dentro de meia hora... e digo meia hora, nem mais nem menos, saia de seu camarote, desça à primeira classe, procure o camarote 26 e entre. E só.

 

— Devo...?

 

Clic.

 

Angelof não se alterou: ela havia dito que desligaria.

 

Bateu suavemente no gancho.

 

— Pode falar.

 

— Camarote K, de luxo. Acabo de receber um telefonema... Pode me dizer de onde, por favor?

 

— Do bar “Antineia”, da primeira classe.

 

— Obrigado.

 

Desligou, olhou o relógio, sentou-se e acendeu outro cigarro.

 

Uma luta em alto estilo

 

Exatamente meia hora mais tarde, Val Angelof saiu de seu camarote, pondo o paletó e escondendo assim a pistola.

 

Desceu à primeira classe, procurou o camarote 26 e tocou na porta com um dedo... A porta cedeu.

 

Olhou para ambos os lados do corredor, não viu ninguém e sacou a pistola. Súbito, empurrou violentamente a porta e saltou para dentro do camarote, tenso, pranto para abrir fogo...

 

Nada.

 

Silêncio.

 

Tirou um sapato e jogou-o contra a parede. Nada.

 

Silêncio.

 

Compreendendo que se tivessem querido matá-lo já poderiam ter feito, fechou a porta, tenteou até encontrar o interruptor e acendeu a luz. Seu olhar não teve que percorrer muito espaço.

 

De costas para a porta, imóvel, esteve uns segundos contemplando o cadáver. Estava sentado numa poltrona, com os olhos abertos. Do centro de seu pescoço parecia pender um cordãozinho vermelho, que se introduzia no colarinho da camisa.

 

Sem se alterar, friamente, aproximou-se do homem.

 

Conhecia-o muito bem: era o sujeito que tinha falado com Rita Macguillicudy, o tal Laglen. Examinou a ferida, sem tocar no cadáver. Parecia uma facada... Mas não. Era como uma estocada. O orifício pelo qual lhe havia escapado a vida era diminuto.

 

Retirou o papel que sobressaía do bolso superior do paletó do morto, desdobrou-o e sorriu ao ver as letras femininas, idênticas às da mensagem anterior.

 

Não se entristeça pelo senhor Laglen. Era um assassino profissional e, naturalmente, o encarregado de eliminar o príncipe e Rita. Você, que é um homem forte poderá sem dúvida jogar fora, pela vigia, tão incomodo cadáver. Muito obrigada colega. Pessoalmente lhe entregarei Omar, no Havre.

 

Boa sorte.

 

Ainda sorridente, o olhar de Angelof dirigiu-se à vigia.

 

Então, sua testa se franziu. Diabo. Aquilo não ia ser fácil, pois Laglen era robusto...

 

Não obstante, cinco minutos mais tarde, suando, o agente soviético conseguia seu propósito e o cadáver passava através da vigia, a caminho do mar.

 

Lançou uma olhadela ao camarote, deu de ombros ao compreender que não ia encontrar ali nada interessante e encaminhou-se para a porta. Então, teve o seu primeiro sobressalto: preso à madeira da porta por um percevejo dourado, estava seu retrato, em tamanho grande, arrancou-o de um puxão e, durante alguns segundos, contemplou seu próprio rosto. Bem, aquela ampliação só podia ter sido feita no laboratório de uma das lojas de artigos fotográficos do navio. Em qual delas? Tinha apenas que virar a foto, que encontraria o nome da loja no anverso.

 

Com efeito, lá estava. Mas havia algo mais... Algo que fez o espião russo estremecer. Mais letras bem feitas, explicando:

 

PARA OS ARQUIVOS DA CIA

 

Este é o agente do MVD soviético Val Angelof, fotografado a bordo do “Titânia”, durante a travessia que teve início em 5/10/70, em missão presumível de caça fotográfica a um de nossos agentes.

 

Idade aparente: 36 anos.

 

Cabelos: louros.

 

Olhos: azuis.

 

Estatura: um metro e oitenta e três. Detalhe característico: muitas sardas. Caráter: amável e cordial.

 

Dados complementares: desenha magnificamente e, salvo mentira deslavada, joga passavelmente o tênis.

 

À espera de mais dados, Val Angelof ingressa hoje no Arquivo Internacional. Seção Soviética, desta Agência Central de Inteligência.

 

— Quem diria...?! — exclamou o russo, pálido. — O caçador caçado. Parece incrível...

 

Súbito, endireitou-se, quase furioso. De que se queixava?

 

Fora devidamente avisado, antes de empreender o voo para Nova Iorque a fim de embarcar no “Titânia” rumo à Europa: teria que se haver com Baby... Não podia ser ninguém mais. Pelo menos, seus chefes tinham acertado nisso: a agente Baby se encarregava daquela missão...

 

— Que ainda não terminou... — disse num sussurro. — Ainda não, Baby.

 

Saiu do camarote e dirigiu-se resolutamente para o bar que tinha o bonito nome de “Antineia”. Entrou e sentou-se num dos banquinhos diante do balcão.

 

Olhou para a extremidade do balcão e viu o telefone. A agente Baby devia ter telefonado dali. Era terrivelmente fácil fazê-lo. Ficava a um canto, no local mais discreto do bar.

 

— Cavalheiro?

 

Virou-se para o garçom, que o contemplava sorridente, com uma expressão entre simpática e maliciosa, de pessoa que compreende muitas coisas da vida. A Val Angelof ele pareceu um idiota ou, ao contrário, o tipo do sabidão.

 

— Vodca, por favor — pediu em francês.

 

O garçom acentuou seu sorriso. Parecia estar encantado com a vida. Voltou pouco depois com a bebida, que colocou sobre o balcão, sorridente. E ficou diante do espião russo, olhando o garçom um jeito entre amável e trocistas. Angelof fez má cara, tomou um gole e, súbito, pensou que cara feia não ia resolver nada. Assim, sorriu também e, por certo, tão simpaticamente como o garçom.

 

— Desde quando está de serviço aqui, amigo? — perguntou-lhe.

 

— Desde as oito, monsieur.

 

— Ah... Bem. Diga-me quanto lhe devo — sacou uma nota de vinte dólares e acentuou o sorriso. — Não vou querer troco, mas sim uma resposta. Cobre.

 

— Está pago, monsieur.

 

— Como?

 

— Sua vodca está paga. E com uma gorjeta maior ainda que a sua... sem intenção de ofender.

 

— Minha vodca está paga?

 

— Como lhe disse.

 

— Por quem?

 

— Pela pessoa que me disse que o senhor viria tomá-lo.

 

— Ela disse...? E como sabe você que sou a pessoa a quem se referiram?

 

— Oh, é tão fácil... Ela me disse que um homem louro viria tomar vodca, um tipo atlético, elegante e simpático. E devo admitir que a descrição não podia ser mais exata. Ela se explicou muito bem.

 

— Refere-se àquela que esteve falando desse telefone? — o russo indicou-o.

 

— Justamente.

 

— Era americana?

 

— Oh, não... Francesa. Uma linda francesinha estupendamente simpática.

 

Val Angelof franziu a testa. Que espécie de gorjeta teria recebido aquele homem...?

 

— Como era ela? — perguntou.

 

— O senhor não a conhece? — assombrou-se o garçom.

 

— Claro que sim — mentiu. — Só desejo certificar-me de que se trata da mesma pessoa que eu penso.

 

— Compreendo. Bem... Como era ela? Bem... Só encontro uma palavra para defini-la: uma deusa.

 

— Uma... deusa?

 

— Sim. Nunca vi beleza igual em minha vida.

 

— Ah... Loura ou morena?

 

— Loura. E com uns olhos verdes sensacionais. Quanto ao... resto, monsieur, só lhe direi que não existe nada de semelhante no mundo.

 

— Está bem... Muito obrigado. E embora minha gorjeta não seja tão generosa como a dela, gostaria que a aceitasse.

 

— De, maneira nenhuma! Ela me recomendou que não o fizesse. Além disso — pôs-se a rir —, avisou-me que, se não a atendesse, voltaria para... me torcer o pescoço. Além de muito simpática, como sabia brincar...!

 

— Sim — sorriu o russo. — Se tomar a vê-la, transmita-lhe meus agradecimentos. Adeus.

 

— Assim farei, monsieur. Boa-noite.

 

Val Angelof abandonou o bar. Não sabia se tinha razão para sentir-se furioso ou para, mais desportivamente, achar graça no aspecto humorístico da situação. Em doze anos de espionagem, nunca lhe havia ocorrido nada igual. Todos os casos em que interviera tinham sido perigosos, senão sórdidos, envolvendo-o sempre numa surda luta quase rufianesca... Tomara-se um dos melhores agentes do MVD não exatamente à custa de sorrisos, mas de sangue, de angústia, de temor. Sabia muito bem o que era o medo de ser descoberto de um momento para outro, de modo que lhe causava intensa admiração aquela mulher que lhe telefonara de um bar, deixando paga uma dose de vodca para seu... adversário. E com que perfeição falava o russo! Na verdade, se algo de bom já lhe ocorrera em doze anos de luta, com três balaços e três facadas no corpo, era ter que enfrentar semelhante inimiga.

 

E algo tinha que admitir definitivamente: Baby não só era simpática, mas dotada de verdadeiro espírito esportivo.

 

— De acordo — pensou, enquanto regressava à classe de luxo: — será uma luta em alto estilo.

 

Chegou ao corredor dos camarotes de luxo e dirigiu-se diretamente para o marcado com a letra G: Lógico: se Omar Ibn Muza estava no H e Rita no I, a agente da CIA tinha seu quartel-general no G, quer dizer, protegendo o outro flanco do jovem príncipe.

 

Bateu levemente na porta, sorrindo. Por que não? Ambos possuíam Suficiente categoria para permitir-se esta espécie de luxo.

 

Tomou a bater, sem resposta... Olhou para ambos os lados do corredor e, em seguida, introduziu na fechadura um fino arame que tirou do cinto. Bastaram-lhe dez segundos para abrir a porta, duas polegadas. Dentro não havia mais que escuridão. Abriu um pouco mais, aproximou a boca na fenda e sussurrou: — Sou Angelof. Venho em paz.

 

Não obteve resposta. Franziu a testa, acabou de abrir a porta e entrou. Estava certo de que aquela mulher não atiraria estupidamente contra um “colega” ao qual vinha de oferecer uma dose de vodca. Fechou a porta atrás de si e acendeu a luz.

 

No camarote não havia ninguém. Mas, para certificar-se, olhou no banheiro. Nada. Abriu o armário e não tardou a ver a nota presa a um dos vestidos. Dizia:

 

Por favor, procure não desarrumar minhas coisas.

 

E se já fez o que tinha que fazer com Laglen e tomou a vodca no “Antineia”, não acha que devia ir descansar?

 

Saudações cordiais

 

— Fantástico... — sorriu Angelof. — Absolutamente fantástico!

 

Pôs-se a examinar os vestidos, ainda sorrindo... Mas seu sorriso logo desapareceu. Se esperava encontrar alguma pista naquele camarote, ou no armário, o melhor era esquecer.

 

Compreendeu-o assim ao notar que um dos vestidos era um modelo parisiense, com as medidas adequadas para uma jovem de corpo esplêndido. O seguinte, de gosto vulgar, correspondia a uma mulher um tanto gorda. O terceiro, modesto, serviria para uma jovem baixa e magra. No chão do armário havia sapatos de salto alto, salto baixo, salto médio...

 

Uns maiores que outros, uns elegantes, outros grosseiros...

 

— Que coisa...! — resmungou o russo. — Não posso morrer sem ter visto essa mulher!

 

Deixou tudo como havia encontrado, exceto a nota, que guardou num bolso. Depois, sentou-se numa cadeira, olhando para o beliche, que estava aberto, como se alguém nele se tivesse recostado. Que perfeição de detalhes, que elegância e segurança de movimentos, que admirável domínio da situação!

 

Tranquilamente, acendeu um cigarro, pensativo. Claro que não tinha sono. E lhe custaria dormir durante as noites seguintes... O cigarro consumia-se entre os seus dedos.

 

Súbito, levantou-se e, segundos depois, quase lançou uma exclamação. Claro! Tinha que ser assim...!

 

Saiu do camarote G, para deter-se um instante depois à porta do I. Bateu de leve. Segundos depois tomou a bater, quase ao mesmo tempo que ouvia a voz sonolenta de Rita Macguillicudy do outro lado da porta: — Que-quem é...?

 

Ele aproximou a boca da fechadura.

 

— Deixe de gaguejar, Rita.

 

A porta se abriu e a professora ficou visível, num longo, fechado e grosso camisolão azul escuro. Olhava-o com os olhos muito abertos e um ar de preocupação.

 

— Posso entrar? — perguntou o russo.

 

— O que... o que quer...?

 

Ele entrou, fechou a porta e olhou a seu redor. Por fim, foi sentar-se na beira do beliche e bateu com a mão no lugar a seu lado, sobre os lençóis.

 

— Sente-se aqui, Rita.

 

— Não...

 

— Venha.

 

— Eu... eu... não quero sentar-me com...

 

— Não diga tolices e venha. Temos que falar. Ou devo ir buscá-la?

 

Rita Macguillicudy aproximou-se do beliche, sentando-se o mais longe possível do espião soviético. Olhou-o, ruborizou-se e baixou a cabeça. Ele sorriu ao contemplar seus longos cabelos castanhos, seu pescoço bonito, delicado... Quanto à verruga, podia ser suprimida, sem dúvida. Um bom cirurgião... Súbito, Angelof carregou o cenho.

 

— Como sabia Baby que era preciso eu subir ao convés às dez e quatro minutos, exatamente? — perguntou.

 

— Quê...? Quem...?

 

— Estou falando de Baby. Da mulher que viaja neste navio para protegê-los.

 

— Não... não sei do que...

 

— Rita, já é tarde e não quero incomodá-la muito. Mas não sairei daqui sem que responda minhas perguntas. Quando digo Baby, você sabe muito bem a quem me refiro... Ou não?

 

— É que... essa mulher não se chama assim...

 

— Ah... E como se chama?

 

— Miss Paz.

 

— Miss P...? Oh, está bem. Não tenho a pretensão de averiguar seu verdadeiro nome tão facilmente. De acordo, chamemo-la Miss Paz. Agora, repetirei minha pergunta e quero uma resposta: como sabia ela que você e Omar Ibn Muza seriam atacados exatamente às dez horas e quatro minutos?

 

— Eu... eu lhe disse.

 

— E como é que você sabia?

 

Rita olhou para ele e, súbito, escondeu o rosto entre as mãos, soluçando. O russo passou-lhe um braço pelos ombros, afetuosamente.

 

— Vamos, vamos, Rita... Você não deve temer nada. Por minha parte, tenho uma missão muito específica e invariável nesta viagem e não tenciono afastar-me dela, salvo se as circunstâncias o exigirem. Não estou aqui para prejudicar você. Pelo contrário, já lhe disse...

 

— Foi horrível, Vai... Horrível!

 

— A que se refere?

 

— Queriam... queriam me jogar no mar também...

 

— Evidentemente. Isso não me surpreende, querida.

 

— Mas eles... eles tinham dito que... que...

 

— Eles? Refere-se a Laglen e seus dois assassinos?

 

— Sim...

 

— Rita: você estava em cumplicidade com eles?

 

— Estava... Bem, que-quero dizer que...

 

— Diga o que for, mas sem tartamudear!

 

— Tentarei... Tudo começou nos Estados Unidos, quando vieram me oferecer cem mil dólares por intermédio de um antigo conhecido de Saamadia, chamado Mustafá Dirama, para colaborar no... no assassinato do príncipe.

 

— Você aceitou?

 

— Sim.

 

Ela fixou então os olhos do russo, mas nada viu neles: o rosto de Val Angelof tinha-se transformado numa inexpressiva máscara.

 

— Continue — instou.

 

— Essa mulher, Miss Paz, chegou quando eu tinha que entrevistar-me com Mustafá Dirama e matou-o. Encontrou em sua carteira um cheque de cem mil dólares contra um banco suíço embora a princípio parecesse acreditar que era o preço cobrado por Mustafá para a eliminação de Omar, depois pensou melhor e descobriu-me. Disse que ninguém que fosse cometer um assassínio traria consigo um cheque como aquele, mas que o deixaria em lugar seguro. Que também não se meteria sozinho num vespeiro de agente da CIA, com a vã intenção de eliminar sua vítima a tiros. Que teria sido diferente com uma bomba, por exemplo.

 

— Total Miss Paz chegou à conclusão de que aquele homem não tinha ido lá para matar ninguém, mas para pagar alguém por determinados serviços. Por isso, levava o cheque, por isso meteu-se no vespeiro, pois não pensava molestar as vespas, mas entregar-lhe o cheque, dar-lhe instruções e partir. É isso?

 

— É... Ela pensou assim e, já em Nova Iorque, me ameaçou... É uma fera, Val. Uma mulher horrível!

 

— Nem tanto, pelo que me disseram de sua beleza — sorriu o russo. — Mas disso falarem depois. Que mais aconteceu?

 

— Tive que confessar-lhe tudo. Então, essa mulher me disse que podia escolher entre ser denunciada e entregue aos fiéis de Omar Ibn Muza, ou colaborar com a CIA. Escolhi ajudá-la... Então, começou a pedir coisas aos dois homens que estavam conosco preparando os passaportes falsos...

 

— Que coisas pediu?

 

— Oh... Vestidos diferentes, sapatos... Além disso, exigiu que lhe conseguissem dois camarotes de primeira classe no “Titânia”, separados, com nomes diferentes. Não entendi muito bem tudo isso...

 

— Eu entendo, não se preocupe. Que mais?

 

— Bom... Viemos para bordo e segui suas instruções: permaneci três dias no camarote. Depois me deixei ver. Ela me dissera que, posto que os que desejavam assassinar Omar sabiam e nossa presença no “Titânia”, estariam aqui, e que viriam pedir-me explicações sobre o ocorrido com Mustafá Dirama. E assim foi. Laglen convidou-me para jantar e preparamos tudo...

 

Rita prosseguiu em sua explicação, atentamente ouvida pelo soviético, que ia assentindo com a cabeça. Quando terminou, ele permaneceu uns segundos em silêncio, antes de murmurar.

 

— Então, você avisou Miss Paz e ela lhe disse para subir ao convés com Omar, na hora marcada por Laglen. Enquanto isso, utilizando seu nome, certificou-se de que eu estaria ali no momento oportuno, enviando-me um bilhete. Muito bem arquitetado, mas perigoso, não acha? Pôs em jogo sua vida e a do príncipe...

 

— Não, não... Deu-nos a Omar e a mim uma espécie de coletes contra balas, que colocamos sob nossas roupas. Quer ver o meu? — foi ao armário e trouxe o colete ao russo, que o examinou sorridente, aprovando com movimentos de cabeça. — Além disso, afirmou que durante todo o tempo estaria perto de nós, para intervir se fosse necessário.

 

— E estava? Você a viu?

 

— Não... Mas se ela disse, é que estava lá. Você não a conhece. É fria, metódica, implacável... Sinto arrepios cada vez que penso nela!

 

— Está bem, acalme-se — disse o russo, manuseando ainda o colete de fibra de titânio. Parece que essa mulher é capaz de prevenir tudo, realmente. Tudo. Mas, ainda assim, não compreendo por que teve que arriscar a vida de vocês. O que pretendia com isso? Acha que ela pode ser uma... louca, Rita?

 

— Não, não. Disse que com os coletes não devíamos temer nada, mas que apesar disso estaria por perto, pronta para matar três homens em menos de dois segundos.

 

— Isso não duvido — aceitou Angelof. — Mas ainda não me disse o que ela pretendia fazendo-os correr esse risco.

 

— Queria saber quais os assassinos que havia a bordo, para eliminá-los e não ter mais que se preocupar com eles.

 

— Compreendo... — o homem do MVD pareceu estremecer ligeiramente. — E já o conseguiu. Não só estão mortos os dois dos convés, como, pessoalmente, ela se encarregou de seu chefe, o tal Laglen: meteu-lhe um estoque na garganta.

 

— Meu Deus! Já lhe disse que é uma mulher horrível...!

 

— Não necessariamente. Ela está fazendo seu trabalho. E agora compreendo que de maneira estupenda. Não perdeu o controle da situação nem um só momento. Talvez você não o entenda assim, Rita, mas essa mulher, profissionalmente falando, é formidável. Diga-me: que acontecerá com você quando terminar a viagem?

 

— Ela prometeu que, se a ajudasse, me daria os cem mil dólares e me deixaria partir sem ter incomodada.

 

— É muito generosa. E tenho a impressão de que é pessoa que cumpre o que promete. Em cujo caso, de acordo com o que me disse na nota que encontrei no cadáver desse Laglen, ela me passará pessoalmente a custódia de Omar Ibn Muza quando chegarmos ao Havre. Enquanto isso e já que o perigo terminou...

 

— Terminou? — repetiu a professora, na dúvida.

 

— Claro. Se Laglen e seus homens estão mortos...

 

— Más, Val... ela me disse que havia a bordo mais pessoas implicadas no assunto. As pessoas que por intermédio de Mustafá Dirama me... me subornaram nos Estados Unidos e, que são as mesmas que deram instruções a Laglen, aqui, neste navio.

 

Angelof mordeu os lábios.

 

— Compreendo... Claro, eu devia ter pensado nisso.

 

— Estou com medo, Val... Medo de tudo, agora...

 

— Bom — ele sorriu. — Não quero parecer-lhe um fanfarrão, Rita, mas não deve temer nada enquanto eu estiver com você.

 

— Não tenho medo quando você está, não... Mas você irá embora e...

 

— Por quê?

 

— Por que... quê?

 

— Por que hei de ir, Rita?

 

Ela olhou-o fixamente. Súbito, seus lábios tremeram.

 

Baixou a cabeça...

 

— Val... — murmurou. — Não deve dizer isso...

 

— Eu não preciso voltar para o meu camarote. Posso lhe fazer companhia até que amanheça.

 

— Está zombando de mim...

 

— Não. Que tem de estranho que eu a ame? Há algo de... incompreensível em tudo isto. Não sei o que possa ser, mas percebo. Nós, os espiões, temos um sexto sentido e o meu me faz encontrar uma rara doçura neste assunto... Creio que é você, Rita. Esqueça tudo, inclusive esses cem mil dólares. Não sou um homem rico, mas posso dar-lhe o que necessite. Você terá apenas que desembarcar no Havre e partir com meus companheiros, que estão esperando Omar... e que esperam por mim em Moscou. Só isso.

 

— Val!

 

— Que responde?

 

— Por Deus, eu... não sei que dizer... Tudo , me parece um sonho... Eu...

 

— Não gagueje, Rita — sorriu ele, segurando-lhe o queixo. — Vamos: que responde?

 

— Não sei... É tudo belo demais para mim... Quando o encontrei, Val, foi como se meu sangue começasse a circular de novo, como se para mim se iniciasse uma nova vida...

 

— Conheço esses sintomas... Fico esta noite?

 

— Val... — ela suspirou profundamente. — Eu preferia esperar... até nos encontrarmos em Moscou. Mas se você quiser agora...

 

— Não — atalhou ele. — Não. Rita. Já que assim prefere, esperaremos até que estejamos juntos em Moscou. Boa-noite.

 

Ela fechou os olhos e seus lábios tremeram.

 

Val Angelof beijou-a devagar, profundamente. Segundos depois, quando saiu do camarote, também pensava que seu sangue tinha começando a circular de novo, que para ele se iniciava uma nova vida.

 

Só vendo em pessoa...

 

— Aí tem, cavalheiro.

 

— Obrigado.

 

Na loja de artigos fotográficos do segundo convés, Vai Angelof recebeu o envelope que o empregado lhe estendia.

 

Abriu-o e sacou as fotos ampliadas, contemplando sorridente o rosto de Rita Macguillicudy, enquanto sentia aquela deliciosa aceleração de seu sangue. Estranho... Rita não era bela, nem um pouco. Entretanto...

 

— Merecem sua aprovação, cavalheiro?

 

Ergueu vivamente a cabeça e sorriu para o empregado.

 

— Oh, sim... Estão muito bem reveladas, obrigado. E as ampliações são excelentes. Um bom trabalho.

 

— O senhor é muito amável. Aqui tem o microfilme...

 

Parece coisa de espiões, não?

 

— Parece — riu o russo, — mas trata-se apenas de uma brincadeira. Nos Estados Unidos venderam-me este isqueiro, que tem dentro uma câmara fotográfica e quis verificar como funcionava.

 

— Pois funciona muito bem. Certamente, vale o preço que pagou por ele.

 

— Estimo que pense assim. Ah, ia-me esquecendo: creio que ontem veio cá uma senhorita para que revelassem umas fotos minhas... Talvez esteja lembrado...

 

— Lembro-me perfeitamente. Ambos estão se entregando a uma divertida brincadeira, não há dúvida.

 

— Ah, sim? A que se refere?

 

— É que a senhorita que mandou revelar suas fotos também tem um isqueiro parecido com esse. Bom... era mais luxuoso, de platina e diamantes: uma verdadeira joia.

 

— Sim... É esta a senhorita que mandou revelar as fotos minhas? — mostrou os retratos de Rita Macguillicudy, esperando a reação do Empregado, que não se fez esperar.

 

— Claro que não, cavalheiro!

 

— Oh, pois então ignoro quem possa ser. É que somos vários amigos viajando juntos, por isso não sei... Como era ela? Loura?

 

— Não, não...

 

— Não! — o russo ficou estupefato.

 

— Não o senhor.

 

Angelof recordou-se da descrição que lhe fizera o garçom do “Antineia” na noite anterior.

 

— Não era uma loura de olhos verdes, com uma anatomia — sorrindo, fez uma modelagem no ar — sensacional? Você me entende...

 

— Entendo, cavalheiro — sorriu também o empregado.

 

— Mas a senhorita de que falo tinha olhos escuros, era um tanto rechonchuda, de cabelos curtos e... negros, diria eu.

 

— Rechonchuda, de olhos escuros e...?

 

— Sim senhor. Lembro-me bem, pois era muito simpática.

 

— Ah, sim... Já sei. Bem: quanto lhe devo?

 

— Nada, cavalheiro.

 

— Nada?

 

— Claro. A senhorita em questão disse que o senhor viria hoje aqui para revelar umas fotos e pagou antecipadamente o trabalho. Estão brincando bastante nesta viagem, não é mesmo?

 

— É... — Angelof sorriu como se lhe doesse o estômago.

 

— Estamos brincando bastante. Obrigado por tudo e adeus.

 

Saiu da loja pouco menos que soltando faíscas e com uma vontade terrível de arremessar o isqueiro contra uma parede.

 

De que servia, se nem uma só vez tinha visto Baby e as duas descrições que possuía eram totalmente diversas? Nem sequer podia fazer um desenho baseado nelas, para depois fotografá-lo e...

 

— Um desenho! — exclamou quase em voz alta. — Como não me ocorreu antes?

 

Rita e Omar viraram a cabeça, um pouco sobressaltados, ao ouvir a campainha do telefone. Ela deixou o livro sobre a mesinha e foi atender.

 

— Alô.

 

— ...?

 

— Oh, sim. Vai! Sou eu. Que...?

 

— ...?

 

— Ao seu camarote? Agora?

 

— ...

 

— Bem. Irei imediatamente.

 

Desligou e virou-se para o rapazola, que a olhava com atenção.

 

— É o agente russo? — perguntou ele.

 

— Sim. Volto já. Não abra para ninguém.

 

Saiu do camarote, caminhou pelo corredor e deteve-se diante da porta K, que se abriu de imediato. Entrou... e encontrou-se nos braços de Val Angelof que a beijou na boca.

 

— Val... — arquejou ela, olhos brilhantes. — Se continuar me beijando assim, não chegarei viva a Moscou!

 

Ele tornou a beijá-la e, afastando-a de si, olhou-a criticamente.

 

— Você viu Miss Paz, não?

 

— Claro.

 

— Bem. Sente-se. E preste bem atenção, Rita. De acordo?

 

Ela assentiu com a cabeça, sentou-se e o russo ficou à sua frente, tendo em cada mão uma folha de papel de desenho.

 

Súbito, virou ambas as folhas, mostrando-lhe os dois rostos que tinha desenhado.

 

— Qual destas é ela?

 

— Ela?

 

— Miss Paz.

 

— Oh... Mas não é nenhuma dessas, Val...

 

— Nenhuma?

 

— Não... Ela não é assim...

 

— Como é?

 

Rita baixou a cabeça, sem responder. Angelof ajoelhou-se diante dela, tomando-lhe as mãos.

 

— Como é ela, Rita? — insistiu.

 

— Não posso dizer, Vai.

 

— Por que não?

 

— Ela me advertiu que você me perguntaria e... me ameaçou. Disse que se a descrevesse para você, ela faria de mim...

 

— Faria de você o que, Rita?

 

— Picadinho.

 

— Picadinho? Que tolice! Ora vamos, Rita...

 

— Você está comigo, não deve temer nada. Ouça, quero que saiba a verdade: fui enviado de Moscou exclusivamente para obter fotografias de Miss Paz. E tenho que conseguir isso, seja como for! Já que ela não se deixou ver por mim nem um só momento, tenho que fazer-lhe um retrato.

 

Compreende? Você tem que me dizer como é, detalhe por detalhe...

 

— Val, ela se portou bem comigo, no fundo... Se eu não fosse com você para a Rússia, poderia viver na Itália ou na Espanha, tranquilamente, o resto de meus dias...

 

— É muito possível que esteja lhe enganando, Rita.

 

— Não, não...

 

— Rita, tenho que conseguir esse retrato.

 

— Que acontecerá, se não o conseguir?

 

Ele abriu a boca, disposto a dizer a maior mentira que lhe ocorresse. Mas disse: — Certamente nada. Compreenderão muito bem que não o pude conseguir. Seria apenas um... um fracasso em meu trabalho. Para meus chefes, só isso. Para mim, um espinho que ficaria por muito tempo cravado em minha carne.

 

— E se eu lhe disser como ela é?

 

— Serei felicitado com grande entusiasmo. Essa mulher, Rita, é inimiga da Rússia.

 

— Ela disse que não era inimiga de ninguém.

 

— Ouça: não quero discutir com você. Mas gostaria de explicar-lhe o que eu sentiria diante deste fracasso. Você não é espiã, Rita, não sabe como somos... Tenho admiração por Miss Paz, mas preciso fazer o que em ordenaram. É meu dever. Até ela o entenderia!

 

— Miss Paz entenderia?

 

— Claro que sim!

 

— Bom... Não sei...

 

Angelof tomou rapidamente seu bloco, sentando-se ao lado dela, no sofá.

 

— Você irá ditando seus traços e corrigindo meus enganos. Só isso. Depois teremos todo o dia para nós. Não se falara de espionagem, de nada... Miss Paz deve saber quem é o homem que pagou Laglen e os outros. Deixemos que ela termine o trabalho, que complete sua parte. Você e eu, depois de fazer o retrato, só pensaremos em nós. E amanhã, quando chegarmos ao Havre, você seguirá para Moscou num avião especial.

 

— E você?

 

— Não tardarei a ir ao seu encontro... Rosto redondo? — ele tinha o lápis em riste.

 

— Não, ovalado... O queixo é forte...

 

Angelof traçou o contorno de um rosto feminino e, após olhá-lo, Rita assentiu.

 

— É... Algo assim.

 

— Cabelos longos ou curtos?

 

— Oh, bem curtos... Isso mesmo...

 

— Nariz reto, arrebitado...?

 

— Um tanto aquilino... e algo grosso... Assim...

 

— Boca?

 

— Bem grande, de lábios finos. Sim, é isso. Talvez maior ainda...

 

— Compreendo. Está melhor agora?

 

— Está.

 

— Olhos grandes ou pequenos? Juntos ou muito separados?

 

— Pequenos e bastante juntos. O olhar é fixo, penetrante... Como o de uma águia. Não, não, as sobrancelhas são mais espessas, um pouco hirsutas...

 

O russo acabou o retrato em sua primeira fase, lançou-lhe uma olhadela e estremeceu. Com aquela cara, a agente Baby podia matar qualquer um de susto. Olhou os outros dois retratos que tinha feito e sacudiu a cabeça, irritado. Uma loura deslumbrante, uma morena rechonchuda e sem personalidade, uma... bruxa de olhar perverso ...

 

— Você está certa de que ela é assim?

 

— Estou, Val. Certíssima.

 

— Três aspectos totalmente diferentes. E sinto que nenhum deles é o verdadeiro... Vamos deixar isso, Rita.

 

— Já não quer saber como ela é?

 

— Quero. Mas só há uma possibilidade: vê-la eu mesmo.

 

— Mas se ela não se deixa ver...

 

— Deixará. Disse que me entregaria pessoalmente a custódia do príncipe ao chegarmos ao Havre. E sei que o fará. É minha última chance, que não tenciono deixar escapar. Enquanto isso — fez a professora levantar-se —, pensaremos somente em nós, Rita.

 

Os peixes não saber ler

 

— Não está?

 

— Omar Ibn Muza, que abrira a porta após certificar-se de que era Val Angelof quem batia moveu negativamente a cabeça.

 

— Não senhor. Saiu.

 

— Saiu? Estamos chegando ao Havre... Seria melhor que ela se ocupasse da bagagem de ambos, Alteza.

 

— Oh, isso já está feito. Temos tudo preparado.

 

— Bem. Aonde ela foi?

 

— Creio que foi me comprar um presente de despedida, numa das lojas. Sentirei separar-me dela, pois ultimamente estava muito gentil e agradável.

 

— Sim, compreendo...

 

— Espero que seus amigos nos estejam esperando, senhor Angelof, e que minha viagem prossiga com a mesma segurança que até agora.

 

— Sem dúvida, Alteza. Todas as providências foram tomadas. Teremos apenas que apresentar os passaportes, tomar um carro e, juntamente com meus companheiros, seguir até um avião especial. Nenhum motivo para preocupações.

 

— Ótimo. Gostaria de poder dizer-lhe, senhor Angelof, que quando ocupar o trono de Saamadia convencerei meus conselheiros da grande amizade que nos dedica a Rússia. Entretanto, tampouco posso esquecer que os americanos fizeram muito por mim.

 

— Compreendo — sorriu o agente do MVD.

 

— Vossa Alteza sabe pensar e isso é bom. A Rússia apreciará muitíssimo a amizade de Saamadia.

 

— Mesmo compartilhando-a com os Estados Unidos?

 

— Bom, se não há mais remédio...

 

O rapazola pôs-se a rir.

 

— Acho-o também simpático, senhor Angelof. Quase tanto como ela, como Miss Paz... Todos os espiões são assim?

 

— Temo que não... — riu o russo. — A propósito, Alteza: como é Miss Paz? Loura, morena, alta, baixa, bonita, feia, gorda...?

 

— Jurei pelo Corão nunca o dizer a ninguém, senhor Angelof. Mais ainda: a partir do momento em que nos separarmos, nunca deverei demonstrar que a conheço, caso nos tornemos a ver, salvo se ela mesma se aproximar de mim.

 

— Compreendo. Bem. — Val Angelof consultou seu relógio —, espero que Rita não demore muito. Já devia estar aqui...

 

— Quem é? — perguntou Ahmed Douna.

 

— Serviço — respondeu uma voz feminina, no corredor.

 

— Serviço a estas horas, quando já estamos chegando... — resmungou Ahmed. Olhou para o gordo Muhammad Fijek. — Abro?

 

— Veja o que quer... E será melhor você ir para o convés. É nossa última oportunidade. Não, falhe você também.

 

— Não compreendo o que houve com Laglen. Desapareceu... Agora eu mesmo me encarregarei do príncipe e garanto que...

 

— Senhor? — tomaram a ouvir a voz, ao mesmo tempo em que eram repetidas as batidas na porta.

 

— Deixe entrar essa estúpida e vá matar o garoto — grunhiu Fijek.

 

Ahmed, assentindo com a cabeça, abriu a porta.

 

Sobressaltou-se ao ver a mulher, que certamente não era a camareira, nem nada parecido.

 

— Posso entrar? — perguntou ela.

 

O feio árabe virou-se para seu amo, que se havia endireitado em sua poltrona. Através dos óculos quase negros, ele examinava friamente aquela que aparecera na porta.

 

— Deixe-a entrar. Se não estou enganado, pelas descrições que temos dela, é miss Macguillicudy... Não é verdade?

 

Ahmed tinha fechado a porta e miss Macguillicudy, apertando nervosamente o guarda-chuva, já estava no centro do camarote.

 

— É verdade, senhor Fijek.

 

Muhammad tirou os óculos, deixando a descoberto seus olhos escuros, brilhantes, que pareciam afundar em seu rosto gordalhufo. Olhou cada vez mais friamente a professora, de cima a baixo.

 

— Bem... Talvez tenha vindo explicar-me por que o príncipe continua vivo e eu não tenha notícias de Laglen.

 

— Exato... Foi ao que vim, senhor Fijek.

 

— Como sabe meu nome? Proibi a Laglen que o mencionasse. E... como encontrou este camarote?

 

— Segui Laglen a outra noite e vi-o entrar aqui. Depois me inteirei dos nomes dos ocupantes do camarote: Muhammad Fijek e Ahmed Douna.

 

— Onde está Laglen?

 

— Onde queria que eu estivesse agora, senhor Fijek? No fundo do mar. Quando seus homens fracassaram e morreram, ele veio correndo a seu camarote, como um coelho assustado à procura de abrigo em sua toca. Não sabia o que fazer. E eu... tirei-o das dúvidas.

 

— Matou-o?

 

— Sim.

 

— Você? — sorriu desdenhosamente Fijek.

 

— Eu.

 

— Bem... Talvez seja verdade. Por que não? Mas se fez tal coisa e sabe o que eu pretendia a seu respeito, não compreendo o que deseja vindo aqui. Dinheiro, talvez?

 

— Todo o seu dinheiro, senhor Fijek. Já não me satisfaço com cem mil dólares.

 

— Oh... Creio que está sobrestimando suas forças, não lhe parece?

 

— Nunca cometo essa espécie de imprudência. E agora, Fijek, vai me entregar seu dinheiro... ou eu mesma o procurarei.

 

— Não o encontraria nunca... — riu o árabe. — Vamos, o que está pretendendo realmente? Já teve muita sorte, conservando-se viva... Por que buscar complicações? Se dispuséssemos de mais tempo, eu pediria a Ahmed que se encarregasse de você, mas temos algo mais importante a fazer, precisamos desembarcar... Aproveite a sorte que teve e vá-se embora, do contrário...

 

— Do contrário?

 

— Ahmed se encarregará de que não saia viva daqui.

 

— Tolices... — sorriu friamente a professora. — Tolices, Fijek.

 

O gordíssimo personagem entrecerrou as pálpebras.

 

— Tem três segundos para retirar-se... Embora, pensando bem, pudesse ser metida numa das minhas malas... Caberia de sobra, pois são muito grandes. Afinal, por que deixá-la viva, com essa língua solta que tem? Posso metê-la numa de minhas malas e... enterrá-la em Saamadia. Que lhe parece?

 

— Que é uma boa ideia... Mas duvido que a possa pôr em prática.

 

Muhammad Fijek olhou para seu acompanhante.

 

— Mate-a, Ahmed — murmurou.

 

A mão direita de Ahmed saiu do bolso, ouviu-se um estalido e a lâmina da navalha apareceu, brilhando à luz do sol que penetrava pela vigia. Muito perto, via-se o cais do Havre.

 

— Faça depressa. Que não grite.

 

Ahmed brandiu a navalha, saltou para miss Macguillicudy... e ficou espetado pela garganta da ponta do guarda-chuva dela, onde havia aparecido um finíssimo estoque, que durante uns segundos manteve de pé o fulminantemente morto assassino, cujos olhos tinham se arregalado. A navalha caiu e, então, arrancando o estoque da garganta do cadáver, a professora virou-se para Muhammad Fijek e encostou a ponta também na garganta dele, enquanto Ahmed tombava de bruços.

 

— O dinheiro, ou...

 

— Espere... Espere! — gritou o gordo. — Está no armário, dentro de uma pequena maleta...

 

— Muito bem.

 

Ela deixou o guarda-chuva-estoque sobre a mesinha, foi ao armário, abriu-o... e virou-se ao ouvir arquejar o obeso oriental. Viu-o com o guarda-chuva nas mãos, ameaçando-a com a fina lâmina de aço.

 

— Quieta! Vou lhe ensinar...!

 

Lançou-se contra ela, que se afastou com uma serenidade arrepiante. O estoque se cravou na porta do armário.

 

Bufando, Fijek começou a puxar com força o cabo do guarda-chuva... Finalmente, com um rugido de triunfo, arrancou a lâmina, virou-se e viu a inglesa junto ao cadáver de Ahmed, olhando-o com um sorriso muito especial.

 

Investiu como um touro.

 

O braço direito da professora moveu-se tão velozmente, que o árabe mal pôde ver aquela coisa brilhante sair de sua mão. Menos de um segundo depois tinha a navalha de Ahmed cravada na garganta.

 

Ficou de pé, arquejando roucamente, os olhos como querendo sair das órbitas. Sua mão soltou o guarda-chuva.

 

Caiu de joelhos, depois de lado. Miss Macguillicudy foi até ele, desabotoou-lhe a camisa, puxou para cima sua camiseta e tirou o cinturão de couro que ele escondia sob as roupas.

 

Abriu alguns dos compartimentos, sorrindo ao ver os maços de cédulas de mil dólares. Ergueu-se, levantou a saia e colocou em si mesma o cinturão, enquanto deixava à mostra umas pernas sensacionais, de pele dourada.

 

— Voilà! — tornou a sorrir. — O que não vai ser tão fácil, gorducho, é metê-lo numa de suas malas. Mas aposto que o conseguirei e que você chegará sem novidade a Saamadia...

 

— O que aconteceu com você? — exclamou Angelof. — Pensávamos que tinha se perdido no navio.

 

 

— Desculpe, Val... Oh, Alteza, aqui está meu presente de despedida...

 

Estendeu o pacote a Omar, que o tomou com um sorriso de agradecimento.

 

— Eu o conservarei sempre comigo, miss Macguillicudy.

 

Muito obrigado.

 

— Também estou agradecida a Vossa Alteza, por tudo — sorriu a professora. — Foi uma viagem emocionante, não é verdade?

 

— Muito. Aprendi muitas coisas durante a travessia. E nunca a esquecerei, miss...

 

— Desculpem — impacientou-se Angelof —, mas precisamos desembarcar. Já colocaram a passarela... Não se preocupe com a bagagem, Rita: já me encarreguei de tudo... Meus amigos a recolherão quando for desembarcada.

 

— Bem. Já podemos ir. Não sei se estou esquecendo alguma coisa: sempre tenho essa impressão... Vamos. O convés deve estar cheio de passageiros prontos para desembarcar.

 

Saíram do camarote, a caminho do convés onde havia sido colocada, para os passageiros da classe de luxo, a correspondente passarela. Já estavam entre as excitadas pessoas dispostas a desembarcar em poucos segundos, quando miss Macguillicudy lançou uma exclamação.

 

— Eu sabia! — disse com um gritinho.

 

— Que foi? — Angelof carregou o cenho.

 

— O livro de História da Babilônia... Deixei-o sobre a mesinha de cabeceira!

 

— Deixe ficar. Poderá comprar...

 

— Não, não... Oh, Val, perdoe-me, mas vou buscá-lo... Volto num instante!

 

— Está bem... Vá depressa.

 

— Já avistou seus companheiros?

 

— Já. Estão à espera. E eles também nos viram... Não demore, Rita, por favor.

 

— Volto já. Cuide de Sua Alteza.

 

— Sim, mulher...

 

Rita sorriu, beijou um dedo e soprou para o agente do MVD, que retribuiu-lhe o sorriso. Depois ela desapareceu entre as pessoas que esperavam para desembarcar.

 

Dez minutos depois, na extremidade da passarela, estavam apenas Val Angelof e Omar Ibn Muza, este muito tranquilo. Mas o soviético começava a empalidecer. A verdade ia entrando lenta, muito lentamente em seu cérebro, pois se negava a admiti-la. E a cada segundo sua palidez era maior...

 

— Com licença.

 

— Perdão —, murmurou, afastando-se para um lado.

 

Normalmente, prestaria grande atenção à belíssima passageira que, demonstrando grande elegância, não parecia ter nenhuma pressa em desembarcar. Valeria a pena: mais alta que baixa, corpo sensacional, abundante cabeleira negra, maravilhosos olhos azuis... Desceu pela passarela com uma graça absoluta, agitando a mão direita para um cavalheiro que parecia esperá-la. Na mão esquerda, levava uma bonita maletinha vermelha, adornada de flores azuis... Mas, desviando os olhos um tanto distraídos de tão estupenda criatura, ele tornou a olhar para a entrada dos camarotes.

 

Súbito, olhou para o muito paciente príncipe Omar Ibn Muza, que sorria de um modo estranho.

 

— Alguma recordação agradável, Alteza?

 

— De fato. Não vamos desembarcar?

 

— Creio que irei ver se aconteceu alguma coisa com Rita...

 

Era sua última esperança. Mas Omar desiludiu-o.

 

— Oh, ela já deve ter desembarcado faz tempo... Quer a carta agora?

 

Val Angelof engoliu em seco, não sem dificuldade.

 

— Que... que carta?

 

— A que ela me entregou para o senhor.

 

— Ela? Rita?

 

— Sim. Aqui está.

 

O russo tomou o envelope e abriu-o. Todos os músculos de seu corpo estavam tensos e sentia que suas têmporas latejavam. Quando terminou de ler a carta, já não estava pálido, mas lívido. Nada que censurar a ninguém: somente a si mesmo. Devia ter compreendido antes, quando ela dissera que esquecera o livro e lhe pedira que cuidasse de Omar...

 

Tinha-lhe entregue, pessoalmente, a custódia do príncipe, tal como prometera... Nada a censurar. Havia jogado bem, conseguira estar em todos os lugares no momento oportuno, disfarçando-se conforme lhe convinha, pois dispunha de dois camarotes na primeira classe. Durante todo o tempo ele tivera Baby diante de seu nariz, enquanto a verdadeira Rita estava detida pela CIA nos Estados Unidos, descoberta sua traição a Sua Alteza.

 

— Nada a censurar... — murmurou roucamente o russo.

 

— Somente, uma boa lição a aprender.

 

— Está dizendo alguma coisa, senhor Angelof?

 

— Não... Não, Alteza. Desembarquemos. Os americanos cumpriram sua parte. Agora, toca-nos a vez.

 

Fez uma bola com a carta e atirou-a no mar. Ninguém poderia lê-la. Só algum peixe, no extraordinário caso de que o soubesse. Em tal hipótese, o surpreendido animal marinho se teria inteirado de...

 

Sinto muito, Val. Estou certa de que compreendera.

 

Talvez isto não lhe importe, mas guardarei sempre muito boa recordação de você. Se alguma vez estiver em apuros que requeiram um bom inimigo, terá apenas que enviar uma mensagem à CIA, para Baby.

 

 

Um pouco depois, o espião russo via novamente, na estação marítima, a belíssima jovem de esplêndidos olhos azuis, mas nem quis reparar em sua beleza. Demoraria muito tempo para esquecer miss Rita Macguillicudy, aquela extraordinária professora... que lhe dera um tiro na alma.

 

Um rosto para ser esquecido

 

Cumpridos todos os trâmites legais, a bagagem da jovem sensacional foi colocada no carro e o cavalheiro instalou-se ao volante, junto a ela.

 

— Alguma preocupação? — perguntou ele, sorrindo.

 

— Nenhuma, Johnny.

 

— Espero que a viagem tenha sido boa.

 

— Muito boa.

 

Johnny pôs o carro em marcha e enquanto manobrava no estacionamento, ficou um momento de frente para o transatlântico. Tomou a sorrir.

 

— Sabe? Faz tempo que tenho vontade de fazer uma viagem de prazer... Passa-se bem no “Titânia”?

 

— Esplendidamente, Johnny. Tem minha passagem de avião?

 

— Claro. Sai dentro de duas horas. Podemos viajar tranquilos. Puxa, você sim, viaja, Baby! Chega de navio, toma um avião... No fundo, deve estar um pouco cansada.

 

— Sim, um pouco.

 

— Que espécie de pessoa é esse príncipe? Tratável?

 

— Sim. E muito inteligente. Não cometeu nenhuma falha. É corajoso e discreto. Dará um bom governante.

 

— Tanto melhor. O que é isso?

 

A viajante havia aberto sua bonita maletinha e, de um fundo falso, acabava de extrair uma grande fotografia, que contemplou pensativa, após murmurar: — Uma foto.

 

— De quem! Do príncipe?

 

Brigitte Montfort rasgou a foto em diminutos pedaços, que foi atirando por cima da porta. Só ao terminar respondeu a pergunta:

 

— Algo assim, Johnny. Digamos que de um príncipe que se apaixonou por uma professora...

 

— Muito romântico!

 

— De fato. Foi muito romântico... Espere que não sejam severos demais com ele em Moscou.

 

 

                                                                                                    Lou Carrigan

 

 

 

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