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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VIGILIA NA NOITE / A. J. Cronin
VIGILIA NA NOITE / A. J. Cronin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

EMBORA fossem quase seis horas, estava ainda escuro naquela gélida manhã de inverno. Na pequena enfermaria de isolamento do Shereham County Hospital tudo era silêncio - o estranho silêncio que caracteriza os quartos dos doentes - quebrado apenas por um som débil e áspero: a respiração da criança que ocupava a caminha protegida por um biombo que ficava ao fundo da enfermaria.
Sentada ao lado da caminha, absolutamente imóvel, a enfermeira Lee tinha os olhos fixos no rosto da criança, a lutar contra o seu próprio cansaço, mantendo religiosamente a vigília em que passara a noite inteira. O doente era um meninozinho de dois anos, e em sua papeleta, que mal se distinguia por cima da caminha, havia duas simples mas significativas palavras : difteria laríngea. Moléstia gravíssima, caso muito melindroso. Na noite anterior, quando a ambulância o trouxera, só uma traqueostomia de urgência o salvara. Ela própria ajudara o Dr. Hassall na operação. E agora, com o fino tubo prateado a brilhar entre as bandagens que lhe envolviam o pescocinho fino, com dez mil unidades de soro antidiftérico a combater-lhe nas veias as toxinas, o doentinho ia-se mantendo e começava lentamente a emergir do negro precipício da morte.
Instintivamente, sem ruído, a enfermeira Lee moveu-se. Inclinando-se para a frente, retirou de sua fina bainha o tubo interno da sonda traqueal, limpou-o silenciosamente e no mesmo instante recolocou-o. A respiração da criança tornou-se mais fácil, mais suave. Em seguida, a enfermeira aumentou a chama de álcool sob a chaleira de bico longo, através do qual um permanente jacto de vapor era lançado na direção da caminha. Então, com um olhar ao relógio ela encheu a seringa que estava sobre a mesinha ao lado e com três silenciosos movimentos injetou na coxa da criança a dose de estricnina prescrita. O menino mal se mexeu, tão rápida foi a picada.

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De novo a enfermeira se sentou, numa posição um tanto ereta, em sua cadeira dura. Vendo que o seu paciente se movia, mesmo naquela terrível fase da moléstia, sentiu-se invadida por uma funda e comovida alegria, a despeito de sua fadiga quase insuportável. Era para aquilo que vivia - aquele, o secreto motivo, o verdadeiro objetivo de sua vida. Sentada ali, o rosto apoiado à concha da mão, iluminada apenas pela débil luz de uma lâmpada velada, Anne Lee parecia absurdamente jovem para ser já uma enfermeira experiente. Tinha apenas vinte e quatro anos. Entretanto, acabava de completar os seus três anos de prática no Shereham, onde recebera o seu diploma. Esbelta de corpo, dona de mãos esguias e hábeis e de um rosto fino e expressivo, possuía uma beleza quase austera, atenuada pela linha suave dos lábios e pelo brilho sereno dos grandes olhos negros. Seu uniforme azul e branco, de asseio impecável, assentava-lhe às mil maravilhas. Sua imobilidade revelava atenção concentrada e uma doce e deliberada calma.
Mas eram agora seis horas, e a qualquer momento seria substituída. A lembrança de que a enfermeira que lhe tomaria o lugar era sua irmã Lucy, fez que um leve sorriso de ternura encrespasse os lábios de Anne. Ela adorava Lucy, amara-a sempre e fora-lhe sempre uma verdadeira mãe, embora a diferença de idade entre ambas fosse apenas de dezoito meses. Talvez fosse por terem ficado órfãs tão cedo e tão repentinamente com a morte do pai, num acidente ocorrido na gélida galeria de uma mina de carvão de Northumberland, onde trabalhava como contramestre, e da mãe, poucos dias depois, em consequência do choque e do desgosto. Essa tragédia obrigara as duas moças a trabalhar para viver. Anne sempre desejara ser enfermeira e poucos meses depois Lucy foi persuadida a ir com ela para o Shereiam Hospital.
Naquela manhã de inverno o relógio da enfermaria marcava seis horas e dez minutos quando Lucy assumiu o seu posto. No Shereham não se toleravam atrasos, e, entretanto, quando a irmã se aproximou, não havia nem sombra de censura na fisionomia de Anne. Ela apenas se levantou e a recebeu com um sorriso sem queixa. Em seguida, espreguiçou-se para desentorpecer os membros e começou a ler em voz baixa as anotações do livro de registro. Não havia outros casos graves na pequena enfermaria de isolamento, apenas o de dois adultos que convalesciam de uma infecção diftérica de caráter benigno. O centro principal de atenção devia ser aquela caminha.
- Você entendeu, não é, Lucy? - observou Anne, inclinando a cabeça para o pequeno leito. Nada mais tem importância na enfermaria. Isso significa que toda a sua atenção deverá concentrar-se nele. Sente-se naquela cadeira e não arrede dela até a enfermeira Hall chegar, às oito horas, Lucy fez que sim com a cabeça e sentou-se, com um ar sisudo e mal-humorado, como se achasse que as recomendações de Anne eram inteiramente desnecessárias.
- É a falsa membrana - acrescentou Anne, tentando transmitir a Lucy um pouco do profundo interesse que aquele caso lhe despertava. - Veja o soro está começando a soltá-la, e de momento em momento os pedaços que se desprendem obstruem a sonda.
- Eu sei, eu sei - respondeu secamente Lucy, dando a entender que considerava a explicação dispensável. - Ouvi tão bem quanto você as cacetíssimas aulas do velho Hassall.
Anne não disse mais nada. Às vezes a rispidez de Lucy a magoava profundamente. Mas de manhã cedo era sempre difícil lidar com ela. Ficou um instante de pé, vigiando com os olhos a criança semiconsciente e depois, com uma palavra de despedida, atravessou a enfermaria, apanhou a sua capa no vestíbulo e transpôs as portas giratórias que ficavam no outro extremo.
Fora, no pátio do hospital, estava escuro ainda e algumas estrelas cintilavam fracamente no céu. Uma rajada de vento frio golpeou-lhe o rosto, mas, em vez de evitá-la, ela a recebeu com satisfação. Depois dos seus plantões noturnos, por pior que estivesse o tempo, ela vinha sempre aspirar por alguns momentos a frescura do ar matutino com suas brisas vindas do mar. Aos seus pés, enquanto ali estava cercada pelo vulto baixo dos pavilhões do hospital, recortava-se a silhueta escura de Shereham, árido distrito com as bocas negras de suas minas e sua flotilha de barcos de pesca, cujos donos tiravam arduamente do mar o seu sustento. Era, na verdade, uma pobre e feia cidadezinha do norte da Inglaterra, mas Anne tinha por ela uma rara afeição, talvez por ter sido o berço de toda a sua gente. Ali tinha ela nascido, ali passara uma infância feliz com seus pais numa casinha em Bolton Row. Ali freqüentara, com Lucy, a escola e a academia toda de pedras cinzentas que ficava a cavaleiro do cais. Ali iniciara a sua carreira de enfermeira. Os anos que passara no hospital lhe haviam sido particularmente felizes. O County não era um grande hospital; era, ao contrário, pobre e mal aparelhado, entretanto possuía uma bela tradição no tocante ao seu corpo de enfermeiras, cuja diretora, Miss Lennard, era uma mulher inteligente e boníssima. O aprendizado de Anne passara muito depressa.
Mas é claro que o County não representava a meta de seus esforços. Ah, isso é que não! Por mais amor que lhe inspirasse, Shereham nem por isso deixava de ser um lugarejo. Ela nutria ambições muito maiores, muito mais altas para si e para Lucy. Quando esta recebesse o seu diploma, no próximo mês, haviam de ir trabalhar num hospital de cidade grande. Haveriam de conquistar o mundo! De novo Anne sorriu, cheia de felicidade, para os seus secretos pensamentos e voltou-se para tomar o caminho do alojamento das enfermeiras.
Nesse momento ouviu um grito. Assustada, estacou, percebendo que alguém em meio à escuridão corria desesperadamente para ela.
QUANDO Anne deixou a enfermaria, Lucy tentara acomodar-se melhor em sua cadeira. Mas esta era dura e ela estava caindo de sono. Não conseguindo arranjar uma posição confortável, a expressão de mau humor acentuou-se mais em seu lindo rostinho. Abominava ter que levantar-se de madrugada, ter que atravessar o corredor escuro - era a pior coisa da enfermagem, ter que deixar o calorzinho da cama ainda com o escuro - e o que mais a irritava era não ter tido tempo de tomar a sua xícara de chá de todas as manhãs.
Lucy estava habituada a essa xícara de chá reconfortava-a, restituía-lhe o bom humor. E quanto mais pensava nisso, mais crescia a sua exasperação. Era uma pequena redondinha, com uns ares despreocupados e um par de olhos vivos e provocantes. Vaidosa de seus finos cabelos louros, deixava-os aparecer sob a touca de enfermeira. Quando bem humorada, dava a impressão de ser uma criatura brincalhona, atrevida e alegre. Agora, entretanto, sua suscetibilidade ofendida contraía-lhe as feições.
Intimamente, indignava-se e ardia de impaciência, até que não aguentou mais. Concluiu de si para si que Anne era uma velha implicante e mandona ainda por cima! Que direito tinha ela de ditar leis? A criança estava perfeitamente bem. Sem se aproximar, Lucy estendeu o braço e tateou-lhe o pulsinho. Sim, o pulso estava excelente - rápido, é claro, mas cheio. Não se demoraria mais que um minuto. E de qualquer maneira precisava tomar a sua xícara de chá.
Levantou-se com os seus chinelos de feltro e foi silenciosamente até à copa da enfermaria. Tudo ali estava arrumado e ao alcance de suas mãos - o inveterado senso de ordem de Anne tinha pelo menos aquela vantagem - e num abrir e fechar de olhos a chaleira estava sobre o fogareiro a gás e uma fatia de pão torrado na chapa. A boca de Lucy encheu-se de água numa agradável prelibação.
Mas na enfermaria a criança doente principiava a agitar-se em sua caminha. Durante alguns momentos, depois que Lucy a deixou, continuou a respirar ofegante mas regularmente, deitada de costas, o vapor espalhando-se suavemente por cima de seu pálido rostinho semivoltado. Seus longos cílios escuros acentuavam as sombras azuis sob os seus olhos. Uma pequenina mão, emergindo de sob as cobertas, crispou-se nervosamente como que a lutar com algum inimigo oculto.
Súbito o quadro se alterou. A respiração do pequeno perdeu a regularidade. Um resfolegar aflitivo, uma espécie de sororoca, era o que se ouvia agora e, no mesmo instante, um pedaço da falsa membrana, semelhante a um coalho esverdeado, apareceu na ponta da sonda traqueal adaptada à garganta do menino. Ali ficou pendurado, obstruindo a sonda, subindo e descendo a cada laborioso arranco da respiração do pobrezinho. Houve um momento de horror naquela enfermaria escura e deserta. Foi terrível a luta mortal que se seguiu. A criança tentava com todas as suas débeis forças expelir o obstáculo que a impedia de respirar. Suas mãozinhas crispadas se uniram, o esforço arroxeou-lhe o rosto, as pernas se agitaram lentamente. Mas o esforço era fraco demais e a membrana obstrutora continuava presa à sonda. E agora respiração do doentinho se ia tornando cada vez mais débil, cada vez mais espasmódica. Suas faces empalideciam cada vez mais. Seu peito todo se afundava na ânsia de aspirar um pouco de ar. Aquela angústia não podia durar. Sobreveio um último e horrível espasmo, uma derradeira sufocação e depois tudo silenciou. A mãozinha crispada com tanta força abriu-se como uma estranha flor, os dedos a desdobrar-se lentamente como pétalas ao sol. Por fim a infeliz criança imobilizou-se e ali ficou de braços esticados como numa súplica.
Só então Lucy voltou à enfermaria. Reconfortada pela sua xícara de chá bem quente, o bom humor perfeitamente restaurado por duas apetitosas torradas com manteiga, aproximou-se da caminha. E ali, diante da criança inanimada, estacou. De súbito caiu em si. Seus olhos dilataram-se de horror. Um grito de puro desespero ergueu-se e morreu-lhe na garganta. Perdeu por completo a cabeça. Em vez de desobstruir a sonda e de tentar imediatamente reanimar a criança, pôs-se a torcer as mãos e, chamando desesperadamente pela irmã, abandonou a enfermaria tomada de verdadeiro pânico.
TRÊS minutos depois Anne estava de novo ao lado da caminha, ciente da horrível situação, preparada para agir. A' primeira coisa que fez foi arrancar fora a sonda obstruída e inútil. Em seguida, com um dilatador, alargou a incisão da traquéia, limpou-a, removendo todas as partículas da membrana, e começou desesperadamente os movimentos da respiração artificial. Enquanto trabalhava, o rosto sério e pálido, pedia com voz tensa e alterada:
- Mais estricnina, e arranje-me um cc de óleo canforado. Um pouco de éter puro também.
com dedos trémulos, Lucy obedecia, custando a abrir o armário dos remédios, enchendo as seringas e passando-as a Anne. A estricnina foi aplicada e logo em seguida o óleo canforado. Os movimentos eram contínuos, frenéticos, febris. Gotículas de suor acumulavam-se na fronte de Anne. Seus lábios tornaram-se mais pálidos e mais cerrados. Mesmo enquanto, de esperança em esperança, continuava a fazer tudo o que estava a seu alcance, no íntimo do seu coração sabia que era inútil. Por isso, sem mudar de tom, proferiu a seguinte ordem:
- Chame a diretora.
Quando essas três palavras fatais lhe feriram os ouvidos, Lucy estremeceu. Deixou a enfermaria com passo vacilante.
Minutos depois a enfermaria estava cheia de gente: a diretora Lennard envolta num peignolr, a enfermeira-chefe Hall, as enfermeiras Gregg e Jenkins, tão estranhas sem o colarinho ou os punhos engomados, e por fim o velho Dr. Hassall em pessoa. Cada qual fez o que pôde. Anne, de pé ao lado da caminha, ereta, observava-os, seguindo-lhes os esforços inúteis, absolutamente inúteis. Junto dela, as mãos ainda entrelaçadas pelo nervosismo, estava Lucy.
Finalmente, a diretora ergueu a cabeça. Era uma frágil figura, com os seus cabelos de um branco puríssimo, agora singularmente em desordem, os óculos de aro de ouro emprestando-lhe aos olhos,uma expressão severa e atenta. Fixando Anne, ela disse com acusadora tensão na voz:
- Como foi que isto aconteceu?
Houve um silêncio que pareceu interminável. E então Anne respondeu:
- A sonda obstruiu-se. Fizemos tudo, tudo o que foi possível.
- Por que deixaram o tubo obstruir-se ? - indagou severamente o Dr. Hassall.
Novo silêncio. com um gesto penalizado, o Dr. Hassall cobriu o rostinho da criança morta com o lençol. A enfermeira Gregg fora até à copa. Era uma mulher de feições duras e antipáticas, que vivia se intrometendo na vida dos outros e se mostrara sempre um tanto hostil para com Anne. Ei-la agora que volta apressadamente e declara com o ar de quem acabava de fazer uma descoberta:
- Diretora, encontrei algo fora do lugar. Alguém acaba de fazer um chá na copa da enfermaria.
Todos os olhos se voltaram para Anne. A diretora procurou controlar-se, tentou imprimir uma certa calma à sua voz.
- É verdade que você fez chá na copa quando devia estar atendendo ao seu paciente? ,
Anne fez um esforço sobre si mesma para enfrentar o olhar gélido da diretora. Se respondesse àquela pergunta, Lucy estaria perdida.
- É que. - gaguejou, tentando acobertar a irmã, mas vencida pelo desespero calou-se.
Outra pergunta sucedeu-se, inexorável, acusadora.
- A que horas a sonda se obstruiu?
Essa pergunta era ainda mais perigosa que a primeira. Significava a ruína de Lucy - pobre Lucy, sua querida irmã. Anne previu tudo. Nitidamente, claramente, Anne previu tudo. Lucy ainda não tirara o seu diploma. Aquele horrivel acidente significaria a impossibilidade de lhe ser concedido o ambicionado pergaminho. Seria o fim das esperanças de Lucy, o malogro de sua carreira, mesmo antes de iniciá-la. Todos os instintos de amor e de proteção ergueram-se dentro de Anne. Quase inconscientemente tomou sua decisão. Pôs-se a falar como se estivesse fazendo um depoimento, em tom compassado e frio. Por amor a Lucy, mentiu deliberadamente, chamando a si toda a culpa.
- Faltavam cinco minutos para as seis horas e senti-me cansada. Lembrei-me de fazer um pouco de chá. Estava convencida de que o doente ia bem. Quando Lucy entrou, chamou-me. Viu o que tinha acontecido. Juntas, fizemos o possível para salvá-lo.
Seus olhos consultaram o relógio da enfermaria e depois fixaram corajosamente a diretora.
- Lutamos durante quase três quartos de hora. Más foi... foi inútil.
Um murmúrio de pasmo partiu dos lábios finos da enfermeira Gregg, enquanto o Dr. Hassall deixava escapar uma exclamação de lástima. Fêz-se um longo silêncio. Anne continuava ereta. Lucy, apoiada à grade da caminha, não dizia nada, como que impossibilitada de falar. Por fim, a diretora dirigiu-se a Anne em tom glacial e disse-lhe:
- Vá para o seu quarto. Mais tarde trataremos do seu caso.
SOZINHA em seu quarto, as horas se arrastavam dolorosamente para Anne. Era um quartinho pequeno, ao fim do corredor do alojamento das enfermeiras, mas, embora modesto, oferecia um aspecto de conforto e de asseio. Havia três anos que era aquele o seu lar. Ali se deitava exausta ao fim do trabalho cotidiano. Ali despertava para uma nova lida. Ali estavam os seus poucos pertences - um retrato de seus pais, um de Lucy, um grupo tirado no colégio, as velhas escovas de prata que tinham sido de sua mãe. Agora, porém, parecia-lhe estranhamente alheio. Ou fora ela que mudara. Uma coisa horrível sucedera, súbita e inexplicável, perturbando suas doces relações com aquele quartinho.
Que seria? Sua mente, confusa, recusava-se a funcionar normalmente. Seus ouvidos, apuradíssimos, ouviam os ruídos distantes e rotineiros do hospital. Mas durante aquele infindável e torturante dia ninguém a procurou.
Lá por três horas uma batida na porta pôs-lhe o coração em sobressalto. Voltou-se rapidamente entre a esperança e o medo. Talvez fosse a diretora. Mas não. Quando a porta se abriu, quem entrou foi a enfermeira Jenkins. de lábios apertados, trazendo uma bandeja que colocou diante dela. Olhou para Anne, e depois, com uma espécie de contida afeição, declarou:
- Ninguém suspeita que vim cá. Você sabe disso, não é? Se descobrirem, são capazes de cortar-me a cabeça. Mas afligia-me pensar que você estava sem comer até agora.
- Obrigada, mas não estou com fome.
- Não seja tola. Todos nós temos que comer, não temos? Você vai precisar de todas suas forças para enfrentar a sua situação. Isso eu posso lhe garantir. Portanto, trate de comer.
Sob a imperiosa acrimônia do olhar da enfermeira Jenkins, Anne pôs-se a comer os sanduíches, acompanhados de chocolate, que a velha colocou diante dela. Enquanto isso, a enfermeira Jenkins, sentada na beira da cama, apertava mais que nunca os lábios. Martha Jenkins, mulherzinha já idosa, seca e impertinente, era a melancólica personificação do fracasso. Devia andar pelos sessenta anos. Havia pelo menos quarenta que trabalhava como enfermeira, e nesse tempo todo, como ela própria dizia, nunca soubera o que fosse aproveitar a vida. Todavia, algures, sob aquela ressequida aparência, havia um coração. Votava grande afeição a Anne e entretanto teria preferido morrer a demonstrá-la.
- Você se meteu em maus lençóis - ruminava ela agora com azedume. - E provocou um abalo dos diabos no hospital. A coisa está fervendo lá dentro. A enfermeira Gregg anda dizendo a toda gente que isto mais cedo ou mais tarde tinha que acontecer, pois você era boa demais e dava para desconfiar.
- A enfermeira Gregg pareceu sempre minha amiga - disse Anne com súbita amargura.
- Oh, mas eu a defendi - volveu a enfermeira Jenkins. - Obriguei-as a se calarem. Disse-lhes que todas nós estamos sujeitas a errar.
Anne ficou calada. A defesa que aquela boa velha fizera em seu favor não era a que desejaria.
- Onde está Lucy? - perguntou afinal.
- Está de serviço. Quase não fala. Outro silêncio.
- Que é que você acha que vão fazer comigo?
- indagou Anne em tom melancólico.
- Infelizmente, creio que você não tardará a sabê-lo.
E a enfermeira Jenkins sacudiu a cabeça significativamente.
- Vai haver uma reunião especial da diretoria às cinco horas - acrescentou.
Anne não disse nada. Num súbito impulso de bondade, a enfermeira Jenkins inclinou-se e bateu-lhe no braço. Seu rosto envelhecido e murcho tornou-se de repente humano.
- Não se aborreça, minha cara. O mais que eles podem fazer é despedi-la. E tome nota do que lhe digo: isso é a melhor coisa que lhe poderá acontecer.
A velha Martha fez uma pausa para respirar profundamente.
- Já que entrei no assunto, vou lhe dar a minha opinião. E um conselho, também. Isto de ser enfermeira é uma profissão miserável. A pior que até hoje se inventou. O melhor que você pode fazer é abandoná-la. Eu que o diga. O que tenho passado encheu-me as medidas. Há anos que me mato de tanto trabalhar, comendo mal e ganhando mal. E qual foi a minha recompensa? Não tenho um pêni guardado ao fim dessa escravidão em que sempre vivi. E quando eu não prestar para mais nada, quando o reumatismo não mais me deixar trabalhar, me alijarão como se alija um sapato velho, sem uma pensão sequer. E como eu, há centenas. Isso é um escândalo que clama aos céus. Você sabe que o que eu digo é verdade, embora seja enfermeira há três anos apenas. Você sabe que a nossa vida é uma escravidão. Pense nos chãos que lavou quando era servente, nos trincos que teve que arear, nas porcarias que teve que limpar. Pense na maçada dos estatutos e dos regulamentos. Nada de permissão para voltar tarde, nada de amigos em nossos miseráveis quartinhos, nada de perfumes, nada de cigarros, nada de cabelos ondulados, nada de nada. Disciplina, disciplina, disciplina o tempo todo. Meu Deus, é de deixar uma pessoa louca. E os doentes?
A voz da enfermeira Jenkins elevou-se a um tom de verdadeiro e acerbo ressentimento.
- Haverá classe mais agradecida, mais perfeita, mais delicada? Quando penso em todas as velhas lamuriosas que friccionei com álcool, tenho vontade de atirar-lhes uma bacia d'água no rosto. Não, não; pode crer no que lhe digo. Você mostrou-se descuidada e agiu levianamente, mas foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido. Vão pô-la para fora daqui, minha cara, e faça tudo para não voltar. Você é uma moça bonita. Trate de casar com aquele rapaz da garagem que gosta tanto de você - Joe Shand, não é esse o nome dele? Arranje um lar e uma porção de filhos. Deles, sim, você poderá tratar quanto quiser. E creia que é a única espécie de enfermagem que uma mulher realmente almeja. Só sinto não ter podido fazer o mesmo.
A velha enfermeira calou-se, exausta pelo seu desabafo, talvez um tanto envergonhada por ter revelado uma porção tão grande de sua alma. Houve uma pausa. Anne olhou para ela com uma grave expressão de intensidade. Por um instante esqueceu o seu aborrecimento, tal era o desejo que tinha de expressar a mais íntima das suas convicções.
- Eu sei que grande parte do que você diz é verdade - murmurou, como se estivesse falando consigo mesma. - Mas amo o meu trabalho. Trabalho maravilhoso, realmente necessário. Nós, enfermeiras, somos miseravelmente pagas, temos que renunciar a muita coisa. Mas isso podia ser modificado. Bastava que nos uníssemos, que lutássemos juntas, e conseguiríamos obter melhores condições de trabalho. É uma das maiores Ambições de minha vida tentar conseguir isso. Mesmo, porém, que tivéssemos de trabalhar sempre sob as mais mesquinhas condições eu continuaria a ser enfermeira, para oferecer a própria vida à humanidade sofredora.
Anne interrompeu-se abruptamente. Corou até à raíz dos cabelos, confusa, ao compreender de súbito a sua situação, vendo que, desprestigiada e desacreditada, ainda ousava falar assim do valor e da nobreza da missão da enfermeira.
A enfermeira Jenkins lançou-lhe na verdade um estranho olhar e fungou de leve ao levantar-se.
- Suas teorias são muito bonitas, minha cara, mas parece que não dão resultado na prática. Aceite o meu conselho, minha pequena, e dê o fora enquanto é tempo.
Apanhou a bandeja.
- Já acabou de comer? Bem, vou-me embora. vou entrar novamente em serviço às quatro horas. Não há descanso para os condenados. Que você se saia bem com a diretoria.
E com uma brusca saudação de cabeça, Martha Jenkins deixou o quarto.
A sós com seus pensamentos, Anne sentiu com renovada intensidade o quanto era horrível e anormal a sua situação. Martha devia tê-la tomado por uma grande hipócrita! Entretanto, sua determinação tornou-se mais firme. Manteria a sua atitude. Custasse o que custasse, haveria de proteger Lucy.
Às cinco e meia chegou o temido e ansiosamente esperado aviso da diretoria. E trazido justamente pela enfermeira Gregg. Embora a enfermeira Gregg não se dignificasse quase a abrir a boca, a entrega do aviso foi extremamente humilhante. Anne sentia o sangue martelar-lhe os ouvidos ao atravessar o pátio, o longo corredor do pavilhão administrativo e ao entrar no escritório de Miss Lennard, tão seu conhecido.
A diretora estava sentada em sua escrivaninha, e na longa mesa que ficava junto da janela, mais atrás, achavam-se quatro membros da diretoria do hospital - Amos Green, representante dos mineiros, Mr. Weatherby, o proprietário das minas, Sam Staples, o leiloeiro, e o Rev. David Perrin. Todos eles a examinaram com um ar inexpressivo e estranhamente impessoal. De pé, ao lado da diretora, fingindo folhear alguns papéis, estava o Dr. Hassall. Nem sequer a olhou. A atmosfera da sala era cálida e uma leve névoa de fumo pairava sob o teto. Anne compreendeu que a diretoria do hospital estivera reunida antes da sua chegada. Apesar da sua coragem, sentiu-se desfalecer. Magoava-a o fato de a diretora não mandá-la sentar-se.
Houve um breve silêncio. Em seguida a diretora mexeu-se em sua cadeira.
- Enfermeira Lee, - começou Miss Lennard de chofre - estivemos estudando o seu caso, o que nos foi muito doloroso. Resta-me agora perguntarlhe, perante a diretoria, se tem alguma coisa a dizer em sua defesa.
Um arrepio de gelo percorreu o corpo de Anne. Que podia ela dizer que não fosse incriminar Lucy? Os membros da diretoria ali estavam, sentados como membros de um júri.
- Não tenho realmente nada a dizer - balbuciou.
- Nada! - exclamou Amos Green. - Deus meu! Será possível que não tenha sequer uma desculpa para a gravíssima falta que cometeu?
Anne fixou no gordo representante dos mineiros um olhar magoado. Ele tinha sido amigo de seu pai e muitas vezes lhe dera doces quando ela era menina.
- Quer dar a entender com isso - perguntou delicadamente o Rev. Perrin - que é totalmente culpada ?
com um aperto na garganta, que ameaçava sufocá-la, Anne sacudiu a cabeça numa cega afirmativa.
Os membros da diretoria consultaram-se. Por fim, Anne ouviu Mr. Weatherby, o presidente, dizer:
- Para que levar isto adiante?
E fez um sinal de cabeça para Miss Lennard.
A diretora umedeceu os lábios secos. Seu rosto contraído revelava grande depressão. O incidente fora-lhe um golpe terrível e agora aquele interrogatório torturava-a mais do que esperara. Mesmo assim, a despeito de haver deliberado intimamente agir com o máximo de imparcialidade e de laconismo, não podia impedir que seus sentimentos pessoais transparecessem um pouco.
- Enfermeira Lee - disse ela - não tenho palavras para descrever-lhe o abalo que isto me causou. O fato de uma das minhas enfermeiras, logo você, Anne Lee, se ter tornado culpada de tão grave falta em sua conduta profissional...
Sua voz tremeu e ela interrompeu-se com um gesto brusco.
Foi então que o Dr. Hassall, que se achava junto à janela, voltou para ela o rosto cheio em que se estampava viva indignação. Foi em tom acerbo que se dirigiu a Miss Lennard:
- Não adianta procurar uma palavra para classificar o que se passou, diretora. Não a achará.
E olhou para Anne.
- Uma vida humana se perdeu, foi levianamente cortada em consequência de uma franca e imperdoável negligência sua. E, no entanto, você fica aí de pé, muda como um pedaço de pau. Garanto que não manteria essa indiferença se tivesse, como eu, que dar a notícia à mãe da criança! com os diabos! Será possível que não tenha uma palavra a dizer em sua defesa?
Consciente da expressão de censura com que todos a fitavam, Anne viu-se assaltada por um horrível desejo de dizer a verdade para reabilitar-se. Foi a maior tentação de sua vida, essa de livrar-se daquela pavorosa vergonha. com um grande esforço, conseguiu vencer esse impulso. Continuou ali, de pé, em silêncio, de olhos baixos, sacudida por um visível tremor.
A diretora trocou um olhar com o Dr. Hassall e com o presidente. Um suspiro escapou-lhe involuntariamente.
- Nesse caso, nada se pode fazer. Você terá que arcar com as consequências. Considere-se despedida. Deixará o hospital e terá que fazê-lo de hoje para amanhã.
Miss Lennard fez uma pausa, para tomar fôlego, tão ofegante se tornara a sua respiração.
- Só a sua folha de conduta, aqui, livrou-a de receber uma punição maior: a da perda do seu diploma. Alguns membros da diretoria queriam que este caso fosse levado ao Conselho de Enfermagem. Mas, em consideração à excelente conduta que até aqui manteve, decidimos abafar o incidente. Fora daqui poderá trabalhar para reabilitar-se. Isso é com você. Não posso, é claro, dar nenhuma referência em seu favor. Não quero mais revê-la. Adeus.
Anne fixou a diretora mas não pôde vê-la, pois seus olhos nadavam em pranto. Ver-se condenada e francamente desprezada por aquela sensata e bondosa mulher que a ensinara e a encorajara, cuja consideração tinha a certeza de haver conquistado, causava-lhe uma angústia quase intolerável. Mas que podia fazer? Nada, nada! Anne voltou-se, as lágrimas a lhe escorrerem pelas faces. Quando se encaminhava para a porta, o Dr. Hassall proferiu a sua última palavra:
- Não pode haver no mundo nada pior do que uma enfermeira má; não pode haver nada melhor do que uma boa enfermeira. Lembre-se disso, Miss Lee. Lembre-se disso enquanto viver.
Ao deixar o escritório, Anne enxugou furtivamente as lágrimas e, saindo pela porta lateral, tomou apressadamente o caminho do alojamento das enfermeiras. Por felicidade não se encontrou com ninguém. Apertando o baço com as mãos, sem fôlego, como se tivesse corrido várias milhas, chegou afinal ao seu quarto. E ali, à sua espera, encontrou Lucy.
- Anne! - exclamou esta. - Que aconteceu? Não pude vir falar com você o dia inteiro. Aquele bandido do Hassall pôs-me de serviço até às cinco horas. Depressa! Diga-me! Que aconteceu?
Anne parou, de lábios lívidos, sempre comprimindo o baço. Não podia falar.
- Pelo amor de Deus! - insistiu Lucy em tom de urgência. - Diga-me!
- Nada.
Anne falara lentamente, como se estivesse muito longe.
- Fui despedida, posta no olho da rua. Apenas isso.
- Despedida?
Uma expressão de alívio passou pelo rosto de Lucy.
- Só isso?
O olhar de Anne conservava-se distante. Entretanto, em meio à dolorosa vertigem de suas emoções, sentiu o egoísmo da irmã.
- Acha pouco? - indagou.
- Oh, eu sei, eu sei - exclamou Lucy com forçada compunção. - Mas pensei que o caso fosse parar na polícia, que tivesse consequências muito piores
- que eu tivesse que confessar tudo e que eles fizessem alguma coisa a você.
Anne voltou-se enfurecida. Uma súbita onda de indignação a assaltara.
- Devia ter usado suas faculdades pensantes hoje cedo. Se o tivesse feito, aquela pobre criança estaria viva. Oh.! Isto é horrível, horrível - parece um pesadelo! Não posso acreditar que seja verdade!
Lucy fechou a cara.
- Se você quiser, eu confesso tudo - retorquiu ela em tom áspero. - Ainda está em tempo. Não pense que tenho medo. Irei falar agora mesmo com a diretora.
- Ela não lhe daria crédito - respondeu Anne com amargura. - Agora, iria pensar que você estava tentando acobertar-me.
Uma barreira de silêncio baixou sobre o quartinho - um silêncio triste, constrangedor. Anne olhava através da janela com um ar de torturada melancolia. Lucy mordia os lábios com teimosa perversidade. E eis que, de súbito, os olhos das duas irmãs se encontraram. Lucy, com um grito de sincero arrependimento, atirou-se aos braços de Anne.
- Oh, perdoe-me, perdoe-me - soluçou ela. Eu não sei como isto aconteceu. Você foi maravilhosa chamando a si a culpa. Eu nunca teria coragem de enfrentar semelhante situação. Nunca, nunca! Não tenho a sua fibra. E eles não me dariam mais o meu diploma. Minha carreira estaria para sempre estragada. Você poderá arranjar outro emprego, Anne. E quando eu me diplomar irei ter com você. Nós não ficaríamos muito tempo aqui, de qualquer forma, não é, Anne? Não iríamos desperdiçar nossas vidas num buraco como este. Mas, está claro que se você quiser eu ainda poderei confessar tudo. Enquanto Lucy continuava a falar, num nervosismo quase histérico, Anne apertava-a contra o peito e procurava acalmá-la, afagando-lhe a fronte. Amava tanto a irmã que o sacrifício que fizera se tornava não só necessário como inevitável. Enlaçou mais fortemente a cintura de Lucy num gesto protetor. Ali ficaram juntas, sentadas na beira do leito, a olhar para a janela, considerando o longínquo horizonte que era o futuro de ambas, enquanto uma a uma as luzes da cidade distante se acendiam como contas na penumbra do anoitecer.
- Para onde você vai? - sussurrou Lucy afinal.
Anne já havia estudado essa contingência. Sempre tencionara procurar uma oportunidade numa cidade grande. A oportunidade se apresentara muito mais depressa e de um modo bem mais triste do que esperara.
- Irei para Manchester - disse ela, premindo entre as suas a mão da irmã como que a tranquilizá-la.
- Não se preocupe. Não tardarei a arranjar trabalho lá. As probabilidades são muitas. E não irei ficar assim tão longe de você, minha querida.
- Não posso nem pensar nisso - murmurou Lucy chorosa.
- Logo você poderá ir reunir-se a mim, meu bem - respondeu Anne.
Houve um momento de silêncio após o qual Anne tornou a falar com hesitação, sua voz como que abafada pela escuridão do quarto.
- Só uma coisa quero que me prometa, Lucy. Se acha que fiz alguma coisa por você, quero que faça isto por mim. Prometa-me nunca mais ser descuidada. Prometa-me reabilitar-se, desmanchar o que fez. Prometa-me que será uma boa enfermeira.
- Prometo - balbuciou Lucy, sufocando um soluço.
Ao que parecia, só lhes restava enfrentar a próxima separação. Era na verdade tristíssimo. Mais tarde, depois que Lucy se retirou, Anne trancou a porta do quarto e começou a arrumar suas roupas. Estava decidida a partir na manhã seguinte muito cedo. Não tanto pela maneira peremptória com que fora despedida. Não teria coragem de enfrentar as outras enfermeiras no refeitório, de ouvir-lhes os comentários, de suportar-lhes as condolências ou as censuras. Em sua situação, o melhor era evitar despedidas e desaparecer dali quanto antes. Mas ao traçar seu plano não contara com a solidariedade das outras enfermeiras. Depois do jantar uma verdadeira fila de amigas veio bater-lhe à porta do quarto para lhe dizer adeus. A única nota discrepante foi dada pela enfermeira Gregg que meteu pela porta a sua cara empalamada de furão para dizer em tom significativo:
- Ainda podemos nos encontrar, enfermeira Lee. Não me esquecerei de você.
A solicitude das outras, porém, confortou Anne em sua desolação.
Quando todas se foram, entretanto, a cabeça de Anne parecia que ia estalar de dor e seu coração também. Acontecera tanta coisa naquelas poucas horas, tanta coisa inesperada e horrível! Havia, porém, algo mais que tinha de fazer.
Às onze horas, quando a turma da noite já se achava nas enfermarias e no alojamento as luzes se apagaram, ela abriu a porta, subiu a escada de mansinho e atravessou furtivamente o pátio na direção de uma pequena construção de pedra que se erguia isolada como uma capelinha junto ao muro. Era o necrotério.
Anne entrou sem medo. E ali ficou a contemplar durante rápidos instantes, com uma expressão grave, o pequenino corpo que repousava naquele silencioso recinto. Pensou em como era triste a morte de uma criança. Morte duplamente triste por ser desnecessária. Sua alma vibrava. Orou como nunca havia orado em toda a sua vida - por sua irmã, por si mesma, pelo futuro de ambas, para que juntas ou isoladamente pudessem expiar aquele terrível erro de Lucy. Depois, estranhamente confortada, voltou por onde viera e deitou-se.
NA manhã seguinte, faltava um quarto para as seis quando o despertador de Anne tocou. Ela levantou-se, vestiu-se rapidamente e, carregando sua única mala, deixou o quarto. Queria evitar despedidas teatrais àquela hora. Ao passar pelo quarto da irmã, meteu-lhe por baixo da porta um bilhetinho que já trouxera escrito. Sentia que Lucy haveria de compreender. Depois desceu a escada deserta e, pela última vez, transpôs os portões do Countv Hospital, Chovia - um chuvisqueiro fino vindo do mar. que lhe molhava os cabelos e formava gotículas transparentes sobre o tecido azul da sua capa. Ao tomar a longa estrada que levava à cidade, deixando para trás os altos muros do County, não se voltou, receando romper em pranto. Fora tão feliz naquele pequeno hospital de província, que acabara por se afeiçoar profundamente a ele. Tinha, contudo, suficiente bom senso para compreender que o futuro se abria diante dela. Apertando com mais força a alça da mala, encheu-se de coragem e tocou para a frente sem temor.
Havia percorrido talvez um quarto de milha pela estrada, quando teve que interromper sua marcha. O som agudo de uma buzina de automóvel fê-la estacar de chofre e no mesmo instante um velho Ford fechado derrapou sobre o cascalho molhado e, esparramando água longe, parou junto ao meio-fio, ao lado dela. Anne reconheceu logo o carro de Joe Shand. Num abrir e fechar de olhos, o próprio Joe saltava do auto e vinha postar-se junto dela no passeio. Era um rapaz baixo e louro, metido num macacão sujo e em seu rosto redondo, geralmente risonho, estampava-se um ar de preocupação fora do comum, quase patético. Fixou-a sem poder falar e por fim murmurou:
- Calculei que fosse tomar o trem das seis e meia e vim ao seu encontro.
Houve uma pausa. Anne considerou o claro significado das palavras gaguejantes de Joe.
- Então sabia que eu ia embora?
- A cidade toda sabe.
Joe interrompeu-se, mas era tarde e Anne tivera tempo de compreender tudo. Toda Shereham sabia que fora despedida, e isso fora por certo comentado abaixo e acima pelas ruas. Tão rude golpe fê-la morder os lábios.
- Preciso apressar-me, Joe. Está quase na hora do trem.
- Não, não - protestou o rapaz, confuso. E é por isso que estou aqui. Não posso permitir que carregue sua mala. De mais a mais, se você pretende tomar o trem das seis e meia aqui, terá depois que esperar cinquenta minutos no entroncamento de Grimthorpe. Ouça, Anne! Permita que a leve até lá em meu carro. De automóvel é um instante apenas trinta milhas. E isso poupará a você o aborrecimento de uma espera tão longa.
Anne contemplou-lhe as faces pálidas em que se lia uma expressão amiga. Ele tinha razão. Seu plano poupar-lhe-ia tempo e encontros desagradáveis na estação local.
- Obrigada, Joe - aceitou com sereno reconhecimento. - Só mesmo você teria uma lembrança dessas.
Minutos depois o carro os conduzia a Grimthorpe. Joe guiava maravilhosamente - os profundos conhecimentos de mecânica e de automobilismo que possuía, constituiíam a sua única habilidade. Era disso que vivia, aliás. Em tudo o mais mostrava-se hesitante e desajeitado. Guiava em silêncio agora. Estudando-lhe o perfil que, embora simpático, revelava uma certa fraqueza, Anne notou que algo o preocupava intensamente. E a ela também. Conhecera Joe desde pequena. Ela, Joe e Lucy haviam frequentado a mesma escola, juntos tinham ido procurar ninhos de passarinhos no mato, juntos haviam cantado na igreja, juntos haviam crescido. Quando o pai de Joe, tom Shand, dono da garagem de Shereham, fora atacado de um reumatismo que ainda o mantinha entrevado no leito, fora ela quem o tratara. E periodicamente, quando o levavam ao hospital, era ela quem lhe fazia aplicações de diatermia e de eletricidade. O velho tom, com habilidade quase feminina, tudo fizera para tê-la como sua nora. Joe, disserarlhe ele muitas vezes, precisava de uma boa esposa para firmar-lhe o caráter indeciso. Quanto a Joe, de quem na verdade gostava muito, tantas vezes a havia pedido em casamento que esse assunto se tornara um embaraço permanente.
Estavam a cinco milhas de distância da cidade, quando Joe explodiu numa mágoa surda:
- Anne! Não posso compreender nada disto. O que estão dizendo não forma sentido para mim. Amos Green, por exemplo, ontem à noite esteve em nossa casa. Eu não acreditei nele. Pelo amor de Deus, Anne. Conte-me a verdade.
Anne sacudiu firmemente a cabeça.
- Não quero falar nisso - disse-lhe. - O que passou, passou. Estou resolvida a esquecê-lo para sempre.
Joe olhou para ela e durante alguns segundos guiou assim sem ver o caminho, por instinto.
- Quer dizer que..
- Isso mesmo.
Houve uma breve pausa. Para Joe a palavra de Anne era lei. Desta feita, entretanto, não se mostrou satisfeito.
- Mas esta stá partida. - tornou. - Não a aprovo. Contraria-me muito. Acho-a absurda. Por que, em nome de Deus, vai fazer semelhante coisa?
- Por que razão eu haveria de ficar? - respondeu ela, compreendendo tarde demais que não devia ter dito aquilo.
Joe apressou-se em tirar partido de suas palavras :
- Porque eu quero que você fique. Porque eu quero que você se case comigo. Preciso de você, Anne. com você eu seria capaz de grandes coisas - de grandes negócios. Poderia ir para algum outro lugar, e além do mais. amo-a. Talvez eu pudesse ajudála na dificuldade em que está..
Comovida com essa lealdade, Anne calou-se, quase tentada a desistir de tudo para formar com Joe um lar seguro. Entretanto, qualquer coisa a reteve, algo inatingível, algo profundo e estranho.
- Não me apresse agora, Joe - contemporizou.
- Bem vê como estou nervosa. Talvez em outra ocasião... se seus sentimentos não mudarem.
As faces de Joe tingiram-se de um rubor mais vivo, sua boca abriu-se e fechou-se. Foi-lhe preciso um esforço inaudito para conter-se. Anne nunca lhe dera tantas esperanças. Não queria estragá-las com uma palavra impensada. Diminuíra a velocidade para poderem estar um pouco mais de tempo juntos e chegaram ao entroncamento de Grimthorpe quatro minutos apenas antes da hora do expresso que ia para o sul. Mal teve tempo de comprar-lhe algumas revistas e jornais na estação e já o expresso apitara na curva. Agora Anne, em seu compartimento, acenava para ele através da janelinha do vagão:
- Cuide-se bem, Joe - disse-lhe ela.
E como última recomendação - a última e a mais importante - gritou-lhe:
- E cuide de Lucy também.
A viagem até Manchester foi horrível, através de uma árida zona industrial saturada de carvão e umidade. Altas chaminés erguiam-se sob a chuva por entre montes de lixo e de refugo. As cidades eram escuras e feias, fustigadas pelo mau tempo, enegrecidas pela fuligem. Anne. porém, tinha muito com o que se preocupar e por isso não prestava atenção nem à paisagem nem ao tempo. Embora a eventualidade que lhe transtornara a vida fosse desanimadora, estava decidida, como dissera a Joe, a deixar para trás o passado. Abrindo o jornal The Nursing Mirror, percorreu-lhe atenta e minuciosamente a seção de anúncios. À medida que o fazia, a expressão de seu rosto foi-se modificando levemente. Ao terminar a leitura tinha o sobrolho contraído. Não encontrara nada, não havia um só pedido de enfermeira para Manchester. Isso foi-lhe um golpe tremendo. Precisava encontrar uma colocação imediatamente, pois não queria de modo algum ser obrigada a alugar um quarto na cidade e a ficar sem fazer nada até aparecer trabalho. Se fosse obrigada a fazer isso, em breve ver-se-ia sem um níquel. Apertou os olhos, ao pensar nos parcos recursos de que dispunha. Como enfermeira praticante, seu ordenado fora precisamente de doze libras anuais. Em três anos de trabalho árduo e penosamente sacrificado, havia ganho a soma exata de trinta e seis libras. Ora, tendo empregado parte desse dinheiro na compra de sapatos, meias e alguns outros artigos estritamente necessários, para si mesma, bem como na de um ou outro presentinho para Lucy, não poderia ter sobrado muito. Sem falar nas poucas roupas que possuía, a quantia que era toda a sua fortuna não chegaria para mantê-la durante mais de um mês, mesmo sob a mais severa economia.
Anne apanhou ansiosamente O Clarim - o diário de Manchester. Encontrou a página de anúncios e imediatamente seu rosto iluminou-se. Havia no alto da primeira coluna o seguinte anúncio:
ENFERMEIRAS. - MOÇAS FORTES, com OU SEM EXPERIÊNCIA, PROCURAM-SE PARA A INSTITUIÇÃO HEPPERTON. DIRIGIR-SE A MISS EAST, S, R. C, DIRETORA
Que sorte, pensou Anne com o coração aos pulos, ter encontrado este anúncio justamente hoje. Seus pensamentos criaram asas e pôs-se a fazer planos, rejubilando-se com aquele feliz achado. Uma diminuição na marcha do trem fê-la erguer rapidamente a cabeça. Estava em Manchester. Quando o trem parou na plataforma, dirigiu-se ao depósito de bagagens para ali guardar sua mala e deixou a estação ansiosa por encontrar o Hcpperton Hospital, HEPPERTON, para onde Anne foi de bonde, ficava ao sul da cidade, compacta rede de artérias em que formigava uma multidão empenhada na luta pela vida. Era um bairro operário - lojas, pensões, fábricas, vendedores ambulantes, casas de penhor, casas de pasto, bondes trepidantes, barulhentas carrocinhas de mão. Homens metidos em pesadas botas e grosseiras roupas de algodão, mulheres apressadas, envoltas em xales, crianças correndo por estreitas vielas, em suma, populosíssimo bairro fervilhante de vida. E bem no centro dele, como uma penitenciária, o edifício alto, comprido, enorme, cor de tijolo, do hospital. Ao fixá-lo, achando-o tão diferente do pequeno e familiar County, quase embasbacada diante de suas filas e filas de janelas, uma sensação de perplexidade invadiu Anne. Que enorme hospital! E, além disso, que oportunidade, num centro tão populoso, não se lhe oferecia, no sentido de adquirir uma experiência verdadeira, maravilhosa, em sua profissão! Reconfortada por uma xícara de café e um pãozinho num pequeno bar próximo (não tinha tomado nada até aquela hora), Anne encaminhou-se para a portaria do hospital e pediu, sem o menor embaraço, para falar com a diretora.
Seu pedido foi atendido com facilidade maior do que esperava. Primeiro, teve que encher um formulário, em seguida esperou algum tempo. Mas, pouco depois das onze horas, um elevador rapidíssimo conduziu-a ao sexto andar, onde foi levada à presença da diretora através de um corredor pintado de amarelo-claro.
Embora o interior do hospital fosse muito mais antiquado do que Anne imaginara, a diretora East estava longe de ser uma relíquia do passado. Mulher robusta, sólida, de seus quarenta anos, busto cheio, braços curtos, quadris ondulantes e uma cara congestionada de buldogue, atendeu-a imediatamente, dando-lhe a impressão de um temperamento enérgico, desassossegado e irascível. Não perdeu muito tempo com Anne, colocou as mãos na cintura com ares de lutador de boxe, e abordou diretamente a questão. com os olhos no formulário, declarou:
- Você quer vir para cá. Seu nome é Anne Lee. Trabalhou três anos no Shereham County. Hospital pequeno, não é? Nem bem se diplomou deu o fora. Mordeu a mão que a alimentou, hein? Sei o que é ingratidão. Foi só o que recebi durante toda a minha vida. Espero-a sempre e vou tocando para a frente. Onde está o seu diploma?
Anne apresentou o documento. A diretora pegou-o, examinou-o, sacudiu a cabeça e por fim fixou-a. Esfregando a pele áspera de seu rosto, pôs-se a falar como uma metralhadora:
- Está em ordem. Bem, dar-lhe-ei uma oportunidade. Dirija-se à enfermeira-chefe Gilson, na Enfermaria C, ala cirúrgica. Amanhã será submetida a exame médico. E lembre-se: não tolero mau comportamento de espécie alguma neste hospital - não se esqueça. Meio dia de folga por semana, se tiver sorte. Serviço extraordinário, se não tiver. Nada de fumo, de pinturas, nem de perfumes. E não poderá ficar sozinha num quarto. Leve este papel à enfermeira-chefe Gilson. É só.
A diretora encerrou o seu discurso sacudindo a sineta que estava sobre a sua mesa, e Anne viu-se dispensada. Por menos risonha que tivesse sido a recepção, nem por isso Anne deixou de experimentar uma sensação de alívio. Não lhe tinham feito perguntas embaraçosas, não lhe haviam pedido carta de apresentação nem referências. Parou de tremer, Adivinhava vagamente que aquela tirânica diretora estava com falta de pessoal e precisava arranjar enfermeiras de qualquer modo. A bem de seu próprio interesse, não entrava em indagações muito minuciosas sobre os antecedentes das candidatas. Era uma conclusão pouco agradável. Todavia, apesar dela, Anne sentiu o coração leve. Arranjara novamente trabalho i tinha à sua frente todo o futuro.
A Enfermaria C ficava no extremo da ala norte: eram na realidade duas enfermarias ligadas por uma sala de operações intermediária e a enfermeira-chefe Gilson, a quem se apresentou, era uma mulher de aspecto cansado que a recebeu com automatismo idêntico ao da diretora. Em três minutos, enquanto folheava as suas papeletas de dieta, disse-lhe tudo o que lhe tinha a dizer:
- Você entrará em serviço depois do almoço. Hoje é o nosso dia de admissão. Atualmente estamos com o hospital muito cheio. E com uma certa falta de pessoal (voltou-se para uma jovem enfermeira que passava naquele momento). Enfermeira Dunne, pode largar agora. Acompanhe aqui a enfermeira Lee até o nosso alojamento. Dê-lhe todo o auxílio de que ela necessitar. Arranje-lhe na lavanderia um número para marcar sua roupa e verifique onde é que ela vai dormir.
Uma vez mais Anne se pôs em marcha, acompanhada pela enfermeira Dunne, e à medida que se aproximavam do alojamento das enfermeiras, o qual ficava num pavimento à parte do outro lado do pátio asfaltado, a alguma distância do pavilhão principal, lançava olhares furtivos à companheira - a primeira pessoa de fisionomia alegre que lhe aparecia desde que penetrara naquele sombrio lugar. Nora Dunne, moça de vinte e cinco anos, corpo cheio de linhas redondas, rostinho alegre e sardento de irlandesa, tinha nos olhos escuros, de longos cílios, uma centelha de brejeirice que nada parecia apagar. Também ela estivera examinando de soslaio a recém-chegada e, lançando a Anne um último olhar de aprovação, abriu-lhe um amistoso sorriso de boas-vindas.
- com que então é você a última vítima. "Precisam-se moças fortes e sadias para o Instituto de Destruição de Enfermeiras". Pois bem; tenho a impressão de que você resistirá a tudo.
Anne fez cara de quem não estava entendendo nada e isso só serviu para aumentar a hilaridade da enfermeira Dunne.
- Você não está entendendo patavina, não é? Pois logo entenderá. Adorável Hepperton - a maravilha dos hospitais do século - água corrente quente e fria, café na cama e todo o. conforto - talvez!
- Não me parece assim tão maravilhoso arriscou Anne com cautela.
- E não é mesmo - volveu sem rodeios a enfermeira Dunne. - Não pode haver lugar mais gelado.
Acomodações infames, camas duras, baratas no madeiramento, umidade nos pisos. Os encanamentos não poderiam ser piores. Para se arranjar um banho quente no estabelecimento, só mandando ao porteiro um cartão postal. E é preciso ter-se um bucho, desculpe-me, mas esqueci tudo o que sabia de fisiologia
- ou melhor, um estômago de avestruz para suportar a bóia.
- E que tal o serviço? - inquiriu Anne. Nora Dunne riu-se gostosamente.
- Minha cara, serviço é o que não lhe faltará. Nossas enfermarias vivem abarrotadas. E temos um homem extraordinário aqui, - o cirurgião Prescott um demónio sisudo e calado que opera como um arcanjo. E ainda por cima é um belo rapaz. Infelizmente não trabalhamos com ele na Enfermaria C, mas às vezes vamos vê-lo operar e ele é simplesmente formidável.
Nora deu um longo e significativo suspiro.
- No mais tudo aqui é deficiente. Você compreende, o mal deste hospital é a falta de dinheiro. O que falta aqui é "grana", é a "gaita", está me entendendo? O estabelecimento vive exclusivamente de subscrições públicas e não as consegue - pelo menos na medida do suficiente. O resultado é que tudo perece e tem que ser medido e poupado ao máximo. Embora o prédio por fora tenha uma boa aparência, está tão velho que chega até a estalar. E quem paga o pato somos nós, as enfermeiras, que temos que viver num regime de pura miséria. Essa é a razão pela qual eles não fecham as portas - essa e a diretora. Imagino que você tenha se considerado uma felizarda ao dar com o anúncio dela. Não foi a primeira. Pois fique sabendo, minha pombinha inocente, que aquele anúncio aparece sete dias por semana. A "chefona" é uma "fortaleza". Nós a apelidamos de "Pugilista". Não há dúvida que ela também tem lá os seus problemas. Mas é tão dura que perto dela osso de baleia vira mingau.
- E ninguém procura melhorar as condições do hospital? - perguntou Anne, pensativa, à sua nova colega.
Nora franziu os lábios.
- Oh, sim, uma ou duas pessoas, creio. Prescott, principalmente, embora não saiba na verdade como' correm mal as coisas para nós, enfermeiras. Ele vive no mundo da lua, ruminando um plano de fundar uma clínica de cirurgia do cérebro. E, naturalmente, é preciso citar também Bowley. Esse não é médico, é "o" Matthew Bowley, rei do algodão. Você já deve ter ouvido falar nele. Está podre de rico. Dizem que é milionário, e parece interessado no hospital. Além do mais é grande amigo de Prescott. A não ser esses dois, não há mais ninguém que mereça ser citado nas cartas que você escrever a sua mãe. E que Diretoria nos deram - um bando de velhos gagás, medrosos e sovinas!
Enquanto Nora tagarelava, chegaram ao alojamento das enfermeiras. Ali a irlandesinha voltou-se para Anne com o seu sorriso subitamente contagioso.
- Perdoe-me a indelicadeza, carinha de anjo, mas creio que estou gostando de você. Já que está disposta a tolerar isto aqui, por que não fica dormindo comigo e com a enfermeira Glennie? Nosso quarto não é dos piores e tem lugar para três. Previno-a de que Glennie ronca como um porco que sofresse de adenóides - sou obrigada a atirar-lhe os meus sapatos duas vezes por noite - mas posso arranjar isto se você quiser.
Animada com essa franca cordialidade e tomada de súbita simpatia por Nora, Anne acenou com a cabeça num sincero assentimento.
- Você é um número - disse ela, sorrindo. Pode contar comigo para ajudá-la a combater os roncos de Glennie.
O quarto para onde Nora a levou ficava num pequeno sótão, ao qual se chegava subindo uma escadinha de caracol de três lances. Um oleado cheio de rachas revestia-lhe o piso e por mobiliário não tinha mais que três camas de ferro muito ordinárias, dessas que têm carretilhas nos pés, três velhas cómodas e dois lavatórios esmaltados. Nora divertia-se observando a fisionomia de Anne.
- Não perca o ânimo, querida. Logo se acostumará.
- Assim o espero.
Anne esforçara-se por imprimir à sua resposta um tom alegre. Nunca, porém, vira um quarto tão miserável.
- É claro que não estamos no Hotel Ritz prosseguiu Nora. - Mas pode crer que são estas as acomodações mais confortáveis deste "ninho de amor". Quem não desejaria ser enfermeira só para viver num ambiente luxuoso como este? Não é verdade, Glennie?
A enfermeira a quem Nora se dirigira subira a escada logo atrás delas e acabava de entrar naquele momento no quarto, com a sua longa capa e um ar cansado. Era uma escocesa alta, escanifrada e ruiva, de mãos rachadas, olhar duro e taciturno. Atirando para um lado a capa, jogou-se sobre o leito e acendeu com gesto mecânico um cigarro, sem tirar os olhos de Anne, como se fosse um prazer fitá-la.
- Vocês duas precisam conhecer-se - continuou Nora. - Esta é a nossa nova colega, Glennie - o nome dela é Anne Lee. Antes que me esqueça, Anne. fumar aqui é crime passível de excomunhão. Mas só duas coisas mantêm Glennie viva - o fumo e aquilo! Esse aquilo indicado por Nora com um movimento de cabeça, era um retrato de Clark Gable que estava sobre a cómoda da enfermeira Glennie. O espantoso é que a simples menção do seu herói bastou para que a enfermeira Glennie dirigisse a Anne um grotesco sorriso. Era um extraordinário fenómeno aquele sorriso de Glennie; tivera o condão de imprimir ao seu rosto duro e sanguíneo uma expressão humana.
- Ele é um "amor", não é? - exclamou ela em tom franco, carregando nos "rr" como os próprios trovões nas montanhas da Escócia. - Possuo também o autógrafo dele. Escreveu-me uma linda carta do seu próprio punho.
Como em Nora, havia algo em Glennie - apesar da sua aparência fechada - que dava a Anne a impressão de que encontrara uma amiga. Cinco minutos depois, quando as três moças desceram juntas para o almoço (a caminho, Nora parara para induzir, à custa de agrados, o seu patrício Mulligan, porteiro do hospital, a ir apanhar a mala de Anne na estação), Anne já se sentia perfeitamente aceita pelas outras duas, as quais a haviam submetido a um exigente exame, do qual se saíra satisfatoriamente.
No limiar do refeitório. Glennie deteve-se de maneira teatral e perguntou muito séria a Anne:
- Você tem bom apetite?
- Por quê? - contra-indagou Anne sem desconfiar de nada.
- Oh, não é nada, não é nada - respondeu Glennie com o mesmo tom sério. - Se você não estivesse com muita fome eu só queria recomendar-lhe o peru assado. Menina, é de se estalar a língua!
Dali a pouco Anne compreendeu porque Nora se torcera de tanto rir.
O refeitório das enfermeiras era uma sala ampla e nua, forrada com o indefectível oleado, onde talvez umas quarenta enfermeiras já se achavam sentadas diante de duas filas de toscas mesinhas. A sala estava impregnada de fumaça, cuja gordura escorria pelas paredes amarelas e pelas janelas gradeadas que davam para um paredão de tijolos nus. Duas velhas criadas de uniformes listrados de vermelho serviam atabalhoadamente as mesas. Anne estivera certa vez com uma turma de enfermeiras em visita de instrução ao Asilo de Pobres de Shereham. O refeitório do asilo era muito melhor do que aquele.
Sentou-se ao lado das suas duas amigas e não tardou que a servissem. O que lhe serviram, porém, nem parecia comida. No County o regime era naturalmente simples, mas a diretora Lennard exigia que os alimentos, além de sadios e bem temperados, fossem servidos quentes. Ali, entretanto, a comida vinha para as mesas fria, dura, repugnante, o caldo ralo, as batatas pareciam pedaços de sabão e o repolho tinha gosto de água de lavagem. A sobremesa constava de uns bolinhos fritos acinzentados e duros como pedras. Era um triste regime para mulheres sobrecarregadas de trabalho. A maioria das enfermeiras ia engolindo aquilo tudo com verdadeiro heroísmo. E Anne, sentindo pesar sobre si o olhar zombeteiro de Nora, dominou a náusea e fez o mesmo.
Entraria em serviço às duas horas. Sua disposição para comer podia não ser das maiores, mas para o trabalho era indubitável. Às cinco para as duas já ela se encontrava na Enfermaria C; e cinco minutos depois adquiria a convicção de que, por mais deficiente que fosse o hospital em outros pontos, em matéria de doentes possuía-os em número cem vezes maior do que o County. Embora apreciasse todas as especialidades da sua profissão, tinha forte inclinação para a cirurgia e ali na Enfermaria C havia pelo menos meia dúzia de casos pós-operatórios importantes como não encontraria em vinte anos no hospital de Shereham. E não era só isso. Como fosse dia de admissão, um caudal de novos pacientes invadia a enfermaria. Anne se entregou alegremente ao trabalho.
Durante mais de duas horas, absorveu-se em seu nobre trabalho. Um velho operário chegou com as costelas fraturadas em consequência de ter sido atingido pela queda de um guindaste. Era esplêndido enfaixá-lo todo em esparadrapo e aliviar-lhe a dor. Seguiu-se outro caso de acidente: o de uma mulher da zona dos cortiços que, numa briga de bêbedos, sofrera um ferimento na cabeça. Anne cortou-lhe os cabelos e pensou-lhe o ferimento de maneira irretocável. Apareceu depois um paciente com uma doença abdominal, arriscado a ir para a sala de operações. Houve ainda um caso de queimadura no braço em que foi aplicado o moderno tratamento à base de cera. Assim prosseguiu Anne em seu trabalho tão interessante e humano, passando dos abismos da dor e da miséria aos píncaros da fortaleza de ânimo e da perícia, medindo em suma os altos e os baixos da existência humana.
As quatro e meia. quando se achava absorvida na substituição do curativo num caso de infecção no s-inus, foi abruptamente interrompida. Dos fundos da enfermaria chegou-lhe aos ouvidos um imperioso chamado: Enfermeira! Voltando-se, viu enquadrada na porta a figura de um moço elegantemente trajado. A perfeição dos vincos de suas calças só encontraria paralelo no irrepreensível repartido de seus cabelos de um louro quase branco, reluzente de óleo. Sua bela aparência tinha um quê de teatral e pelo seu ar de auto-suficiência tinha-se a impressão de que estava perfeitamente convicto disso.
- Enfermeira! - tornou ele a chamar num tom de voz mais alto.
Uma súbita onda de sangue tingiu as faces de Anne. Abandonou as suas bandagens e atravessou lentamente a enfermaria na direção do desconhecido.
- A senhora está surda?
Essa pergunta fora feita com altiva rudeza.
- Quando chamo uma enfermeira quero ser atendido imediatamente. A senhora é nova aqui, não é?
- Sou.
Anne limitou-se a responder com esse monossílabo, embora em sua indignação pudesse prontamente ter dito muito mais.
- Hum!
Essa exclamação encerrava uma nota de apaziguante presunção.
- A senhora por certo não sabia quem sou eu. Sou o Doutor Caley - doutor George Caley. Sou o cirurgião interno. Da próxima vez que eu entrar na enfermaria, levante-se e tome conhecimento da minha presença.
Anne estava pálida, agora. Se havia um defeito de que se sabia culpada, esse defeito era o orgulho, e a arrogância daquele jovem mandão pusera-lhe o sangue em efervescência. Vendo-o com um afetado piparote limpar um pelinho qualquer aderido à sua lapela, Anne perdeu francamente a paciência e disse-lhe em tom cortante:
- Em geral estou sempre de pé na enfermaria e creio que já tomei mais que conhecimento da sua presença. Mas talvez o senhor prefira que eu lhe preste continência quando entrar.
O médico corou, tentou fulminá-la com um olhar, mas não o conseguiu.
- Não seja insolente! - advertiu-a.
- O senhor é que foi insolente comigo - redarguiu Anne queimada.
- Você está mentindo - volveu o médico, contraindo os lábios carnudos com uma expressão atrevida. Encontrei-a zanzando pela enfermaria, sem prestar atenção a nada. Se não tomar cuidado, darei queixa sua à diretora e mandá-la-ão para o olho da rua.
Lívida como um papel, Anne mordeu com força os lábios, procurando conter, num supremo esforço, as palavras ásperas e truculentas que lhe vibravam na ponta da língua. Não podia arriscar-se a defender-se daquela injustiça. Não ousava - decididamente não ousava - correr o risco de perder o seu emprego.
Vendo que ela se calara, o médico soltou uma risadinha seca.
- A lição sempre lhe serviu para alguma coisa, não foi, Miss Insolência? E ainda hei de lhe dar muitas outras. Dedicar-me-ei inteiramente a ensinarlhe as praxes desta enfermaria. Quando acabar, você se convencerá de que não passa de um capacho para eu limpar os pés. Nesse meio tempo preste atenção ao que estou dizendo, se é que ainda lhe resta algum bom senso. O número 5 aqui é um caso de gastrenterotomia. Apresentou sintomas suspeitos de hematêmese esta manhã e o médico-chefe está muito preocupado com o seu estado. Quero que você o observe cuidadosamente e, se houver nova hemorragia.
Comunique-me incontinente. Telefone-me para o Park Hotel. vou tomar chá lá. Compreendeu?
- Sim.
Essa palavra parecia ter-lhe sido arrancada. O médico fixou-a com uma expressão insolente nos olhinhos pequenos como olhos de porco.
- Sim, como? Então não sabe que tem que tratar-me de "doutor"?
Uma luta dilacerante travou-se no íntimo de Anne. Por fim conseguiu tragar todo o seu orgulho. Tinha os lábios lívidos, mas foi com firmeza que seus olhos fixaram os dele.
- Muito bem, "doutor" - disse ela em tom baixo mas distinto.
O médico desatou a rir, plantado ali com as pernas abertas, gozando o seu triunfo. Depois voltou-se, transpôs as portas giratórias da enfermaria e desapareceu. Anne ficou por um momento como que pregada ao solo e só depois de alguns minutos voltou a cuidar do seu doente. Sentia-se abatida, humilhada, com as pernas e os braços trémulos. Era a sua primeira experiência em relação ao médico interno do hospital. Mas não seria a última.
No dia seguinte submeteu-se ao exame de saúde e foi dada como fisicamente apta pelo Dr. Sinclair, o cirurgião-chefe da sua enfermaria. Depois disso, a despeito da vida de desconforto e privações que se levava ali, dispôs-se com determinação a enfrentá-la. Começou gradualmente a tomar pé. O trabalho continuava extremamente interessante.
Estava aprendendo, aprendendo o tempo todo. Sinclair, Doutor em Cirurgia e Membro do Real Colégio dos Cirurgiões, embora mirrado pela idade e com uma barbicha profissional alva como prata, era ainda um bom operador. Seu principal defeito era a timidez, a qual o levava às vezes a mandar os casos suspeitos para o seu colega Prescott no andar imediato. Além do seu trabalho na enfermaria, Anne era vez ou outra chamada a prestar auxílio na sala de operações, e nisso ela encontrava a sua maior alegria. O seu pendor para assistente de cirurgia estava em seu sangue e era onde ela revelava o melhor de sua habilidade, chegando mesmo a arrancar uma ou outra resmungada palavra de louvor do autómato que era a enfermeira-chefe Gilson.
Suas horas de trabalho eram tão longas e tão exaustivas as suas ocupações, que poucos lazeres lhe sobravam e esses mesmos ela não tinha ânimo de aproveitar. Distraía-se pensando frequentemente em Lucy. Escrevera à sua querida irmã um longo e entusiasmado relatório de tudo o que havia feito. Encontrava também em sua crescente amizade por Nora e Glennie um escudo contra a melancolia e um refúgio em todos os seus aborrecimentos, entre os quais a mesquinha hostilidade do Dr. Caley não era dos menores.
Havia momentos, entretanto, em que sentia terrivelmente a falta da irmã e de quando em quando se perguntava, em sua terna afeição, se Lucy concordaria em reunir-se a ela no enorme pardieiro que era aquele hospital. Então, desgostosa, ficava em dúvida se o Hepperton seria, afinal de contas, o lugar em que devia trabalhar. Lá pelo fim do primeiro mês de estada ali, sobreveio um incidente que lhe deu nova coragem e inspiração e que alterou por completo o rumo de sua vida.
Era uma tarde de sábado, justamente no seu meio-dia de folga - adorável folga que lhe parecia uma jóia Sem preço. Anne estava deitada em seu leito, descansando e fazendo ociosamente as unhas com o pensamento na noite de raro divertimento que a esperava. Nora, não se sabia como, conseguira duas entradas grátis para o Repertory Theatre - entradas que eram enviadas regularmente ao hospital, mas que raramente caíam em mãos outras que não as das enfermeiras-chefes ou do pessoal mais antigo. Súbito, Glennie irrompeu pelo quarto.
- A Gilson a está chamando - gritou ela. Imediatamente! Todos os diabos estão soltos!
Erguendo-se apoiada aos cotovelos, com um olhar subitamente preocupado, Anne ia articular uma pergunta, mas, antes que o fizesse, Glennie retomou a palavra :
- Não, não é nada de ruim por milagre. Trata se apenas de algo sensacional- com S grande. O apêndice de Bowley de uma hora para outra começou a dar sinais de vida. Logo o apêndice de Bowley! E Prescott trouxe-o para aqui. Imagine você! Quem poderia supor semelhante coisa! O grande Mathew Bowley no quarto particular da Enfermaria B. Mas que é que eu estou dizendo - a estas horas ele já deve estar mas é na sala de operações. Foi requisitado pessoal especial de emergência para a operação um mundo de gente - e você teve a honra de ser uma das enfermeiras escolhidas. Parabéns, menina!
Sob um turbilhão de emoções confusas, Anne apresentou-se à enfermeira-chefe Gilson. Fosse ou não honra, era uma verdadeira injustiça que a falta de pessoal do estabelecimento acarretasse o cancelamento da folga de qualquer enfermeira, a tanto custo obtida. Quando, porém, entrou na sala de operações da Enfermaria B esqueceu suas mágoas na lufa-lufa dos preparativos.
Evidentemente aquela oportunidade era considerada da mais alta importância. A própria diretora entrara em cena, distribuindo furiosamente ordens ao lado da enfermeira-chefe Gilson, de sua colega da Enfermaria B, da assistente de cirurgia particular de Prescott e mais quatro enfermeiras especialmente escolhidas. Dois carregadores entraram cambaleando ao peso de dois novos balões de oxigénio que o anestesista ligou aos seus tubos. Havia na sala um tumultuar de energias que ainda mais agravava a inevitável dificuldade de preparar o recinto operatório dentro do menor prazo possível. Finalmente ficou tudo pronto, com todo o pessoal enluvado e uniformizado.
Só então foi que o Doutor Prescott apareceu. Entrou silencioso e rápido, sem a mais leve pretensão ou espalhafato, numa atitude de curioso alheamento, como se não estivesse reparando em nada, mas na realidade observando tudo. Limitou-se a correr o olhar pela sala.
Embora já lho tivessem mostrado à distância, Anne nunca tivera oportunidade de ter um contato mais próximo com Prescott. Agora, ali perto, na sala operatória, sentiu-se imediatamente impressionada pela sua atitude, pela força vibrante da sua personalidade. Não era nem corpulento nem alto, mas tinha um físico ágil e bem proporcionado e um porte extremamente ereto. Feições bem talhadas, expressão permanentemente calma, cabelos bastos e negros, queixo firme; entretanto, o que mais impressionava nele era o seu olhar discreto mas penetrante. Aqueles olhos de um azul quase glacial pareciam sem esforço varar a alma da gente.
Ele fez um sinal silencioso. O paciente, já sob a influência da anestesia, foi trazido num carrinho para a sala operatória e passado para a mesa. Tudo o que podia ser visto do enorme Matt Bowley, deitado de costas e inteiramente coberto, era uma nesga de pele tinta de iodo, no abdómen. Prescott empunhou imediatamente o bisturi e fez a incisão preliminar.
Anne estava absolutamente habituada ao ambiente das salas operatórias. Assistira a inúmeras operações - operações realizadas competentemente pelo Dr. Hassall em Shereham, intervenções cirúrgicas impecáveis feitas por especialistas que eram chamados ao County. Apreciara também a admirável técnica de figurino de seu próprio chefe, Sinclair. Mas o que agora via era diferente - era champanha comparada com água de lavagem, era um espetáculo brilhante, único, simplesmente empolgante.
Sem se deixar alterar pela importância do paciente, impassível em face do nervosismo que azafamava a diretora, Prescott prosseguia em seu trabalho com assombrosa eficiência e rapidez. Uma simples apendicectomia naturalmente teria sido para ele mera brincadeira. Mas a intervenção estava se revelando mais complicada do que qualquer dos presentes previra. Todavia, Prescott não traiu a gravidade da situação com o mais leve tremor de pálpebras. O apêndice já havia sido extraído, mas aparentemente a intuição levara o operador a explorar o abdómen na direção do fígado. Trabalhando com incrível rapidez através da pequena incisão inicial, ei-lo que põe à mostra uma vesícula atacada de inflamação crónica.
Anne viu, num relance, que ele decidira realizar uma extração completa.
Contendo a respiração, acompanhava cada um dos movimentos rápidos e seguros do operador. E quando, em dado momento, a enfermeira Carr, sua assistente, lhe apresentou um instrumento por outro, Anne teve ímpetos de gritar diante de semelhante falta de compreensão. Fora como se, desobedecendo à batuta de algum grande regente de orquestra, o primeiro violino ferisse de súbito uma nota dissonante. Mas Prescott, sem voltar a cabeça, limitou-se a-deter-se e a deixar cair o bisturi indesejável. O leve tinir do metal contra o chão equivaleu a uma repreensão mais enérgica do que o faria uma torrente de descomposturas. Ele abriu então os dedos enluvados para receber a pinça que solicitara. Não disse uma palavra. Era hábito seu exigir que se falasse sempre o mínimo possível durante uma operação. Altivo, frio e silencioso, pensou Anne - mas oh, que cirurgião! Ali estava uma estrela que ela poderia seguir, uma firmeza de propósito só comparável à sua própria.
A intervenção estava quase no fim. agora, restando apenas por fazer a sutura da parede abdominal, e uma vez mais Prescott parou à espera da palavra que lhe permitiria prosseguir. Essa pausa, quebrando o ritmo da sinfonia, fez com que Anne de novo vibrasse de impaciência. A enfermeira Carr perturbou-se um pouco e saindo da sua rotina normal olhou para a sua colega incarregada de contar as mechas de gaze usadas. Esta, mais que depressa, murmurou:
- Vinte e quatro.
A enfermeira Carr, com um movimento do seu busto protuberante, voltou-se para Prescott:
- Tudo em ordem, doutor - assegurou-lhe ela, apresentando-lhe uma agulha.
Anne sentiu-se gelar intimamente. Desta vez, porém, não era uma simples exasperação. Um frio de morte a invadira. Embora seu dever fosse apenas manter-se ali de pé, sustentando o irrigador, observava os mínimos detalhes da operação. Quase inconscientemente havia contado as mechas de gaze. E contara não o número completo de vinte e quatro, mas apenas vinte e três. Faltava uma!
Como que paralisada, Anne viu Prescott dar o primeiro ponto, convicta de que ninguém mais, além dela, notara o engano da enfermeira - obrigada por todas as normas da disciplina e da tradição a manterse calada e sabendo, no entanto, que precisava falar, pois se o não fizesse a operação redundaria num desastre. Cerrando nervosamente as mãos, reuniu todas as suas forças para enfrentar aquela prova. Faria tudo para poupar a sua colega. Adiantou-se então discretamente e com um movimento de lábios quase imperceptível murmurou:
- Enfermeira. Está faltando uma das mechas.
- Silêncio - ordenou imediatamente Prescott.
- Não quero falatório nesta sala.
E, ao voltar-se para dar o segundo ponto, procurou friamente a infratora. Fez, porém, uma pausa, sua mão se deteve e seus olhos perscrutaram a fisionomia de Anne.
- Que foi que a senhora disse?
Sem uma gota de sangue nas faces, ela o encarou.
- Desculpe-me - balbuciou. - Há apenas vinte e três mechas de gaze no balde.
- Absurdo!
Essa exclamação partira da diretora que, ultrajada por semelhante audácia, voltou para Anne a sua cara de buldogue enfurecido.
Prescott afastou-a com um gesto, fazendo emudecer os protestos da enfermeira Carr.
- Recontem as mechas - determinou lacônicamente.
As mechas foram novamente contadas no balde. E havia apenas vinte e três. A enfermeira não pôde conter uma abafada exclamação de nervosismo e a fronte da diretora tingiu-se de um vivo escarlate. Prescott não disse nada. Voltou-se para a mesa e uma vez mais meteu a mão dentro do corte. Quando o seu longo indicador emergiu da incisão, trazia a mecha de gaze que estava faltando.
Houve um momento de absoluto silêncio como nunca se vira naquela sala. Depois, sem mais comentários, Prescott completou a operação.
- Ele agora está livre de perigo - declarou calmamente ao terminar, dirigindo-se ao anestesista.
Não fez a menor reprimenda à sua assistente nem à enfermeira faltosa. com um último olhar ao paciente, deixou discretamente a sala. Nem sequer olhou para Anne. Esta achava-se convencida de que Prescott afastara da mente o incidente, como algo desagradável que seria preferível esquecer. Anne não sabia que Robert Prescott não esquecia nada que se relacionasse com o seu trabalho - não conhecia a ardente flama da sua ambição.
SEGUNDA PARTE
OITO semanas após a sua entrada para o Hepperton Institute, Anne começou a tornar-se cada vez mais ansiosa pela falta de notícias de Lucy. Embora lhe escrevesse duas vezes por semana, as respostas da irmã eram lacónicas e raras. O maior desejo de Anne era rever Lucy, era ter com ela longa e afetuosa conversa na qual pudessem abrir-se uma com a outra, em mútua expansão da alma. Na situação em que no momento se encontrava, era-lhe impossível voltar a Shereham. Mas Lucy, com um dia inteiro de folga de três em três semanas, poderia facilmente ter vindo a Manchester. Todavia, não o fizera.
Foi então que, certa manhã, lá pelo fim de março, uma carta veio esclarecer todo o mistério. As notícias que trazia eram simplesmente pasmosas.
"Querida Anne" - escrevera Lucy. - "Tenho uma grande surpresa para -você. Você, na certa, irá sentir-se um tanto chocada, mas espero que a notícia do meu casamento com Joe lhe seja grata. Você compreende - logo depois de sua partida o pai de Joe faleceu. Eu quis escrever-lhe na ocasião, mas outras preocupações impediram-me de fazê-lo. Pois bem, o velho deixou um bom dinheiro a Joe e ele, farto como andava de Shereham, vendeu a garagem. Começou então a insistir comigo para que o desposasse e iniciássemos vida nova em Londres. Acabei cedendo e fomos atar solidamente em Londres os nossos laços conjugais. Sou muito feliz e Joe é um anjo. Ele vai entrar para uma tal "Companhia de Transportes Limitada".
Continuará, pois, trabalhando no mesmo ramo de negócios e pretende ganhar muito dinheiro. Alugamos um "amor" de casinha em Maswell Hill - uma verdadeira casa de campo
- e nunca a vida me pareceu mais cheia, ocupada como ando com a escolha de tapetes, cortinas, móveis e tudo o mais. Joe deu-me como presente de casamento uma pele de raposa prateada - a mais cara que encontrou (o adjetivo fora duplamente grifado) - e um estojo de toilette com incrustações de esmalte verde. Uma verdadeira jóia. Sei que você vai se danar por eu ter abandonado a enfermagem, principalmente depois do que fés por mim (esta frase também estava sublinhada), mas ficará contente de saber que antes de deixar o County recebi o meu diploma e guardo-o comigo para o que der e vier. Portanto não a decepcionei totalmente. Venha visitar-nos assim que puder arranjar uma saída. O endereço - ainda não mandei imprimir os meus cartões de visita - é Elthreda Avenue, 7, Londres."
Havia um pós-escrito:
"Joe envia-lhe afetuosas lembranças."
Anne deixou cair a carta, tomada de verdadeira perplexidade, à qual se mesclava uma sensação de mágoa pelo fato de Lucy não lhe ter escrito antes. Em seguida, sentiu o coração confranger-se-lhe dolorosamente ao pensar no sacrifício inútil que fizera, em todos os planos que alimentara para si e para Lucy, em todas as esperanças de virem a trabalhar juntas e de alcançarem um brilhante triunfo na profissão. Fôra-se tudo por água abaixo. Sorriu depois tristemente, recordando a adoração que Joe dizia ter por ela havia tão pouco tempo. Pobre Joe! Era como argila nas mãos de qualquer mulher. E, entretanto, pensou Anne, com a fisionomia subitamente desanuviada, aquele casamento talvez não fosse mau para ele e até mesmo para Lucy. Lucy, com a sua viva autoconfiança, saberia estimular Joe e orientá-lo pela trilha do sucesso.
- Que aconteceu? - indagou Glennie do outro lado da mesinha do quarto que partilhavam. - Morreu alguém e lhe deixou uma fortuna?
Ela e Nora tinham estado a observar com amistosa curiosidade a expressão concentrada e séria da fisionomia de sua companheira de quarto.
Anne ergueu o rosto num leve sobressalto e depois riu-se um tanto contrafeita.
- Foi uma surpresa. Boa, porém. Minha irmã casou-se.
- Que bom para ela! - exclamou Nora.
- E o "gajo" tem dinheiro? -'quis saber Glennie.
- Ora... tem sim.
- Pequena de sorte! - monologou Glennie com cinismo. - Meu Deus! Não vejo o dia em que eu também consiga "pescar" um noivo endinheirado. Vocês, meninas, já conhecem os meus pontos de vista. Mas os homens parece que não compreendem o que lhes falta. A minha boa estrela deve andar apagada. Todos os médicos internos que me aparecem pela frente ou falam fino ou já têm uma noivinha dengosa - como aquele imbecil do Caley. Paciência, paciência! Um dia o meu "par de calças" há de aparecer. E então saberei agarrá-lo, meninas - se saberei!
- Eu gostaria que você não falasse dessa maneira, Glennie - disse Anne mais que depressa. Você não sente o que diz. Mas a impressão que se tem é a de que está sendo sincera.
Nora riu-se.
- E por que não haveria ela de senti-lo, minha querida Santa Anne? A maioria de nós anda à cata de um marido. E se não me acredita, corra os olhos pelas estatísticas. Mais de cinquenta por cento das enfermeiras arranjam casamento graças à profissão. Conheci moças que foram ser enfermeiras com o único objetivo de arranjar um marido - algum doente bonito e rico, ou um médico simpático. E você pode lá censurá-las? Sei que você é uma idealista, Anne - mas quando a gente pensa no que nós, enfermeiras, temos que aturar, e na indiferença das autoridades que nunca cuidam de melhorar as nossas condições de vida, não é de admirar que utilizemos nossos uniformes para obter algo mais proveitoso.
- Pois saiba que a enfermagem pelo amor da enfermagem existe - sustentou Anne com obstinação.
- Toda enfermeira que tira partido do seu sexo, especialmente junto ao médico com o qual trabalha, está traindo a sua profissão.
- Deixe de "bancar" a Florence Nightingale! atalhou Glennie em tom sucinto.
Embora nascida no norte, Glennie gostava de tiradas cinematográficas.
- Se eu tivesse a certeza de poder interessar um médico simpático, seria capaz de andar pela enfermaria nos trajes de Lady Godiva.
Diante disso não houve remédio senão rir. Mas embora a discussão fosse dada por encerrada, Anne recusava-se a aceitar o ponto de vista de Glennie. Ela tinha lá suas ideias e aferrava-se a elas com unhas e dentes. Casamento e enfermagem eram duas coisas que não podiam misturar-se.
Todavia, quanto mais pensava no casamento de Lucy, mais o abençoava. Tinha um grande desejo de ver a irmã e Joe. Mandou-lhes um longo telegrama de felicitações e depois, não podendo mais conter a vontade de vê-los, encheu-se de coragem e foi pedir à diretora para dar-lhe um fim de semana de folga.
- Um fim de semana! - exclamou a diretora em tom de extrema reprovação, sentada em sua mesa como > um velho e agressivo buldogue em seu canil. - Nunca vi uma coisa dessas! Não faz nem três meses que você está aqui. Onde é que você quer ir?
- A Londres.
- Logo vi. Vocês, moças, não pensam noutra coisa senão em ir a Londres. Pura falta de senso, é como classifico isso. Que será da disciplina se vocês só pensam em divertir-se?
- Quero visitar minha irmã - explicou Anne.
- Ela acaba de casar-se.
- Não, não, não pode ser - redarguiu sem hesitação a diretora.
Desde o incidente da sala de operações, ela se tomara de uma vaga prevenção contra Anne.
- Estou com uma terrível falta de pessoal prosseguiu ela. - Não posso dispensá-la. Talvez depois que você completar mais um mês de serviço aqui, possa arranjar-lhe uma saída. Não tenho culpa de sua irmã ter-se casado.
E bateu com força na campainha dando por encerrada a conversa e acrescentando com um humorismo sublimemente inconsciente:
- Casamentos não contam aqui para nós. Só concedemos dispensa para funerais - quando são verídicos!
Anne deixou o escritório e entrou em serviço com a dolorosa impressão de ter sido vítima de uma injustiça. E ao chegar à enfermaria, como que para agravar a sua contrariedade, encontrou o Dr, Caley à sua espera.
O médico interno estava imchando de auto-satisfação, e Anne sabia que isso acabava sempre em aborrecimento para ela. George Caley era um zéninguém que, sabe Deus como, conseguira formarse em medicina e que agora ficara noivo da filha de um médico da terra, com o qual, depois do casamento, passaria a trabalhar. Fora um golpe de sorte para Caley. Em consequência disso, ele vivia num permanente estado de euforia diante da própria ladinice, do próprio tino e do seu físico irresistível. Quem quer que se recusasse a participar dessa euforia tornava-se automaticamente seu inimigo. Eis porque ele detestava Anne.
- Enfermeira Lee - foi logo dizendo num tom de franca prelibação - acabo de encontrar este livro, na cabeceira do leito 19, na enfermaria de mulheres.
Anne relanceou o olhar pelo livro que ele lhe exibia - um romance leve e interessante de autoria de um popular escritor moderno. Ela própria o dera à paciente do leito 19 - uma senhora idosa que sofria de um tumor maligno bem adiantado.
- Fui eu quem lhe deu o livro, doutor - declarou Anne respeitosamente.
- Confessa-o então - tornou o médico umedecendo rapidamente os lábios. - Entretanto, você sabia que eu havia dado ordens expressas proibindo que a doente n.o 19 lesse. Ela está muito fraca e a leitura deixa-a exausta.
- Ela está fraca, doutor - repetiu Anne, fazendo um grande esforço para não alterar a voz. - Está morrendo, não está? Pode expirar a qualquer momento. E adora ler. É a única coisa que distrai seu espírito, fazendo-a esquecer o seu estado e as suas dores. Foi ela quem me pediu que lhe desse o livro. O médico esticou o queixo para a frente e bateu com o livro na mão.
- Não quero saber se pediu ou não. Já lhe disse que a leitura lhe é prejudicial.
- Prejudicial a uma velha que está morrendo de câncer?
Anne falou num tom mais alto, mas aparentemente ainda mantinha a calma.
- Se o senhor estivesse morrendo, não preferiria expirar fazendo algo do seu agrado, a suportar o sofrimento e a agonia sem nenhum derivativo?
O rosto congestionado de Caley dava-lhe o aspecto de um enfurecido mata-mouros.
- Mas acontece que não estou morrendo. E não desejo ser comparado com a miserável criatura que ocupa o leito 19.
Empalidecendo até os lábios, Anne respondeu-lhe serenamente:
- Desculpe-me, Doutor Caley. Eu apenas estava usando um argumento.
Ele encarou-a de sobrolho fechado. A sua situação era de superioridade e ele sabia bem disso.
- Não estou aqui para discutir casos hipotéticos com você. Já dei as minhas ordens. vou destruir este livro. E se encontrar a doente n.o 19 com outro, darei imediatamente parte sua ao Doutor Sinclair.
Anne já agora cheia de indignação, mas teve o bom senso de não o deixar transparecer. Foi com a maior serenidade que respondeu:
- Está bem, Doutor Caley.
Desapontado por ver que Anne não dava sinais de maior irritação, ele a fixou, procurando um meio de impor-lhe de novo a sua autoridade. E então, a título de despedida, lançou-lhe uma última ordem.
- Não se esqueça de dar o mesonil àquele doente de flebite do leito n.o 15. Dê-lhe cinco grãos às nove horas.
O coração de Anne deu um salto prodigioso. Até que afinal Caley errara o tiro, entregando-se, na sua ignorância, em suas mãos.
- Cinco grãos? - repetiu ela claramente.
Ele confirmou de cabeça com um ar superior.
- Exatamente. Cinco grãos.
Anne calou-se, limitando-se a deixar que sua fisionomia revelasse uma expressão de inconfundível mofa. Caley ia se afastando, mas aquele olhar de franco desdém deixou-o estranhamente pregado ao solo. Fêz-se um silêncio. E em seguida Anne disse lentamente:
- A dose máxima de mesonil é meio grão. Caley derrubou o queixo e arregalou os olhos
para ela, estupefato. Não tinha nenhuma prática de dosagem; com frequência, antes de redigir uma receita, tinha que retirar-se às escondidas para consultar os formulários do seu pequeno manual de farmácia. E aquele mesonil era uma droga nova; ele imaginava tratar-se de um medicamento simples como o bromureto. Corou até à raíz dos cabelos e tentou estupidamente salvar a situação por meio de uma fanf arronice:
- Que é que você está dizendo? Vai ver que é a primeira vez que ouve falar em mesonil.
- Engana-se. Sei perfeitamente de que se trata - foi a resposta de Anne, dada com um manso sorriso de piedade. - É o mais forte dos novos deririvados da codeína. E posso afiançar-lhe que cinco grãos matariam qualquer pessoa.
- Mas... - atrapalhou-se Caley.
Anne continuou a arrasá-lo com os seus argumentos, demonstrando um conhecimento muito maior do que o dele.
- De mais a mais, o Doutor Sinclair receitou apenas um quarto de grão. Se não acredita em mim, examine a papeleta do doente n.o 15. A indicação está lá escrita com a própria letra do Doutor Sinclair.
Caley, já agora, estava inteiramente sem fala, vencido, aniquilado. Engrolou qualquer coisa entre dentes, lançou-lhe um olhar medonho e virou nos calcanhares. Antes que ele saísse, Anne ainda lhe desferiu um derradeiro golpe.
- O senhor não havia de querer que eu desse ao numero 15 uma dose mortal, ainda que fosse para cumprir as suas ordens. Ou quer que eu as cumpra, doutor?
Nesse doutor final ela botou toda a sua diabólica ironia. O ar de abatimento com que Caley deixou a enfermaria compensara bem toda a injustiça, toda a maldade e todas as mesquinharias que ela sofrera e viria a sofrer em suas mãos.
A chegada da carta de Lucy e o incidente
com Caley varreram do espírito de Anne toda e qualquer lembrança da operação de Matthew Bowley, bem como o papel que ela desempenhara nessa intervenção. Mas na tarde de sexta-feira daquela mesma semana, a enfermeira-chefe Gilson, depois de atender ao telefone da enfermaria, dirigiu-se a ela num tom de suave congratulação:
- Vá ao quarto particular da Enfermaria B. Mr. Bowley deseja falar-lhe.
A enfermeira-chefe, que havia muito tempo lutava com grandes dificuldades, e com uma sobrecarga de trabalho consequente da longa sucessão de auxiliares inexperientes, encontrara em Anne um verdadeiro braço direito, alguém que naquelas últimas semanas lhe havia proporcionado indizível descanso. Não era, pois, de admirar que se houvesse afeiçoado tanto a ela.
- Não fique tão alarmada - tranquilizou-a a enfermeira Gilson com um amistoso sorriso. - Não pode ser nada de desagradável.
Foi, entretanto, com alguma perplexidade que Anne atendeu ao chamado. Matthew Bowley fora até então para ela um corpo enfaixado, um paciente na mesa de operação. Que aspecto teria ele na realidade, era algo que não conseguia imaginar. Bateu à porta do quarto tomada de estranho nervosismo.
Uma voz ordenou-lhe que entrasse. E ela entrou.
O quarto, em si, constituiu suficiente motivo de assombro - luxo e toda a espécie de confortos enxertados na miserável nudez do hospital - com flores por toda parte, um rádio junto ao leito e um grande cesto de frutos apetitosos sobre a mesa. Todavia, a figura de Matt Bowley pareceu a Anne ainda mais surpreendente. Era um homem de cerca de sessenta anos, rude e pesadão, com uma cara amarrotada porém astuta e bondosa - uma cara que parecia ter sido violentamente amassada a socos mas que a tudo resistira para acabar adquirindo o poder e o brilho oriundos de uma grande fortuna. Estava recostado aos seus travesseiros e vestia, sobre o pijama de seda listrada, um roupão de cetim verde, de um mau gosto atroz, tendo ao seu lado um maço de papéis e de documentos. Bowley recebeu-a com um franco e sacudido aperto de mão. Depois, observando-a por sob as sobrancelhas peludas, sorriu demoradamente e disse-lhe:
- Muito prazer em conhecê-la, menina. vou sair amanhã. E já não é sem tempo. Mas não poderia ir-me embora sem dar uma olhadela em seu rosto. Por sinal que é um lindo rostinho.
Para seu maior constrangimento, Anne sentiu-se corar. Mas isso só fez com que Bowley se pusesse a rir com mais gosto ainda e retomasse a palavra com um leve ar de conspiração.
- Não estou lhe contando nenhuma história da Carochinha, enfermeira Lee. Mas um passarinho cochichou uma coisa ao meu ouvido e não ponho dúvida em informá-la que Matt Bowley será provavelmente um homem muito mais útil sem uma mecha de gaze esquecida dentro de sua barriga. Não acha que tenho razão?
Já então Anne se tornara perfeitamente senhora de si. Piscou então os olhos para Bowley e disse-lhe:
- Estou inclinada a concordar com o senhor, Mr. Bowley.
Bowley bateu-lhe afetuosamente na mão, que retinha entre as suas.
- Isso mesmo, minha cara. Estou vendo que além de bonita você é também inteligente. E não pode haver mais bela combinação numa mulher.
Era impossível ofender-se com aquele modo de falar, já que apenas transpirava um franco e afetuoso interesse.
- E numa enfermeira essa combinação de inteligência e beleza torna-se ainda mais extraordinária! Você compreende, menina, quando um camarada adoece ou tem alguém doente em casa, é-lhe muito mais agradável ver uma criatura simpática se movimentando pelo quarto do enfermo, do que uma mulher de cara comprida, pés chatos e nariz pingando.
Por mais que quisesse conter-se, Anne não pôde deixar de sorrir. Foi, entretanto, com firmeza que observou:
- As mulheres de cara comprida - como o senhor as classifica - podem ser excelentes enfermeiras.
- É possível que sim - redarguiu Bowley, derrubando o beiço numa cómica careta. - Podem ser até as melhores do mundo. Mas não para Matt Bowley.
Nesse momento, o relógio de sua mesa de cabeceira deu três leves pancadas. Ele suspirou em tom de lástima e soltou-lhe a mão com uma última palmadinha.
- Pois é, minha cara menina, eu por mim passaria o resto da tarde conversando com você. Mas tenho que atender a dois advogados que devem estar chegando aí. Corja de patifes, é o que eles são (com um ar aborrecido, mostrou-lhe uma enorme pilha de correspondência sobre o seu acolchoado). Não me deixam em paz, veja - mas só hoje foi que Prescott me permitiu recebê-los. Fizeram tudo para pouparme. Não faz mal, menina, havemos de nos encontrar de novo. Não sou homem que esqueça um benefício. E por enquanto quero que aceite isto - como lembrança daquela mecha de gaze que estava faltando. 75
E, sorrindo, apanhou um embrulho muito bem feito que estava sobre a sua mesinha de cabeceira, e entregou-lho.
- E agora nem uma palavra - nem uma. Terá muito tempo para agradecer-me.. Vá-se embora depressa e seja boazinha!
Embora ele não quisesse ouvir os seus agradecimentos, Anne deixou o quarto com o coração envolto numa cálida sensação de alegria. Como era bom sentir que alguém reconhecia os seus serviços! Só o Dr. Prescott poderia ter contado a Bowley o incidente da mecha de gaze. Assaltada por uma natural curiosidade, parou no meio do corredor e, como não houvesse ninguém à vista, abriu o embrulho. Seus olhos brilharam. O presente era uma lindíssima bolsa - simplesmente maravilhosa - justo o que ela mais precisava. Não cabendo em si de contentamento, abriu-a e examinou-lhe as repartições. Súbito a alegria apagou-se em seu olhar. Dentro da bolsinha interna havia uma nota de dez libras.
Ao olhar para a nota nova em folha a expressão de Anne passou aos poucos a exprimir uma grande decepção. Compreendia que Bowley fizera aquilo com a melhor das intenções, entretanto, aquele presente em dinheiro revelava nele uma indelicadeza de que não suspeitara. Aquilo rebaixava o serviço que ela lhe prestara, fazendo-a sentir-se na situação de uma criada a quem se dá uma gorjeta. Tinha que
devolver-lhe aquele dinheiro - tinha que fazê-lo.
Estava prestes a voltar ao quarto, quando um som de passos no corredor fê-la virar-se rapidamente. Era o Dr. Prescott que se encaminhava para ela. Anne hesitou, dominada por uma onda de confusão, com a bolsa e a nota de dez libras na mão e sem poder escondê-las.
Movido talvez pela sua profunda intuição ou porque soubesse que Bowley pretendia fazer-lhe aquele presente, o fato é que um olhar tranquilo e compreensivo lhe bastou para que percebesse a situação. Parou e, dirigindo-se a ela num tom mais prazenteiro do que de costume, disse-lhe:
- bom dia, enfermeira Lee. Esteve visitando o nosso doente?
- Estive, sim, Doutor Prescott.
Ele fez um movimento de cabeça em sinal de compreensão.
- A generosidade de Bowley é sempre embaraçosa. Sinto sempre isso quando ele me paga.
Embora esta simples frase explicasse e desculpasse tudo, Anne ainda hesitou. E foi gaguejando que disse:
- É verdade, Doutor Prescott. Não me agrada aceitar este dinheiro.
- Tolice! - exclamou o médico, com um humorismo um tanto formal de quem não está habituado a brincar. - Todo trabalho faz jus a um pagamento
- principalmente esse de contar mechas de gaze.
- Era apenas a minha obrigação - murmurou Anne constrangida, olhando para o chão. - Tenho uma forte inclinação pela cirurgia. Sempre tive.
Houve um silêncio. Anne sentiu que devia retornar à sua enfermaria, mas Prescott estava de pé à sua frente, barrando-lhe a passagem. Ouviu-o limpar a garganta como se achasse difícil prosseguir falando, como se o fato de conversar com uma enfermeira no corredor de um hospital fosse algo absolutamente estranho à sua índole.
- Eu tive mesmo a impressão de que a senhora sentia um grande entusiasmo pelo seu trabalho. Estou muito satisfeito. Precisamos de gente dessa mentalidade. Precisamos muito. Até mesmo o melhor médico do mundo torna-se impotente quando não dispõe da colaboração de boas enfermeiras. Há muita gente que não dá o devido valor a esse fato.
- Eu gostaria bem de ensinar essas pessoas a fazê-lo, Doutor Prescott.
Essas palavras lhe escaparam dos lábios sem querer, deixando-a alarmada com a sua própria temeridade. , Prescott não a repreendeu. Apenas esboçou um leve sorriso.
- A senhora parece que tem vocação para reformadora.
Anne corou e abaixou a cabeça.
- Eu não devia ter dito aquilo. Foi uma frase horrivelmente presunçosa. Eu apenas.
- Apenas quê?
Ela se pôs a gaguejar na maior das confusões.
- Eu sempre pareço estar lutando pela minha própria profissão.
Houve uma pausa.
- Gosto das pessoas que sabem lutar - volveu Prescott. - E nada me é mais simpático do que a ambição. Se puder ajudá-la de alguma forma, terei grande prazer nisso. Há um curso de verão para aperfeiçoamento de enfermeiras que talvez lhe interessasse frequentar, eu posso mandar-lhe alguns compêndios. Desejo incentivar a aptidão profissional no Hepperton.
Lançou-lhe um olhar de distante interesse e depois,, como que caindo subitamente em si, fez-lhe um cumprimento de cabeça e afastou-se na direção do quarto de Bowley.
Anne voltou para a Enfermaria C singularmente animada por aquele encontro. Havia qualquer coisa em Prescott, naqueles seus modos bruscos, que a estimulava e como que a enrijecia. Mas não conseguia decidir-se a ficar com a nota de dez libras. Afinal, depois de muito cogitar, teve uma excelente ideia. Usou o dinheiro para comprar uma bela salva de prata e mandou-a a Joe e a Lucy como presente de casamento.
A qualidade da comida piorava cada vez mais. Um dia, ao almoço, tendo lutado para engolir um gorduroso naco de carne cozida, Anne afastou para a beira do prato um pedaço de cartilagem e por baixo dele, nadando num caldo aguado, deparou com uma barata. O achado deixou-a de olhos arregalados, como que fascinada, procurando conter uma insoportável náusea. Súbito levantou-se, muito pálida, e correu para fora. No vestiário de azulejos brancos trincados, recendente a mofo, seu enjoo ainda mais se agravou.
Depois, na sala de estar das enfermeiras, um grupo de colegas cercou-a movido pelo tremendo agravo comum a todas. Nora e Glennie lá estavam com as enfermeiras Dow e Todd, dois espíritos fortes que naqueles últimos tempos se haviam afeiçoado a Anne, e várias outras jovens que representavam o que havia de melhor no corpo de enfermagem da casa. Durante algum tempo ninguém falou, embora ob mesmo pensamento a todas dominasse. De repente, Nora explodiu:
- Isto é um verdadeiro inferno! Precisamos tomar alguma providência. Se não o fizermos, as coisas ainda vão acabar numa retumbante tragédia.
Alguém do grupo que estava mais atrás declarou :
- A enfermeira Smith adoeceu outro dia com uma inflamação de garganta em consequência de uma queda de resistência. Esse tipo de inflamação foi classificado de "garganta de hospital". Deviam chamá-la "garganta de inanição". Não foi à toa que a primeira coisa que o Doutor Prescott disse quando a examinou foi: "Esta moça está subnutrida".
- Há sempre alguém doente aqui - resmungou a enfermeira Dow. - Entra pelos olhos de qualquer um que não é possível ninguém trabalhar comendo essa comida horrorosa.
- Olhem para Anne - volveu Nora exaltada. Ela já perdeu alguns quilos depois que veio para cá. É uma coisa vergonhosa!
- Está ficando esbelta - interveio Glennie com a sua mania de fazer graça.
- Cale a boca, Glennie - protestou Nora.
Chegara o dia de a irlandesinha zangar-se.
- A ocasião não é para graças - prosseguiu ela.
- Meu jantar ontem constou de uma isca de fedorento peixe salgado, o almoço de batatas com brotos passadas em gordura rançosa e o bacon do breakfast embrulharia o estômago até de um marujo. Não provei um único alimento decente durante o dia todo e o mesmo se deu com todas nós. Não admira, pois, que eu tenha pilhado aquela minha pobre praticantezinha "abafando" um copo de leite da bandeja de um doente que está em dieta especial lá na enfermaria. Leite, sim! E frutas! Quando a enfermeirachefe Shaw na semana passada nos fez uma preleção sobre vitaminas, tive ímpetos de levantar-me e dizer: "Tudo isso está muito certo, enfermeira-chefe, mas desde que entrei para esta espelunca nunca mais pus os olhos em cima de uma folha de alface ou de um punhado de ervilhas frescas!".
- Mas que poderemos fazer para remediar a situação ? - indagou a enfermeira Todd com um gesto de desalento.
- Eu já lhe vou dizer o que iremos fazer - tornou Nora com violenta ênfase. - Precisamos pô-los em brios, de maneira a que passem a dar-nos uma alimentação decente. Nestes últimos dias ocorreu-me uma ideia. Ouçam. Não tocaremos mais na comida que nos servem. Comeremos outras coisas que compraremos fora. Amanhã não almoçaremos e quando for lá por uma e meia, iremos até o Gibb's, onde faremos um sortimento de biscoitos, queijo e bananas. Em seguida voltaremos e iremos comer o que tivermos trazido, lá no pátio debaixo da janela da diretora. Que eu saiba não há lei alguma que impeça isso. E se assim fizermos todos os dias, durante uma semana, acabaremos obrigando a velha "Pugilista" a levantar-se e a tomar conhecimento do fato.
A amalucada proposta de Nora foi aceita debaixo de aclamações. Nada poderia ter agradado tanto às mais novas do grupo. Anne, que estava sentada, tonta e enjoada, não teve ânimo de protestar. Sabia que o plano oferecia poucas probabilidades de sucesso. Um súbito impulso cresceu dentro dela no sentido de levar o assunto ao conhecimento do Dr. Prescott. Mas, refletindo bem, achou que o conhecia muito pouco e que talvez ele estranhasse a sua aproximação. De qualquer forma não competia a ele interferir naquilo. Compreendia entretanto perfeitamente que desde que a falha era toda de organização, o único meio de proceder a uma reforma radical e duradoura seria levar o caso, não à diretora, mas à mais alta corte de apelação. Como poderiam esperar que lhes servissem uma alimentação decente se os géneros eram comprados em grande quantidade, sem a menor fiscalização e preparados em enormes e antiquados caldeirões capazes de destruir o sabor do melhor peso de carne? O hospital não dispunha de refrigeradores, a cozinha era imunda e a cozinheira nunca estivera a menos de dez milhas de uma escola de economia doméstica. E por todo o país havia dezenas de hospitais nas condições do Hepperton. Alguns provavelmente eram até piores.
Fossem quais fossem as suas dúvidas íntimas, Anne, como é natural, aderiu às rebeldes. Eram nove ao todo. No dia imediato, à hora do almoço, quando a refeição lhes foi servida, elas limitaram-se a não prová-la, sequer. Ninguém deu grande importância ao fato. A enfermeira-chefe Lucas, que devia fazer uma visita de inspeção ao refeitório, não apareceu. À uma e meia, as nove enfermeiras foram até o Gibb's, o pequeno armazém que ficava bem defronte aos portões do hospital e ali muniram-se de biscoitos, chocolates e frutas. Voltaram mastigando ostensivamente e foram completar o piquenique no pátio situado sob a sala de visitas da diretora. Não se pode dizer que tal atitude tenha causado alguma sensação. Mas a enfermeira Todd fez a seguinte observação:
- Seja como for, ficamos mais bem alimentadas do que se tivéssemos almoçado lá dentro.
A enfermeira Dow recebeu uma severa repreensão por ter dado risada. Nora deixou propositalmente uma casca de banana sobre o parapeito da janela da "Pugilista".
Embora o início da campanha parecesse ter passado despercebido, nem por isso elas haviam deixado de ser observadas e o almoço do dia seguinte trouxe resultados definitivos. A enfermeira-chefe Lucas estava no refeitório à uma hora em ponto e quando as nove revoltosas se recusaram a tocar em seus pratos, ela as encarou de alto a baixo com desconfiança e severidade.
- Por que não quer comer? - perguntou em tom ríspido, dirigindo-se a Nora.
- Não estou com fome, enfermeira-chefe.
- Que absurdo é esse? - volveu a outra como que ultrajada em sua autoridade. - Esta comida é muito boa.
- Como é que a senhora sabe? - interveio secamente Glennie. - Esses pratos não fazem parte do seu menu. As enfermeiras-chefes recebem uma alimentação completamente diversa da nossa.
A enfermeira Lucas enrubesceu.
- Vamos parar com impertinências, por favor. Se não querem almoçar, comunicarei o fato à diretora.
- Estaremos infringindo algum regulamento pelo fato de não estarmos com fome ? - indagou Anne inocentemente.
O grupo de rebeldes rejubilou-se secretamente diante da confusão da enfermeira-chefe que, voltando-se, retirou-se. Mais tarde, depois que comeram o que haviam comprado no armazém, Nora deixou duas cascas de banana sobre o parapeito da janela da diretora.
O dia seguinte e o outro passaram-se sem intervenção oficial alguma, ficando bem claro que as autoridades esperavam que a insurreição acabasse dando em nada. Mas as grevistas haviam jurado não ceder. E assim, na sexta-feira, o refeitório alarmou-se com o aparecimento ali da diretora em pessoa.
Ela entrou abruptamente, depois de servido o bacalhau cozido. Embora não fosse alta, era uma figura imponente com o seu amplo uniforme roxo vivo e a sua touca de imaculada alvura. Trazia a fisionomia inexpressiva, os lábios franzidos e as mãos cruzadas à frente. Naquele dia lembrava menos um campeão de lutas do que algum alto dignitário da igreja. Avançou lentamente em direção à mesa, cercada por uma aura de silêncio sobrenatural. As nove paredistas estremeceram, mas mantiveram-se firmes, enquanto ela se detinha e corria o olhar pelos pratos intatos.
O silêncio tornou-se ainda mais denso e não se ouvia o ruído de um prato ou de um garfo, naquela sala geralmente tão barulhenta, quando a diretora se voltou para Anne.
- Não quer um pouco de peixe?
Anne levantou-se respeitosamente e respondeu:
- Não, diretora.
- Por que não?
Diante dessa pergunta um pressago arrepio percorreu a mesa. Responder com rudeza, condenar diretamente os alimentos ou o seu preparo seria provocar um desastre e provavelmente redundaria numa demissão. Mas Anne teve uma súbita inspiração.
- Porque gosto do que eu compro fora.
Era a resposta ideal e depois todas felicitaram Anne por ela. A diretora ficou perplexa, sem saber evidentemente o que dizer. Viera preparada para ouvir insolências e para reagir a elas. Aquela cortês indireta, porém, deixou-a completamente desarmada. Não se perturbou, entretanto, como a enfermeirachefe - era por demais experiente, rija demais para isso. Lançou a Anne um olhar duro e demorado, completou a volta à mesa e retirou-se em silêncio.
A maior parte das componentes do grupo sentiu que a vitória lhes coubera.
- Pusemo-la num belo torniquete - exclamou Nora triunfante. - Ela agora terá que fazer alguma coisa.
Anne abanou a cabeça num gesto significativo e agourento.
- É justamente o que mais receio.
E Anne - ai delas! - acertara. Na manhã seguinte, um aviso foi fixado no quadro-negro.
As enfermeiras ficam terminantemente proibidas de deixar o hospital entre as doze e as catorze horas. Não é permitido entrar no hospital com qual" quer comestível, a não ser com permissão especial.
Assinado:
ELISABETH EAST
Nora afastou-se do quadro de crista caída.
- É - disse humildemente às companheiras. Ao que parece, ou morremos de fome ou engolimos a lavagem de porco que eles nos servem.
E engoliram-na.
POR mais estranho que pareça, o fim de semana de folga prometido a Anne não foi adiado em conseqüência da sua participação na efémera greve da fome. A diretora East não era deliberadamente injusta. Suas maneiras agressivas e seu excessivo autoritarismo provinham principalmente das dificuldades que tivera de enfrentar para subir em sua carreira; as lutas e privações por que passara como praticante, como enfermeira e finalmente como enfermeira graduada haviam-na endurecido. Como ela própria dizia, "havia comido o pão que o diabo amassou" e agora sentia-se na obrigação de submeter as outras à mesma disciplina férrea. De mais a mais, as dificuldades no Hepperton eram enormes; ela se via constantemente importunada pela administração do hospital e uma política de intimidação parecia-lhe a única a adotar. Sabia, contudo, reconhecer o valor de uma boa enfermeira. Somente por essa razão não quis punir com excessos de severidade a enfermeira Lee. Assim, pois, lá pelo início de maio, Anne recebeu um aviso, comunicando-lhe que a licença prometida lhe fora concedida.
Estava um dia maravilhoso quando Anne tomou o seu lugar no trem de Londres, vibrando de alegria ao pensar que dentro de tão pouco tempo iria rever a sua querida Lucy. Desde a tarde de sexta-feira até a manhã de segunda! Que esplêndido e longo descanso lhe parecia aquele! À medida que o trem corria pela estrada ensolarada, Anne sentia-se invadida por uma intensa alegria de viver. Fizera muitas amizades naquelas últimas semanas e a despeito da árdua disciplina e das privações do hospital tinha plena consciência de estar progredindo em seu trabalho. Havia duas semanas que fora chamada a trabalhar na sala de operações do Dr. Prescott. Era sempre um estímulo, um grande incentivo, apreciarlhe a técnica maravilhosa, mormente nos casos de sua especialidade, como lesões do sistema nervoso central e do cérebro. Quantas vezes se surpreendia pensando nele, recordando alguma intervenção particularmente delicada, a rapidez e a destreza com que manejava o bisturi ao traçar a infinitesimal linha de separação entre a vida e a morte. Fora muito bondoso para com ela, embora dentro de suas absortas maneiras profissionais, emprestando-lhe livros e enviando-lhe entradas para três ótimas conferências sobre bactérias patogênicas no Tradcs Hall. Anne nutria por Prescott uma irrestrita admiração. Ele era, ou viria a ser um grande homem. Se ao menos conseguisse atingir uma grandeza igual na sua profissão!
Lucy não foi esperá-la em Euston, mas com a ajuda do seu belo acento nortista Anne conseguiu tomar o ônibus certo e não tardou a alcançar a Elthreda Avenue, em Mtiswell Hill. Seu coração pulsava aceleradamente quando galgou os degraus da entrada do número 7. Tocou a campainha e logo em seguida soltou um grito de júbilo quando Lucy lhe apareceu por trás da criada corretíssima que veio abrir-lhe a porta. No mesmo instante as duas irmãs se atiraram nos braços uma da outra.
Foi um maravilhoso encontro. Anne teve a impressão de que nunca mais teria coragem de deixar Lucy escapar-lhe dos braços, mas afinal fez um esforço para sentar-se, para conversar calmamente e para ouvi-la. Lucy, como era natural, tinha muito o que lhe contar. Estava talvez um pouquinho mais gorda e com um elegante vestido de tafetá de capinha. Sentia-se orgulhosa de sua nova casa, de sua reluzente mobília nova, de sua nova criada de avental engomado e naturalmente ansiava por exibi-las.
Na pequena sala de estar, entrincheirada por trás da bandeja que fora imediatamente trazida, Lucy serviu chá a Anne nas suas melhores xícaras de porcelana. Falou-lhe em seus novos vizinhos, - gente muito fina - nas novas peças e filmes a que assistira. Mas não sossegou enquanto não fez a irmã examinar tudo,-desde a qualidade da sua roupa de cama, até o talhe do seu último vestido de noite. Anne teria sorrido se não tivesse por Lucy um amor tão grande. Lucy parecia fazer questão de mostrar todas as vantagens que o casamento lhe trouxera.
- Achei tudo maravilhoso, querida - declarou finalmente Anne, passando -o braço em torno da cintura da irmã. - Sua felicidade enche-me de alegria. Joe deve estar ganhando muito bem para dar-lhe uma casa tão bonita.
Lucy sacudiu a cabeça em sinal de confirmação.
- Fizemos um ótimo negócio, com a "Transportes Limitada", creio que já lhe contei. Joe fez sociedade com Ted Grein - Ted é um perfeito gentleman - numa grande companhia rodoviária. Você sabe - são uns ônibus de longo percurso que viajam entre Londres e Bristol e entre Cardif e Manchester. Tive uma ideia!
Fez uma pausa teatral ao mencionar a cidade do norte.
- vou fazê-la voltar para Manchester num dos nossos carros. Não há necessidade de você servir-se daquela velha estrada de ferro, podendo dispor da "Transportes Limitada". É um excelente negócio. Ted já trabalhava nele há alguns anos. Foi uma verdadeira sorte para Joe ter aplicado nisso o seu dinheiro. Está dando um lucro fabuloso, Anne. Sua irmãzinha vai ficar rica.
Foram interrompidas pela chegada de Joe. De volta do trabalho, ele entrou com o seu velho ar acanhado, e cumprimentou Anne com tímida porém espontânea cordialidade. Vendo-o, Anne sentiu um leve sobressalto ao notar a mudança que nele se operara. Talvez fosse a sua roupa preta de trabalho que o fizesse parecer tão pálido e preocupado, mas não se lembrava de o ter visto nunca com aquela ruga a sulcar-lhe a fronte.
- Você veio trazer-nos uma agradável aragem do norte, Anne - disse-lhe ele com um riso breve. Confesso a você que ando saudoso daqueles bons ares.
- Que tolice, Joe - interveio Lucy com certa impaciência.
- Não sei se é tolice ou não, moça - volveu Joe - só sei que é isso o que sinto. Eu daria uma nota de uma libra para estar agora na Harbour Road, apenas por cinco minutos, metido no meu macacão, guiando o meu velho "fordeco".
Lucy corou e retrucou com rispidez:
- Quer passar a vida inteira como um mecânico ?
- Sou mecânico - insistiu Joe com uma súbita enervação na voz. - E um ótimo mecânico, já que deseja saber.
Tudo indicava a iminência de uma briga. Lucy, porém, com um esforço, conteve-se.
- Bem, é melhor você subir e trocar de roupa, Joe. Temos que estar prontos antes das sete.
Joe lançou-lhe um olhar inquieto.
- Que me diz? - exclamou contrariado. Vamos sair outra vez?
- Sim, vamos ao teatro - anunciou Lucy apertando os lábios. - Precisamos distrair Anne.
Uma vez mais o prenúncio de um atrito vibrou no ar. Isso causou em Anne um estranho mal-estar. Apressou-se então em dizer:
- Mas, francamente, eu preferia mil vezes ficar em casa para conversar com vocês dois. Foi para isso que vim.
- Nós vamos ao teatro - insistiu Lucy com inconfundível ênfase.
E o olhar que lançou a Joe advertia-o de que o melhor seria dar a discussão por encerrada e subir para trocar-se.
Assistiram a uma tola comédia musical. Anne detestou o espetáculo e Lucy, que passou o tempo todo por demais ocupada em mostrar-lhe as celebridades presentes, pouca atenção lhe prestou. Paradoxalmente quem mais o apreciou foi Joe. Disfarçou o seu cansaço com frequentes visitas ao bar e ao fim da noitada mostrava-se incoerentemente risonho.
Na manhã seguinte, como fosse sábado, Lucy levou avante sem desfalecimentos o seu programa, arrastando Anne pelas lojas em meio à aglomeração e ao bulício da Oxford Street. Parecia a Anne que o casamento tornara Lucy mais insensível e vagamente febril em suas atividades. Esse pensamento trouxe-lhe uma profunda depressão. Naquela noite foram jantar no Vladânfr, um restaurantezinho com fumaças de elegância da Regent Street, na companhia de Mr. Grein, o sócio de Joe, que se prontificara a acompanhá-los, transformando o trio em quarteto.
Logo de início, pela sua primeira observação, -
"Vocês, enfermeiras, conhecem bem a vida, sou capaz de apostar" - Anne pôs-se a odiar Grein com um ódio silencioso porém vivíssimo. Moreno, insinuante e forte, Ted Grein envergava com uma elegância consciente o seu dinner jacket de duas fileiras de botões. Suas maneiras eram efusivas, sua conversa, entrecortada de frequentes "meus caros", seu olhar, risonho mas evasivo. Embora o convite tivesse partido de Joe, foi ele quem escolheu o menu e o vinho. Enquanto isso, Lucy, cheia de admiração, declarava que Ted, sim, é que sabia viver, que Ted era a alma de todas as reuniões. Joe e Ted beberam muito e embora Ted conservasse o seu ar de "casca-grossa" com vernizes de aristocracia, Joe, quando chegou o momento de pagar a conta, estava quase em ponto de precisar ser levado para a cama.
Domingo foi um dia melhor. Lucy estava por demais exausta para pensar em sair e não protestou quando Joe, com os olhos ligeiramente empapuçados, apareceu-lhe em mangas de camisa e, acendendo o cachimbo, sentou-se junto delas. Criou-se então entre eles uma atmosfera de compreensão. Dali a pouco estavam os três conversando animadamente e recordando os velhos tempos do Shereham. As risadas de Lucy ecoavam espontâneas. A criada ia ter folga naquela tarde, e Joe, ainda de chinelos e em mangas de camisa, insistiu em preparar um legítimo chá acompanhado de presunto com ovos no mais alto estilo do norte. Anne, pela primeira vez, teve esperanças de que Joe e Lucy não estivessem realmente mudados e de que o casamento de ambos ainda viesse com o tempo a dar certo.
Mas às oito horas da noite daquele mesmo domingo, teria que partir. O fim de semana voara. Entretanto, tendo que estar às dez horas da manhã de segunda-feira na Enfermaria C, não havia por onde fugir. Por outro lado, não sabia também como vencer a insistência de Joe e de Lucy para que desistisse de tomar o trem e regressasse à noite pelo ônibus da "Transportes Limitada".
- Mas eu já tenho a minha passagem de volta comprada, argumentava Anne sorrindo.
- Você poderá devolvê-la em Manchester mediante reembolso, aventou Lucy mais que depressa. Estamos lhe oferecendo uma viagem gratuita, minha querida. Se você não a aceitar, tomaremos a coisa por uma afronta pessoal.
Assim, pois, acompanharam-na até Trafalgar Square onde, pouco antes das oito, o ônibus azul e amarelo da "Transportes Limitada" parava junto ao meio-fio.
- Que esplêndido ônibus! exclamou Anne. Não é à toa que vocês têm tanto orgulho dele.
- De fato não é mau, concordou Joe, lançando ao carro um olhar crítico. Está claro que é reformado - mas custou um dinheirão. Esse é que é o mal deste negócio. O modelo do próximo ano já vai deixar este carro antiquado.
Contornou então o ônibus e trocou duas palavras com o motorista, um rapaz de cara comprida, paletó e boné branco. Voltou com um ar de extrema satisfação e, consultando o relógio de pulso, disse:
- Embarque, AtK^ está na hora de partirem. O ônibus está lotado, hoje - trinta passageiros verdadeira sorte. Nada nos faz chorar mais - a nós, proprietários de empresas de ônibus - do que um carro vazio.
Anne beijou Lucy, apertou a mão a Joe e embarcou. Enquanto os dois lhe diziam adeus da calçada, a buzina soou e o ônibus partiu.
A noite já estava bem escura quando alcançaram os subúrbios da cidade e tomaram o atalho de Barnett rumo à grande Rodovia do Norte. O ônibus era rápido e possuía confortável molejo, mas mesmo assim, sentada de corpo ereto em sua poltrona estofada, Anne lastimou por um momento não estar antes no seu beliche de terceira classe, onde pelo menos poderia esticar as pernas e dormir. AH o máximo que conseguiria seria cochilar um pouco. Mas essa conjetura foi logo esquecida.
Às dez horas fizeram uma parada para tomar café com sanduíches num bar de beira de estrada próximo a Stevenage. Embora estivesse chuviscando e houvesse um denso nevoeiro, quase todos os passageiros - excelentes burgueses - desceram. Uma mulher, observou Anne, trazia consigo três filhas. Dentro em pouco prosseguiam viagem.
Anne cochilava de momento em momento, sacudida pelo balanço do ônibus. Assim passou-se a noite. Lá pelas cinco horas da madrugada ela espertou disposta a arrumar-se um pouco, satisfeita por ver aproximar-se o fim da viagem. Deviam chegar a Manchester às seis horas.
Limpando o bafo de umidade que lhe embaciava a vidraça, espiou para fora. Ainda não estava claro, mas viu a estrada semelhante a um canal escuro e brilhante sobre o qual os pneus deslizavam com um chiado surdo e insistente. De vez em quando cruzavam com eles os vultos de pesados caminhões de carga.
Anne abriu a bolsa e tirou dela um frasco de água-de-colônia. Começara a limpar distraidamente a testa e as têmporas, quando de súbito, de forma imprevista, o ônibus brecou violentamente e derrapou. Numa distância de talvez uns cinquenta metros, o pesado veículo patinou desgovernado. Anne ainda teve um instante de lucidez em que pôde compreender que o motorista se descontrolara. E então, antes que pudesse gritar, o carro rodopiou como um pião, saltou fora da estrada escorregadia e atirou-se como uma avalancha por um barranco de trinta pés de altura. O tronco de um grande olmo deteve-o. Ouviu-se um atordoante barulho de vidros estilhaçados e de metais retorcidos, o ronco do motor em funcionamento e uma forte explosão. O ônibus capotou, ficando com as rodas para cima. Uma labareda ergueu-se da caixa do motor semi-enterrado, sobre a qual uma roda ainda girava no ar absurdamente.
Embora quase desmaiasse, Anne não perdeu os sentidos. Percebeu o choque inicial do impacto quando o ônibus bateu na árvore. Seu ombro direito ficou totalmente amortecido e em meio ao ruído de vidros quebrados um filete de sangue quente e salgado começou a escorrer-lhe dentro da boca. Uma vez mais esteve a pique de desmaiar, mas os gritos de uma mulher ao seu lado reanimaram-na melhor do que qualquer outra coisa o faria, fazendo-a voltar a si. Em seu atordoamento pensou: "Preciso sair daqui, preciso socorrer estes feridos - é o meu dever".
Com um doloroso esforço, conseguiu esgueirar-se do seu lugar e arrastar-se até à parte superior do ônibus sinistrado. Encontrando uma janela com a vidraça quebrada, enfiou-se por ela e deixou-se escorregar pela carroçaria abaixo. Caiu com as mãos e os joelhos sobre a relva encharcada. Ao seu lado, sentado no chão com um ar aturdido, um homem comprimia a cabeça com as mãos. Anne reconheceu-o. Era o motorista do ônibus.
- O senhor está ferido? - perguntou-lhe ela apressadamente.
- Não sei (suas palavras soaram estupidamente). Fui cuspido para fora do carro. A culpa não foi minha. Foram os freios. Fecharam-me a frente e eu tentei...
- Isso não importa agora. Ajude-me. Pelo amor de Deus, ajude-me a retirar os feridos do interior do ônibus, pois do contrário morrerão queimados.
As mulheres dentro do carro gritavam cada vez mais histèricamente. Anne estendeu a mão ao motorista e ajudou-o a levantar-se. Línguas de fogo se erguiam em torno da parte dianteira do veículo. Um cheiro acre de metal aquecido o de tinta queimada impregnou o ar.
- A porta de emergência da parte de trás do carro - gaguejou o motorista.
- Depressa, então, depressa! - gritou-lhe Anne. Juntos empurraram a porta com todas as suas
forças. Parecia trancada. Mas por fim cedeu e imediatamente outro homem saltou, quase caindo por cima deles.
- Graças a Deus - murmurou ele. - Pensei que não houvesse saída. Que aperto!
- Ajude-nos! - suplicou-lhe Anne. - Vamos retirar os outros passageiros.
Ela tornou a entrar no ônibus com os dois homens e juntos começaram a retirar os feridos. Quase que imediatamente percebeu a gravidade do desastre. Muitos dos passageiros estavam inconscientes e quase todos apresentavam ferimentos graves - membros fraturados, músculos esmagados, e dois deles, verificou Anne horrorizada, haviam sofrido graves fraturas do crânio.
A situação não podia ser mais terrível, sob a chuva, naquela escuridão iluminada apenas pelo clarão das labaredas. com toda a sua experiência, Anne jamais enfrentara maiores dificuldades. Entretanto, cerrando os dentes, ela apelou para todas as suas faculdades, para toda a sua perícia, a fim de que a ajudassem. Um por um, os feridos foram deitados sobre uma saliência do barranco, onde uma árvore lhes servia de abrigo. Uma mulher foi retirada com uma crise de histerismo. Mal se viu fora do carro desandou a correr aos berros. "Graças a Deus ela não está ferida", pensou Anne, deixando-a livre. O passageiro seguinte, porém, era uma meninazinha, mortalmente pálida, quase sem sangue. Hemorragia! Anne viu logo do que se tratava - rompera-se a artéria umeral. Num abrir e fechar de olhos rasgou a sua écharpe e amarrou firmemente o braço cortado. Veio depois um velho gemendo agoniadamente, com uma das mãos esmagadas. Enquanto o motorista o ajudava a sair do ônibus, ele voltou-se para Anne:
- Não há mais ninguém lá dentro, moça. Saíram todos.
E tranquilamente, sem espalhafato, tombou desfalecido aos pés de Anne.
Nesse instante passava pela estrada, ali ao lado, um caminhão de leite madrugador. Ouviu-se uma freada e o veículo estacou. Anne acenou para o motorista, um provincianozinho de dezessete anos apenas, a quem o pavor e o inesperado daquela cena quase fizeram perder o juízo.
- A que distância estamos de Manchester?
- A umas... - gaguejou ele - a umas quinze milhas mais ou menos.
- Há algum médico por estas redondezas?
- Há, sim, o Doutor Hay, na vila. lá para trás. a umas três milhas daqui.
- Escute, meu rapaz - volveu Anne, agarrando nervosamente o braço do mocinho. - Vá até essa vila o mais depressa que puder. Apanhe o Doutor Hay e telefone pedindo ambulâncias.
Uma súbita inspiração ocorreu-lhe nesse momento - havia feridos ali que não resistiriam a uma remoção em ambulância.
- E telefone para o Doutor Prescott, em Manchester - o número do telefone dele é Park-4300. Peça-lhe para vir até aqui imediatamente. Diga-lhe que se trata de um grave desastre e que há necessidade de intervenções imediatas.
O rapaz ia correr, mas Anne deteve-o.
- Mais uma coisa. Há alguma casa aqui por perto?
- Há a Granja Rodney. Subindo aquele caminho, a uma milha daqui.
E indicou ao longe uma área circular cercada de árvores.
- É a granja para a qual trabalho - explicou. Anne sacudiu a cabeça em sinal de compreensão e, com uma última exortação, pediu-lhe que se desincumbisse o mais depressa possível da missão que lhe dera. Depois voltou-se para o primeiro homem que tinham tirado de dentro do ônibus.
- Vá até à granja. Conte o que aconteceu. Traga cobertores, cavacos de lenha, bolsas de borracha e bebidas quentes. Acorde os moradores de todas as casas que encontrar. Peça-lhes que nos tragam padiolas ou algo que possa substituí-las. Arranquem folhas de portas, portões, qualquer coisa. E vá depressa! Pelo amor de Deus, vá depressa!
- Vou correndo, dona.
E disparou pela chuva. Anne, vendo-se sozinha, concentrou com desespero toda a sua atenção nos feridos. Quem lhe dera ter ali, à mão, uma caixa com medicamentos de emergência, mas se é que havia alguma no ônibus, àquela hora já estaria destruída. Desejou dispor de um pouco de morfina. Alguns dos feridos mais graves haviam já então voltado a si e gemiam de fazer dó. De joelhos sobre a relva molhada, Anne fazia o possível para socorrê-los. Embebendo o seu lenço na água da chuva, limpava o sangue coalhado daqueles rostos, procurando com cuidado descobrir vestígios de outros ferimentos. Embora as vítimas em estado grave fossem muitas, a morte não havia ainda baixado sobre aquele punhado de criaturas feridas e mutiladas. Se ao menos todos pudessem salvar-se, pensou Anne, presa de verdadeiro delírio, se ao menos lhe fosse possível realizar esse milagre!
Gritos e fortes passadas chamaram-na à realidade. Viu então vultos que se aproximavam através do lusco-fusco daquela madrugada chuvosa - o granjeiro e dois dos seus empregados, seguidos pelo passageiro que levara o seu recado. Traziam padiolas improvisadas, uísque e cobertores.
Anne raciocinava com a máxima rapidez permitida ao seu cérebro. Parecia-lhe indispensável retirar incontinente do frio e da umidade os feridos mais graves - os dois casos de fratura compressiva do crânio, o da hemorragia e o do braço mutilado. Talvez estivesse se excedendo em seus deveres. Que lhe importava? Conhecia os perigos do traumatismo. Ordenou que aquelas quatro vítimas fossem levadas em padiola até à granja.
Foi bom que o tivesse feito. O motorista do caminhão de leite ainda levou uns vinte minutos para chegar e por cima de tudo ainda não trouxe consigo o médico.
- O Doutor Hay estava atendendo a um doente
- anunciou o rapazote. - Mas foram chamá-lo. E o Doutor Prescott já deve estar a caminho. Eu mesmo falei com ele no telefone.
- E as ambulâncias?
- Também já devem estar chegando, dona. Foram pedidas no "Hospital do Sul".
Mas outros vinte minutos se arrastaram antes que as ambulâncias chegassem ao local do desastre. Duas delas vieram acompanhadas por um jovem e afobado médico interno. E quando Anne, com o fôlego entrecortado, se preparava para contar-lhe o que havia feito, chegou um outro carro a toda velocidade. Ela teve ímpetos de gritar tal o alívio que sentiu. O próprio Prescott vinha dirigindo o automóvel.
Ele saltou, metido num pesado sobretudo enfiado por cima de um suéter e de umas calças de flanela - indício evidente da pressa com que se vestira. Se se sentiu surpreso por vê-la ali não deu disso a menor demonstração. Frio e imperturbável como se estivesse percorrendo a sua bem organizada enfermaria, era todo ouvidos - o olhar distante, a fronte levemente inclinada para o lado, atento ao que ela lhe dizia. As palavras brotavam-lhe dos lábios aos borbotões, pois achava muito mais fácil falar com Prescott do que com o outro médico. Tinha a certeza de que ele a compreenderia melhor.
Quando acabou de falar, Prescott voltou-se com ar decidido para o seu jovem colega.
- Cuide destes casos aqui, doutor. Socorra-os o mais rápido que puder. vou até à granja com a enfermeira Lee. Se o Doutor Hay chegar, mande-o ter comigo.
Em três minutos ele e Anne chegavam à granja, onde, na ampla cozinha, deitados sobre colchões colocados no chão diante do fogo, jaziam as quatro vítimas mais perigosamente feridas no desastre.
Sem perder tempo com palavras, Prescott abaixou-se e submeteu-as a um rápido exame. Foi espantoso verificar como a sua presença, o seu frio alheamento a tudo o que não dissesse respeito ao seu trabalho, aplacara a correria da cozinha apinhada de gente, restituindo a calma até mesmo à obesa mulher do granjeiro que minutos antes se achava tomada de forte agitação.
Prescott estava agora novamente ereto, passeando o olhar pela sólida mesa de madeira tosca, pela janela da face norte por onde penetrava a claridade da manhã de maio, pelo enorme caldeirão fumegante da lareira.
- Quero que mudem a mesa para junto da janela - disse ele então.'- Preciso de água fervendo, muita água fervendo, e de toalhas. Em seguida, quero que todos que se encontram neste recinto se retirem.
E voltando-se para Anne, acrescentou em tom mais baixo:
- Três destes feridos não poderão ser removidos no estado em que se encontram. vou operá-los.
O coração de Anne deu um salto ao ver assim confirmada a sua previsão. Mas não disse nada. Estava na verdade num estado tão próximo de um colapso, que seus lábios ressequidos recusaram-se a fazer qualquer movimento. Foi imediatamente até à ambulância buscar as maletas de Prescott e começou a preparar-se para a operação.
O que sucedeu depois foi, para Anne, uma espécie de fantasia, confusa e impalpável, um obscuro pesadelo no qual ela via a si própria muito longe, agindo com predestinada perícia, qual estranho autómato. Lembrava-se de Prescott dando sisudamente início ao seu trabalho, com um macacão emprestado a lhe cobrir o suéter; da chegada do Dr. Hay, um homenzinho de óculos, com ar de camundongo que imediatamente retirou da sua maleta uma máscara de anestesia; de suas próprias ações reflexas muito rápidas, apresentando instrumentos, segurando, cortando, antecipando por uma ínfima fração de segundo cada movimento do cirurgião.
À medida que o pequeno trépano penetrava no crânio recém-raspado e pintado de iodo, veio-lhe uma vaga noção de que seu diagnóstico fora acertado - era uma fratura do occipital. Novamente ouviu o ruído do trépano. Estavam operando o segundo caso de fratura. Quanto tempo durou, quantos minutos, quantas horas se passaram, não o sabia, nem poderia saber. Outro personagem estava agora na cozinha
- um dos empregados da granja, servindo como doador de sangue para a menina da hemorragia. Bagas de suor brotavam do rosto de Prescott. com que habilidade usara ele o delicado aparelho de transfusão. Quão hábeis se mostravam suas próprias' mãos ajudando as dele, enquanto seu corpo parecia levitar etèreamente por aquele recinto silencioso e estagnante. Sem que pudesse compreender como, viu sobre a mesa o último ferido. Ela ainda estava ali, assistindo à amputação do antebraço esmagado e inútil, segurando as pinças que prendiam as artérias, enfiando as agulhas para as suturas, observando como estava sendo dado o último ponto.
Estava tudo acabado - tudo acabado - finalmente. De pé, ali junto à mesa, num estado de perplexa incredulidade, viu de relance, num espelho ordinário, que pendia da parede, o seu próprio rosto os olhos enormes e assustados, um grosso coágulo de sangue a tomar-lhe de lado a lado uma das faces. Sentiu que se não saísse dali perderia os sentidos. O olhar de Prescott observava-a. Como seria humilhante dar semelhante prova de fraqueza diante dele.
- Preciso tomar um pouco de ar - balbuciou. Não sabe como conseguiu sair da cozinha. Havia uma verdadeira multidão aglomerada do
lado de fora da granja - inclusive vários repórteres dos jornais de Manchester. Foi uma sensação esquisita sentir a aragem fria bater-lhe na fronte. Ouvia por alto, sem poder responder, as perguntas que lhe faziam. Alguém ofereceu-lhe uma cadeira e um copo d'água. A chuva cessara e havia sol. Ouviu ao longe o apito de uma fábrica. Compreendeu dêbilmente que era meio-dia.
Pouco depois Prescott apareceu. Levou alguns minutos conversando com os jornalistas. Assistiu à partida da ambulância que estivera à espera. Depois encaminhou-se para ela.
- Vou levá-la comigo, enfermeira Lee. Observava-a com a fronte contraída.
- Não desejo ver mais um nome acrescentado à lista das vítimas.
DURANTE todo o percurso de volta, Prescott conduziu o carro vagarosamente, sempre exercitando o seu incalculável talento para o silêncio. Sentada ao seu lado, de olhos fechados, sentindo no rosto entorpecido a incrível frescura da aragem que penetrava pela capota erguida do cupê, Anne enchia-se de gratidão pela prova de consideração que ele lhe dera. Só assim teria tempo de refazer-se antes de chegar ao hospital. Fazia votos para que a diretora não a mandasse reassumir o seu posto imediatamente.
Quando, porém, entraram na cidade e Anne descerrou os olhos, viu que não estavam indo diretamente para o Hipperton. Antes mesmo que seu rápido olhar de indagação o atingisse, Prescott adivinhoulhe o pensamento e explicou-lhe em tom abrupto:
- vou levá-la para minha casa. Você precisa descansar um pouco e tomar algum alimento antes de regressar ao hospital. Além do mais, há esse ferimento em seu rosto.
Anne respondeu-lhe em tom indeciso:
- Eu tinha que estar de volta à enfermaria às dez horas.
Prescott deu uma risada. E essa risada mostrou-lhe os dentes fortes e alvos, modificando todo o aspecto do seu rosto moreno que adquiriu uma expressão franca e jovial. Logo, porém, apagou-se. E ele disse secamente, como que lamentando a própria condescendência:
- Não seja tola, por favor!
E entrou com o carro pelo Royal Terrace, tranquilo conjunto de residências altas e ensolaradas, afastadas do tráfego, de aspecto aristocrático e tradicional. Diante da larga fachada de estilo georgiano, ele parou e ajudou-a a descer. Tirou a chave do bolso, galgou os degraus da entrada e introduziu-a em sua casa.
Era uma casa antiga que ele herdara da mãe grande demais para servir de moradia a um rapaz solteiro e entregue aos cuidados exclusivos de um único criado e de sua mulher. Todavia o mobiliário revelava admirável bom gosto e no primeiro andar, aos fundos, havia um amplo quarto com sacada para vários jardins no momento inundados de sol.
- Deite-se - disse-lhe Prescott, indicando um sofá com um movimento de cabeça. - vou buscar-lhe um copo de xerez. A senhora parece necessitada de um estimulante.
Deixou o quarto e dentro de um instante voltava com uma garrafa de cristal e dois copos. Serviu-lhe um pouco do vinho e ficou vendo-a sorvê-lo. Só então encheu o seu copo.
- Eu também não estou menos precisado disto
- disse-lhe ele, examinando a cor do vinho. - Não foram brincadeira aquelas cinco horas a fio fechados numa cozinha enfumaçada. Mas valeram. As vítimas que operamos agora poderão salvar-se. Se não as operássemos, eu não daria nada por elas. Se aquelas fraturas tivessem sofrido o abalo da ambulância antes de eu as descomprimir o cerebelo teria ficado irremediavelmente dilacerado.
Olhou-a fixamente, para depois prosseguir:
- Sinto-me profundamente grato à senhora, enfermeira Lee - de um modo que talvez não lhe seja possível avaliar - pela sua cooperação, pela sua previdência, pela sua habilidade e pela sua coragem.
Fez nova pausa como que a considerar se deveria ou não revelar-lhe o sentido de suas palavras. Por fim, como que tomando uma súbita decisão, prosseguiu:
- O que nós fizemos esta manhã vai ter uma tremenda repercussão. Possivelmente a senhora só acreditará no que lhe estou dizendo depois que vir os jornais da tarde. Não quero que me interprete mal. Mas desejo ardentemente essa publicidade. Não no sentido pessoal, o que seria cabotinismo. Desejo-a para realizar a obra de minha vida, para obter a clínica que estou tentando persuadi-los a dar-me.
A expressão de secura acentuou-se em sua fisionomia.
- O lado sensacional - se me permite usar uma expressão tão desagradável - da aventura que tivemos esta manhã fará mais para persuadir as pessoas com as quais venho insistindo para consegui-la, em especial o meu velho amigo Matt Bowley, do que um milhão de operações comuns em um milhão de salas de operação comuns.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, com passos rápidos e nervosos.
- Eu já devia ter-lhe contado que desejo fundar uma clínica de cirurgia do cérebro - um centro médico especializado em lesões do cérebro e do sistema nervoso central. Esse o objetivo de todo o meu trabalho. A senhora pode ignorá-lo, mas milhares de vidas se perdem todos os anos porque não dispomos de recursos especializados no campo da cirurgia do cérebro, porque certos espíritos atrasados aferram-se à crença de que a cirurgia intracraniana é impraticável. Bem! Estou resolvido a conseguir essa clínica ainda que isso me custe a vida. Hei de mostrar-lhes o campo ilimitado que surgirá disso que eles consideram uma impossibilidade. Hei de apresentar-lhes resultados assombrosos nos casos de tumores do cérebro, em lesões traumáticas, nas mais graves moléstias mentais que me forem entregues.
Estacou de chofre, silenciou e passou a mão na cabeça para arrumar o cabelo que lhe caíra na testa.
- Peço-lhe que me perdoe. Não é sempre que conto com tão boa ouvinte. Esqueci-me de que está na hora do seu almoço.
Insistiu para que Anne ficasse onde estava e mandou sua criada trazer para junto do sofá uma mesinha redonda. O almoço foi colocado entre os dois - caldo quente, frango frio, folhas tenras de alface em salada e por último um sonfflé. Havia muitos meses que Anne não provava comida tão deliciosa. O vinho reanimara-a, fazendo-a compreender que estava com fome, pois desde as dez horas da noite da véspera não tomara nenhum alimento.
Prescott tornara a fechar-se na mais estrita formalidade. Insistia com ela para que se servisse deste ou daquele prato, desejoso de vê-la comer de tudo, mas suas maneiras eram frias e cerimoniosas.
- A senhora provavelmente compreendeu - observou ele com uma certa rispidez - que não é hábito meu tratar com intimidade as enfermeiras do Hcpperton. Considero digno do maior desprezo qualquer médico que se permite - como direi ? - relações sociais (para usar essa expressão em seu melhor sentido) com qualquer das enfermeiras que o assistem
em seu trabalho. Isto é trair a confiança, é sacrificar de modo vulgar os ideais profissionais.
Anne concordou de cabeça; era-lhe gratíssimo ouvir tão claramente expressos os seus próprios pontos de vista. Foi em tom sereno que falou:
- O trabalho do médico é um, o da enfermeira é outro. Por que haveriam de encontrar-se em qualquer outro campo?
Súbito, porém, sorriu.
- Isso não quer dizer que eu não me sinta grata por este esplêndido almoço.
Prescott esfarelava o seu pão entre os dedos numa atitude distraída.
- As circunstâncias de hoje são excepcionais. E nós nos encontramos no campo profissional. Seu trabalho foi realmente magnífico.
Houve um silêncio e depois, percebendo que ela terminara, declarou:
- Se estiver se sentindo melhor agora, poderei cuidar do seu ferimento. Está com um corte fundo na fronte. Se não levar uns pontos, ficará com uma cicatriz.
Levantou-se e trouxe do seu consultório uma bandeja de vidro. Limpou o corte com álcool, anestesiou o local com éter e quase sem que ela o percebesse, deu-lhe dois delicados pontos.
Anne enchera-se de coragem para enfrentar a prova, pois sabia bem quanto dói uma sutura a frio. Não sentiu, porém, a menor dor. Em geral abominava que alguém lhe tocasse - estranha peculiaridade que a punha de dentes cerrados quando por exemplo ia a um cabeleireiro. Mas o leve contato dos dedos de Prescott não lhe produziu essa sensação desagradável. E muito menos o aperto de mão com que dela se despediu depois de acompanhá-la até à porta e desejar-lhe uma boa tarde. A caminho do Hepperton, Anne concluiu, sem presunção, que havia feito um amigo.
TERCEIRA PARTE
CONFORME Prescott previra, o desastre do ônibus e os episódios que se lhe seguiram na Granja Rodney foram reproduzidos na primeira página pelos jornais de Manchester. As vítimas operadas na granja apresentavam sensíveis melhoras e os outros feridos não tardaram a ser postos fora de perigo. "Um cirurgião e uma enfermeira salvam trinta vidas", alardeavam as manchettes. Anne viu-se, bem contra a sua vontade, elevada à categoria de heroína, enquanto que na imprensa mais conservadora o nome de Prescott aparecia claramente ligado a referências discretas mas insistentes ao seu plano de fundação de uma clínica cirúrgica. Corria que Matthew Bowley se mostrara favorável a esse projeto. Se o industrial se decidisse a dar-lhe o seu apoio financeiro e político, a clínica poderia ser considerada como favas contadas.
Anne acompanhava esse movimento com profundo interesse. Descobriu que ansiava com todas as suas forças pela realização do ideal de Prescott. O calado e taciturno cirurgião transmitira-lhe parte do seu próprio entusiasmo. E ela tinha razões de sobra para desejar-lhe todo o bem.
Dez dias após o seu regresso ao hospital saboreou a suprema doçura do seu primeiro triunfo. Fora promovida, passando da Enfermaria C para o posto de enfermeira-chefe do corpo de "visitadoras".
Tratava-se por várias razões de um lugar muito cobiçado. E embora a promoção houvesse partido evidentemente da diretora, como recompensa pela sua nobre atuação no desastre e pela notoriedade que dera ao hospital, Anne sabia, como sabiam todas as outras enfermeiras, que por trás daquilo ocultava-se a mão de Prescott. Houve um certo murmúrio por parte das enfermeiras mais antigas, decepcionadas referências à "felizarda da Lee", mas de um modo geral a vitória de Anne foi reconhecida no alojamento como merecida e nada tendo a ver com qualquer favoritismo.
E que mudança provocou ela no campo de suas atividades! Como enfermeira graduada, chefe das visitadoras, era agora seu dever, juntamente com as seis enfermeiras a ela sujeitas, servir o distrito de Hepperton, atendendo doentes em suas residências e prestando-lhes ali a assistência necessária. Na realidade esse sistema era o que restava de um plano de assistência voluntária outrora mantido pelo hospital. Proporcionava às enfermeiras que nele trabalhavam maior experiência individual, mais liberdade e às vezes oportunidades de tratar de algum doente rico em alguma bela residência particular.
Reconsiderando todas essas várias circunstâncias, parecia a Anne que o desastre do ônibus só lhe trouxera benefícios. Para Joe, entretanto, coitado, fora uma verdadeira calamidade.
A perda do carro ainda fora o de menos. Mas as indenizações naturalmente seriam pesadíssimas.
Anne estivera com ele quando da sua vinda a Manchester, no dia 17 de maio, para assistir ao inquérito aberto pelo Ministério dos Transportes. Fora uma visita rapidíssima e não tinham podido estar juntos senão por alguns minutos; todavia, pelo jeito dele, adivinhara as sérias preocupações que o afligiam. A questão parecia girar em torno dos seguros. Ted Grein era quem cuidava dessa parte do negócio. Mas aparentemente essa especial incumbência redundara em atrasos. Ou talvez fosse ainda pior. Anne desconfiava, cheia de apreensões, que o tal Ted com seus excessos de cavalherismo e a sua fala macia desviara o dinheiro das apólices. Joe nada lhe dissera. Entretanto, em sua apressada saída para o tribunal, sua fisionomia revelou-lhe o que não dissera por palavras.
O inquérito foi adiado para dali a um mês a fim de que os passageiros feridos, na qualidade de testemunhas indispensáveis, pudessem comparecer. Anne não tornou a estar com Joe antes de sua volta para Londres. Escreveu uma longa carta confortadora a Lucy. E então, embora profundamente preocupada, foi absorvida pela súbita correria de seus novos deveres de visitadora.
Nunca até ali realizara ela tão plenamente o valor e a utilidade do papel da enfermeira. Nunca até então tivera um contato tão direto com a humanidade. Penetrou em lares paupérrimos, onde não havia o que comer, em cortiços de um único cómodo, cuja mobília constava de um colchão imundo, de uma cadeira capenga e de um velho caldeirão de ferro. Entrara em lares sobre os quais a mão temida da doença baixara cerrando suas garras paralisadoras - lares ricos e pobres onde as pessoas andavam pé ante pé e procuravam ansiosamente ler em seu rosto algum leve indício de esperança. Ficou conhecendo o súbito toque da campainha de emergência, as rápidas batidas na porta de seu quarto em meio às caladas sombras da noite. Atendeu a acidentes de rua e desastres - um marinheiro apunhalado durante uma briga de bêbedos, uma atriz, vítima de um passador de notas falsas, que se atirou de uma janela de um sexto andar, um pobre empregadinho de escritório que, tendo perdido no jogo um dinheiro do patrão, tentou pôr termo à vida, aspirando o gás do seu fogão. Anne compreendeu afinal que a palavra "enfermeira" era assim uma espécie de senha mágica. Descobriu que as mais exaltadas multidões se abriam para lhe dar passagem, que nas piores zonas da cidade o aparecimento do seu uniforme proporcionava-lhe maior proteção do que uma escolta de policiais. Ficou conhecendo o avesso da vida. Mas conheceu também o seu lado sublime. E, entrementes, em meio aos seus aborrecimentos e aos seus trabalhos, viu também a face cómica que dá sabor à existência e sem a qual as enfermeiras morreriam de tédio. Esse episódio humorístico estava ligado às núpcias de um dos médicos do Hepperton o Dr. George Caley em pessoa.
FOI Nora quem trouxe a grande, a momentosa novidade de que o Dr. George Caley ia casar-se. Entrou para almoçar, deixou-se cair em sua cadeira e pelo canto da boca transmitiu às suas companheiras de mesa a alvissareira nova. A razão da animosidade que ela imprimia às suas palavras não era difícil de encontrar - Nora ficara no lugar de Anne na Enfermaria C e o abominável Caley tratara-a com a mesma grosseira arrogância e com o mesmo acinte.
- Vai ser uma legítima fanfarronada, por certo - declarou Nora, espetando com o garfo uma batata num gesto selvagem e arremedando a fala pedante do médico interno. - Vai ser na" Igreja de Saint Botolph, na Square. Na próxima quarta-feira. Haverá em seguida recepção no Midland Hotel. Os presentes serão expostos - milhões de presentes - todos com a marca Hall1, perfeitamente fechados e alinhados - no solar da bem-amada. Poucos passarinhos chilreando nas árvores. Todos os figurões e esnobes serão especialmente convidados. Mas nada de enfermeiras. Nenhuma de nós. Nem mesma as graduadas. Talvez a diretora, disse George com ares de grãosenhor - assim mesmo se ela se portar à altura. Ele próprio deu-me todos os informes hoje cedo. Falou a manhã toda - pa-pa-pa - pa-pa-pa enquanto irrigávamos aquela tíbia infeccionada. Eu estava segurando o irrigador e não podia me afastar. Safa! É um porco enfatuado - um capado vagabundo, cevado, com fumaças de aristocrata. Francamente, Anne, o que eu tenho aturado daquele suíno desde que tomei o seu lugar dá-me ímpetos de chorar. Não sei quantas vezes já jurei furar-lhe as nádegas roliças com uma lancêta. E eis que ele se raspa sem que eu tenha tido tempo de tirar uma desforra.
- É duro! - comentou Glennie, em tom mais lento e mais concentrado do que de hábito, o que era sempre sinal de profunda raiva na belicosa escocesa.
- Tenho cá também minhas contas a ajustar com sua senhoria.
- com quem é que ele vai se casar ? - perguntou com voz desafinada uma jovem praticante de cabelo arrepiado que entrara recentemente para o Hepperton. Q
- Não há de ser com você - retrucou Glennie, irónica.
1 Marca dos famosos joalheiros londrinos Goldsmith's Hall (N. da T.).
Ouviu-se uma risada. A jovem praticante corou e fez uma cara de infelicidade, mas Anne, que não sabia ser indelicada, esclareceu-a com poucas palavras,
- É com a filha do Dr. Parkin, um clínico local que adquiriu grande prática no Saltmarket.
- Está certo - aparteou Glennie com amargura.
- George vai trabalhar com ele. Metade do serviço, todos os confortos do Salimarket e tudo isso não vai lhe custar um níquel. Não admira que ele não caiba mais dentro das próprias calças, de tanta satisfação. Oh! Sinto uma espécie de dor só de pensar nisso!
- E se promovêssemos um "quebra-quebra" e "empastelássemos" o casório? - sugeriu a enfermeira Todd.
- A "Pugilista" nos "empastelaria" - disse Anne com um sorriso de viés.
- Temos que imaginar qualquer coisa - interveio a enfermeira Dow, roendo as unhas, na ânsia de desforrar-se do odioso Caley. - Podíamos espalhar pó-de-mico no travesseiro dele antes do casamento. Seria muito simples. Podemos entrar no quarto dele a qualquer momento entre dez e dez e meia da noite. A essa hora ele sempre toma um banho - o seu banho noturno, como diz ele. Besta pedante!
- Não - contraveio Glennie concisa. - Pó-de-mico é muito fácil. Além disso, o couro de George é grosso demais - ele nem sentiria. Mas essa história do banho noturno deu-me cá uma ideia.
- Que é? - indagaram simultaneamente sete vozes.
- O banho azul.
Houve uma espécie de silêncio perplexo. Por fim Anne estourou na risada.
- Que negócio é esse? - indagou ela.
- É o que eu disse - volveu Glennie sem se alterar. - Água quente e azul de metileno. Uma vez, na enfermaria do Grantonn, demos um banho desses num médico interno de quem não gostávamos. Ele ficou mais azul do que um cartaz de propaganda das águas termais de Blackpool. Céus! Como aquele azul gruda! Foi maravilhoso.
- Mas vocês vão mesmo. - balbuciou a jovem praticante.
Arregalara tanto os olhos ante a possibilidade de uma brincadeira tão indelicada, que Glennie lhe cortou a palavra:
- Ora! Não faça esse ar de quem nunca colocou uma comadre em ninguém. O jeito que tem é você apagar a luz antes de ensaboá-lo.
A ideia, com todas as suas possibilidades, estava começando a ganhar adeptas. As fisionomias das enfermeiras foram, uma a uma, se iluminando à medida que imaginavam a figura do noivo azul.
- Podemos arranjar bastante azul de metileno no laboratório - alvitrou Nora com um tremor de expectativa na voz. - E na noite de quarta-feira eu vou estar de serviço.
- Cáspite! - exclamou Anne. - Se pudéssemos fazer isso!
Um arrepio de êxtase percorreu todo o grupo. As cabeças se uniram. E no prazer da conspiração chegaram a esquecer o engordurado pudim que lhes fora servido.
Assim foi que, na quarta-feira seguinte, lá pelas dez horas da noite, quatro enfermeiras se esgueiraram através da escada de incêndio até a cozinha da Enfermaria C e dali passaram para a rouparia do lado externo do vestíbulo. Foi uma dura prova para Anne, Glennie, Todd e Dow, suportarem a atmosfera abafada do quartinho, cheirando a lençóis úmidos. Mas as quatro moças não tomavam conhecimento de nada. Dominadas por forte tensão nervosa, esperavam em silêncio o sinal pré-combinado. Súbito ouviram-se passos no corredor. A enfermeira Dow cutucou nervosamente as companheiras.
- La vai ele!
- Cale a boca! - advertiu Glennie num surdo esbravejar. - Você quer estragar o show?
Os passos aproximaram-se e, dali a pouco, do banheiro ao lado, chegou-lhes um rumor de água correndo. Em seguida os passos voltaram.
- É ele mesmo - cochichou Glennie para Anne.
- Pisa como se fosse o dono do hospital.
Tudo estava se passando de acordo com o costume. O abjeto George, depois de abrir o seu banho, voltaria para o quarto, despir-se-ia e enfiaria o seu claro roupão de xadrez. Uma voz abafada veio confirmar-lhes a dedução:
- Enfermeira! Enfermeira! Feche o meu banho, sim?
Era bem próprio da insolência de Caley requisitar de uma enfermeira semelhante serviço.
- É agora - sussurrou Glennie com uma voz repassada de antegozo.
As cinco enfermeiras atravessaram então rapidamente o vestíbulo, caindo sobre o Dr. Caley no momento em que ia fechar a porta do banheiro. Num segundo a luz do quarto de banho apagou-se. Em seguida George foi jogado com roupão e tudo dentro do banheiro. O médico lutava inutilmente, esparramando água por todos os lados e tentando gritar por socorro. Cinco pares de mãos o agarravam sem dó. Assim que ele abria a boca para gritar, tornavam a mergulhá-lo na água cor de tinta de escrever. Se ele esperneava, as mãos invisíveis imobilizavam-no, premindo-lhe punitivamente a cabeça. Em qualquer posição que ele ficasse a tintura de metileno impregnava-se lindamente em sua pele. Para encerrar, um balde de uma solução ainda mais forte foi atirado sobre ele. E então, de um momento para o outro, terminou o pesadelo. Ouviu-se um tropel na direção da porta que se abriu e logo tornou a fecharse. O pobre George, por demais aterrado para se mexer, foi deixado a sós, a perguntar-se dèbilmente que estranho mar o teria tragado.
Na manhã seguinte uma beatitude sobrenatural pairava sobre o alojamento das enfermeiras. Não se ouviam queixas, as enfermeiras tratavam-se umas às outras com edificante polidez, e a própria Glennie foi ouvida pedindo "por favor" à sua vizinha de mesa que lhe passasse a geléia. E na Enfermaria C uma solicitude ainda maior se evidenciava na execução de todas as ordens. Mas não havia ainda sinal do Dr. Caley.
- Acho que afogamos o bruto - conjeturou Nora, sufocando o riso ao lado de Anne quando chegou a hora do almoço.
- Não consegui pôr os olhos nele a manhã toda. Anne silenciou-a com uma cotovelada e voltou-se
inocentemente para a enfermeira-chefe de serviço.
- Enfermeira Gilson, aconteceu alguma coisa ao Doutor Caley? Ninguém o viu, hoje.
A enfermeira chefe da enfermaria C voltou o seu rosto pálido e alongado para a mesa das suas auxiliares.
- Coitado - disse ela. - Creio que não vai nada bem. Não saiu do quarto a manhã toda.
Mandou de volta o brcakfast e não quer ver ninguém. Deve ser nervoso. Engraçado, como um casamento pode mexer tanto com um homem! O mais extraordinário de tudo, porém - prosseguiu a enfermeira Gilson, sacudindo a cabeça num gesto de vaga perplexidade - é que a todo momento manda pedir pedraspomes e sabão de éter.
Uma explosão de riso encheu o refeitório um riso alto, delirante. Fora impossível contê-lo. A enfermeira Gilson sorriu, com ar agradecido. Tinha a impressão de que, sem saber como, dissera algo engraçadíssimo.
Naquela tarde, às três horas, um grupo de enfermeiras compareceu religiosamente à Igreja de Saint Botolph, na Square. A presença delas não fora solicitada no interior do templo, mas como a diretora consentira, nada pudera impedir que elas se postassem nos degraus da entrada, em meio aos curiosos ali reunidos. Era um gesto piedoso.
Quando chegaram a cerimónia já havia aparentemente começado. A igreja estava repleta, pois o Dr. Parkin era figura muito popular na cidade. Uma longa fila de carros estacionava junto à calçada.
As enfermeiras esperavam, tomadas de uma ansiedade verdadeiramente febril. Por fim, os alegres acordes de um órgão vibraram no ar, indicando que a cerimónia terminara. Houve um intervalo de intensa expectativa. E então o Dr. Caley apareceu ao lado de sua noiva.
Ao vê-lo, Anne quase desmaiou. A coisa saíra melhor, muito melhor do que qualquer delas esperara. George estava irrepreensivelmente trajado, como é natural - usava elegantes luvas e um colarinho alto de imaculada alvura. Entretanto a cor de sua tez mostrava-se bem menos imaculada. Embora a pedrapomes tivesse funcionado ao máximo, deixando-lhe a pele visivelmente irritada, seu rosto estava todo manchado. Parecia queimado de frio e a tonalidade azul-arroxeada que o tingia dava a impressão de, que George ainda tiritava à simples lembrança de aventuras glaciais.
Ao descer os degraus de pedra da igreja, de braço com sua noiva, George foi alvo de manifestações de simpatia e de curiosidade. As pessoas olhavam-no como se ele fosse algo fenomenal.
- Pobre moço - comentou uma mulher do povo.
- Parece que está doente.
- Ele é médico, não é? - perguntou a sua companheira. - Talvez tenha apanhado alguma febre.
Isso, mais do que o enfurecido olhar que George lhes atirou, deixou as enfermeiras num estado de incontrolável euforia.
Muito tempo depois que a multidão de curiosos se dispersou, ainda ficaram elas sentadas na escadaria da igreja, amparando-se mutuamente em contorções de riso - um riso tão violento que as lágrimas lhes escorriam pelas faces. Bastava que uma delas repetisse a frase da tal mulher, para que as gargalhadas recrudescessem. "Pobre moço! Talvez tenha apanhado alguma febre!".
Finalmente se acalmaram e, para comemorar a vitória, Glennie levou o grupo todo para tomar um chá no Kine Café. De um modo geral, embora marcada de intervalo a intervalo por frouxos de riso não provocados e por uma espontânea alegria, foi uma tranquila reunião. Todavia Anne quase que ia causando um tumulto quando pediu ao regente da orquestra para tocar uma música denominada Thosc Wedding B lues (Tristezas de um Casamento).
TRÊS semanas mais tarde, um acontecimento da mais alta significação surpreendeu Anne. Recebeu o seu primeiro chamado para atender a um doente particular de importância e com isso veio-lhe a certeza de ter adquirido amigos influentes.
No decorrer do seu trabalho como visitadora, atendera a alguns casos particulares, mas daquela feita, além da necessidade de passar a residir fora do hospital, era um caso de significação extraordinária.
Fora requisitada para servir de enfermeira à esposa enferma de Matthew Bowley.
Tendo a diretora chamado Anne à sua sala, não deixou de expor-lhe os fatos com a devida severidade.
- Você é muito jovem, enfermeira Lee - disse-lhe a "Pugilista", franzindo as sobrancelhas, - para arcar com esta responsabilidade toda particular. Mas Matthew Bowley desejava que a enfermeira por ele pedida fosse você e o Dr. Prescott parece depositar a maior confiança em sua pessoa. Veja bem que esse bom conceito em que é tida não venha a revelar-se imerecido.
- Sim senhora, diretora.
- Muito bem. E lembre-se. Durante o tempo que passar nessa casa, faça tudo para que a sua conduta em todos os sentidos se conserve de acordo com as tradições do hospital.
2 A palavra bines (tristezas) também pode ter o sentido de " azuis" e nesse caso o título da música pedida por Anne permitia um trocadilho alusivo ao casamento, cujo noivo aparecera com o rosto manchado de azul (N. da T.)
- Sim senhora, diretora.
- Agora pode ir.
Anne deixou a sala da diretora com uma grata sensação de leveza, com a impressão de ter galgado alguns degraus a mais em sua carreira profissional, e dirigiu-se ao alojamento das enfermeiras a fim de arrumar suas malas. Um quarto de hora depois estava pronta e às dez horas em ponto, conforme o prometido, o carro veio buscá-la. Era um reluzente Rolls Royce azul, com aplicações de metal, guiado por um chofer fardado de cinza-escuro.
A manhã estava quente e ensolarada. Enquanto Anne, sentada no assento traseiro do carro, atravessava aquelas movimentadas e poeirentas ruas pelas quais costumava passar rapidamente a pé carregando sua própria mala, conheceu pela primeira vez, no delicioso conforto do Rolls Royce, um pouco das regalias proporcionadas por uma enorme fortuna.
A residência dos Bowley só veio acentuar essa impressão. Era uma esplêndida mansão cujas janelas pareciam pequenas águas-furtadas, situada no alto da Dene Hill em meio a um extenso parque, a poucas milhas de Manchester. com o seu rico mobiliário, seus espessos tapetes e belos quadros, seu aspecto provocava uma sensação de abundância quase intimidante. Talvez houvesse ali um excesso de opulência. Tudo naquela casa revelava um certo exagero. E a superfluidade do dinheiro pesava de tal sorte naquele ambiente que os sentidos ficavam como que sufocados.
Todavia, Anne achou os aposentos que lhe foram reservados na ala sul, pegado ao quarto de dormir de Mrs. Bowley, extremamente encantadores. Na saleta de estar, profusamente florida, havia livros por toda a parte e as janelas se abriam para um amplo tapete de grama. Nem bem havia chegado, uma criada de uniforme apareceu-lhe e perguntou-lhe se desejava tomar o café da manhã. Anne não logrou reprimir um humaníssimo sentimento de satisfação. Afinal de contas havia agradáveis oásis no árido deserto de uma vida de enfermeira. E depois de suas recentes peregrinações pelos cortiços dos arredores de Hepperton, ver-se naquele ambiente era estar realmente num oásis. Depois de tomar o café, envergou o uniforme e foi conhecer a sua doente.
Mrs. Bowley era uma mulher morena e pálida de seus cinquenta anos, bem nutrida de corpo, busto cheio e uma cara aborrecida e vulgar. Anne encontrou-a deitada numa cama de casal colocada bem no centro do amplo quarto, cujas persianas estavam semicerradas. A sua volta havia toda sorte de objetos, desde o criado-mudo até uma espantosa coleção de vidros de remédio, prova evidente da presença ali de uma valetudinária. Mrs. Bowley era na verdade uma neurótica crónica. Há trinta anos atrás, quando se casara com o jovem e modesto Matthew Bowley, era uma moça ativa e forte. Mas o enriquecimento de Bowley provocou uma curiosa reação da parte do seu sistema nervoso. A riqueza permitiu-lhe desenvolver as estranhas idiossincrasias de temperamento, as doenças imaginárias que a pobreza lhe negara. Embora continuasse muito dedicada ao seu Matt, passava a maior parte do tempo na cama, acometida por frequentes crises nervosas que atribuía, de maneira patética, às lutas dos seus primeiros tempos de casada.
Depois de submeter Anne a uma prolongada e ansiosa observação, sacudiu a cabeça e disse-lhe:
- Acho que vou gostar de você, minha cara. O Dr. Prescott fez altas referências à sua pessoa.
Instalaram-na confortàvelmente? Apanhe o meu vidro de água de flor de laranja e depois sente-se aqui ao meu lado. Precisamos ter uma longa conversa. Enquanto conversamos, você poderá friccionar minha testa.
Anne fez o que ela mandou. Não tardou muito a compreender exatamente a índole daquele tipo de mulher exigente e autotorturada. Ao pousar os dedos frios sobre a fronte ressequida de Mrs. Bowley, sentiu nascer em seu coração uma Verdadeira simpatia pela sua nova doente.
Às três horas da tarde, o Dr. Prescott chegou para-sua visita. Muito embora sua especialidade exclusiva fosse a cirurgia, Prescott abria uma exceção em sua rotina de trabalho para atender Mrs. Bowley, não só devido à amizade que votava ao marido dela, como porque a doente também não queria saber de outro médico. Observando-o de perto, Anne sentiu crescer o seu respeito por Prescott, diante da habilidade com que tratava daquele caso. Calmo, reservado, sentado sem-cerimônia na beira do leito, ouvia, com a fisionomia impassível, a sua paciente desfiar um verdadeiro rosário de queixas. Não cedia aos seus caprichos. E quando Mrs. Bowley exagerava por demais os seus sintomas, ele tinha um modo de alçar a sobrancelha que produzia melhor efeito do que quaisquer palavras. Ao fim da sua visita, Mrs. Bowley sentia-se calma e reconfortada, quase convencida de que um dia viria a ficar boa.
Anne acompanhou o médico pela ampla escada até a porta. Enquanto caminhavam juntos, ele ia lhe dando as suas instruções. Quando concluiu, lançoulhe um rápido olhar de soslaio.
- Lembra-se do que eu lhe disse uma vez sobre o valor de uma boa enfermeira? Este é um caso em que uma boa enfermeira pode fazer mais do que qualquer médico. Eu estou com a pobre criatura apenas durante uns dez minutos por dia. A senhora passa o tempo todo com ela. Pode portanto influenciá-la muito.
Anne corou ligeiramente.
- Eu gostaria de tentar. Ela é uma pessoa muito simpática. Seria para mim uma alegria vê-la restabelecida.
Prescott sacudiu a cabeça.
- Foi por isso que fiquei satisfeito ao vê-la tomar conta deste caso. Quando Bowley o sugeriu, vi logo que a ideia era boa. (Fez uma pausa). Ele ficaria muito grato à senhora, - e talvez a mim se pudesse fazê-la voltar ao normal.
Anne percebeu instintivamente a insinuação oculta sob essas palavras. Estavam agora juntos nos degraus da porta da rua e o carro dele o esperava junto ao meio-fio. Antes que pudesse conter-se, seus lábios deixaram escapar esta frase:
- O senhor ainda está pensando na sua clínica. Prescott lançou-lhe um olhar agudo e Anne
corou. E então, em tom ligeiramente irónico, ele lhe respondeu:
- De fato, enfermeira Lee, eu ainda estou pensando na minha clínica.
Em seguida hesitou e assumiu um ar mais afável, como que resolvido a não excluí-la da sua confiança.
- A despeito da nossa excelente publicidade, o meu bom amigo Bowley ainda não capitulou. Está por pouco. talvez. Mas ainda não é certo.
Houve nova pausa.
- Ele é um sujeito de cabeça dura, a senhora bem sabe. E o mês que vem irá concorrer ao posto de prefeito. Ele não quer fazer nada que possa alarmar as forças conservadoras da cidade, não quer ser tomado por um radical nem dar margem a que o acusem de ter feito qualquer coisa por um rebelde como eu. Mas acredito, sim, acredito, que haja uma reviravolta favorável e que ele se decida a fazer lindamente tudo. Se não fizer (a fisionomia de Prescott tornou-se dura) ninguém mais o fará em Manchester. A mim isso pouco prejudicaria. Eu desocuparia o beco e os deixaria cozerem-se no próprio caldo.
Olhou abruptamente para o relógio. Ao voltarse para Anne, seu rosto desanuviou-se.
- Agora preciso ir, enfermeira Lee. Não fique muito presa à sua doente. Venha de vez em quando passear por estes jardins - são maravilhosos. E aproveite a excelente comida daqui. Certamente irá notar uma ligeira diferença entre a cozinha de Mrs. Bowley e a do hospital.
Depois que o automóvel se afastou, Anne tornou a subir para ir ter com a sua doente. Uma expressão refletida e tensa estampava-se em sua fisionomia. Prescott fora tão bondoso para ela, devia tanto à sua influência a sua atual situação, que um irresistível desejo de ajudá-lo a invadiu. O que ele queria não era para si; visava apenas à realização de um ideal. Precisava ajudá-lo, precisava ficar atenta a todas as oportunidades. Se o conseguisse, seria a maior felicidade de sua vida.
VINTE e quatro horas depois de sua chegada, Anne firmava-se na resolução de dedicar o melhor de seus esforços em favor da sua doente. Tinha a impressão de que começara bem. Mrs. Bowley parecia ter gostado dela e o essencial era justamente ganhar-lhe a confiança e a estima.
Na quarta-feira, à uma da tarde, quando deixava o serviço para gozar a hora de folga diária que lhe era concedida, notou um certo alvoroço na casa, geralmente tão pacata, e deteve-se no corredor de cima para espiar através da grade da escada o que estava se passando no andar de baixo. Era Matthew Bowley que cabava de regressar de Liverpool, onde os negócios o haviam retido durante os últimos três dias. Lá estava ele, no hall inferior, despindo um pesado capote de viagem, ajudado por Collins, o mordomo, a quem metralhava com uma série de rápidas perguntas. De repente levantou a cabeça e avistou Anne. Interrompeu então o seu interrogatório-relâmpago para gritar-lhe:
- com que então está aí, enfermeira Lee! É exatamente a pessoa com a qual preciso falar. Você poderá dar-me as informações que desejo.
E como Anne hesitasse, ele repetiu o seu pedido.
- Venha cá. Quero que me transmita o último boletim médico da patroa.
Enquanto Anne descia lentamente a escada, ele tornou a dirigir-se ao mordomo.
- A enfermeira Lee vai almoçar comigo hoje. Mande servir imediatamente, Collins - vou subir apenas um instante para ver Mrs. Bowley.
Era difícil discutir ordens tão arbitrárias. Na verdade Bowley não dava tempo a ninguém para fazer objeções. Subiu às pressas para ver a esposa e cinco minutos depois descia de novo, esfregando as mãos e encaminhando-se, seguido por Anne, para o pequeno jardim de inverno onde determinara fosse servido o almoço em vez de na enorme sala de jantar.
Anne teria preferido, para usar de sinceridade, almoçar tranquilamente em seu aposento; de acordo com as praxes de sua profissão era o que deveria ter feito. Mas havia uma tal espontaneidade, uma tal franqueza nas maneiras bonacheironas de Bowley, que não tardou a compreender que poucas objeções poderia opor à ideia de, conforme ele próprio dizia, fazer-lhe por aquela vez companhia à mesa.
Bowley devia ter percebido a sua relutância, pois procurou combatê-la usando de uma argumentação de muito mau gosto:
- Qual é a sua objeção? Você não é nenhuma empregada, é? Vale tanto quanto qualquer de nós. E foi um pedido que lhe fiz.
E prosseguiu sem rodeios, falando de boca cheia:
- Pois é como lhe digo, enfermeira Lee, há muito tempo que eu desejava tê-la aqui. Lembra-se daquela conversa que tivemos no hospital? Eu lhe disse então que quando se tem um doente em casa a gente gosta de ver em torno dele uma enfermeira simpática. Fui eu quem meteu a ideia na cabeça de Prescott. Fui eu quem insistiu para que você viesse tratar da minha patroa.
E toda a sua fisionomia rude se abriu num largo sorriso.
- Assim poderá também fazer-me um pouquinho de companhia, quando tiver tempo - acrescentou.
Anne não sabia o que responder diante de um discurso tão simples, tão amável. E foi muito sem jeito que respondeu:
- O senhor foi muito bondoso por ter-me proporcionado esta oportunidade. E também por depositar tanta confiança em mim. Creia que farei tudo para corresponder a tanta bondade.
- Muito bem, enfermeira Lee - tornou Bowley, sacudindo a cabeça aprobatòriamente. - Eu sei que fará.
E continou a falar enquanto comia com tremendo apetite, sem se mostrar de todo desatento ao papel de hospedeiro, mas mal permitindo a Anne proferir uma palavra. Embora no momento Anne não levasse isso em consideração, a conversa pendia um pouco ora para o cómico ora para o trágico. Como a maioria dos homens que se fazem por si, Bowley não tardou muito a contar-lhe a história de sua vida.
Não havia nada na carreira de Bowley que fugisse à rotina - o que era muito natural, refletiu Anne, já que a rotina é forjada pela própria trama da vida. Ele começara como operário de fábrica e não estava nada longe de tornar-se milionário. E como gozava o seu triunfo! Sua bela casa, seus automóveis, sua coleção de obras de arte e o prestígio que lhe davam. Como se tudo isso não bastasse, em breve seria o prefeito de Manchester. Não era maravilhoso? indagava ele sorrindo. Não havia dúvida que se elegeria - se se elegeria! Daria uma tunda em regra em todos os outros candidatos.
À medida, porém, que passou a falar sobre a família, a expressão de seu rosto alterou-se ligeiramente, passando a traduzir uma espécie de autopiedade. Sua mulher, embora enferma, não lhe dava motivos de queixa, mas seu filho fizera um casamento infeliz e acabara fracassando. Só a sua netinha Rose lhe permitia dar expansão aos seus sentimentos amorosos. Ele adorava Rose. Mandara-a para o melhor colégio da Inglaterra, aristocrático, estabelecimento de Sussex, onde a menina estava sendo educada "entre filhas de graúdos", segundo suas próprias palavras. Insistiu em mostrar a Anne várias fotografias da pequena - uma garotinha de rosto pálido jogando ténis, em uniforme de ginástica. Sua intensa afeição pela netinha encerrava uma nota profundamente humana.
O almoço estava sendo agradabilíssimo para Bowley e por seu gosto continuaria a falar indefinidamente sobre Rose, sobre si próprio e sobre a vida em geral. Mas o relógio da lareira acabava de marcar duas horas. E Anne estava com os olhos nele. Aproveitando uma pausa da conversa ela mais que depressa foi dizendo:
Agora está na hora de voltar para junto da minha doente, Mr. Bowley. A minha hora de folga já se acabou.
- Não há pressa, minha cara - retrucou ele.
- A patroa não vai morrer por causa de mais cinco minutos.
Anne, porém, abanou a cabeça, sorrindo.
- Preciso ir, mesmo, Mr. Bowley. Tenho que atender às minhas obrigações. O senhor seria o primeiro a não fazer bom juízo de mim se eu as negligenciasse.
E levantou-se da mesa.
O inesperado da sua atitude como que o deixou interdito. Todavia, apressou-se em disfarçar seus sentimentos. Levantou-se pesadamente e, inclinando-se sobre a mesa, deu-lhe uma palmadinha na mão.
- Está certo, minha cara. Primeiro a obrigação, depois a devoção. Esse foi sempre o meu lema e - com os diabos! fui bem compensado (riu-se gostosamente). Pode ir, então. Diga à patroa que lhe envio todo o meu amor. Irei ter com vocês logo mais. Faça de conta que está em sua casa. Aqui o Collins estará atento para que nada lhe falte. E não se esqueça, se quiser alguma coisa é só dizer.
QUINZE dias se escoaram rapidamente. Mas, com amarga decepção de Anne, a despeito de todos os seus esforços nenhuma melhora sensível se produziu no estado de Mrs. Bowley. A julgar pelas reações da doente quando tomou conta do caso dela, Anne esperara uma cura rápida e sensacional. De início houvera uma boa margem para essa expectativa. Contudo - ai dela! - não podia anunciar nenhum triunfo. Na realidade, Mrs. Bowley, se alguma modificação sofrera em seu estado, fora antes para pior, pois tornara-se até um pouco mais difícil lidar com ela. Durante aqueles poucos últimos dias passara a mostrar-se singularmente taciturna e apática. Anne tudo fazia para melhorar esse estado de espírito. Entretanto, quanto mais se esforçava, pior a achava. Se se voltava de súbito, surpreendia Mrs. Bowley com os olhos fixos nela, a observá-la com uma expressão estranha e penetrante. Era uma coisa ao mesmo tempo incómoda e inexplicável.
Essa situação desgostava tanto mais a Anne devido à ansiedade com que desejava fazer jus às provas de consideração que recebera e ao seu desejo de retribuir a bondade que lhe demonstraram. Nunca em sua vida fora tão bem tratada. Chegavam a ser embaraçantes as atenções de que a cercavam. Cada vez que voltava ao seu quarto encontrava ali mais flores frescas, um prato de pêssegos vindos da estufa, róseos cachos de uva moscatel recém-colhidos ou mesmo uma caixa de bombons da Alexander's a melhor bomboniere da cidade. Ela vivia repreendendo Collins e fazendo-lhe ver que a estavam tratando bem demais. O mordomo, homem calado e tristonho, limitava-se a olhar para ela com uma cara impassível e a repetir que estava cumprindo ordens. Anne não gostava de Collins. No fundo desconfiava dele. O homem tinha a mania de aparecer com passos de lã nos recantos mais estranhos da casa, até mesmo no quarto de Mrs. Bowley, como um fantasma obsequioso e vagamente perturbador.
Pensasse Collins o que pensasse dela e dos seus protestos, o fato é que os presentes sempre apareciam. Para ressalvar a sua consciência, Anne levava grande parte das guloseimas com que a presenteavam às suas amigas quando as ia visitar no Hepperton em seus dias de saída. Nunca o alojamento das enfermeiras presenciara mais opíparos banquetes.
Certo dia, lá pelo fim da segunda semana, de volta da copa com uma caneca de água de cevada que preparara para Mrs. Bowley, cruzou com o próprio Matt. Ele estava com muita pressa, às voltas com um encontro ligado às próximas eleições para prefeito. Parou entretanto com o seu sorriso amistoso.
- Hoje é o seu meio-dia de folga, não é? - perguntou-lhe, deixando-a espantada por vê-lo tão a par da sua vida. - Por que não aproveita a tarde para dar um passeio de carro? Ninguém vai usá-lo. Há de fazer-lhe muito bem dar um passeio pelo campo.
Anne olhou-o confusa e meneou a cabeça. - Eu não poderia nem pensar em semelhante coisa. Mrs. Bowley.
- Não seja tola retrucou ele num rude tom brincalhão. - Que mal poderá haver em que você faça sozinha uma excursão de automóvel pelo campo ? vou avisar Collins. É um ótimo meio de descansar do cativeiro.
com um último olhar de persuasão, atravessou o corredor e saiu.
Anne seguiu-o com um olhar perplexo. Como é natural, estivera muitas vezes com Bowley durante aquelas duas semanas. Em várias ocasiões ele a mandara chamar para que lhe apresentasse um relatório oficial sobre o estado da doente. Por outro lado ele aparecia frequentemente para tomar uma xícara de chá com Mrs. Bowley na sua presença. E um dia pediu-lhe para fazer umas compras para Rose, a sua netinha, a quem queria tanto. Mas aquilo era diferente. Embora estivesse com sua consciência tranquila, seu instinto prevenia-a de que não lhe cabia nenhum direito de aceitar favores diretos do dono da casa. Antes de voltar ao quarto da enferma tornou a descer e com uma firme contra-ordem retirou as instruções deixadas com relação ao carro.
Durante toda aquela manhã, Anne mostrou-se mais calada do que de costume. E Mrs. Bowley também. Às duas horas, quando Anne ia saindo do quarto da doente, esta perguntou-lhe em tom casual:
- Quais são os seus planos para a tarde de hoje, enfermeira?
- Oh, não sei - respondeu-lhe Anne, corando sem querer. - vou sair um pouco, creio.
- Ah, bem - volveu Mrs. Bowley com um olhar vago.
Anne sentia-se contrariada consigo mesma por ter corado de uma forma tão descabida. Olhou então bem de frente para Mrs. Bowley e disse-lhe em tom tranquilo:
- vou dar um passeio a pé. Depois voltarei e ficarei lendo. Comecei um novo romance. Se a senhora precisar de mim estarei no meu quarto.
- Não creio que vá precisar de você - declarou Mrs. Bowley com voz débil.
Anne saiu realmente a pé à tarde. Levando no rosto uma expressão preocupada, deu um longo e exaustivo passeio pelo parque. O exercício fez-lhe bem. Tomou chá sozinha numa pequena confeitaria próxima aos portões do parque. Quando voltou, sentia-se com melhor disposição de espírito e inclinada a sorrir de suas anteriores apreensões. Tomou um banho, pôs um vestido cinzento muito leve e enroscou-se no sofá com o seu livro. Era A Cidadela e Anne acompanhava com profundo interesse as aventuras de Andrew e de Christine.
Leu seguidamente durante mais de uma hora, e lá pelas sete da noite ouviu uma batida na porta.
- Entre - disse Anne, sem erguer os olhos do livro, certa de que era a criada com a bandeja do jantar.
Mas não era a criada. A porta abriu-se e Matt Bowley entrou.
- Sim senhora! - exclamou ele com o radiante sorriso que tinha sempre pronto. - Nunca vi mais belo quadro de intimidade.
Ao som da sua voz Anne deu um salto como se tivesse levado um tiro.
- Calma, calma - protestou Matt. - Não fique tão assustada, menina. Passei por aqui apenas para lhe puxar as orelhas por não ter usado o carro.
Anne largou o livro e olhou-o com uma expressão severa.
- Eu não podia imaginar que fosse o senhor, Mr. Bowley.
- E por que não? - tornou ele em tom brincalhão. - Será possível que o pobre do homem não possa andar à vontade nem dentro de sua própria casa ?
E fechando a porta puxou uma cadeira.
- com a breca! - exclamou admirado. - você está linda. É a primeira vez que a vejo sem o seu uniforme. E palavra que gostaria de continuar a vê-la sempre sem ele.
Anne sorriu nervosamente.
- Desconfio que tenho um excessivo amor à minha profissão para isso.
- Gosta realmente do seu trabalho?
- Adoro-o.
- Não o abandonaria?
- Jamais.
Matthew puxou uma charuteira, tírou um charuto e acendeu-o. Depois, inclinando a cabeça para um lado, ficou a considerá-la e por fim dirigiu-se a ela, mudando amavelmente de atitude.
- Uma moça inteligente como você, interessada no seu trabalho, devia ter uma oportunidade. Abandone o hospital. Aquilo é uma vida de cachorro. Monte uma casa de saúde particular. É um negócio que daria rios de dinheiro se encontrasse quem o financiasse.
Anne perguntou-lhe secamente:
- E onde iria eu arranjar esse financiamento?
- Que tal se procurasse o Matt Bowley? retrucou ele com um riso boçal.
Anne freou rapidamente os seus ímpetos de reação. A situação aborrecia-a. Mas disse de si para si que não era nenhuma boba. A última coisa que desejaria fazer seria indispor-se com Bowley. Foi, portanto, serenamente que lhe falou:
- Por mais estranho que pareça, não me interessa em absoluto ganhar dinheiro fora de minha profissão. O que me interessa é melhorar as condições da minha classe, proporcionando às enfermeiras melhor padrão de vida. Essa é a única ambição de minha vida.
Bowley arqueou as sobrancelhas e indagou surpreso :
- Quer dizer então que o meu oferecimento de ajuda financeira não foi aceito?
Anne teve uma súbita inspiração, ou melhor, compreendeu prontamente que estava diante de uma oportunidade de desviar o interesse de Bowley para algo em que há muito vinha pensando. Falou então com uma calma que não sentia:
- Por que o senhor não faz esse oferecimento ao Doutor Prescott, permitindo-lhe assim fundar a sua clínica?
Bowley tirou o charuto da boca e encarou-a de carranca fechada. Fêz-se um silêncio.
- Que interesse tem você por Prescott? franzindo mais o sobrolho). Talvez você seja mais uma vítima da sedução daquele danado.
- Que absurdo! - redarguiiu ela cheia de indignação.
Bowley porém persistiu em suas suspeitas:
- Você não está apaixonada por ele, não? Anne ficou vermelha de raiva e de contrariedade.
- Como ousa dizer semelhante coisa? Nunca penso no Doutor Prescott como homem - penso apenas na sua obra, na sua clínica. Meu interesse por ele é puramente profissional.
Houve novo silêncio. Aos poucos a expressão de Bowley foi-se desanuviando e ele voltou a sorrir - um sorriso humilde.
- Desculpe-me, minha querida. Sou um diabo ciumento quando gosto de alguém. E gosto muito de você.
Anne abaixou os olhos. A atitude de Bowley já agora principiava a provocar-lhe um profundo mal-estar. Mas com um esforço dominou seus temores e tentando expor o seu objetivo, esboçou um sorriso forçado:
- O senhor tem que concordar que o plano do Doutor Prescott é uma maravilha. É algo que até hoje nunca se fez. Quando o senhor pensa nas vidas humanas que se perdem, - vidas que poderiam ser salvas nessa clínica - não sente vontade de lhe dar o seu apoio, de poder reivindicar para si toda a glória de ter sido o homem que permitiu a sua realização?
Bowley inclinou-se para a frente e segurou-lhe a mão.
- Você gostaria mesmo que eu financiasse o projeto de Prescott?
A resposta de Anne saiu repassada de intenso nervosismo:
- Sem dúvida que gostaria, Mr. Bowley.
- Bem - volveu ele, sacudindo a cabeça com ar significativo - vamos ver o que se pode fazer. Devo dar a resposta a Prescott dentro de alguns dias. É bem possível que ela venha a ser um sim. E agora, não acha que podia deixar de chamar-me de Mr. Bowley? Meu nome é Matthew, bem sabe - mas pode tratar-me por Matt que é mais fácil.
Enquanto falava, levantou-se e com grosseira sem-cerimônia sentou-se ao lado dela no sofá.
- Isto é muito agradável - suspirou. - Você sabe eu sou um homem muito só, minha querida.
E fez uma pausa para atirar o seu charuto na lareira antes de prosseguir:
- Até aqui tenho hesitado em falar-lhe - mas você está vendo com seus próprios olhos que minha mulher não é a companheira que um homem como eu precisa. Sossegue, sossegue, não se levante - não estou dizendo nada contra ela. Sou tão leal quanto é possível ser-se. Mas o caso é que necessito de uma companhia mais jovem, de uma amiguinha, como você diria, para alegrar-me e distrair-me nas horas de folga.
Anne, gelada, permanecia sentada ali, o olhar fixo à sua frente, desejando com todas as suas forças estar fora daquele quarto. Só agora percebia que em sua ânsia de ajudar Prescott e através dele ao seu plano, metera-se numa situação terrível. Fez um derradeiro esforço para manter suas relações com Bowley dentro dos limites do bom senso.
- Não me parece que isso seja maneira de falar, Mr. Bowley.
- Ah, mas eu sou um camarada que não tem papas na língua, minha querida. Simpatizei com você, mal lhe pus os olhos em cima. Gosto de enfermeiras, por outro lado. Elas conhecem bem a vida e não são medrosas como a maioria das mulheres que tenho conhecido. E já arranjei as coisas de maneira a que nós dois possamos dar um jeito de viver juntos.
Anne sentiu as pernas trémulas, tal a repugnância que a invadiu. Não podia suportar por mais tempo aquilo. Ia levantar-se. Mas, pondo a mão sobre seus joelhos, Bowley obrigou-a a permanecer sentada.
- Não queira escapár-me das mãos, minha querida. Quando me conhecer melhor, verá que não sou um sujeito tão mau quanto pensa. E quanto a dinheiro - é o que não me falta.
- Por favor, Mr, Bowley - ameaçou ela. Não vê que estou achando tudo isto odioso?
Bowley riu-se.
- Não prometeu que me chamaria de Matt? E passou-lhe um dos braços pela cintura. Nesse instante, enquanto ele lutava para puxá-la
para junto de si, a porta abriu-se e Mrs. Bowley entrou no quarto. Estava de peignoir, com os cabelos presos negligentemente num coque e ficou ali parada, a encará-los em silêncio. Houve um momento de absoluta imobilidade. Matt derrubara o queixo como que apalermado. Quis falar. Mas antes que conseguisse articular a primeira palavra, Mrs. Bowley ergueu a sua voz fina e acusadora. E enquanto falava, seus olhos permaneciam cravados em Anne como duas pontas de fogo:
- Eu sabia que iria encontrá-los aqui. Uma coisa mo dizia. "vou sair um pouco hoje à tarde, Mrs. Bowley. Depois, se precisar de mim, estarei no meu quarto".
Era de ver o rancor com que ela arremedava a voz de Anne.
- Ah! Pensou que eu não fosse lhe pegar na palavra! Pensou que poderia atirar-me areia nos olhos, não foi? Pois enganou-se. Eu sabia perfeitamente quais eram os seus planos. Vocês, enfermeiras, são todas iguais.
E sua voz elevou-se, tornando-se esganiçada:
- Quando a esposa está doente, vocês tratam de roubar-lhe o marido, diante do seu nariz. É um dos truques que vocês usam para fazer seus negocinhos.
Horrorizada, Anne levantou-se, com uma onda de protestos prestes a transbordar-lhe dos lábios.
Mas, antes que pudesse falar, Mrs. Bowley retomou a palavra com o mesmo incontido furor:
- Não me olhe assim, pequena Jezebel. Desta vez não se sairá bem, pois travei-lhe a roda do carro em tempo!
E voltando-se furiosa para o marido, acrescentou:
- E você, Matt Bowley! Que diabo de imbecil é você para deixar-se embair por um traste destes? Você que está concorrendo ao posto de prefeito e pretende transformar-se numa figura tão importante! Palavra que estou com vontade de trazer tudo isto a público - daria uma linda história para a primeira página dos jornais - Matt Bowley abraçando e beijando a enfermeira de sua esposa. Ah! Na certa não deixarão de elegê-lo prefeito depois que lerem tão sensacional notícia.
O terrível veneno de suas palavras deixara Bowley todo encolhido.
- Mas olhe aqui, minha cara - gemeu ele. Você não vai fazer uma coisa dessas!
- Não vou? - volveu Mrs. Bowley com redobrada fúria. - Espere e verá. Depois de trinta anos de casados não vou deixar que uma lambisgóia como essa o roube de mim. E se você der mais uma palavra, prometo-lhe que chamarei aqui todos os repórteres da cidade - ainda que isso me custe a vida.
Sua agitação e o seu rancor faziam pena e sua cabeça tremia como se. estivesse com meningite. Voltou-se para Anne e, sacudindo diante dela o indicador trémulo, dava a impressão de que ia sufocar-se com suas próprias palavras.
- Quanto a você, minha rica senhora, ponha-se fora desta casa já neste instante. E sei muito bem o que vou dizer à diretora do hospital a seu respeito. Esteja descansada, que todos os seus bondosos serviços e todas as suas atenções receberão a recompensa merecida.
Anne olhou para Bowley que continuava sentado de cabeça baixa no sofá. Os lábios lívidos, vibrando de indignação, esperava que ele a defendesse para explicar que estava inocente. Sabia que nenhuma palavra sua poderia chamar Mrs. Bowley à razão. Matt, porém, evitava culposamente o seu olhar. Estava por demais arrasado, por demais apavorado diante da ameaça da esposa, para pensar em reabilitá-la.
- Vamos, saia! - gritou Mrs. Bowley. - Que é que ainda está esperando? Sua bagagem será enviada depois. Se não andar logo eu a porei daqui para fora.
Anne encarou tranquilamente a enfurecida criatura.
- Não há necessidade de fazer isso, Mrs. Bowley.
Sentia-se humilhada e degradada pela grosseria e pela injustiça da cena. Mas agora que sua situação era irremediável, uma estranha calma baixou sobre ela. Seus lábios se encresparam e antes de sair ainda disse:
- É possível que o escândalo não seja uma publicidade muito boa para seu marido.
- Saia! - berrou Mrs. Bowley. - É a última vez que lhe digo para sair!
Sem olhar sequer para Bowley, Anne encaminhou-se para a porta.
ERAM quase nove horas da noite quando Anne chegou de volta ao hospital. Consumida pelo desgosto que tivera, ferida no íntimo de sua alma e abatidíssima, não queria ver ninguém. Sua intenção era ir diretamente para o seu quarto. Mas, ao passar pela entrada principal, Mulligan, o porteiro, deteve-a.
- Que é isso, enfermeira Lee? - exclamou ele surpreso. - Que é que a traz de volta aqui a estas horas da noite? Eu estava agora mesmo falando na senhora. Há um rapaz querendo falar com a senhora desde a tarde. Eu disse a ele que a senhora não estava no hospital. Mas ele não quis ir embora. Estava bem tocado - perdoe-me a franqueza. Mandei-o entrar para a sala de espera dos doentes externos para me ver livre dele. Espero que já tenha ido embora. Mas, se a senhora quiser, vou dar uma espiada.
- Oh, não se incomode, Mulligan - disse Anne com voz cansada. - com toda certeza não é nada de importante.
Mas o solícito porteiro insistiu. Dali a alguns segundos estava de volta.
- Ele ainda lá está, enfermeira. Diz que precisa falar com a senhora.
Anne, não tendo outro remédio, entrou na sala de espera. E ali, afundado numa cadeira naquela vasta sala revestida de azulejos brancos, estava Joe. Ele tentou levantar-se ao vê-la, cambaleou um pouco e tornou a sentar-se. Pálido, angustiado, com as roupas e os cabelos em desalinho, o colarinho desabotoado Joe dava mostras de estar mergulhado numa tremenda bebedeira.
- Joe! - gritou-lhe Anne, arrancada de súbito à sua apatia. - Que é que você está fazendo aqui? Que aconteceu?
- Aconteceu tudo - respondeu-lhe Joe, com voz pastosa. - Levou tudo a breca. Acabou-se tudo. Eu precisava vê-la, Anne. Você é boa, você é direita. Oh, meu Deus!
E apoiando a cabeça à mesinha fronteira desatou a chorar baixinho.
- Eu não lhe disse, enfermeira? - falou o porteiro por trás de Anne. - Ele está em mísero estado.
Anne voltou-se apressadamente.
- Ajude-me, Mulligan. O coitado é um bom rapaz. Ajude-me a socorrê-lo.
com a ajuda do porteiro, Anne preparou para Joe uma boa dose de café forte e envolveu-lhe a cabeça numa toalha molhada.
Depois de reanimado, quando Mulligan se retirou, o coitado contou aos arrancos toda a sua história. Uma história breve e dolorosa, se resumida ao que nela havia de essencial. O tribunal já havia dado a sentença. A companhia de seguros negara toda e qualquer responsabilidade. Grein, que desde o início dera provas de não passar de um tratante e de um ladrão, fugira com todo o dinheiro da empresa. Joe estava falido, arrebentado - perdera o último níquel da sua pequena fortuna.
- Eu nunca deveria ter saído de Shereham soluçava ele. - Lá é que era o meu lugar. Eu gostava do pessoal de lá e todos gostavam de mim. Em Londres eu me sentia como peixe fora d'água, enfarpelado como um macaco de realejo. Aquele Grein, também nunca me inspirou confiança. Foi Lucy quem me induziu a fazer sociedade com ele. Ficou em cima de mim, me atropelando com as suas exigências de roupas, mobílias e não sei que mais. Foi ela também quem deu em cima de mim para que a desposasse. Você sabe que era de você que eu gostava. Sempre quis casar com você e não com ela. E - por Deus! - teria sido mil vezes melhor para mim se nunca a tivesse conhecido.
- Cale-se, Joe - interrompeu-o Anne com rispidez. - Não posso permitir que você fale de Lucy desse modo.
Hesitou um pouco e por fim arriscou a pergunta que receava formular:
- Onde é que ela está agora?
- Abandonou-me - respondeu Joe com amargura. - Desde o começo nunca nos entendemos muito bem. E quando aconteceu tudo isso, tivemos uma briga tremenda. Ela começou a atirar-me coisas e eu dei-lhe uns murros. - E após uma pausa em que sua fisionomia se tornou ainda mais sombria, acrescentou: - Ela voltou a trabalhar como enfermeira.
- Onde?
- Algures em Londres. Ora numa casa de saúde ora noutra.
Anne deu um longo suspiro de infelicidade. com que então o tal casamento dera naquilo. No fundo de seu subconsciente desde o início vira logo que o temperamento caprichoso da irmã e a passividade de Joe jamais dariam uma boa liga. Tratou, porém, de dominar-se.
- Ouça, Joe - disse ela com firmeza. - O que acaba de me contar é muito triste. Mas não adianta nada a gente ficar chorando o que passou. Você tem que reagir. E se o fizer, verá que as coisas não estão tão más quanto imagina. Responda-me agora a uma pergunta. Que pretende fazer de si próprio? A resposta de Joe veio repassada de tristeza.
- Ainda sei guiar um carro. Aquela maldita companhia de seguros está falando em ficar com a empresa - ou melhor, com o que dela resta.
Fez uma pausa, desanimado.
- Eu talvez conseguisse com eles um emprego.
- Excelente ideia! - aplaudiu Anne mais que depressa. - Se você provar que tem algum merecimento, talvez lhe dêem uma situação melhor.
Joe levantou os olhos.
- Acha então que devo pôr de lado o meu orgulho e continuar com eles?
- Por que não, Joe? - Anne falava em tom encorajador, procurando restituir ao cunhado o respeito próprio. - Acho que eles pegarão no ar a possibilidade de contarem com um mecânico como você - um homem dotado de sua prática.
- É verdade - concordou Joe, com um lampejo de orgulho. - Eles nunca encontrarão quem entenda mais de mecânica do que eu.
- Pois é o que você tem a fazer de melhor, Joe - insistiu Anne com entusiasmo. - Mostre-lhes do que você é capaz. E mostre-o também a Lucy. Será o melhor meio de fazê-la voltar para a sua companhia.
Joe reaprumou o corpo em sua cadeira com uma nova esperança a brilhar-lhe nos olhos.
- Você acredita que eu ainda possa fazer alguma coisa?
- Naturalmente que acredito!
Houve um silêncio. Joe estava agora perfeitamente lúcido. Lágrimas sentidas brotaram-lhe dos olhos ao voltar-se para Anne.
- Você é uma pérola, Anne. Sabe animar a gente. Eu sabia que seria bom para mim vir vê-la. E - por Deus! - sinto-me outro. vou deixar de beber. E embora me horrorize pensar em humilharme diante daquela maldita companhia, estou resolvido a fazê-lo. Hei de mostrar a você que ainda não sou um derrotado.
- Assim é que eu gosto, Joe.
Joe ergueu-se lentamente, reaprumou os ombros e foi com ela até o portão. Ali deteve-se e deu-lhe um firme aperto de mão. Prometeu manter contato com ela, escrever a Lucy e fazer o possível para vencer. Em seguida deu-lhe as costas e afastou-se com passo resoluto pela rua.
Anne viu o seu vulto desaparecer em meio às sombras. Nem por um instante o deixara perceber a contrariedade que lhe pesava na alma. Agora, porém, sentia com redobrada força o peso da situação. Poucos momentos depois, tendo finalmente chegado ao alojamento das enfermeiras, encontrou em seu quarto um bilhete, convidando-a a apresentar-se imediatamente à diretora.
ANNE nunca revelou a ninguém o que se passou naquela entrevista noturna.
Uma das qualidades essenciais de Miss East era ser dotada de espírito prático. Embora tivesse bem ideia de como tudo acontecera e no íntimo, ainda que não o demonstrasse, acreditasse nos protestos de inocência de Anne, nada disso influiu no seu julgamento. Desejava, acima de tudo, evitar um escândalo pelos jornais. E era justamente o que Mrs. Bowley faria, a menos que Anne fosse obrigada a deixar o hospital. Só havia uma solução: Anne tinha que ir embora.
Antes de proferir a sua sentença, Miss East fez a Anne um cáustico sermão sobre a imbecilidade de confiar-se na integridade moral de qualquer homem, teceu algumas pungentes observações sobre a falsa crença tão generalizada de que as enfermeiras vivem roubando os maridos alheios e por fim atenuou o pior do golpe, informando-a de que se se comprometesse a guardar segredo, permitir-lhe-ia demitir-se, em vez de sofrer a humilhação de ser despedida.
Não havia margem para nenhuma argumentação. Anne viu que teria de submeter-se. Na manhã seguinte a assombrosa notícia de que a enfermeira Lee pedira a sua demissão para dali a um mês estourou como uma bomba no hospital.
Uma chuva de perguntas desabou imediatamente sobre Anne. Ela, porém, guardou silêncio. Nem mesmo a Nora e a Glennie permitiu-se um desabafo. Uma sensação glacial envolveu o trio outrora tão feliz. Ficara entendido que Anne ia partir por motivos ligados a questões de família. Mas isso não satisfez às outras duas.
Aturdida e angustiada, Anne suportou esse segundo infortúnio que, sem nenhuma culpa, veio interromper-lhe a carreira. Agarrou-se por algum tempo à esperança de que Bowley se manifestasse a seu favor. Mas o desprezível Matt, literalmente apavorado, estava decidido a continuar calado. E, assim. a esperança de Anne não tardou a desvanecer-se.
Não esteve com o Dr. Prescott durante toda a semana que se seguiu ao ocorrido. De uma feita encontraram-se de passagem no corredor, mas o médico seguiu seu caminho como se ela não existisse. Na quarta-feira seguinte, todavia, tocou-lhe a vez de prestar serviços na sua sala de operação. Após a intervenção, deu-se inevitavelmente o encontro que ela tanto temia. Enquanto o ajudava a despir o avental, na pequena ante-sala onde lavava as mãos, Prcscott falou-lhe, sem olhar para ela, naquele tom glacial que sabia afetar como ninguém:
- Segundo me informaram, pretende transferirse daqui para outras esferas.
Todo seu ser retraiu-se diante do tom em que essas palavras lhe foram dirigidas. E esforçou-se por aparentar a mesma indiferença.
- É verdade, doutor.
- Para onde vai?
- Para Londres, creio. O senhor compreende, minha irmã. questões de família. - murmurou vagamente de olhos baixos.
O silêncio de Prescott ressumava sarcasmo. Apanhou a toalha que Anne lhe oferecia e começou a enxugar as mãos, examinando dedo por dedo com meticulosa atenção. Depois, como cirurgião que era,
ancetou-lhe o coração no ponto mais sensível, dizendo-lhe friamente:
- Não estou particularmente interessado na história da Carochinha de M r s. Bowley. Mas, pelo que empreendi, tenho que agradecer-lhe o seu intrometimento em assuntos que só a mim dizem respeito.
Anne mordeu os lábios, sentindo não poder suportar a dor que lhe causara essa referência ao seu nfeliz e lamentável esforço para conseguir o apoio de Bowley à clínica de Prescott.
Este último prosseguiu, implacável:
- Seu interesse é sem dúvida lisonjeiro, mas desejo fazê-la compreender que não admito que ninguém interfira na minha vida. E muito menos uma enfermeira.
- Desculpe-me - balbuciou ela. - Lastimo muito o que fiz.
- Acredito - volveu Prescott com aquela gélida e cortante ironia. - Não o lastima, porém, mais do que eu. A sua tendência para criar situações teatrais arruinou definitivamente todas as possibilidades com as quais eu poderia contar para fundar a minha clínica em Manchester. Resta-me, pois, agradecer-lhe a bela trapalhada que conseguiu- fazer.
Anne não podia falar. Lutando por conter as lágrimas, limitava-se a conservar-se de cabeça baixa. Houve um silêncio. Prescott continuava a não olhar para ela. Por fim concluiu:
- Não sei quais são os seus planos. Na verdade, não desejo sabê-lo. Mas suponho que, saindo do Hepperton nessas condições, irá ter certa dificuldade em encontrar uma colocação boa. Não desejo em absoluto que seus bons serviços de enfermeira, aqui, deixem de ser reconhecidos. Se levar esta carta à diretora do Trafalgar Hospital de Londres ela a colocará convenientemente. Adeus, enfermeira Lee.
com o coração dilacerado, Anne aceitou o envelope aberto que ele lhe apresentava. Prescott não lhe estendeu a mão em despedida. Anne sentiu que não lhe restava nada a dizer. Virou-se, portanto, com um angustiante sentimento de derrota e saiu lentamente da sala.
Fora, no vestíbulo, como se encaminhasse para a Enfermaria C, a assistente deteve-a.
- Que foi que aconteceu, Lee? (A pergunta da enfermeira Carr encerrava uma curiosidade natural ainda que mal-intencionada). Prescott andou encrencando com você?
Anne meneou a cabeça.
- Pois é o que se deduz da sua cara - tornou a enfermeira. - Ele estava um poço de mau humor esta tarde. Aliás, não é de admirar. Ele pode dizer o que quiser, mas deve estar bem amolado por sair daqui.
- Sair daqui! - exclamou Anne com um sobressalto na voz.
- Você não sabia? Pois fiquei sabendo já há dias. Ouvi uma conversa entre Prescott e Sinclair antes do início de uma operação. Bowley recusou-se definitivamente a espantar os cobres. "Estou farto de aturar estas dificuldades, disse Prescott a Sin- clair. Ainda que eu vivesse cem vidas jamais faria qualquer coisa aqui. Estou resolvido a ir lutar noutro setor".
Anne ficou olhando para a enfermeira Carr com uma expressão perplexa. Não podia ainda compreender de maneira completa o motivo que se ocultava por trás da decisão de Prescott de abandonar o seu trabalho em Manchester. Todavia sentia de uma forma vaga e instintiva que, pelo menos em parte, a sua desastrosa interferência era a responsável por aquilo. Sem uma palavra voltou-se e afastou-se como que às cegas.
De volta à Enfermaria C refugiou-se na pequena copa ali existente, onde deu consigo com os olhos fixos na carta que Prescott lhe dera. Leu-a quase que inconscientemente. Era uma esplêndida carta de recomendação para uma vaga de enfermeira-chefe existente no Trafalgar Hospital, em Londres.
Anne não mais pôde conter a sua torturada sensibilidade. Vendo que sua vida se embaraçava, transformada em inextricável trama, rompeu em soluços, como se seu coração fosse despedaçar-se.
Dia de rigoroso inverno em Londres. Nuvens plúmbeas pairavam sobre a movimentada cidade, em meio a cujo tráfego ruidoso e intenso, ônibus, automóveis e milhões de seres humanos se cruzavam apressadamente no afã do trabalho cotidiano. Para Anne, que saíra do Trafalgar Hospital para ir encontrar-se com Lucy, a gigantesca metrópole não perdera ainda o seu prestígio, a sua força, o seu arrebatador sentido simbólico que a transformava num campo de batalha onde ela, uma simples enfermeirinha, deveria desempenhar o seu papel.
Sua transferência para o Trafalgar era agora um fato consumado. A diretora Melville, uma mulher alta e aristocrática, havia sido íntima amiga da mãe do Dr. Prescott. Assim, pois, desde o instante em que Alice Melville focalizou seus óculos de aros de tartaruga sobre a carta de Prescott, a admissão de Anne foi assunto liquidado. Anne guardava avaramente a lembrança desse instante, a realização de que, apesar dos infortúnios que a haviam perseguido, fora aceita como enfermeira-chefe num dos maiores hospitais de Londres. Talvez, afinal de contas, houvesse alguma força de predestinação oculta sob a trama confusa de sua vida.
O Trafalgar era um hospital moderno, central, situado próximo a Strand - imensa máquina científica destinada a cuidar dos acidentados, dos enfermos e dos mutilados que tombam em meio à luta da cidade. com apenas duas semanas de novo emprego, Anne ainda não se ajustara ao ritmo dessa máquina, nem tampouco se habituara à mudança de ambiente. com a paixão que votava à cirurgia, causou-lhe certa decepção verificar que em sua enfermaria - a Bolingbroke - só se fazia clínica. Entretanto, seu chefe, o Dr. Verney, era um homem de larga visão, a equipe de enfermeiras a ela confiada distinguia-se pela boa vontade e assim a mágoa de sua partida de Manchester foi começando a diminuir. Todavia, enquanto atravessava rapidamente a Regent Street em direção ao Gato Preto, tranqüiila e modesta casa de chá onde Lucy ficara de encontrarse com ela, uma vaga perturbação nublava a fisionomia de Anne. Ao avistar a irmã, seu rosto iluminou-se. Correu para ela ansiosa por abraçá-la.
- Então! - exclamou com voz emocionada. Você não imagina a minha alegria por vê-la aqui. Eu estava com um horrível pressentimento de que você ia lograr-me outra vez.
- Da última vez a culpa não foi minha - disse-lhe Lucy com uma leve nota de impertinência. - Tive serviço extraordinário na casa de saúde.
- Eu sei, querida - volveu Anne, procurando acomodá-la. - Ninguém conhece melhor do que eu essa história de serviço extraordinário!
As duas jovens entraram no Gato Preto, pediram um chá com torradas e através da mesinha pintada de verde cada qual se pôs a par da vida da outra.
De certo modo Lucy já não era a mesma criatura que há tão pouco tempo reinara sobre o seu pequenino domínio suburbano de Muswell Hill. Tornara-se talvez um pouco mais obstinada e assumira em relação ao universo uma atitude um pouco mais desabusada. Usava mais pintura em seu lindo rostinho e passara decididamente a vestir-se com mais elegância. Embora essa ideia, para bem de sua tranquilidade de espírito, nunca passasse pela cabeça de Anne, um homem que visse Lucy na certa a classificaria como uma moça disposta a aproveitar a vida.
- Você tem tido notícias de Joe?
Foi essa a primeira pergunta que, com muito tato, Anne lhe fez.
Lucy abanou a cabeça e respondeu-lhe:
- Oh, tenho sim - de certo modo. Ele continua insistindo comigo para voltar para a sua companhia. Francamente, Anne, só de pensar nisso fico ardendo de raiva. Joe trabalhando como motorista de ônibus, como um simples chofer, depois de tudo o que tivemos ou poderíamos ter tido. Minha linda casinha, minha mobília, tudo perdido por causa da estupidez dele. Não posso perdoá-lo. Não voltarei a viver com ele. Não tenho vocação para o casamento - pelo menos para um casamento daquele tipo. Prefiro tocar o meu barco sozinha. Há certos empregos de enfermeira que não são nada maus. E o que arranjei é dos melhores.
Houve um silêncio. Embora Anne pudesse ter dito muita coisa em defesa de Joe. pelo menos no momento resolvera manter a paz. Pois Lucy, naquelas últimas palavras, levantara a questão que já a vinha preocupando.
- Está aí uma coisa sobre a qual preciso conversar com você, Lucy.
Anne falava lentamente, com toda a cautela.
- Sinto muito, querida - continuou ela - mas eu... eu não acho que você esteja assim tão bem colocada.
- Lá vem você de novo com a mesma cantilena
- redarguiu Lucy mais que depressa.
- Mas é preciso, Lucy. Não me agrada ver você trabalhando naquela casa de saúde; a reputação dela não é nada boa.
- Oh, pelo amor de Deus, pare com isso! Você tem a mania de encarar tudo com excessivo rigorismo. Só -porque a Rolgrave é uma casa de saúde particular e não uma abominável instituição pública, você lhe mete a ronca - nela e em mim também. Fique sabendo que quando Joe me abandonou tomei a deliberação de cuidar o melhor possível dos meus interesses. Na Rolgrave, a velha Sullivan, que é a nossa diretora, paga um salário três vezes maior às suas enfermeiras, nossos uniformes são de pura seda, a comida é maravilhosa e só temos pacientes escolhidos. Esta semana toda, por exemplo, tratei exclusivamente de Irene Dálias, a estrela do cinema. Você já ouviu falar nela, certamente! Ela anda falando em levar-me consigo para a Califórnia. Estou lhe dizendo que as enfermeiras da Rolgrave têm grandes oportunidades - em todos os sentidos. Mas de que adianta falar? Você sempre foi contra as casas de saúde particulares.
- Isso não é verdade, Lucy - retrucou Anne com firmeza. - Mas tenho minhas razões para não gostar da Rolgrave.
Calou-se, porém, receosa de acirrar ainda mais o antagonismo de Lucy. Entretanto, seu próprio silêncio falava da sua ansiedade. A Rolgrave, luxuoso estabelecimento situado no coração de Mayfair, - de onde lhe vinha toda a sua clientela - era uma das mais famosas casas de saúde de Londres. Mrs. Sullivan, sua proprietária, tratava suas enfermeiras com pródiga liberalidade (aliás, de outro modo não conseguiria o pessoal necessário), mas só os elementos suspeitos, só a escória da classe era encontrada lá. A casa de saúde tornara-se conhecida como um desses estabelecimentos onde intervenções escusas eram realizadas mediante altas remunerações, onde a peso de ouro contratavam-se operações proibidas por lei, onde mulheres neuróticas e viciadas obtinham entorpecentes que uma instituição direita não lhes forneceria. Desde que Anne soubera da nova colocação de Lucy, passara a viver dominada por um permanente pavor das consequências que poderia trazer à sua irmã o fato de estar trabalhando em semelhante lugar.
Foi Lucy quem primeiro quebrou o silêncio, brincando petulantemente com a colher:
- Isso não é direito - reclamou como uma criança caprichosa. - Há várias semanas que não nos vemos e no entanto você só veio cá para implicarse comigo.
- Não estou me implicando com você, querida
- protestou Anne, inclinando-se carinhosamente para ela. - Vim fazer-lhe uma proposta. Desista desse maldito lugar e volte para junto de mim. Venha trabalhar na minha enfermaria, no Trafalgar.
- Quê?
O inesperado do oferecimento apanhara Lucy de surpresa.
Anne sacudiu a cabeça tranquilamente.
- Tenho uma vaga na minha equipe. E já falei com Miss Melville. Gostaria que você a preenchesse. Pense em como seria maravilhoso para nós
ficarmos novamente juntas.
Lucy meneou a cabeça.
- Seria uma maravilha para você - como enfermeira-chefe - podendo mandar o tempo todo em mim.
Uma onda de sangue aflorou às faces de Anne.
- Você pensa que foi por isso que lhe fiz esse oferecimento ?
- Não, não - volveu Lucy com apressada compunção. - Desculpe-me, querida. Sei que você seria capaz de fazer qualquer coisa por mim. E eu também por você.
- Então desista desse lugar - intimou-a Anne.
- E vá para o Trafalgar. Lembre-se de todas as grandes coisas que planejamos fazer juntas. É chegada a nossa oportunidade, Lucy. Nós duas temos tido os nossos altos e baixos, mas agora estamos em Londres, no centro de todas as coisas. A semana passada fui aos escritórios da "Associação das Enfermeiras", falei com a secretária - Miss Gladstone
- recebi montes de informações. Poderemos realizar muita coisa, Lucy, se trabalharmos juntas. Por favor, desista da Rolgrave. Fico arrepiada só de pensar que você está lá.
Lucy não respondeu imediatamente. Continuava a brincar com a colherinha. Pouco a pouco seus lábios adquiriram uma expressão de amuo e de obstinação.
- É muita bondade sua, Anne - disse ela afinal.
- Mas não vejo as coisas com os mesmos olhos que você. Sei que você pretende trabalhar pela melhoria das condições da nossa classe. Mas isso só acontecerá dois mil anos mais ou menos depois que tivermos morrido. Irá adiantar-nos muito, mesmo. Eu pretendo levar alguma coisa da vida. Se você for seguir a rotina da enfermagem terá que mourejar até o último dos seus dias. Tenho experiência disso. Por outro lado, se for esperta e souber levar a coisa com jeito como tenho feito, então a profissão de enfermeira poderá ajudá-la a levar um vidão. E sendo o mundo o que é, isso me parece o mais importante.
Houve uma pausa. Anne fez um último esforço.
- Eu não quero parecer importuna - insistiu Anne. - Mas peço-lhe uma vez mais que abandone a Rolgrave.
Lucy esboçou um enfático gesto de negativa.
- Por favor - suplicou Anne.
- Sinto muito, querida - respondeu-lhe Lucy inabalável. - Mas é simplesmente impossível.
O tom positivo em que Lucy falara era inconfundível. Anne sabia por experiência própria que fazer maior pressão sobre ela seria provocar uma cena. Permaneceu calada por alguns momentos, em seguida chamou a garçonette e pagou as despesas.
Era tão séria a expressão de Anne, que Lucy achou-a engraçada. Deu uma risadinha e, enquanto calçava as luvas, declarou:
- Não faça uma cara tão fúnebre, minha querida. Vamos a um cinema. Miss Dálias deu-me duas entradas para o Empire e mais alguma coisa para as despesas. Ela é uma flor, quando não está grogue.
E Lucy tornou a rir-se.
- Agora vamos, pequena. Iremos de táxi até o cine. vou proporcionar-lhe algumas horas bem divertidas.
Forçando um sorriso, Anne levantou-se para acompanhar a irmã. Entretanto, ao ganharem juntas a rua, onde, em meio ao intenso movimento, Lucy fez logo sinal a um táxi, levava o coração carregado de tristes pressentimentos.
QUARTA PARTE
No dia seguinte, Miss Melville, a diretora, acabara de realizar a sua inspeção semanal na Enfermaria Bolingbroke. Sob o seu olhar penetrante, tudo ali reluzia de fazer gosto. Na cozinha e na copa, na sala de testes e na rouparia, como na própria enfermaria, a limpeza e a ordem eram irrepreensíveis e ela não percebeu uma única falha. Estava satisfeita. E olhando de soslaio para Anne, que caminhava ao seu lado, notou com uma clara expressão de aplauso a imaculada alvura do uniforme, os punhos sem uma nódoa, o penteado impecável e as mãos finas da sua nova enfermeira-chefe.
Assim, pois, tendo chegado ao vestíbulo, relaxou o porte ereto e a sua aristocrática dignidade e deteve-se por uns momentos em cordial palestra.
- Sua estreia foi excelente, enfermeira-chefe " Lee. Eu tenho que ser grata ao Dr. Prescott por ma ter enviado. E por falar nele - acrescentou após uma breve interrupção - aposto que ainda não sabe da sua nomeação para o St. Martin's Nerve Hospital.
O coração de Anne deu um salto inesperado. Mas conseguiu controlar a sua emoção. E foi com voz calma que respondeu:
- Eu não tinha a menor ideia de que ele estivesse em Londres.
- Logo imaginei que não soubesse - volveu a diretora com um sorriso indulgente. - Pois a chegada dele causou sensação, posso afiançar-lhe. Ele alugou uma casa em Wimpole Street e o mês que vem vai ler uma tese sobre cirurgia do cérebro perante a Lister Association. Dísse-me o Doutor Verney que vai ser um acontecimento, uma superação do trabalho de Von Kernig - e Von Kernig é o famoso cirurgião vienense que esteve aqui o ano passado. Isso muito me alegra. Conheço Bob Prescott desde pequenino. Anne guardou silêncio. Sentia uma estranha alegria por saber que Prescott se encontrava em Londres renovando o assalto à fortaleza do seu ideal, sem se deixar desencorajar pela deserção de Bowley. Surpreendeu-se a desejar que Miss Melville continuasse a referir-se a ele. Mas a diretora, retomando o seu ar profissional, voltou no mesmo instante a falar sobre assuntos ligados à enfermaria. À medida que atravessavam o vestíbulo, ela declarou:
- Lamento que sua irmã não tenha podido vir para cá, como você sugeriu. Já preenchi, todavia, a vaga que lhe reservara. Sua nova enfermeira entrará em serviço amanhã cedo.
- Muito bem, diretora.
A atitude de Anne só podia ser de aquiescência. Alimentara ainda uma vaga esperança de que conseguisse persuadir Lucy a trabalhar com ela. No caso de isso falhar, pensara em convidar Nora ou Glennie para deixarem o Hepperton e virem ser suas auxiliares. Mas agora, por certo, nada mais restava a ser feito.
Acompanhou a diretora até o elevador e foi devidamente recompensada com um amável sorriso de despedida. Depois regressou à sua enfermaria.
Durante todo aquele dia trabalhou com o coração mais leve do que de costume. A despeito da frieza da última entrevista que tivera com Prescott, havia entre eles como que um vínculo secreto, uma unidade de objetivos e de esforços que a faziam ansiar pelo triunfo do jovem médico. Não podia ser nada mais do que isso, nenhum sentimento estúpido, nenhuma tola manifestação de afeto. Disso estava convencida.
Pensar em Prescott fortalecia-lhe os próprios ideais. Naquela noite, quando deixou o trabalho, correu ao alojamento das enfermeiras e atirou uma capa sobre o seu uniforme. Deixando o hospital, encaminhou-se com passos rápidos para Kingsway, onde tomou um ônibus que a levou ao escritório da "Associação das Enfermeiras", na Museum Square. O escritório estava fechado, mas no pequenino apartamento do andar superior, residência de sua nova amiga, Miss Gladstone. encontrou uma afetuosa acolhida.
- Como vai, Lee? - saudou-a Miss Gladstone, sem tirar a ponta de cigarro do canto da boca. Estava contando com a sua visita. Sirva-se de café. Está no fogão. E naquele saco há um bolo, se não me engano - caso lhe apeteça.
Dando um rápido arranjo na caótica mesa de sua saleta de estar abarrotada de livros, papéis, peças de cerâmica, pontas de cigarros, pratos com restos de comida, relatórios oficiais, uma écharpe de tricô semi-acabada, um vaso de flores e uma fotografia da enfermeira Leedij, Susan Gladstone conseguiu finalmente abrir lugar para a xícara de Anne.
Era uma mulher baixa, de cabelos grisalhos, vestida com desalinho, que devia andar próxima dos sessenta anos. Seu rosto envelhecido tinha uma expressão caprichosa e obstinada. Pelo jeito devia ser natural do norte. Era um desses tipos de mulher que não cuidam em absoluto da própria aparência, menos ainda do próprio conforto, cuja existência inteira fora dedicada a uma causa.
- Dê uma olhada nisto, Lee - prosseguiu ela quando Anne se sentou. E passando-lhe um exemplar do Evening Times com um parágrafo assinalado a lápis azul, acrescentou: - Ótima leitura para uma noite de inverno.
Anne leu até o fim o trecho marcado. Relatava em termos lacónicos e frios o suicídio de uma velha de sobrenome Robertson, que pusera termo à vida, fechando-se num cómodo de aluguel em Bayswater e abrindo o gás. No fim da notícia lia-se o seguinte esclarecimento: "A suicida era aparentemente paupérrima e verificou-se que exercera a profissão de enfermeira".
- Ela era enfermeira - confirmou Miss Gladstone calmamente quando Anne acabou de ler. - Trabalhou quarenta anos na profissão. Eu a conheci. Ela apelou para a "Associação" na esperança de receber um auxílio. Fizemos o que pudemos por ela. Mas não foi suficiente.
- É horrível - disse Anne com uma expressão de angústia nos olhos muito abertos.
- Sim, é horrível - repetiu Miss Gladstone em tom sombrio. - E o pior é que ela não é a única. Tenho aqui uma lista de enfermeiras idosas que passaram a vida inteira exercendo conscienciosamente a profissão e nada puderam guardar para a velhice. E não por culpa delas, note bem. Simplesmente porque nunca receberam salários decentes. Quando ficam velhas e não podem mais trabalhar, são postas na rua e entram para o rol dos indigentes.
- É uma injustiça - disse Anne. - Chega a ser uma desonestidade.
- Pois dezenas de milhares de mulheres trabalham arduamente e nunca foram tratadas com justiça. Eu poderia mostrar-lhe cartas escritas por enfermeiras de todos os pontos do país, cartas de protesto e ameaça, que evidenciam com a nitidez do preto no branco essa exploração. Meu Deus! Se eu não estivesse tão calejada e tão farta disto tudo ficaria com o sangue em ebulição. Não estamos devidamente organizadas, Lee. Devíamos possuir uma associação de classe dotada de força.
Anne contraiu o sobrolho profundamente pensativa.
- Precisamos mais que isso - disse ela, por fim.
- Precisamos obter o apoio da opinião pública. Se conseguíssemos chamar a atenção do povo deste país, mostrar-lhe o descaso com que é tratada a profissão de enfermeira, endireitaríamos as coisas em três tempos.
Susan Gladstone fez um vigoroso gesto de aprovação.
- Isso mesmo, Lee. Você tocou exatamente no ponto vital.
- Não resta dúvida que os tempos estão maduros para uma reforma - prosseguiu lentamente Anne. - Os profissionais de outras classes estão pleiteando melhores condições de vida, oito horas de trabalho diário e descanso remunerado. Por que razão as coitadas das enfermeiras hão de ficar de lado? O trabalho delas é tão duro quanto qualquer outro e muito mais arriscado do que muitos. Por que não hão de perceber salários decentes?
- Por quê? - ecoou Miss Gladstone com amargura. - Por pura superstição, por uma espécie de azar, por causa da interpretação errónea da lenda de Florence Nightingale que há anos nos tolhe os passos como um pesado grilhão. São as tais ideias da enfermeira bondosa que afofa os travesseiros e se dedica aos seus doentes por pura caridade! Você quer que lhe diga uma coisa? Em geral as enfermeiras desse tipo que tenho encontrado e que dizem trabalhar por amor à caridade fazem sempre péssima enfermagem (Miss Gladstone assoou-se ruidosamente"). Se conseguíssemos promover uma grande campanha capaz de abalar o público! Afinal de contas o público é o único que se beneficia do nosso trabalho. com os diabos! Esse mesmo jornal que traz a notícia do suicídio da pobre velha Robertson publica um apelo às enfermeiras que estejam dispostas a ir para o sul do País de Gales onde estourou uma epidemia de meningite cérebro-espinhal. Oh, praga! Detesto exaltar-me desta forma! Ninguém diria que isso fosse possível depois de tantos anos, especialmente num velho geiser como eu! - E com um súbito sorriso acrescentou: - Mas não faz mal. É bom que você conheça o meu lado pior. Eu gostaria que você trabalhasse conosco, Lee. Você está tão à mão ali no Trafalgar que poderia prestar-me boa ajuda nas suas horas de folga. Colaboração voluntária, é claro. Não dispomos de um vintém furado. Mas com isso você teria oportunidade de remover algumas montanhas.
- Pois é para isso que estou aqui - declarou calmamente Anne. - Ainda que eu apenas consiga remover montinhos de terra.
As duas mulheres ficaram conversando longo tempo na saleta modesta e mal arranjada. Anne nutria uma forte simpatia e um profundo respeito pela dinâmica secretária. E sentiu que idêntica afeição lhe estava sendo oferecida por ela em troca. Quando afinal se despediu, estava já incondicionalmente ligada a Susan Gladstone.
Ao deixar a velha Square e atravessar a Bloomsbury com passos apressados em direção ao hospital, Anne levava consigo a grata convicção de que dera um passo de grande importância e de grande acerto. A "Associação", embora antiquada em certos pontos e, conforme confessara a própria Miss Gladstone, em péssimas condições financeiras, era uma instituição séria, conservadora e representativa
- o instrumento ideal para a promoção de uma campanha de larga envergadura em prol das enfermeiras. Ligando-se a ela, Anne compreendeu que poderia um dia ter oportunidade de desempenhar uma ativa participação na grande luta pela libertação da sua classe.
De volta ao Trafalgar, como não sentisse disposição para jantar, foi diretamente para o seu quarto. Subconscientemente, surpreendeu-se associando as notícias que Miss Melville lhe dera pela manhã à decisão que tomara à noite. Seu pensamento voltou-se para Prescott: "Ele está trabalhando do seu lado e eu do meu." E naquela noite dormiu profundamente.
Na manhã seguinte, quando retomou o seu posto na enfermaria, foi informada pela praticante de que a nova enfermeira chegara.
ANNE não foi imediatamente falar com a recém-chegada. Tinha várias providências a tomar na enfermaria, tais como a verificação das papeletas das folhas de dieta e um caso especial de gastrite no leito n.? 6. Talvez meia hora tivesse se escoado antes de ela entrar na ante-sala onde a nova enfermeira a esperava. Mal, porém, sentou-se à mesa e tomou da caneta, o sorriso de boas-vindas apagou-se singularmente em sua fisionomia. Em seu lugar surgiu uma expressão de reconhecimento e de espanto. Viu que a mulher que tinha diante de si era a enfermeira Gregg, do County Hospital de Shereham.
A enfermeira Gregg reconheceu imediatamente Anne. Passada a surpresa do primeiro instante, ela dominou-se rapidamente e um brilho singular cintilou-lhe nos olhos claros.
- bom dia, enfermeira-chefe - disse ela, adiantando-se alegremente.
- bom dia - respondeu Anne em tom muito menos satisfeito.
Muito poucos haviam sido os seus contatos com a enfermeira Gregg no County e nunca tivera nenhum interesse por aquela rapariga pálida de cabelos cor de palha e levemente petulante. Tinha, entretanto, a certeza de que Eliza Gregg nunca fora sua amiga. Sentiu um aperto no coração. Quando mais não fosse, diante daquela imagem do passado uma série de penosas recordações a assaltava.
- Está me reconhecendo, com certeza, pois não, enfermeira? - prosseguiu Eliza. - Ah, perdoe-me, esqueci-me de que agora é enfermeira-chefe. Mas, na verdade, enfermeira-chefe, é bem estranho vê-la aqui depois de ter deixado o County.
Anne fez um esforço para controlar-se.
- Sua presença aqui não me causa a menor estranheza - retrucou com voz inalterada e imparcial, segurando com força a caneta. - Qual foi o último hospital em que trabalhou?
- O County. Venho de lá. Trabalhei sempre lá... (uma expressão maldosa animou a fisionomia da enfermeira Gregg) desde que a senhora deixou o hospital, enfermeira-chefe.
A pena de Anne corria sobre o papel.
- Trouxe o seu diploma?
- Trouxe sim, enfermeira - isto é, enfermeirachefe.
Anne corou. Continuou porém a escrever, pois embora a diretora já tivesse solicitado, verbalmente, os dados necessários, sua obrigação era anotá-los na ficha. Feito isto, aprumou-se na cadeira e encarou a sua interlocutora.
- Começará a trabalhar esta manhã,, enfermeira. Espero que goste daqui. E estou certa de que irá fazer tudo para proporcionar-nos a máxima satisfação.
- Sim, enfermeira-chefe.
Haveria uma nota de zombaria no tom respeitoso daquela resposta? Anne não saberia dizê-lo. Seus músculos retesaram-se ainda mais e seus olhos fixaram os olhos claros da enfermeira Gregg.
- E espero que o fato de termos trabalhado juntas como simples enfermeiras - aliás espero que nada do que se passou no County a impeça de compreender que esta enfermaria está sob a minha responsabilidade e que toda e qualquer ordem minha devera ser cumprida à risca.
- Naturalmente, enfermeira-chefe - volveu a enfermeira Gregg com excessiva efusividade. - Creio que a senhora pode confiar na minha eficiência.
- Muito bem, enfermeira. É quanto basta.
- Obrigada, enfermeira-chefe.
A enfermeira Gregg levantou-se e encaminhouse para a porta. Ao fazer isso dirigiu a Anne um vago esboço de sorriso - um sorriso carregado de significação, cheio de insinuações maldosas, sorriso que penetrou friamente no âmago de seu ser.
A porta fechou-se sem ruído. Anne continuou sentada à sua escrivaninha, imóvel como uma estátua. Entretanto, por trás de sua fronte serena os pensamentos corriam desesperadamente. Via com terrível clareza o perigo da sua posição. Não importava que tivesse deixado Shereham inocente de qualquer culpa. Chamara a si a responsabilidade de uma falta grave. E agora, em sua própria enfermaria, surgia uma enfermeira sobre a qual teria que exercer autoridade, uma enfermeira que estava a par das causas aparentes da sua demissão do Comty e que poderia não ter escrúpulos em tirar partido disso.
Anne lutava para não perder a coragem. Talvez a situação não seja tão má quanto eu imagino, dizia de si para si. Não me deixarei intimidar por ela e, seja como for, já a preveni. Mas toda a sua coragem não impediu que um arrepio de maus pressentimentos lhe percorresse o corpo ao levantar-se da escrivaninha e voltar lentamente para a enfermaria.
O tempo piorara horrivelmente e a cidade parecia sufocada sob úmidas nevascas e densos nevoeiros amarelos. E a Enfermaria Bolingbroke, em consequência da inclemência do inverno, estava abarrotada de doentes.
Anne não tinha mãos a medir, tal o número de casos, de broncopneumonia que se sucediam. Eram casos complicados que exigiam a mais especializada atenção e que só podiam ser resolvidos satisfatoriamente numa enfermaria que funcionasse com a mais perfeita eficiência. Normalmente Anne teria se regozijado em face da necessidade de um alto e contínuo esforço. Mas agora preocupava-se e perdia peso, dominada por uma crescente ansiedade.
Sua enfermaria não estava funcionando como devia. Pequenas coisas andavam saindo erradas, as papeletas não vinham sendo feitas com exatidão, as escarradeiras não estavam sendo esterilizadas. E mais de uma vez deparara com faltas mais graves. O Dr. Verney, seu chefe, era grande adepto do tratamento da pneumonia por meio de soro. Empregava o soro do Instituto Rockefeller, cujo êxito dependia grandemente da exatidão do horário da sua aplicação. Em três ocasiões sucessivas Anne descobriu que o soro não fora dado na hora certa.
Não era possível fugir à evidência. Embora a princípio fizesse um esforço por ver as coisas com bons olhos, Anne verificou que a causa de todo o transtorno era a enfermeira Gregg. Não que Eliza Gregg fosse responsável por todas as faltas. Era-o por muitas delas, pois nunca fora boa enfermeira e ultimamente se tornara notoriamente descuidada e negligente. Mas de um modo insidioso ela começava a afetar a eficiência das outras duas enfermeiras da equipe de Anne. A enfermeira Scott, dotada de temperamento sossegado e modesto, talvez não se deixasse influenciar tanto, mas a praticante Leslie, moça nova e muito viva que até então obedecia a Anne como a mais dedicada das escravas, deixou-se contaminar seriamente pelo relaxamento da nova companheira. Era uma jovem muito impressionável e a influência da Gregg não estava lhe fazendo nenhum bem. Anne ouviu-a rir-se alto na copa numa ocasião em que havia dois doentes em estado gravíssimo, isolados dos outros por biombos. Passara a andar com o seu lindo narizinho erguido numa atitude de franca insolência. E uma tarde aproximou-se de Anne, com a testa franzida, numa afetação de grande perplexidade.
- Enfermeira-chefe - exclamou ela com impertinência. - A enfermeira Gregg acaba de me dizer uma coisa extraordinária. Mandou-me perguntar à senhora se não é verdade.
Anne esfriou, sobressaltada e apreensiva. Mas pousou um olhar sereno na jovem Leslie.
- Que foi que a enfermeira Gregg lhe disse?
- Ela disse - volveu a praticante, confusa ante a serenidade do olhar de Anne - que a senhora não gosta dos casos de difteria.
- Gosto de todos os casos - respondeu-lhe mais que depressa Anne. - E você deve fazer o mesmo, se quiser ser-me agradável. Agora vá tomar a temperatura do número 15. E deixe de fazer papel de criança tola.
- Sim senhora, enfermeira-chefe - murmurou a praticante, confundida.
E retornou ao seu trabalho.
Mas a ansiedade de Anne intensificara-se com esse incidente. Falou severamente com a enfermeira Gregg. Como da outra vez, esta lhe respondeu com o mesmo respeito, porém, com o mesmo olhar significativo. Anne sentiu que a situação estava atingindo o seu clímax. E de fato, no início de março, a coisa estourou. E Anne, embora com o coração partido, quase que deu graças a Deus, tão exausta se sentia em consequência da opressão que lhe causava a atitude ameaçadora da enfermeira Gregg.
Certa manhã ela entrou na sala dos testes, pequeno laboratório situado na parte dos fundos da enfermaria, com saída independente e onde se faziam certos testes quantitativos e qualificativos, principalmente exames para pesquisa de açúcar e de albumina. Verificou com grande contrariedade que o laboratório não havia sido limpo, obrigação exclusivamente a cargo da enfermeira Gregg. Tubos de ensaio sujos permaneciam sobre a prateleira, os reativos não tinham sido despejados em vidros, uma proveta jazia sobre o banco cheio de manchas de solução de Fehling. Era um relaxamento imperdoável.
Para Anne aquilo foi a gota que fez transbordar o cálice. Rubra de cólera, respirou fundo com um ar resoluto e mandou chamar a enfermeira Gregg.
Esta não demonstrou estar com muita pressa de atender ao chamado de Anne. E, quando apareceu, foi com um ar mais indiferente do que nunca.
- Pronto, enfermeira-chefe - disse ela com voz macia. - Há alguma coisa errada?
- Há, sim. Esse laboratório está imundo. Anne mal podia falar, tal a sua indignação.
- Eu sei - respondeu a enfermeira Gregg, relanceando um olhar indiferente pela sala. - Eu ia limpá-lo. Mas hoje ainda não tive um minuto de folga.
- Nem hoje nem ontem, presumo. Talvez lhe interesse saber que ontem à noite tive que limpar esta sala.
A enfermeira Gregg lançou a Anne um olhar fulminante. Sabia que estava pisando terreno firme. Há muito tempo que vinha tramando aquilo. Tinha certeza de que Anne estava inteiramente à sua mercê. A oportunidade era boa demais para que a perdesse. Disse então friamente:
- Nesse caso por que a senhora mesma não torna a limpá-la hoje?
Anne empalideceu ante a insolência da réplica. Logo após, porém, uma onda de rubor tingiu-lhe as faces.
- Como é que você se atreve a falar-me desse modo? Estou na direção desta enfermaria. Sua obrigação é cumprir as minhas ordens.
- Ah, é?
- Você sabe disso perfeitamente. Você aqui é a enfermeira e eu sou a sua chefe.
- Uma bela chefe.
Anne cerrou com força as mãos, lutando por conter-se, por não perder a calma e a razão. Fez uma última tentativa de salvar a situação.
- Afinal de contas, qual é a razão da sua prevenção contra mim, enfermeira Gregg? Tenho sido mais que paciente com você desde que entrou aqui. Você não tem cumprido satisfatoriamente com as suas obrigações. Sabe muito bem disso. E é indispensável que as cumpra bem. Estamos tratando aqui de doentes em estado grave, muitos dos quais se acham entre a vida e a morte.
- A senhora não levava tão a sério assim esse problema da vida e da morte quando estava no County. Pelo menos é o que se deduz "da maneira pela qual foi posta de lá para fora.
A enfermeira Gregg pusera finalmente suas cartas na mesa e mostrava-se com um vingativo sorriso de escárnio. Todavia, se esperava que lhe dessem a vitória, amarga deve ter sido a sua desilusão. Uma centelha de obstinação ainda mais viva ardia nos olhos de Anne.
- Vamos dar por encerrada esta discussão. Peço-lhe novamente que ponha em ordem esta sala. Se não o tiver feito quando eu entrar em serviço amanhã cedo, levarei a sua desobediência ao conhecimento da diretora.
As faces da enfermeira Gregg tornaram-se amareladas. Desapontada por ver que Anne ousava sustentar a sua autoridade, atirou-lhe uma resposta em que condensou todas as suas reservas de malícia.
- Irei com a senhora à presença da diretora. Também eu tenho algo a dizer-lhe. Se está querendo pôr as coisas em pratos limpos, vamos de uma vez. Vamos a ver quem é que se sai melhor.
Anne não deu a menor atenção à ameaça. com uma fisionomia fria e fechada, passou pela enfermeira e saiu do laboratório. Estava na sua hora de deixar o serviço. Saiu da enfermaria e dirigiu-se imediatamente ao seu quarto.
Ali, sentada em seu leito, comprimiu com as mãos a fronte latejante. A despeito da sua aparente calma, seu coração pulsava dolorosamente. Exausta ante o desenlace de uma situação que a vinha torturando durante tantas semanas, seu desejo era romper em pranto para assim dar vazão ao seu desespero. com um esforço heróico, conseguiu reprimir o sufocante nó que lhe apertava a garganta. "Coragem! disse consigo mesma. Acima de tudo preciso ter coragem".
Dentro de poucos momentos conseguiu dominar a sua emoção. Acontecesse o que acontecesse, estava resolvida a lutar até o fim. Deu um rápido balanço nas possibilidades que tinha a seu favor. Se esperasse que a Gregg horrorizasse a diretora com a história da sua demissão do County, estaria certamente perdida. Por mais bondosa que Miss Melville tivesse sido para com ela, isso significaria que uma vez mais teria de fazer as malas e partir. E as referências do Dr. Prescott? Como encararia ele essa devassa retrospectiva em sua carreira?
À lembrança de Prescott seus pensamentos tomaram um rumo mais seguro. Ele era a única pessoa em quem podia confiar inteiramente. Uma súbita intuição fê-la sentir que devia ir procurá-lo e que, por mais que isso custasse ao seu amor-próprio, precisava pedir que a aconselhasse. Não precisava incriminar Lucy. Poderia explicar os fatos sem citar nomes. E por mais que a sua frieza a intimidasse, tinha certeza de que ele lhe daria crédito.
Um último esforço e Anne dominou o seu orgulho. A ocasião não permitia hesitações tolas. Levantou-se, trocou apressadamente o uniforme por um traje comum e saiu pelo portão lateral do hospital. E com passo rápido tomou a direção do Wimpole Street.
ROBERT PRESCOTT estava de pé, um tanto absorto, a olhar pela janela do seu consultório. Terminara o seu dia de trabalho - um dia cheio, pois passara a manhã no hospital e à tarde se ocupara cuidando de doentes particulares. No terreno profissional sua mudança para a metrópole não lhe dera motivo algum de descontentamento. Há alguns anos, na verdade, vinha planejando essa transferência e talvez o seu desentendimento com Bowley tivesse até sido bom, pois a precipitara.
Fora feliz em sua nomeação para o St. Martin e sua clientela começava a crescer a ponto de tornarse excessiva. Sua tese lida na Lister Associatior" fora recebida com aplausos. Tinha amigos em Londres também, amigos importantes e influentes, dentre os quais figurava em primeiro lugar John Lowe, que fora seu colega em Cambridge e a quem se ligara intimamente. Embora Lowe fosse agora Sir John, o mais alto membro do Conselho do Rei no Tribunal, mostrara-se por todos os modos ansioso por restabelecer contato com o seu antigo colega.
Fora Lowe quem propusera o nome de Prescott para sócio do seu próprio clube - o Arlington. E esse mesmo espírito brilhante dera a entender que em vista da tendência de certas correntes parlamentares para promoverem uma campanha de assistência social de âmbito nacional, uma clínica como a que Prescott propunha, se bem apadrinhada, poderia figurar como ponto essencial na plataforma eleitoral do governo.
Evidentemente Prescott tinha motivos de sobra para congratular-se consigo mesmo. Entretanto, sua expressão, enquanto observava alguns pardais que saltitavam pelo pátio, não refletia nem felicidade nem satisfação. Era antes a expressão de um homem que houvesse enfrentado um longo período de inconsciente autodecepção. Muito embora naqueles últimos meses viesse lutando contra isso, compreendia agora, através de uma sombra de dúvida, porque a vida e a promessa de sucesso haviam perdido o seu sabor natural.
Voltou as costas para a janela com um suspiro e começou, ociosamente, a arrumar uns papéis sobre a sua mesa. Nesse momento alguém bateu à porta e sua assistente, já em trajes de rua, entrou na sala.
- Está lá fora uma pessoa que deseja falar-lhe, doutor. É uma enfermeira. Ela não tem hora marcada, mas quando eu lhe disse que já era muito tarde, alegou que o senhor a conhece e que poderia recebê-la. Seu sobrenome é Lee.
A expressão de Prescott não se alterou. Deixou-se ficar largo tempo na mesma atitude, imóvel, como que consciente de um destino que viera ao encontro do seu desejo. Por fim disse com singular entonação de voz:
- Mande-a entrar.
Minutos depois Anne entrava na sala. Entrou precipitadamente, com um ar nervoso e mais pálida do que de costume. E como que para prevenir qualquer comentário que ele pudesse fazer, apressou-se em dizer-lhe:
- Lamento incomodá-lo a esta hora. Se houver algum inconveniente poderei voltar amanhã.
Se temia, porém, uma recepção hostil, seus receios logo se aplacaram. Prescott não fez nenhuma menção de recebê-la cerimoniosamente. Adiantou-se e apertou-lhe calmamente a mão. Depois que Anne se sentou, ele se pôs a estudá-la da sua cadeira, por trás da escrivaninha.
- Uma coisa me dizia que íamos tornar a encontrar-nos - disse ele afinal em tom tranquilizador. Começava, aliás, a sentir que o nosso encontro era mais que necessário.
Anne corou e baixou os olhos. Pelo fato de ter vindo solicitar auxílio, a bondade daquela recepção deixara-a nervosa. Uma acolhida mais fria tê-la-ia encorajado a levar a cabo a sua missão. Sob o olhar tranquilo do médico, um horrível sentimento de fraqueza a assaltava. Mas conseguiu dominá-lo e fez um esforço para prosseguir. Ergueu a cabeça e fitou-o firmemente nos olhos.
- É muito difícil para mim, Doutor Prescott. Espero que eu não esteja abusando do senhor. Mas a verdade é que.. aqui vim para pedir o seu auxílio.
- Bem - murmurou ele com um sorriso encorajador. - Fale.
Anne vacilou um pouco mas prosseguiu:
- É uma longa história. Não quero abusar da sua paciência. Mas desconfio que vou ter de contá-la desde o começo.
E, enchendo-se de coragem, começou a contarlhe, o mais resumidamente possível, toda a história do incidente ocorrido em Shereham, sem citar nomes, mas explicando apenas de que maneira assumira a culpa de uma colega e como, naquele momento, essa ação ameaçava afetar desastrosamente sua carreira.
Prescott ouvia-a em silêncio, sem tirar por um só instante os olhos do seu rosto. Quando Anne acabou de falar, disse-lhe delicadamente:
- Devia gostar muito dessa moça para encobrir-lhe a culpa dessa maneira. Quem era ela? Vamos, diga! A ocasião não comporta sacrifícios dessa ordem.
Anne não respondeu.
- Era sua irmã?
- Era.
Anne tivera que falar. Não podia enganá-lo. Aliás, o médico com a sua perspicácia já lhe havia adivinhado a resposta.
Houve uma pausa durante a qual Prescott como que considerou tudo o que ela lhe contara.
- Devo dizer - declarou ele afinal em tom reflexivo - que o que fez foi uma ação nobre e corajosa. Não posso, entretanto, deixar de considerá-la um erro. Se sua irmã tivesse arcado com a punição merecida isso teria sido para ela uma lição proveitosa, que haveria de transformar a enfermeira negligente em algo melhor. Diga-me, porém... ela ainda está em Shereham?
- Não. Está em Londres.
- Onde?
Anne sentia-se sem coragem de responder. Por fim falou:
- Ela trabalha como enfermeira numa casa de saúde particular - a Rolgrave.
- Na Rolgrave? Prescott quase que deu um salto em sua cadeira). Aquilo é um lugar abominável. Precisamos tirá-la imediatamente de lá.
Fêz-se novo silêncio. Prescott, reassumindo a atitude serena momentaneamente perdida, contemplava com extraordinária simpatia a figura frágil de Anne, seu rosto pálido e meigo. Compreendeu de súbito, quase com um sobressalto, a felicidade que lhe dava revê-la. Regozijava-se com aquela oportunidade de ajudá-la. Aliás não considerava o seu reaparecimento em sua vida como simplesmente circunstancial. Se ela não tivesse aparecido, teria ido inevitavelmente procurá-la. A despeito de todo o seu puritanismo, da sua rígida conduta profissional e do seu curioso ar de superioridade, compreendia agora, de maneira completa e absoluta, a verdadeira natureza do seu interesse por Anne.
As mulheres nunca haviam tido grande participação em sua vida. Se jamais lhe fora dado contemplar o mar das emoções humanas, fizera-o obscuramente, com a mentalidade ligeiramente desdenhosa e altiva de um cientista. A simples ideia de poder vir a apaixonar-se por uma enfermeira, poucos meses antes, ter-lhe-ia parecido infinitamente irrisória.
Sua atitude anterior em relação a Anne fora, na realidade, mera inversão desse complexo. Justamente pelo fato de, em seu subconsciente, desconfiar de si próprio e recear uma fraqueza de sua parte, pemsou em manter suas relações com ela no terreno puramente profissional, evitando todo e qualquer contato de outra natureza. Agora esse estúpido mecanismo de defesa desaparecera. Embora Anne o ignorasse e devesse continuar a ignorá-lo na presente conjuntura, reconhecera o sentimento que nutria por ela, sentimento que ele jamais deveria ter negado.
Quebrando a longa pausa, transmitiu-lhe afinal parte dos seus pensamentos.
- Não lhe sei dizer o quanto me alegrou o fato de ter me procurado - disse-lhe ele.- E creio que vou poder ajudá-la. Tenho aliás certeza disso. Miss Melville é uma das minhas mais velhas amigas (sorriu ingenuamente). Considero-a assim uma espécie de tia. Faço questão de ir falar com ela hoje à noite. Discutiremos então as singulares tendências sacrificiais da sua nova enfermeira-chefe. Entrementes, mantenha-se firme e não faça nada. Eu e Miss Melville resolveremos a situação.
Anne, vencida pela sua bondade, tentou articular vima frase de agradecimento. Mas Prescott interrompeu-a sorrindo.
- Não me agradeça, por favor. Alegra-me poder fazer isto a fim de penitenciar-me pela maneira atroz com que a tratei da última vez que nos vimos. Eu estava aborrecido e nervoso. O nosso amigo Bowley fizera-me a mim também uma boa. Eu não estava enxergando as coisas com clareza. Agora porém vejo-as bem. Sim, agora estou vendo tudo claro.
A repetição dessa última frase provocou em Anne uma estranha sensação de embaraço. Levantou-se, sentindo que lhe havia tomado demasiado tempo. Prescott também se levantou e acompanhou-a até à porta da rua, onde lhe disse:
- Mais uma coisa apenas. Gostaria de saber se seria capaz de fazer o que lhe vou pedir.
- com o maior prazer - respondeu-lhe Anne sem hesitação.
- Lembra-se daquele almoço em estilo de piquenique que lhe ofereci depois do desastre de ônibus? Pois se tudo correr como espero, quer recompensarme amanhã à noite, permitindo-me que vá buscá-la para jantar comigo?
O convite fora tão inesperado, que os olhos de Anne se encheram de surpresa. Logo, porém, enrubesceu. Por mais confusa que se sentisse, não podia recusar-se. Murmurou então, timidamente:
- Está fazendo crescer ainda mais a minha dívida. Seria. seria para mim um grande prazer.
- Pois então está combinado. Deixar-lhe-ei um bilhete no hospital.
Logo depois clespediram-se. E, ao descer a rua, Anne sentia ainda a pressão dos dedos dele nos seus.
NA manhã seguinte, Anne entrou muito cedo
em serviço na sua enfermaria. Ao chegar ali, por mais tranquilizadoras que tivessem sido as palavras de Prescott na véspera à tarde, não pôde deixar de sentir um tremor de incerteza. Nada aparentemente acontecera naquele intervalo. Ela não estivera com a diretora nem recebera nenhuma notícia de que o assunto tivesse sido resolvido.
Mas embora Anne tivesse madrugado, a enfermeira Gregg entrara ainda mais cedo. Pálida e submissa, ainda que vestida com mais esmero do que de costume, esperava Anne de pé em atitude atenta do lado de fora da porta da sala de testes.
- bom dia, enfermeira-chefe - balbuciou ela com voz trémula. - Já limpei a sala, bem como todos os tubos e aparelhos de ensaio. Espero que esteja tudo do seu agrado agora, enfermeira-chefe.
E com um gesto nervoso abriu a porta para que Anne fizesse a sua inspeção.
A sala estava de fato na mais perfeita ordem, e até o chão reluzia. Antes que Anne pudesse expressar a sua opinião, a enfermeira Gregg retomou precipitadamente a palavra:
- Limpei também todas as escarradeiras lá da enfermaria, enfermeira-chefe. Acho que não fiz mal, pois não? E ajudei a enfermeira Scott a tomar a temperatura dos doentes. Esforcei-me por fazer o melhor que pude.
Não havia dúvida que a enfermeira Gregg se esforçara por fazer tudo o melhor possível. É que naquela manhã ela recebera das mãos da diretora um choque absolutamente inesperado, o qual alterara penosamente as suas erróneas concepções. Amansada pelo susto, olhava agora para Anne com olhos humildes e timoratos.
- E espero que a senhora não sustente contra mim nada do que eu lhe disse ontem, enfermeira-chefe - murmurou ela em tom contrito. - Reconheço que andei errada. Lamento muitíssimo o meu procedimento.
Anne olhou para a figura desprezível da enfermeira. Estava em suas mãos arrasá-la, transformarlhe a vida num inferno. Mas esse pensamento nem sequer lhe passou pela mente. Sentiu, ao contrário, uma estranha piedade pela outra. E disse-lhe serenamente :
- Todos nós cometemos erros, enfermeira. Estou certa de que, de agora por diante, irá trabalhar melhor. E se o fizer, vá procurar-me o mês que vem. Se for possível, eu lhe darei um domingo a mais de folga.
Eliza Gregg arregalou para Anne um olhar incrédulo. Lentamente a compreensão da generosidade da enfermeira-chefe estampou-se em seu rosto. Diante da inversão da situação e sentindo-se inteiramente à mercê de Anne, contara com uma punição mais severa. E em lugar disso ela lhe oferecia um privilégio a mais. Seus olhos encheram-se de lágrimas que não foi possível reprimir.
- Estou arrependidíssima, enfermeira-chefe balbuciou com voz entrecortada. - Sinceramente arrependida. Por favor, perdoe-me. Odeio-me a mim mesma pelo que fiz.
Durante todo aquele dia, o coração de Anne permaneceu leve e sua mente invadida por uma sensação de alívio. A enfermeira Gregg excedeu-se em sua boa vontade. Esse entusiasmo contagiou os outros membros da equipe. A enfermaria assumiu novo aspecto e a vida para Anne adquiriu um colorido diferente.
Tão absorta ficou naquele trabalho de reabilitação que foi com verdadeiro sobressalto que se viu chamada à lembrança do compromisso que assumira na véspera quando encontrou em seu quarto, ao deixar o trabalho após o chá, um pequeno embrulho dourado contendo um ramo de orquídeas e um simples bilhete nos seguintes termos: "Restaurante Manon às oito horas".
Anne contemplou francamente confusa as exóticas flores violáceas. Nunca ninguém lhe mandara orquídeas. Viu-se diante de um curioso problema a lembrança de que não tinha nenhuma toilette digna de usar com elas e quase o desejo de fugir ao compromisso de jantar com Prescott. Um restaurante de luxo como o Manon não era ambiente para ela
- mulher do trabalho, simples enfermeira habituada a só lidar com doenças e tristezas. Não poderia de um momento para o outro transformar-se numa borboleta noturna.
Esse estado de espírito, porém, logo se desvaneceu. O Dr. Prescott, refletiu ela, a conhecia perfeitamente em seus prosaísmo. Não haveria de esperar, portanto, que ela fosse lhe aparecer vestida como um figurino.
Sorrindo de leve ante este último pensamento, tomou um banho, penteou-se cuidadosamente e pôs o seu vestido mais novo. Prendeu em seguida ao ombro o ramo de orquídeas. O efeito foi surpreendente. Estava mais próxima de parecer um figurino do que supusera. Céus, pensou, com zombeteiro espanto, preciso tomar cuidado para que a Leslie não me veja assim, pois do contrário a pequena nunca mais obedecerá a uma ordem minha.
Deixou sorrateiramente o hospital, tomou um táxi e chegou ao Manon pouco antes da hora marcada.
Era um lugar agradável - um longo salão verde cercado de assentos estofados e de mesinhas, com um bufete circular no centro onde estavam expostos os mais deliciosos frios e frutos. Prescott já havia chegado. Ao vê-la aproximar-se, levantou-se.
- Sua pontualidade é admirável - exclamou. Nunca imaginei que fosse possível a uma mulher ser pontual.
- Ah! - sorriu Anne. - Isso faz parte da minha disciplina.
Arranjaram uma mesa bem no fundo da sala. O mordomo mostrou-se pessoalmente interessado na sua escolha do menu. Depois que ele se afastou, Anne voltou-se para o seu companheiro. Sentia-se perfeitamente à vontade e feliz por ter vindo.
- Que lugar bonito, este! Bonito e elegante. Ultrapassaria um pouco a experiência de qualquer enfermeira.
Prescott apressou-se em responder:
- Esta noite precisa esquecer-se de que é enfermeira.
Anne ergueu as sobrancelhas com uma expressão surpresa. Depois deu uma risada.
- Como poderei eu fazer isso, depois de tudo o que o senhor acaba de fazer por mim no hospital? Hei de ser sempre, eternamente, grata ao senhor. Oh! Não faz uma ideia do dia maravilhoso que tive hoje na enfermaria. Tudo ali passou a correr com a máxima perfeição.
- Que incorrigível enfermeirinha!
- E o senhor é um grande cirurgião igualmente incorrigível - retrucou Anne.
- Não sei, não - murmurou ele num tom singular.
Houve um silêncio. Prescott era por demais educado e por demais intuitivo para precipitar a situação. Em vez disso procurou distraí-la, palestrando com ela da maneira mais agradável possível para mostrar-lhe que o manejo do bisturi não constituía o seu único dom.
Era aquela uma faceta da sua personalidade da qual Anne jamais suspeitara. Prescott parecia extraordinariamente jovem em seu dinner jacket, o peitilho da camisa engomada a reluzir sob a gravata negra, os cabelos irrepreensivelmente escovados. Anne deixou-se dominar por um súbito sentimento de camaradagem em relação a ele, por um desejo de vê-lo alcançar todas as felicidades, todos os triunfos que a vida nos pode oferecer.
Aproveitando uma pausa da conversa ela lhe disse:
- Desde que cheguei aqui estou esperando que o senhor fale sobre a sua clínica. O senhor não terá alguma notícia para dar a uma das mais ardentes adeptas do seu plano?
Prescott sorriu.
- Tenho uma porção de notícias. Mas não havíamos decidido não falar sobre assuntos profissionais ?
- Sobre que então iremos conversar? - protestou ela. - Conte-me depressa o que há de novo.
- Há muito mais do que eu poderia ter esperado - volveu ele cheio de animação. - Tenho um amigo chamado Lowe que está lançando a ideia nos meios políticos. Ainda esta tarde tive uma importante entrevista. Um certo membro do Governo que, a despeito de toda a sua pose não deve ter nenhuma nomeada, veio, em caráter particular, sondar-me sobre as possibilidades do plano. Naturalmente, estou lhe contando isto em caráter altamente confidencial.
- Sim, compreendo - balbuciou Anne.
- O meu pomposo visitante procurou-me a mandado de Ogilvy, o Ministro da Saúde. Ele mostrou-se satisfeito com as informações que lhe dei.
- Quer dizer que o Governo está projetando dar-lhe tudo o que o senhor deseja ?
Prescott sacudiu afirmativamente a cabeça.
- No fundo, a coisa oculta uma manobra política com fins eleitorais - explicou. - Mas para mim o interesse é o mesmo.
- Que maravilha! - exclamou Anne entusiasmada. - Não faça esse ar desinteressado, repreendeuo ela.
- Até que estou muito interessado - volveu Prescott. - Mas há outras coisas em que estou igualmente interessado.
De certo modo Anne não conseguiu apreender o sentido dessa insinuação. Não percebeu a sutil mudança que se operara nele, nem sentiu que o plano de suas relações deixava de ser o mesmo de outrora.
Depois do café ainda conversaram longamente. E só se resolveram a interromper a prosa e a sair porque Anne tinha que regressar ao hospital o mais tardar às onze horas.
Foi então que sobreveio o horrível imprevisto. Estavam os dois parados à porta do restaurante à espera de um táxi, quando um jornaleiro passou correndo por eles apregoando a última edição de um vespertino:
- Suicídio de uma atriz! - gritou ele. - A polícia dá uma batida numa casa de saúde de West End.
O cartaz que ele levava trazia o nome de Irene Dálias.
Anne fixou como que fascinada os tipos enormes da manchette afixada no cartaz, enquanto uma súbita associação de ideias ia apagando lentamente toda a animação de sua fisionomia. Prescott também tinha o olhar fixo no cartaz. Comprou um exemplar do jornal e afastou-se um pouco para lê-lo sob as luzes que iluminavam a porta do restaurante. De repente deixou escapar uma exclamação e olhou para Anne com penalizada surpresa. Antes mesmo que ele falasse, Anne teve o pressentimento fatal de um desastre.
- É a Rolgrave - disse Prescott. - Desconfio que chegou o dia de se verem em sérios apuros.
Sem lhe dar tempo de dizer mais nada Anne tomou-lhe o jornal das mãos e percorreu-o rapidamente com o olhar. Irene Dálias, a artista cinematográfica, atirara-se por uma janela de um dos andares superiores da Casa de Saúde Rolgrave. Supunha-se que tivesse agido sob a influência de um entorpecente. A polícia, chamada imediatamente à cena, dera uma batida no estabelecimento. Mrs. Sullivan, a diretora, que era ao mesmo tempo proprietária da casa de saúde, fora detida juntamente com a enfermeira que cuidava da suicida. O nome dessa enfermeira era Lucy Lee.
Anne não pôde conter um grito de horror. Lucy, sua irmã, presa numa cela da chefatura de polícia! Agarrada ainda ao jornal, volveu o rosto pálido e alarmado para Prescott.
- Preciso ir vê-la imediatamente.
- Precisa mesmo - concordou lentamente o médico.
E foi então que ele deu o passo mais corajoso de toda a sua vida.
- Eu irei com "você" - disse-lhe.
A manhã seguinte encontrou Prescott no Iner Temple, nos escritórios de Sir John Lowe, Conselheiro Real. Era cedo ainda - nem nove horas talvez. Fora do recinto do Temple um grupo de pessoas denotava certa agitação. E no interior da longa sala cercada de livros, pairava a mesma atmosfera de inquietação.
Sentado numa poltrona de couro rustido, Prescott mantinha o olhar fixo no tapete. De pé à sua frente Lowe parecia ter acabado de fazer um enérgico sermão. Sua figura esbelta e ereta tinha uma certa angulosidade e em seu rosto estampava-se sincero interesse, prova de que os seus sentimentos em relação a Prescott baseavam-se numa amizade verdadeira. Foi ele quem tornou a falar:
- É uma advertência que lhe faço - disse a Prescott em tom de inconfundível gravidade. - Se você continuar envolvido nesse caso, vai se arrepender amargamente.
Fêz-se um silêncio. Prescott lançou um olhar através de um dos vitrais da sala aos tranquilos jardins que se estendiam lá fora. Em seu íntimo sabia que a razão estava toda com o amigo. Realizou, pela primeira vez, todas as consequências da sua ida ao posto policial na noite anterior e da promessa de ajuda que fizera à infeliz Lucy.
Lowe se pôs a andar de um lado para outro, lançando olhares irritados ao amigo e recapitulando em termos sucintos as objeções que estivera formulando naquela última meia hora.
- Por um lado, você nada tem a ganhar. Por outro, só tem a perder. Se se envolver num caso dessa natureza, em que tanto lodo será revolvido, acabará se enlameando também - por mais imaculada que seja a sua alvura de lírio, meu caro Robert.
As feições finas e cluras de Lowe amenizaram-se num sorriso amistoso embora irónico. Sentou-se abruptamente, cruzou as pernas e se pôs a bater com o lápis no joelho.
- Tome nota das minhas palavras. Este caso não vai ficar na chefatura de polícia. É grave demais para ser resolvido pelo chefe de polícia. E ele sabe disso. Na certa o enviará à Corte Criminal de Old Baley. Isso significa maior publicidade ainda. E toda gente sabe que esse caso já tem todas as características de um escândalo de primeira categoria. Se souberem que você está interessado nele, como mais cedo ou mais tarde irão saber, - você não ignora que esta cidade é um foco de maledicência - o Governo não quererá mais negócios com você. Tudo o que esperávamos com referência à criação da sua clínica na certa irá por água abaixo.
Houve novo silêncio. Prescott reconhecia inteiramente a verdade dessa argumentação. A posição de Lowe no foro era das mais destacadas, ele defendera causas famosas e bem informados porta-vozes já falavam na indicação do seu nome para o posto de procurador da coroa. Mas, embora abalado pelas palavras do amigo, a expressão de fixidez da fisionomia de Prescott só se acentuara.
- Não estou encarando as coisas por esse lado disse ele vagarosamente.
- Ah, não está ? - volveu Lowe como se aquilo o estivesse divertindo, embora fossem bem outros os seus sentimentos. - Continua a achar que agiu acertadamente. Você não compreende que se se meter nisso será convidado pela defesa a dar o seu testemunho médico? Até onde pude apurar, essa infeliz moça que se matou não recebia a devida assistência médica. Era uma protegida da célebre Madame Sullivan. O que significa que nenhum médico dotado de senso comum dará seu testemunho. E entretanto você logo você - quer meter-se no embrulho e prestar depoimento.
Prescott cerrou os dentes.
- Tenho uma razão toda especial para desejar intervir. e para lhe pedir que aceite essa causa.
- Deve ser uma razão especialíssima - replicou Lowe com ironia.
E após uma pausa significativa, acrescentou:
- Por acaso você está interessado nessa enfermeira que foi presa?
- Pessoalmente... não.
- É um alívio para mim ouvi-lo afirmar isso tornou Lowe secamente.
- É bom, porém, que você saiba - prosseguiu mais que depressa Prescott - que não acredito que ela seja culpada, na verdadeira acepção da palavra. Ela apenas executava o seu trabalho de todos os dias.
- Ora! - exclamou Lowe em tom desdenhoso.
- Belo trabalho! Pássaros da mesma plumagem andam sempre juntos. Essa tal Sullivan há muitos anos que se tornou famosa. Foi muito bem feito o que lhe aconteceu. E essa sua jovem auxiliar também terá que arcar com a sua parte em tudo o que estiver para vir. Sinceramente, meu caro, peço-lhe que reconsidere a sua posição. É uma grande alegria para mim tê-lo aqui em Londres depois de tantos anos. Meu intento é ajudá-lo a conseguir a sua clínica e não ajudá-lo a arruiná-la. Na universidade você foi sempre um sujeito de cabeça assentada. Pelo amor de Deus, veja se não perde o juízo agora. Não meta a mão nessa cumbuca.
Prescott meneou a cabeça, com a fisionomia conturbada, mas refletindo a mesma determinação.
- Sinto muito, Lowe. Reconheço que tudo o que você disse está certo. Desejaria poder explicarlhe tudo. Mas só lhe posso dizer uma coisa - é que dei a minha palavra de que ajudaria essa enfermeira. E tenho que ajudá-la.
Fêz-se um longo silêncio. Por fim Lowe suspirou e atirou o seu lápis em cima da mesa.
- Bem! - declarou com desespero. - Desconfio que tenho que aguentar a, sua maluquice. Contra o seu interesse e a minha convicção, aceitarei a causa. Não pela Sullivan, lembre-se. Mas por essa franguinha. que não o interessa. pessoalmente.
A despeito do tom rude de Lowe, a afetuosa generosidade de sua ação tornou-se evidente aos olhos de Prescott. Uma sombria satisfação invadiu-o. Corresse ele próprio o risco que corresse, pelo menos garantira para a irmã de Anne o melhor advogado de Londres.
- Fico-lhe extremamente grato, Lowe - disse então em voz baixa. - Nunca hei de esquecer a sua bondade.
- É melhor que por ora você guarde os seus agradecimentos - resmungou Lowe. - É muito possível que antes de chegarmos ao fim desta questão você esteja me maldizendo, a mim e a si próprio. Pois lembre-se de uma coisa - terei que chamá-lo como testemunha. Essa é uma condição sine qua non já que teremos mesmo que nos arriscar. E agora, pelo amor de Deus, vamos descer para cuidar do essencial e tratar de reunir dados.
A três de julho, o caso Rolgrave subiu, conforme previra Lowe, à Corte Criminal de Old Baley. A manhã desse dia estava fresca e luminosa e Prescott rumou logo cedo para o tribunal. Como estivesse bastante adiantado, resolveu fazer parte do trajeto a pé para depois tomar um táxi. Atravessou a Wimpole Street e dobrou a esquina rumo à Portland Place. Ao fazê-lo avistou um médico das vizinhanças, de nome Rossiter, com o qual travara várias discussões amigáveis na Lister Association, que vinha pelo passeio em direção oposta à sua. Prescott preparou-se para cumprimentá-lo. Mas Rossiter, desviando o olhar, passou direito. Evitara claramente o seu cumprimento.
Prescott abaixou a cabeça e continuou seu caminho. O incidente, embora o magoasse, não o surpreendeu. Viera culminar uma situação que se prolongava já há várias semanas, durante as quais notara por parte de seus amigos uma frieza crescente. Sentira essa frieza principalmente entre os seus colegas no hospital. Aos poucos, mas nitidamente, Prescott foi compreendendo que sua presença no St. Martin se tornara indesejável. E essa prevenção tornou-se ainda mais acentuada, nos meios fora do hospital. Prescott sentia que se tornara o tema de todas as- discussões, que o condenavam abertamente e que algumas pessoas supunham que ele estivesse procurando para seu nome uma publicidade barata. Outros julgavam-no envolvido, de maneira secreta e desagradável, nas próprias irregularidades praticadas na Casa de Saúde Rolgrave. A venenosa maledicência da grande cidade entrara em ação. Por mais de uma vez Prescott se perguntara por que razão nenhuma só pessoa suspeitava da simples verdade que ele estava apaixonado por uma mulher que nada tinha a ver com aquele caso, mas cuja irmã tentava salvar.
Embora ainda não fossem dez e meia, quando Prescott chegou à Corte a sala já estava abarrotada de gente, pois o julgamento despertara de maneira fora do comum a curiosidade geral. Grande número de pessoas de destaque, médicos, senhoras elegantes e representantes de todas as camadas sociais londrinas comprimiam-se no espaço destinado ao público. Sentia-se através do zunzum das conversas, como que uma ardente prelibação, uma sádica esperança de que alguém pelo menos sofresse e fosse sacrificado, para que houvesse um feriado em Mayfair.
Prescott experimentou profundo alívio ao verificar que Anne não estava presente. Pondo de lado todos os seus protestos, insistira para que ela não viesse. Agora, diante da excitação e do clamor daquela arena, via quão sábia havia sido a sua decisão. Abrindo caminho por entre a multidão, encontrou um lugar bem atrás do banco destinado ao conselho dos jurados. Lowe, que acabava de entrar no tribunal acompanhado por seu filho e pelo solicitador Snagge, trocou com ele algumas palavras. Em seguida, Drewett, o procurador da Coroa, majestoso e carrancudo, fez a sua entrada. Lançou um estranho olhar a Prescott a quem conhecia perfeitamente, porém mal o cumprimentou de cabeça.
De repente o zunzum redobrou de volume denotando maior exaltação e o ambiente tornou-se mais tenso. É que as duas rés acabavam de ser trazidas à presença do júri. Quando Mrs. Sullivan, seguida por Lucy, entrou no recinto dos réus, todos os pescoços se esticaram e todos os olhares convergiram para elas. Prescott, a quem a desprezível curiosidade do populacho revoltava, desviava delas o seu olhar, francamente enojado. Mas por fim voltou a cabeça e olhou para Lucy.
Ela estava imóvel e seus braços hirtos pendidos, sua cabeça ereta davam-lhe um ar estático de boneca. Parecia encolhida dentro de si própria, como se o medo a houvesse entorpecido totalmente, secando-lhe todas as faculdades emotivas. Instintivamente Prescott sentiu por ela uma viva simpatia. Era impossível acreditar que aquela criatura fosse totalmente má. O mesmo já não se dava com Mrs. Sullivan. A proprietária da Rolgrave, descaradamente satisfeita com a publicidade que conseguira, tirava berrantes vantagens da posição de evidência em que se achava. Grandalhona, cheia de corpo e vestida com espalhafato, percorria a sala com o seu olhar ousado e experiente, saudando de cabeça os conhecidos e atirando beijinhos às pessoas mais íntimas. Sua figura era a verdadeira encarnação do mal,.
Nesse momento pediram silêncio e todos os presentes se levantaram. Era o juiz que chegava, imponente em sua ampla toga esvoaçante, a alva peruca de magistrado perfeitamente ajustada à cabeça. Em poucos minutos o júri prestou juramento. E o julgamento teve início.
UM oficial de justiça levantou-se para ler a acusação. Dizia esta que, a 10 de junho, na Casa de Saúde Rolgrave, as acusadas, sem autorização legal, revelaram ter em seu poder diversas drogas entorpecentes tais como sulfato de morfina, heroína e cloreto de cocaína; e que na mesma data e lugar ministraram a uma certa Irene Dálias um entorpecente, sob a ação do qual ela se lançou de uma janela, suicidando-se.
Quando a voz retumbante do oficial emudeceu, as duas mulheres, de acordo com a praxe, declararam-se isentas de culpa. Mrs. Sullivan, para mostrar que não estava intimidada, fugiu aos termos formais, alegando em alta voz que nunca em sua vida fizera uso de um entorpecente. O juiz fê-la calar-se com uma enérgica advertência.
Teve início então a acusação. Prescott concentrou toda a sua atenção no depoimento das testemunhas chamadas para esclarecer a natureza das drogas. Em seguida, o Dr. Buri, médico legista, testemunhou a descoberta de uma das drogas - heroína - na análise das vísceras da falecida Irene Dálias. Ante a conclusão da prova, Lowe imediatamente levantou-se.
- Dr. Buri - interrogou ele - a análise revelou uma dose mortal de heroína?
- Não, Excelência. A dose não era mortal.
Lowe olhou para o juiz, inclinou levemente a cabeça e sentou-se. Prescott sentiu que um ponto valioso fora conseguido.
O sargento-detetive Roberts foi chamado a depor então e testemunhou de que maneira visitara a Casa de Saúde Rolgrave, detendo Mrs. Sullivan sob custódia, juntamente com a enfermeira que tratava de Miss Dálias. Foi um relato demorado e cansativo. Suas últimas palavras, porém, trouxeram algum esclarecimento. - Quando detida, Mrs. Sullivan recusou-se a prestar declarações, mas a enfermeira Lucy dissera:
- Apliquei a injeção de heroína. A dose foi normal. Eu fiz apenas o que me mandaram fazer.
O reconhecimento desse ponto provocou uma onda de interesse na sala. Era exatamente a oportunidade que Lowe aguardava. Assim que o sargento completou o seu depoimento, ele se levantou.
- Meritíssimo Juiz - disse ele, dirigindo-se ao juiz. - Tenho a honra de representar a Vossa Excelência que nada existe neste processo contra a enfermeira Lucy Lee. Se Vossa Excelência me permitir, proponho apresentar um testemunho médico do mais alto valor a fim de provar que qualquer enfermeira, nas circunstâncias descritas pela acusação, seria moralmente e legalmente obrigada a cumprir as ordens a ela dadas pela enfermeira-chefe ou pela diretora da Casa de Saúde.
Suas palavras causaram sensação imediata e um surdo zunzum percorreu toda a sala. Prescott contaminou-se pelo nervosismo geral. Viu o brilhantismo do inesperado golpe de Lowe e compreendeu que, se fosse bem sucedido, o processo movido contra Lucy poderia ser sumariamente encerrado.
Outras pessoas presentes tiraram idêntica conclusão. Drewett, no seu papel de promotor, estava já de pé e levantara em voz alta e enfática uma objeção. Mr. Coles, patrono de Mrs. Sullivan, fez coro com ele. Seguiu-se uma longa argumentação técnica ao fim da qual o juiz levantou a mão pedindo silêncio. Em seguida inclinou-se para Lowe.
- Muito bem, Sir John. Ouviremos a sua prova. Lowe fez nova inclinação de cabeça em sinal de respeitosa aquiescência. Alisando calmamente as dobras da sua toga, declarou com voz macia que ia chamar a depor o Dr. Robert Prescott.
Prescott sobressaltou-se ao ouvi-lo mencionar o seu nome. Absorvido pelo rápido desenvolvimento do julgamento, esquecera-se de que seria chamado a depor. com um íntimo tremor sob a aparência de impassibilidade, levantou-se e dirigiu-se ao recinto reservado às testemunhas. Nesse meio tempo percebeu de relance o rápido garatujar dos repórteres e a chuva de olhares vindos das galerias que caiu sobre ele. compreendeu numa fração de segundo a notoriedade que lhe adviria. Lowe já tinha começado a interrogá-lo,
- O senhor é o Doutor Robert Prescott, residente à Wimpole Street número 983?
- Sou, sim senhor.
- Quais são os seus títulos?
- Doutor em medicina, doutor em Ciências e membro da Real Academia de Cirurgiões.
- Trabalha em algum hospital?
- Sim. No Hospital de Doenças Nervosas St. Martin.
- Já trabalhou em outros hospitais?
-Já-
- Conseqúentemente teve oportunidade de trabalhar com enfermeiras. Sente-se capacitado para falar com autoridade sobre elas, sobre a profissão que exercem e a ética à qual obedecem?
- Acho que sim.
Lowe tornou a alisar a toga e fez a sua próxima pergunta com acentuada lentidão.
- Diga-me uma coisa, Doutor Prescott. Se o senhor, como médico, desse uma ordem a uma enfermeira, esperaria que ela a cumprisse?
- Indiscutivelmente. Esse é um dos pontos essenciais que constituem a base de qualquer tratamento médico.
- Muito bem. E se uma enfermeira-chefe, ou outra pessoa dotada da mesma autoridade, desse uma ordem a uma enfermeira, esperaria vê-la cumprida como se ela tivesse partido de um médico?
- Naturalmente - respondeu Prescott sem a mais leve hesitação.
- No caso de a enfermeira não a cumprir, estaria ela faltando ao seu dever? E ainda mais, não ficaria ela sujeita a ser demitida e até mesmo punida?
- É claro.
Lowe fez uma pausa, saboreando a própria argumentação, consciente de haver cativado não só o interesse da assistência que se mantinha como que em suspenso como - o que era muitíssimo mais significativo - a máxima atenção do juiz.
- Doutor Prescott, em sua carreira profissional, teve alguma vez oportunidade de dar ordem a uma enfermeira para aplicar alguma injeção?
Embora a natureza da pergunta fosse clara e evidente, um frémito de emoção percorreu a sala. Mas Prescott já agora se tornara completamente senhor de si. Foi, portanto, com a maior calma que respondeu:
- Inúmeras vezes!
- Injeção de uma das drogas que a acusação houve por bem classificar de entorpecentes?
- Sem dúvida.
- Já viu alguma enfermeira-chefe ou pessoa dotada de idêntica autoridade mandar aplicar alguma injeção de semelhantes drogas?
-Já.
- E a enfermeira a quem tal ordem foi transmitida teria que cumpri-la sob pena de ser punida e sem o direito de levantar qualquer objeção?
- Exatamente.
Lowe sorriu levemente e fez uma pausa perfeitamente deliberada. Em seguida disse:
- Obrigado, Doutor Prescott. Creio que era só o que eu desejava saber do senhor.
Esperou que Prescott deixasse o recinto das testemunhas e voltasse ao seu lugar. Depois, conservando o seu leve sorriso, como que convencido de que a vitória era sua, voltou-se para o juiz.
- Meritíssimo! - exclamou com calculada lógica. - Em face da prova que acabamos de ouvir, alego que a denúncia contra a minha cliente carece de procedência. Na ocasião em que foi detida, a enfermeira Lee declarou ela própria que não fizera senão aquilo que acreditava ser a sua obrigação. Toda a culpa ou responsabilidade recai portanto inteiramente sobre a proprietária da Casa de Saúde.
Isso provocou violento protesto por parte do advogado de Mrs. Sullivan, protesto que o juiz considerou improcedente. Lowe prosseguiu então como se nada houvesse:
- Desejo ainda chamar a atenção de Vossa Excelência para o fato de que se a enfermeira Lee não tivesse cumprido as instruções recebidas da sua superiora, sofreria na certa uma punição. Fica pois bem claro que ela agiu de boa-fé ou pelo menos por ignorância. De acordo com o seu grau de esclarecimento ela agiu corretamente.
Nesse momento, Mr. Drewett, o procurador da Coroa, interrompeu-o com violento aparte. Lowe respondeu calmamente:
- O meu ilustre amigo insinua que a Casa de Saúde Rolgrave não era lugar adequado para uma enfermeira honesta. Tomo a liberdade de lembrar-lhe que na situação precária em que se encontra essa classe, as pobres enfermeiras não estão em condições de escolher colocações. Elas têm que trabalhar onde encontram trabalho. Assim pois, Meritíssimo Juiz, não desejando desperdiçar o precioso tempo de Vossa Excelência, com tentativas de embelezar uma verdade tão clara, requeiro respeitosamente o encerramento do processo instaurado contra a minha constituinte.
Assim que Lowe sentou-se, um alto rumor de vozes ecoou na sala. No mesmo instante, porém, o juiz exigiu silêncio. Drewett levantou-se e logo em seguida Coles imitou-o de um salto. À medida que um argumento legal se sucedia ao outro, Prescott, imóvel em seu lugar, sentia crescer o seu nervosismo. Por fim o juiz esboçou um gesto cansado e decisivo, Prescott conteve a respiração ao ver que o juiz começara a falar. Tudo dependia das palavras que ele ia pronunciar. Em termos frios e concisos, o velho magistrado deu um balanço entre as provas apresentadas e as não apresentadas. Advertiu gravemente Lucy quanto aos perigos das más companhias. Depois, em tom de serena decisão, anunciou:
- Considero improcedente o processo instaurado contra a enfermeira Lucy Lee.
O primeiro pensamento de Prescott foi para Anne e seu primeiro ato foi levar-lhe imediatamente a notícia. Deixou rapidamente o seu lugar e abrindo passagem com os cotovelos por entre os corredores apinhados, entrou na cabina de um telefone público que ficava além da aglomeração. Dois segundos depois deixava cair duas moedas na abertura do aparelho. A linha estava desocupada. Ligou para o hospital e comunicou-se com a enfermaria de Anne.
Esperou com o fone no ouvido e finalmente a voz dela chegou-lhe através dos fios. Dava a impressão de estar muito próxima e vibrava com toda a tensão, toda a angustiosa incerteza daquele longo dia de espera.
- Correu tudo bem - disse ele mais que depressa. - Correu tudo bem.
Ouviu então do outro lado do aparelho uma exclamação abafada. E em seguida Anne gaguejou como quem não pudesse acreditar no que lhe fora dito:
- Quer dizer que ela está livre?
- Sim.
Prescott podia quase ver o clarão de júbilo a iluminar-lhe os olhos, os lábios ainda lívidos, a mão nervosa a comprimir ainda o coração. Antes que ela tornasse a falar, prosseguiu:
- vou sair com ela do tribunal neste instante. Fá-la-ei tomar um chá em algum lugar aqui por perto do tribunal. E depois, às seis horas, mandá-la-ei para aí. Ela estará à sua espera do lado de fora do hospital a qualquer momento que você possa deixar o serviço.
Novo silêncio. Só então, com a voz embargada pela emoção, Anne lhe respondeu:
- Obrigada. Agradeço-lhe de todo o meu coração (suas palavras saíram entrecortadas, por entre lágrimas de ardente gratidão). Nunca hei de esquecer o que o senhor fez hoje por Lucy e por mim.
Uma grande felicidade se apossou de Prescott. Ter feito jus a um reconhecimento tão sincero por parte dela compensara bem todos os seus esforços. Desligou então o aparelho e saiu da cabina.
De volta à entrada lateral do tribunal penetrou numa ante-sala e ali, à sua espera, encontrou Lucy. Ela havia lavado o rosto e parecia agora um pouco melhor. Aquele ar parado e como que aturdido que lhe notara durante o julgamento havia desaparecido em parte. Mas as marcas do seu sofrimento permaneciam ainda nos olhos congestionados, no abatimento e na tristeza da sua atitude. Assim que Prescott entrou, ela levantou-se e, vendo-o aproximar-se, tomou entre as suas mãos a dele a fim de apertá-la. Não pôde falar. Duas lágrimas brotaram-lhe dos olhos e escorreram-lhe pelas faces. Por mais que fizesse, Prescott não pôde conter um impulso de compaixão para com ela.
Segurando-lhe o braço, levou-a apressadamente para fora do tribunal, chamou um táxi e poucos quarteirões adiante pararam num tranqüilo café. Entraram e quando lhes trouxeram o chá que ele pediu Lucy sorveu-o em silêncio, erguendo a xícara com as mãos um tanto trémulas. Só então foi que Prescott lhe dirigiu a palavra.
- Está se sentindo melhor agora?
Lucy ergueu para ele um olhar abatido e respondeu-lhe com voz rouca:
- Estou, sim. Eu estava precisando disto.
Era-lhe impossível tratá-la com aspereza. Sua intenção fora assumir diante dela uma atitude desapaixonada, fora não se envolver mais do que se envolvera, considerando, aliás com justiça, que já fizera bastante. Mas o ar de desalento, a figura arcada e triste de Lucy cortaram-lhe o coração. O que mais o emocionou, porém, foi a sua vaga semelhança com Anne, que ele discernia agora através da trágica expressão de seu rosto pálido. Surpreendeu-se então dizendo-lhe, ainda que em tom um tanto rígido:
- Por favor, não se aflija. Agora está tudo acabado.
- Não está em mim - soluçou Lucy.
- Precisa esquecer o passado e pensar no futuro.
- Que futuro? foi a resposta carregada de desânimo e de desesperança que partiu dos lábios de Lucy. Não posso fazer mais nada. Arruinei minha vida.
Prescott calou-se. Em seguida serviu-a novamente de chá. E quando tornou a falar-lhe, havia em sua voz uma nota mais delicada.
- Você andou muito errada. Ninguém o vai negar. Mas isso não quer dizer que terá de continuar errando.
Lucy levou aos olhos congestos o lenço encharcado.
- O senhor foi muito bondoso quando afirmou em seu depoimento que eu só fizera aquilo que fora mandada fazer. Mas eu fui uma péssima enfermeira. Essa icléia não me sai da cabeça. Aconteceu uma coisa terrível em Shereham, onde comecei minha carreira. (Um soluço inesperado subiu-lhe à garganta, sufocando-a quase.) E agora por cima de tudo me acontece isto - esta horrível desgraça que me teria levado à prisão se não fosse o senhor. Eu nunca deveria ter ido trabalhar na Rolgrave, pois sabia perfeitamente a espécie de ambiente que lá encontraria. Mas eu era estúpida e egoísta. Queria gozar a vida e não pensava na minha carreira.
Houve uma pausa. E então Prescott tornou a falar:
- Por que não começa vida nova?
Lucy lançou-me um olhar apático e derrubou a cabeça.
- Quem me aceitaria agora?
- Tenho uma ideia, volveu Prescott sem mudar de tom. Uma sugestão que talvez valha a pena ser estudada.
Lucy levantou a cabeça lentamente e tornou a olhar para ele. Uma leve esperança brilhou em suas pupilas.
- Será possível que esteja mesmo disposto a ajudar-me? Oh! Não nos iludamos. Sei que o senhor fez tudo o que fez por causa de minha irmã. Mas estaria disposto a fazer ainda mais?
Ele retribuiu-lhe o olhar com uma expressão de franqueza.
- Eu não tinha nenhuma intenção de fazê-lo quando entrei aqui. Mas não sei porque mudei de resolução. Estou realmente com pena de você. E sinto que, se lhe derem oportunidade, você ainda poderá fazer alguma coisa. (Fez uma pausa). Isto é - se você quiser.
Lucy reaprumou o corpo e respondeu cheia de ardor:
- Oh, o senhor sabe que quero! Eu acredito que ainda possa vir a ser uma boa enfermeira, se o tentar. Quando comecei a trabalhar como praticante com Anne, podia ser considerada assim. Eu amava a minha profissão. E no entanto depois desviei-me do bom caminho.
- Poderei ensiná-la a encontrá-lo de novo.
Os olhos dela, perscrutando-lhe o rosto, interrogavam-no em silêncio. Assim, pois, ele prosseguiu:
- Como você diz, não adianta arranjar serviço num hospital ou numa casa particular. É cedo ainda para isso. Você precisa de uma cura mais drástica. De um trabalho realmente absorvente. De um trabalho que a faça esquecer. De um trabalho que tome conta de você e afugente todos os demónios que puderem atormentá-la. (Fez uma pausa e ficou a observá-la com um olhar penetrante). Numa cidadezinha chamada Bryngover, situada nos vales que ficam ao sul do País de Gales, está grassando uma epidemia de meningite cérebro-espinhal. O lugar não tem nada de bonito e muito menos essa moléstia. Mas estão precisando de enfermeiras - precisando tremendamente. Eles dispõem de um serviço assistencial deficiente e o pessoal está todo esfalfado. Lá, eles a aceitariam. Poderei arranjar isso para você. Resta apenas saber se você realmente desejaria ir.
Houve uma súbita interrupção no tráfego lá fora, na rua. O café deserto encheu-se de um repentino silêncio, quebrado apenas pelo tranquilo tique-taque de um relógio de parede. Era como se o futuro de Lucy, seu bem-estar espiritual, todo o equilíbrio de sua vida, estivessem sendo meticulosamente pesados. Por fim, com um gesto decidido que a tornou mais do que nunca parecida com Anne, ela respondeu:
- Quero ir para Bryngover. Quero partir imediatamente.
PRESCOTT despertou na manhã seguinte com um sentimento de alívio e a consciência de ter praticado uma boa ação. Fossem quais fossem os prejuízos que sua conduta pudesse acarretar à sua profissão, fizera o que deliberara fazer. Sentia agora que era preciso deixar amadurecer o prémio que lhe era devido. com um sorriso na ponta dos lábios, fez os planos para o seu dia. Tinha poucos doentes para ver naquela manhã e fiado na certeza de que Miss Melville era sua amiga, iria simplesmente de carro até o Trafalgar, onde apanharia Anne para almoçar. Se ela quisesse, nem precisaria mais voltar para o hospital. Pois resolvera dizer-lhe que a amava.
Vestiu-se com mais capricho que de costume, enfiou um cravo vermelho escuro na lapela e preparava-se para tomar o seu breakfast, quando o telefone o deteve. Era Lowe.
- bom dia - disse-lhe Lowe como quem estivesse com pressa. - Como está se sentindo?
- Esplendidamente.
- Não está arrependido ?
- Em absoluto.
- Nem mesmo depois de ter lido os jornais da manhã ?
- Ainda não os li.
- Ah, bem! (Havia uma leve ironia na maneira de falar de Lowe). Não há dúvida que é um bom sistema de evitar aborrecimentos.
E após uma pausa, acrescentou bruscamente:
- Infelizmente eu é que estava certo, Prescott. Estive com Ogilvy ontem à noite. A sua clínica foi riscada do cardápio governamental.
Houve um silêncio. Por mais estranho que pudesse parecer, as notícias de Lowe não decepcionaram Prescott.
- Nada mais resta a fazer, meu caro - respondeu ele. - Aliás, você já me havia preparado o espírito. Mas isso não altera a minha gratidão a você.
Momentos depois desligava o aparelho. De volta ao seu breakfast, mostrou-se tão animado quanto antes. Comeu com um apetite que há muitas semanas não sentia. Em seguida dirigiu-se ao seu consultório para esperar o seu primeiro cliente. Quase que imediatamente a campainha soou. Mas não era o seu cliente. Era Anne.
Surpreendido, adiantou-se para saudá-la. Ela estava radiante. Tomou-lhe a mão entre as suas e apertou-a fervorosamente. com os olhos brilhantes de emoção começou a agradecer-lhe:
- Não é só pelo fato de o senhor tê-la salvo daquela horrível situação que venho agradecer-lhe. O senhor ajudou-a a recuperar o entusiasmo perdido, deu-lhe o estímulo de que ela necessitava para recomeçar a vida. Aquela ideia de seguir para o País de Gales para prestar serviços como enfermeira, na epidemia que está grassando por lá, foi uma verdadeira inspiração!
- E ela ainda está disposta a ir? Anne sorriu.
- Custei a convencê-la a esperar até hoje à tarde.
- Isso muito me alegra - murmurou Prescott, arrumando alguns papéis sobre a sua mesa.
A beleza do sorriso de Anne, a doçura inesperada da sua presença tinham-no deixado incrivelmente nervoso.
- Vai ser uma árdua missão naturalmente. E perigosa. Ela precisa ter cuidado. Meningite cérebro-espinhal não é brincadeira.
- Toda enfermeira sabe bem disso.
E Anne riu-se, radiante de felicidade, como se dentro dela ardesse um novo entusiasmo.
Ficaram ambos calados por um momento. Depois, sem ousar fitá-la de frente, Prescott falou-lhe em tom cerimonioso devido ao embaraço que sentia:
- Porventura gostaria de ir almoçar comigo hoje? De qualquer modo eu desejava convidá-la. Seria para mim um grande prazer. Tenho tanta coisa a dizer-lhe.
A fisionomia de Anne modificou-se e uma sombra de desapontamento estampou-se nela.
- Sinto muito - respondeu-lhe. - Mas o trem parte para Cardiff à uma e meia.
- Não tem importância. Poderemos almoçar juntos depois que sua irmã partir.
Anne lançou-lhe um olhar de súbito espanto.
- Mas o senhor não compreendeu, Dr. Prescott? Eu também vou.
- Você também vai ? - exclamou ele estupef ato. Anne confirmou com um gesto firme e feliz.
- Miss Melville deu-me permissão - ela foi um verdadeiro anjo! Falei com ela ontem à noite mesmo - assim que Lucy me contou. vou portanto ausentar-me do hospital por um mês inteiro.
- Mas...
Prescott não pôde falar.
-: Nem por sonho eu deixaria Lucy partir sozinha. Justamente agora é que ela necessita de alguém ao seu lado - alguém que a encoraje quando se sentir cansada e deprimida. Além do mais (e tornou a sorrir) como o senhor mesmo disse, há perigo. Que espécie de irmã seria eu se ficasse aqui e a deixasse enfrentá-lo sozinha?
A expressão da fisionomia de Prescott era agora absolutamente séria. Ele a fitava apaixonadamente.
- Por favor, não vá. Tenho um motivo especialíssimo para lhe pedir que não vá.
- Mas eu não o compreendo - volveu Anne intrigada e confusa. - Que espécie de objeção poderá o senhor apresentar-me?
Como explicar-lhe tudo assim de chofre? - pensou Prescott. O fato de Anne estar tão longe de imaginar do que se tratava, tornava a coisa ainda mais difícil.
- Não gosto nem de pensar em vê-la tratando de doentes de meningite cérebro-espinhal - murmurou ele.
- É o meu dever - respondeu-lhe ela. - É o que aprescio fazer de todo o coração. Não há nada que eu deseje mais ardentemente.
Prescott fixou-a com a fronte contraída e sombria.
- Não há nada que deseje mais do que ser enfermeira?
- Naturalmente. É a minha carreira. É a minha vida. Não vê o quanto me sinto feliz? Acho maravilhoso partir com Lucy para Bryngover. E tudo isto devo-o ao senhor!
Um pesado silêncio baixou sobre a sala. Prescott sentia as fontes latejarem-lhe e era como se algo lhe oprimisse o coração. Num rápido instante, toda a descuidada alegria do seu despertar dissipou-se, destruída pelo inconsciente ardor das palavras de Anne. Que grandessíssimo tolo fora ele em suas infundadas ilusões de alcançar um paraíso na terra, em seu antiquado romantismo que o levara a supor-se já dono de um coração de mulher! A vida não obedece a esses padrões novelescos. Uma opressora sensação de autodesprêzo chamou-o dolorosamente à realidade.
- Sim - disse ele por fim. - Compreendo o quanto se sente feliz. Deve ser realmente maravilhoso para você, poder partir. A princípio não percebi bem. Mas agora compreendo.
E acrescentou penosamente, quase com amargura:
- Permita-me ao menos acompanhá-la até à estação.
LA pelas seis horas daquela noite, Anne e Lucy chegaram a Bryngover e desembarcaram na pequena plataforma batida pelo vento. Era uma estranha e abandonada cidadezinha situada entre montanhas no estreito vale do Gower, riozinho de águas sujas e barrentas, poluídas pelo despejo dos resíduos das usinas metalúrgicas existentes em suas áridas margens. Isolada e triste, cercada de terras altas e frias onde o trabalho das minerações abria feias cicatrizes, com filas e filas de casas de operários a confundir-se sob a fumaça de poderosas fornalhas, parecia ter sido o último lugar criado pela mão de Deus,
Foi essa na verdade a impressão de Anne ao deixar a estação com Lucy na velha charrete que encontraram à sua espera. A noite estava escura e havia nela algo de opressivo que a presença constante das montanhas circunjacentes tornava ainda mais intenso. A viagem fora longa e exaustiva. Todavia Anne sentia o coração leve à medida que deixavam a única rua pedregulhada da cidade e entravam na péssima estrada que as conduziria ao seu destino.
Enquanto a charrete rodava, Anne tentou alegremente arrancar algumas informações do cocheiro.
- O.hospital fica muito longe? - indagou ela, inclinando a cabeça contra o vento na direção do homem.
O sujeito que conduzia a charrete era um velho maltrapilho, de chapéu de abas caídas, com um saco de estopa atirado às costas à guisa de impermeável. A princípio, ele pareceu não ter-lhe ouvido a pergunta. Por fim resmungou:
- Cerca de duas milhas. Mas não é um hospital.
- Não é um hospital ? - indagou Anne, olhando-o surpresa.
O velho soltou uma lúgubre gargalhada e explicou :
- É o antigo pavilhão dos bexiguentos. Foi construído há cinquenta anos. Está caindo aos pedaços. É um horrível barracão. Mas é só do que dispomos e temos que nos arranjar com ele.
A primeira visão que Anne e Lucy tiveram desse hospital de emergência foi bem pouco tranquilizadora. com o seu telhado enegrecido de linhas acaçapadas, o velho barracão lembrava um animal escarrapachado num pedaço de chão lamacento. Uma construção mais recente de madeira e asbesto erguia-se ao lado. Era o alojamento das enfermeiras. Foi para essa espécie de rancho que as duas irmãs se dirigiram.
- As perspectivas não me parecem lá muito alvissareiras - observou Lucy com um vago pressentimento.
Anne riu-se.
- Mas temos que enfrentá-las.
Tocaram a campainha. Depois de esperarem algum tempo, uma servente de meia-idade metida num uniforme preto apareceu e mostrou-lhes o quarto onde iriam ficar. Pouco a pouco, sob a ameaçadora combinação do lugar e das circunstâncias, Anne e Lucy tinham esperado encontrar as mais toscas acomodações. Mas aquilo estava muito além da pior expectativa. O estreito cubículo que deveriam partilhar tinha paredes de tábuas, um telhado muito fino sobre o qual a chuva tamborilava fortemente e uma janela com um vidro quebrado. Manchas de bolor no chão e nas paredes indicavam o alto grau de umidade do quartinho.
Enquanto as duas irmãs faziam um silencioso reconhecimento de suas pobres acomodações, soaram passos no corredor de tábuas e uma mulher idosa, de cabelos escuros, apareceu. Cansada e com os olhos sonolentos, o uniforme cinzento a envolver-lhe o corpo arcado, a impressão que ela dava, à primeira vista, era a de estar no fim de suas forças.
- Muito prazer em conhecê-las - disse-lhes ela com um pálido sorriso de boas-vindas. - Sou Miss James - a chefe disto aqui. Fizeram boa viagem? Receio que não achem este quarto muito confortável. Mas estamos tão exaustos, tão horrivelmente, tão horrivelmente exaustos!
Interrompeu por um momento as suas observações desconexas, agitou febrilmente as mãos e Anne notou-lhe um tique nervoso sob o olho esquerdo.
- Encontrarão jantar na sala de estar. Isto é - jantar propriamente não, mas algo que comer. Desconfio, porém, que esteja tudo frio. Estamos tão horrivelmente, tão horrivelmente exaustos! Lá encontrarão também a folha de serviço. Lamento ter que lhes pedir para iniciarem o trabalho esta noite mesmo, mas tenho que fazê-lo. Estamos tão horrivelmente, tão horrivelmente.
Anne adivinhou a repetição desse desanimado estribilho já quase mecânico, antes mesmo que os lábios fatigados da diretora o proferissem pela terceira vez. Houve uma pausa. E então, com outro sorriso apagado, Miss James retirou-se.
Lucy voltou-se para Anne e ponderou com a sobriedade que recentemente adquirira:
- Pobre criatura! Já não sabe mais o que fazer. Anne concordou de cabeça, continuando a examinar o quarto com o olhar.
- Espero que isto aqui não seja horrível demais para você.
Lucy sorriu.
- Minha querida, que importa, se estamos juntas? Não esperávamos vir para cá fazer nenhum piquenique, não é? E agora vou ver se me livro da sujeira daquela estrada de ferro.
As duas jovens lavaram-se o melhor que puderam na única bacia de ferro esmaltado existente e, depois de vestirem os uniformes, atravessaram juntas o corredor, rumo à sala onde deveriam jantar.
Um simples olhar de relance mostrou-lhes a magra e repugnante refeição que as aguardava. Sobre um aparador havia um pedaço de carne de lata, um pão e um naco de queijo com aspecto de sabão. A servente que as havia recebido trouxe duas canecas de chocolate morno. A mesa de madeira tosca à qual se sentaram estava toda manchada e cheia de migalhas de pão. Não havia outras enfermeiras na sala, nem o menor indício de ordem ou rotina. Aparentemente a desorganização era tal que as refeições eram tomadas a qualquer hora, sem a menor preocupação de regularidade.
Sentaram-se à mesa e começaram a tomar o chocolate. - Minutos depois ouviram rumor de passos no corredor e uma turma de enfermeiras entrou na sala. Chegaram em silêncio, exaustas em consequência das longas horas de trabalho. Mal olharam para as duas recém-chegadas tratando logo de servir-se do pouco que havia ali para comer. Seus uniformes, pela variedade de tipos, indicavam que tinham vindo de diversos hospitais.
Desejosa de conhecer bem a realidade da situação, Anne não desanimou ante a indiferença com que foram acolhidas. Sentara-se ao seu lado uma colega mais velha com uma fisionomia franca e bondosa. Anne não tardou a trocar com ela um olhar e a sorrir.
- Teve um plantão muito longo? - perguntoulhe amavelmente.
A enfermeira respondeu afirmativamente de cabeça.
- Nós acabamos de chegar - volveu Anne. Estamos querendo ver se obtemos algumas informações.
Houve um silêncio. A outra enfermeira, cujo sobrenome era Davies, parecia ser pouco comunicativa. Não resistiu porêm às tentativas de aproximação de Anne. Pouco depois, fazia a meia voz um breve mas elucidativo resumo da situação de Bryngover.
Havia ali, naquele simulacro de hospital, cinquenta e quatro casos de meningite cérebro-espinhal e esse número crescia diariamente. A moléstia, sob uma forma virulenta, fora trazida àquela zona por um marinheiro vindo das docas de Cardiff. Logo após a sua chegada o homem adoecera e morrera atacado pelo terrível mal. Desde então já haviam enterrado mais quarenta pessoas.
A princípio o povo do lugarejo encarou os fatos com uma certa apatia. Mas depois o caráter mortal da moléstia foi reconhecido e toda gente se enchera de pavor. Em determinados bairros reinava uma situação quase de pânico. As portas mantinham-se trancadas, as escolas suspenderam as aulas, as mães recusavam-se a permitir que seus filhos saíssem à rua e a cidade transformou-se num lugar maldito.
Mas, além dos limites imediatos dessa área dominada pelo pânico, pouca gente admitira a gravidade do surto epidêmico. O resultado disso é que a cidade teve que lançar mão dos seus próprios e miseráveis recursos, acrescidos de um pequeno número de enfermeiras vindas de centros mais adiantados.
Recentemente fora feito um apelo às altas autoridades sanitárias do país, as quais enviaram de Londres à zona atingida pela epidemia um médico comissionado - o Dr. Hespley. Esse funcionário, como o chamava em tom desdenhoso a enfermeira Davies, revelara não passar de um burocrata de marca registrada, cujo principal objetivo - de acordo com as instruções da repartição - era impedir que fosse feita grande publicidade em torno da epidemia.
Os médicos locais, embora prejudicados pela falta de recursos, estavam se desincumbindo nobremente da parte que lhes tocava, especialmente o velho Dr. Forrest, precioso diamante em bruto que, a despeito da tentativa de intervenção de Hespley, era virtualmente o chefe dos serviços médicos. Fora ele quem diagnosticara o primeiro caso de meningite, fora ele o primeiro a mandar vir o soro. Houvesse Miss James dado mostras de possuir um pouco da sua fibra e da sua coragem, e por certo já haveria esperanças de ver diminuído o surto da epidemia. Mas a velha diretora, cujas funções em tempos normais eram as de visitadora sanitária em Bryngover, tinha pela frente uma tarefa muito superior às suas forças. Coitada! A luta e o excesso de trabalho iam-na arrasando rapidamente.
Anne e Lucy ouviam com profundo interesse o relato da enfermeira Davies. Quando ela acabou de falar, fêz-se um súbito silêncio. Foi Lucy quem primeiro tornou a falar, expressando em poucas palavras os seus sentimentos.
- Acho que quanto mais depressa assumirmos nossos postos na enfermaria e dermos início ao trabalho, melhor.
Anne lançou à irmã um rápido olhar de afetuosa aprovação. Confortava-lhe o coração ver Lucy tão ansiosa por começar a trabalhar, tão ardentemente resolvida a se pôr à prova.
Deixando a mesa, as duas jovens saíram do alojamento e correram através da chuva e da escuridão para o hospital improvisado. Haviam sido ambas destacadas para trabalhar na enfermaria do andar térreo.
Era uma enfermaria comprida e baixa, fracamente iluminada por três lampiões de querosene protegidos por quebra-luzes. Os leitos estavam dispostos tão juntos uns dos outros que seus cobertores vermelhos formavam duas longas linhas ininterruptas. A enfermaria não estava apenas superlotada - o seu aspecto era caótico e parecia reinar ali uma inenarrável confusão. A ideia que se tinha era a do convés de uma fragata em ação - empenhada numa desesperada e febril batalha contra a morte. Sobre uma mesa central viam-se bolsas de gelo vazando água, vidros destapados em desordem, papeletas esparsas e alguém derrubara um biombo e deixara-o caído contra a parede em vez de endireitá-lo.
O olhar experiente de Anne percorreu de relance a cena com uma expressão compreensiva. Compreendia as dificuldades e as emergências que a situação devia apresentar, mas nenhuma dificuldade, nenhuma emergência era razão para deixarem a enfermaria naquele estado. Não fez nenhum comentário para a enfermeira que acabava de deixar o plantão. Nem tampouco deu a Lucy nenhuma instrução. Começaram apenas, de comum acordo, a repor em ordem a enfermaria.
Foi um trabalho árduo e ainda mais árduo foi tomarem pé em meio àquele caos. Um armário de roupas de cama estava vazio, outro, cheio de lençóis úmidos. Não encontraram um só cobertor de reserva. Estavam com falta de desinfetante, de iodo e outros medicamentos. Em silêncio, Anne fez uma lista do material que precisavam requisitar. A despeito de tudo, entretanto, lá pelas dez da noite, após duas horas de contínuo labor, conseguiram transformar de maneira notável o aspecto da enfermaria.
E justamente quando Anne se preparava para fazer sinal a Lucy a fim de irem arejar um pouco, a porta escancarou-se e um homem entrou na enfermaria. Era um velho grandalhão e desengonçado, com uma basta cabeleira grisalha urgentemente necessitada de corte, metido numa roupa de tweed muito ordinária e malfeita e em cujo rosto congesto, enrugado e carrancudo brilhavam dois olhos inteligentes. Pela descrição da enfermeira Davies, Anne reconheceu logo nele. o Dr. Forrest.
A entrada de Forrest fora abrupta. Mas ao deparar, com a enfermaria tão mudada, na mais absoluta tranquilidade e ordem, o velho médico estacou. Relanceou o olhar em torno, sem que nada escapasse ao seu enérgico e intenso perscrutar. Finalmente seus olhos pousaram em Anne e Lucy. Não fez nenhuma observação relativa à melhora de condições da enfermaria, não lhes dirigiu nenhuma palavra de aplauso, nenhum elogio. Fitou-as algum tempo em silêncio e então falou-lhes com o seu vozeirão:
- Chegaram agora, não foi? De onde vieram?
- De Londres - respondeu-lhe Anne com o mesmo laconismo.
O velho médico limitou-se a fazer um ríspido movimento de cabeça. E dando um rápido passo à frente, resmungou:
- Acompanhem-rne. Ambas. Há muito trabalho aqui para duas boas enfermeiras. E graças a Deus vocês parecem melhores do que os estafermos que temos aqui.
E os três percorreram a enfermaria, visitando juntos os doentes.
NEM Anne nem Lucy nunca haviam tratado de um caso de meningite cérebro-espinhal. Estavam ambas habituadas a lidar com infecções comuns, mas agora iam conhecer a força devastadora de uma moléstia contagiosa que ultrapassava em horror e malignidade as piores doenças tropicais. Muitos dos casos de meningite verificados em Bryngover apresentavam a forma apoplética. O infeliz indivíduo atacado pelo mal, aparentemente bem disposto, via-se de súbito acometido de violentos tremores de frio, dores de cabeça e horríveis convulsões. Sobrevinha um estado de estupor. E vinte e quatro horas depois a morte era fatal.
Nem todos os casos eram tão fulminantes. Mas a grande maioria deles oscilava entre a vida e a morte. O Dr. Forrest, que conhecia a história da moléstia, não procurou iludi-las quanto à sua média de mortalidade. Falou-lhes no surto de Belfast em 1908, quando de 725 casos 548 foram fatais e da epidemia de Nova York, em 1904, quando mais de metade dos mil indivíduos atacados pelo mal baixaram à sepultura.
Anne preocupava-se tão intensamente que não conseguia dormir à noite. Sabia perfeitamente bem qual a causa original da ineficiência da enfermaria. Miss James era uma mulher bem intencionada, mas não estava em absoluto em condições de assumir o comando numa crise daquelas. Se continuava em Bryngover era exclusivamente devido à arbitrária autoridade do Dr. Hespley. Miss James, como ele próprio, era funcionária do Ministério da Saúde. De nada adiantavam os estrilos e descomposturas do Dr. Forrest. Para uma mentalidade preocupada apenas com aposentadorias, promoções e com a colocação de vistos impecáveis nos relatórios destinados à sua repartição, dispensá-la era algo que não lhe passava pela cabeça.
Eis, porém, que doze dias depois da chegada de Lucy e de Anne, a Providência interveio na situação da forma mais tranquila e menos teatral. Miss James não aguentou mais.
A coisa se passou no hall da entrada durante a sua conferência matutina com o Dr. Forrest e o Dr. Hespley. Ela acabava de apresentar o seu relatório
- quatro casos novos e três óbitos durante a noite quando comprimiu as têmporas com as mãos e gritou histèricamente:
- Minha pobre cabeça! Estou tão exausta, tão horrivelmente exausta! Eu acho... eu acho que vou enlouquecer.
- O que aconteceu? - gaguejou o Dr. Hespley.
- A senhora está se sentindo mal?
- Não estou sentindo coisa nenhuma - berrou a mulherzinha. - Acontece é que não aguento mais. Não é possível. Preciso de um descanso. Ou voume embora ou enlouqueço!
O Dr. Forrest agarrou com as duas mãos a oportunidade. Menos de uma hora depois Miss James, de malas feitas, tomava o trem para Swansea e ele debatia com Hespley "Lrquestão da escolha da sua substituta.
- vou notificar imediatamente a minha repartição - declarou Hespley. (Ele era um sujeito alto, seco, meticuloso, de pince-nez de aro de ouro encarapitado no cavalete do nariz). Lá pelo fim da semana eles nos arranjarão uma substituta.
- Já temos uma aqui - anunciou Forrest sem rodeios.
Hespley arqueou as sobrancelhas.
- Desculpe-me, mas não sei onde quer chegar.
- Não é necessário - explicou Forrest impaciente. - Vamos entregar a direção dos serviços de enfermagem à enfermeira Lee. Ela está muito acima das outras. Isto é um assunto resolvido, Hespley
- é só o que lhe digo. E se desta feita você vier criar-nos dificuldades, mando-o em linha reta para o inferno!
Forrest não esperou pela resposta do outro médico. Saiu e foi levar a notícia a Anne. Encontrou-a como de costume na sua enfermaria.
- Bem! - exclamou com a sua fisionomia habitualmente carrancuda. - Quero ser o primeiro a felicitar a nossa nova diretora.
Anne ficou imóvel, o olhar distante, um leve rubor nas faces, estranhamente emocionada ao ter conhecimento do que a esperava. Até que afinal via-se à testa de uma comunidade de enfermeiras até que afinal poderia realizar o que durante toda sua vida sonhara e esperara.
- Por que não fala, mulher? - indagou com aspereza. - Por que não me diz o que deseja fazer?
- Eu sei o que desejo fazer, Doutor Forrest respondeu-lhe Anne lentamente. - A questão é saber se terei permissão para fazê-lo.
- Mas é claro que terá! - afirmou ele em tom quase gritado. - Eu a apoiarei em tudo. Estou farto dos métodos confusos de Hespley. Eu e você vamos fazer isto aqui funcionar como deve funcionar.
Havemos de dar cabo da epidemia ainda que para isso ela tenha que dar cabo de nós.
Anne sentiu-se invadida por um cálido entusiasmo. Traçou rapidamente o seu programa. Meditara tanto sobre ele durante as suas longas noites de vigília que já estava tudo pronto em sua mente.
- Preciso de mais enfermeiras, doutor. Sei como obtê-las. vou reduzir o plantão das nossas enfermeiras de onze horas para oito. Quero também destacar algumas delas para um serviço de visitas domiciliares. O principal é proporcionarmos a elas melhores acomodações e melhor alimentação. Tudo depende de uma enfermagem eficiente no tratamento dessa moléstia. Ninguém pode pretender ter enfermeiras altamente eficientes, subalimentando-as, alojando-as mal e permitindo que o excesso de trabalho as esgote. Passamos estes últimos quinze dias a restos de comida fria. Isso é absolutamente contra o bom senso e a razão. Por que motivo hão de dar a enfermeiras um tratamento pior do que se elas fossem ajudantes de cozinha? Quero que as nossas enfermeiras tomem sopas quentes e recebam boa alimentação. Hei de descobrir uma cozinheira em alguma parte e a primeira coisa que vou fazer é reorganizar a cozinha. E quero providenciar acomodações fora daqui. Algumas das enfermeiras ainda têm que permanecer naquele abominável barracão, segundo creio. Mas quero dar às outras melhores instalações
- onde possam descansar. Já tenho tudo planejado. Há um pequeno hotel de veraneio nos arredores da cidade. Está praticamente vazio no momento e embora seja antiquado é uma construção sólida e confortável. Desejo requisitar esse hotel, doutor. Quero ter carta branca para lidar com o merceeiro, com o açougueiro, com o leiteiro e o farmacêutico. Prometo-lhe não desperdiçar coisa alguma. Estou pensando apenas em obter o essencial - suprimentos de guerra para as minhas enfermeiras. Só que esta guerra destina-se a salvar vidas e não a destruí-las!
Interrompeu-se quase sem fôlego, receosa de tê-lo aborrecido com tanto falatório. O Dr. Forrest manteve-se calado durante todo um minuto, a verrumá-la com os seus olhinhos miúdos e penetrantes. Depois, estendeu serenamente o braço e deu-lhe um demorado e firme aperto de mão.
- Minha cara - disse-lhe ele em tom singularmente brando. - Estarei ao seu lado - até o fim.
Anne pôs o casaco e correu até a cidade para providenciar os seus novos arranjos. Sua primeira visita foi ao correio. Ali passou dois telegramas. Um, a Susan Gladstone, secretária da "Associação das Enfermeiras", pedindo-lhe seis enfermeiras especialmente selecionadas. O outro, nos nomes de Nora e Glennie, destinado a Manchester, rogando-lhes que movessem céus e terras e viessem reunir-se a ela.
O conflito com o Dr. Hespley não tardou a surgir. Foi rápido e decisivo. Na tarde daquele mesmo dia em que o Dr. Forrest deu toda a autoridade a Anne, ele chamou-a ao seu pequeno escritório contíguo ao hall da frente e em tom protetor confirmou a sua nomeação. Anne agradeceu-lhe delicadamente mas não fez a menor menção aos seus planos.
Na manhã seguinte, entretanto, quando o leiteiro chegou ao hospital, saindo logo depois, ela recebeu um chamado urgente do escritório. Hespley lá estava com uma expressão contrariada na fisionomia e uma tira de papel na mão.
- Que significa isto, Miss Lee? - interpelou-a.
- Um latão extra de leite hoje cedo. Eu não pedi aumento de leite para os doentes.
- Não é para os doentes, doutor - respondeulhe calmamente Anne. - Fui eu quem pediu esse leite para as enfermeiras.
- Para as enfermeiras? - murmurou ele perplexo.
- Sim senhor, Doutor Hespley. Hoje elas vão saborear um verdadeiro pudim de leite, em lugar do que costumam fazer aqui com um pó amarelo e água suja.
- Mas olhe aqui... ia protestando o médico.
- Um exército de estômago vazio não pode combater, Doutor Hespley - interrompeu-o Anne sorrindo. - E as minhas enfermeiras estão na linha da frente.
A voz de Hespley tornou-se um tom mais alta.
- Saiba que a senhora não pode agir sem minha autorização.
- Posso, sim, Doutor Hespley. E vou agir. E não será só quanto ao leite. Pretendo fazer muito mais do que isso.
Serenamente e sem se perturbar, expôs-lhe então tudo o que se propunha fazer.
Hespley arregalou os olhos para ela com uma expressão a um só tempo estupefata e enraivecida.
- A senhora não pode fazer nada disso. Pelo que vejo está com o juízo fora do lugar. Não dispomos das devidas ordens.
- Durante as próximas semanas eu não pretendo preocupar-me muito com as devidas ordens respondeu Anne inalterável.
A essa altura, o mau génio de Hespley levou a melhor sobre a sua dignidade e uma súbita onda de sangue subiu-lhe até à raíz dos cabelos.
- Mas isto é um absurdo! - estrilou ele. - A senhora não me deixa outra alternativa, Miss Lee. Além de incorrer em grave desobediência, a senhora está sendo insolente. Seria melhor que arrumasse suas malas e fosse embora.
Anne meneou a cabeça, com obstinação.
- Oh, não, Doutor Hespley, eu não vou-me embora.. Antes de ir ainda tenho muito que realizar aqui. Por favor, vamos trabalhar juntos. Será tão melhor para todos.
Enfurecido com a calma da sua atitude, Hespley replicou:
- A senhora se esquece de que acabo de dispensá-la.
Nesse momento a porta abriu-se e o Dr. Forrest entrou. De relance compreendeu a situação e dando um passo à frente postou-se ao lado de Anne.
- Não seja idiota, Hespley. As coisas aqui têm que entrar nos eixos. Você não pode impedi-lo.
Hespley ficou branco como uma folha de papel e suas mãos começaram a tremer.
- Agora compreendo - balbuciou com voz sufocada. - É uma conspiração contra mim.
- Conspiração uma ova - rugiu Forrest. Trata-se simplesmente de uma medida de bom senso. Tudo o que lhe peço é que não seja tão burro.
- E quem vai pagar tudo isto ? - gemeu Hespley.
- O seu abençoado Ministério pagará. E se não pagar sairemos pedindo esmolas pelas esquinas
- eu e Miss Lee. Cantaremos, faremos discursos, "plantaremos bananeiras" até que o povo se ponha em brios e pague o que devemos.
Houve uma longa pausa, após a qual Hespley levantou as mãos num gesto de fraqueza.
- Parece que não tenho outra alternativa murmurou.
Forrest, com seu temperamento brusco e mal-humorado, teria deixado as coisas nesse pé e se retirado de maneira rude, levando as palmas da vitória. Mas Anne, além de mais bondosa, possuía uma visão mais larga. Inclinou-se persuasivamente e fez a única observação capaz de rehiduzir Hespley a cooperar com eles.
- Pense que grande coisa será para o senhor, Doutor Hespley, se conseguirmos debelar rapidamente a epidemia.
Seguiu-se outra pausa mais prolongada e menos sombria.
- Sim - concordou Hespley, com um brilho úmido no olhar pusilânime. - Isso é verdade. Daria um maravilhoso imoiilso na minha carreira.
Anne deixou a sala com a feliz sensação de não ter feito de Hespley um inimigo. À hora do almoço a sua satisfação aumentou. Foi para ela uma alegria servir às enfermeiras uma refeição quente e apetitosa. A cozinha já havia sofrido uma reforma completa. Mrs. Lewis, mulher de um mineiro, a quem se apressara em colocar como cozinheira fiada nas ótimas referências que dela tivera, estava justificando plenamente o bom conceito em que era tida.
Naquela noite as seis novas enfermeiras enviadas pela "Associação" chegaram. Anne foi pessoalmente mostrar-lhes as confortáveis acomodações que lhes reservara no Temperance Hotel. E sem mais demora pôs em prática o seu plano dos plantões de oito horas.
A inovação provocou uma reação incrível. Nunca mais a sua equipe deu mostras de cansaço excessivo. Anne passou a ver sorrisos nos rostos de suas enfermeiras e a ouvir risos em sua mesa. Sua bondade, seus generosos esforços, inspiraram idêntica dedicação e lealdade correspondente. Surgiu um novo senso de alacridade e o próprio ar como que se tornou mais vivo. Ao cabo de poucos dias Anne deu um grande suspiro e rendeu graças a Deus. Sua equipe estava funcionando maravilhosamente - não era mais um grupo de indivíduos apáticos, mas uma falange unida e combativa.
NA segunda-feira seguinte Nora e Glennie chegaram. De algum modo haviam conseguido a desejada permissão. Fora um verdadeiro milagre terem persuadido a "Pugilista" a ceder. Anne roubou uma preciosa meia hora e foi com Lucy esperá-las na estação de Bryngover.
Foi um encontro como nenhuma delas jamais sonhara, na plataforma exposta ao mau tempo, tendo ao fundo a cidadezinha escura e como que amedrontada, o que nem por isso prejudicou o seu caráter afetuoso. Nora, principalmente, abraçou-se com Anne e não queria mais separar-se dela. Quando por fim a soltou, exclamou:
- Talvez não me permitam fazer mais isso. Você agora é uma personagem demasiado importante, Anne Lee. Diretora do Hospital de Emergência de Bryngover.
- Estou preparada para ajoelhar-me todas as vezes que ela entrar na enfermaria - declarou Glennie com nonchalance (1). - Genuflexões em louvor de Santa Anne.
- Isso não basta - volveu Nora piscando os olhos com a sua costumeira brejeirice. - Você terá que deitar-se no chão e deixá-la passar por cima.
Anne riu-se.
- Se tentarem semelhante absurdo serão dispensadas incontinente. Vamos, agora. Onde estão suas malas? Este velho ônibus, tipo caranguejola, é nosso. Acabo de comprá-lo. As enfermeiras batizaram-no de "Epidêmico Especial".
Rindo e conversando, as quatro enfermeiras embarcaram no antiquado veículo e partiram. Embora isso nem lhes passasse pela mente, pagavam um alto tributo à sua profissão. com risco das próprias vidas, iam tratar de uma moléstia mortal. Faziam-no, entretanto, com a maior alegria, com a mais risonha e inquebrantável coragem.
Chegadas que foragi ao hospital, tão grande foi a alegria de Anne por poder rever suas velhas amigas, que se permitiu, por uma única vez, os privilégios
(1) Displicência - Em francês, no original (N. da T.)
da sua nova posição. Mandou servir em seu quarto um chá em grande estilo para as quatro. Foi uma alegre reunião.
- Cáspite! - exclamou Glennie, que havia muito tempo não comia tanto. - A bóia aqui é sempre assim?
- Vocês deviam tê-la provado quando chegamos - aparteou Lucy. - A diferença era enorme.
Glennie submeteu Lucy a um atento exame e depois sacudiu a cabeça com um ar de aprovação.
- A caçula Lee parece-me uma ótima pequena
- observou judiciosamente, servindo-se de mais uma fatia de bôlo-esponja. - De minha parte, sinto-me contentíssima por tê-la conhecido.
Por mais estranho que possa parecer, foi Anne quem corou. Era-lhe indizivelmente grato verificar que suas duas melhores amigas haviam simpatizado de maneira tão pronta com a sua irmã. E era, além do mais, uma prova da mudança que se operara em Lucy. Quando o chá terminou, Anne procurou reter Lucy um pouco mais atrás e disse-lhe com certo embaraço :
- Você não imagina como estou contente por verificar que você, Nora e Glennie fizeram tão boa liga. Será ótimo para você, agora, fazer-lhes companhia. Reservei um quarto amplo e maravilhoso para vocês três no hotel.
- No hotel? - repetiu Lucy intrigada.
- Sim - confirmou Anne. - Lá é infinitamente melhor do que neste barracão. Tenho andado muito preocupada por causa do seu quarto aqui. É um quarto úmido e horrível, bem capaz de provocar uma pneumonia numa criaturinha como você.
- E você - vai passar também para o hotel? 235
- Oh, não. Eu tenho que ficar aqui. Lucy sorriu tranquilamente.
- Nesse caso eu também fico. - E antes que Anne tivesse tempo de protestar, continuou: - Você então pensa que vou deixá-la neste pardieiro para ir instalar-me confortàvelmente em qualquer outro lugar? Não, muito obrigada, querida. Minha maneira de pensar hoje em dia é muito diferente. Além do mais, se você me mandasse para o hotel, iriam todos dizer que você estava me favorecendo pelo fato de eu ser sua irmã. Em suma - se deseja saber a verdade é que quero ficar junto de você.
Os olhos de Anne nublararn-se. Profundamente emocionada, não insistiu mais. Limitou-se a dizer:
- Mas há outra coisa. E nesse ponto você não pode discutir. Agora é a minha vez de falar. Não se trata de nenhum favoritismo, mas sim de verdadeiro merecimento, Lucy. Você tem trabalhado maravilhosamente desde que chegamos aqui. Na minha opinião, você é a melhor enfermeira daqui. Já conversei sobre isso com o Doutor Forrest e ele concordou. Lucy, nós vamos inaugurar outra enfermaria no primeiro andar - para crianças. Queremos isto é, eu quero que você seja a enfermeira-chefe encarregada da nova enfermaria.
Lucy juntou as mãos, tão emocionada que por um instante não pôde falar. Por fim disse em voz baixa:
- Obrigada, Anne. É a melhor notícia que já recebi em toda a minha vida.
A nova enfermaria de crianças inaugurara-se e a nova enfermeira-chefe assumira o seu posto. Anne sentia o coração dilatar-se de satisfação ao ver Lucy em seu novo uniforme, tão séria e compenetrada, tão consciente de suas responsabilidades e tão ansiosa por cumprir o seu dever.
Havia talvez umas vinte crianças na enfermaria - dois quartos do andar superior que se comunicavam um com o outro e que foram rapidamente transformados e adaptados. Várias crianças, transferidas da enfermaria geral do andar inferior, encontravam-se já em período de convalescença. As outras, embora em estado grave, melhoravam aos pouquinhos e davam esperança de restabelecer-se. Havia, porém, uma exceção. Um dos doentinhos achava-se desenganado. O Dr. Forrest achava que ele não duraria mais uma semana.
Não havia nada de deprimente para uma enfermeira-chefe no fato de em vinte casos um ser considerado perdido. Levando em conta a violência da epidemia era até uma porcentagem animadora. Todavia, Lucy, por alguma estranha razão, não se mostrava contente. Uma expressão de ansiedade sulcava-lhe a fronte, conservava-se calada e todas as suas energias pareciam concentradas naquela única criança mortalmente enferma.
Isso tornou-se tão visível, que Anne não pôde deixar de notá-lo. E naquele dia, apenas quatro semanas após a promoção de Lucy, ao entrar na enfermaria, deteve-se ante o inesperado do que seus olhos viam. Lucy passava delicada e regularmente uma esponja no corpinho da criança, num esforço destinado a fazer baixar a temperatura.
Não havia nada de anormal nesse ato rotineiro. O estranho era que Lucy, como enfermeira-chefe, com duas enfermeiras ao seu dispor na enfermaria, estivesse ela própria fazendo aquilo.
Postada ao lado dos biombos, de maneira a que não pudesse ser vista, Anne observava os movimentos de Lucy e quanto mais olhava para ela mais se convencia de que por trás de tudo o que Lucy fazia se ocultava uma grande ternura e um motivo secreto muito profundo. A maneira pela qual ela tratava da criança encerrava toda a amorosa intimidade de um contato materno. A criança era uma meninazinha de quatro anos, filha única de um casal de nome Hedley - gente muito boa. Anne relembrou a angústia dos pais quando a criança foi internada. Fora uma cena dolorosa. Ainda agora tom Hedley, incapacitado de executar o seu trabalho costumeiro numa fundição de aço local, passava a maior parte dos dias andando de um lado para o outro, fora do hospital, à espera de noticias da sua pequenina Gracie.
Não havia dúvida que, apesar dos devastadores efeitos da febre, das placas rubras que lhe manchavam a delicada epiderme, da contração que lhe endurecia a cabeça, Gracie Hedley era uma linda criança, ainda mesmo que seus finos cabelos crespos e dourados tombassem empastados sobre o travesseiro. Contemplando a menina desacordada, Anne sentiu reviver em sua memória uma pungente recordação. Não sabia explicar como nem por que, talvez por mera coincidência, mas o caso é que havia uma estranha semelhança entre aquela criança moribunda e o meninozinho que morrera de difteria em Shereham.
De relance, Anne compreendeu tudo. Lucy, tocada também por essa semelhança, empenhava-se numa luta sem esperanças para salvar mais aquela vida, já abandonada pelo Dr. Forrest, que ia mergulhando insensivelmente nas sombras da eternidade.
Um sulco de preocupação contraiu a fronte de Anne. Receava instintivamente o efeito psicológico, a decepção do inevitável fracasso por parte de Lucy. Notou também que Lucy estava segurando a criança mais junto dela do que era necessário, expondo-se insensatamente ao contágio, contra o qual todas as enfermeiras haviam sido prevenidas no sentido de tomarem severas precauções.
Súbito, como houvesse acabado de banhar a doentinha, Lucy voltou-se e deu pela presença de Anne. Enrubesceu mas não disse nada, continuando simplesmente a enxugar como todo o cuidado a criança, para tomar-lhe de novo a temperatura.
- Baixou um grau - murmurou tristemente, olhando para o termómetro que registrava a alarmante temperatura de 40 graus. - Estou lhe dando banhos de hora em hora. É o único meio de combater a febre.
Anne manteve-se em silêncio, relutando ante o ímpeto de intervir. Por fim, sugeriu em tom casual:
- Por que não deixa a enfermeira Renton cuidando um pouco dela?
Lucy apertou os lábios.
- Este caso está sob os meus cuidados. Faço questão disso.
Que poderia Anne dizer? Quedou-se hesitante e afinal arriscou-se a dizer o mais delicadamente que pôde:
- Desconfio que o Dr. Forrest não está muito esperançoso.
Os lábios de Lucy tornaram-se mais lívidos e mais obstinados. Sua voz tremeu.
- Pois eu ainda não perdi a esperança. Tudo agora depende da enfermeira. É por isso que estou fazendo tudo eu mesma.
Anne sacudiu a cabeça em sinal de simpatia e de compreensão. Mas antes de afastar-se do biombo, fez em voz baixa e em tom fraternal uma última recomendação:
- Cuidado com o contágio, por favor, querida Lucy!
Lucy quase sorriu.
- Você devia dizer isso a si própria, Anne Lee. Você nunca em toda a sua vida se deu ao trabalho de evitar um micróbio.
Depois que Anne deixou a enfermaria, Lucy voltou, como que atraída por uma força irresistível, para junto do berço de Gracie Hedley. Sentou-se ao lado dela e ficou observando a sua respiração difícil, as contrações angustiosas de seu rostinho magro e sombrio. Seu olhar era calmo, intenso, mas desesperadamente tenaz. A pobre criança estava em estado de coma. Dentro de quarenta minutos darlhe-ia novo banho de esponja. Que dissessem o que entendessem. Não a deixaria, não permitiria que ela morresse.
Chegou o dia seguinte, e o outro, e depois o sábado. Escoou-se o fim da semana. E Gracie Hedley ainda respirava, sua vida pendia ainda de um ténue fio.
O Dr. Forrest declarava-se intrigado. Mas continuava a não alimentar esperança alguma. Mesmo assim deu ordem para que dobrassem a dose das injeções intra-espinhais de soro. Ao afastar-se do berço, lançou a Lucy um curioso olhar interrogativo. E detendo-se por trás dela, perguntou-lhe:
- Que está tentando fazer, enfermeira-chefe ? Provar que está certa e que eu é que estou errado?
Mas Lucy não se abalou. Alheia a tudo, embora presa de singular e fortíssima tensão, redobrava seus esforços quase sôbre-humanos para salvar a criança.
Na manhã seguinte - têrça-feira já - o Dr. Forrest passou longo tempo com a meninazinha, que continuava inconsciente. Declarara ele, arrepelando com a mão a cabeleira num gesto de perplexidade, que se Gracie resistisse à crise nas próximas vinte e quatro horas, positivamente se salvaria. Mas acrescentou em tom rude que na sua opinião essa crise seria fatal.
Vinte e quatro horas! com os olhos no relógio, Lucy reuniu suas últimas reservas de energia. Os segundos passavam num lento tique-taque e os minutos se arrastavam. Bem ou mal, o dia ia se findando. Havia quase doze horas que Lucy não arredava pé da enfermaria. Entretanto, indiferente a todas as advertências de Anne, resolveu passar também a noite ali. Era o último reduto, a exaustiva reta final da corrida que apostara com a morte.
E por isso, quando escureceu e os lampiões foram acesos, Lucy continuou a velar ao lado do bercinho. Não tinha nenhuma sensação de cansaço. Sentia-se leve, imune à fadiga, invadida por uma força predestinada que nada podia abalar.
Durante todo aquele dia, Gracie dera a impressão de estar resistindo bem à crise. As contrações musculares haviam-se tornado menos frequentes, a paralisia ocular menos acentuada. Mas naquele momento, à medida que as sombras da noite se adensavam, tudo indicava que o resto de suas débeis forças principiavam a abandoná-la. Começou a respirar com um leve estertor e sua temperatura subiu de repente. E o pior de tudo é que sua cabecinha, impelida para trás pelas convulsões, ficara entalada entre as suas frágeis omoplatas.
Lucy não tirava por um momento sequer os olhos da criança moribunda. Sem interromper os cuidados que continuava a ministrar-lhe, seu olhar permanecia cravado nos olhinhos estrábicos e sem luz da infeliz menina. Segurava entre as suas a mãozinha inerte. Era como se transmitisse àquele corpinho macilento uma poderosa e implacável corrente de energia vital.
Lá pelas duas horas da madrugada a respiração de Gracie começou a faltar. E seu pulsinho, sob os dedos de Lucy, fora enfraquecendo pouco a pouco, tornando-se quase imperceptível.
O rosto de Lucy tornou-se mortalmente pálido, como se também ela fosse expirar. Iria ela fracassar, na undécima hora, depois de tudo o que fizera? Seu cérebro dilatou-se, fazendo repentinamente em pedaços o imaginário círculo de ferro que o comprimia. Ela inclinou-se para a frente com um movimento frenético e erguendo aquele corpinho esquálido colou desesperadamente sua própria boca aos lábios quase sem vida da criança, enchendo-lhe os pulmões paralisados com o próprio hálito. Depois iniciou com a máxima presteza os movimentos da respiração artificial.
Quanto tempo levou nisso, ser-lhe-ia impossível saber. Mas houve um momento em que parou. A criança voltara a respirar, leve mas regularmente. E, como que por milagre, gotas de suor brotaram-lhe da fronte.
com dedos trémulos, Lucy procurou o seu termómetro. Mal conseguia ler a temperatura. Mas quando o fez quase gritou. A febre caíra. Apanhou então rapidamente a pipeta com que a doentinha era alimentada e pingou algumas gotas de solução de peptona na língua de Gracie. Seu coração deu um salto quando viu a menina deglutindo naturalmente. A respiração tornou-se mais forte assim como o pulso. A temperatura baixou mais um grau. A segunda dose de alimento foi tomada com maior facilidade. E quando os primeiros albores da aurora se filtraram através da persiana, Gracie abriu os olhos, pousando em Lucy um olhar lúcido e inteligente. Não podia falar - ainda era cedo para isso. Mas em suas pupilas brilhava uma centelha de vida e de compreensão. A crise fora vencida afinal afinal! Uma onda de violento júbilo inundou o coração de Lucy. Lágrimas ardentes, lágrimas de sublime alegria, cegaram-na. Suas mãos unidas ergueram-se numa prece de gratidão. Depois, levantou-se cambaleante e abriu a persiana. Lá fora, encostado ao muro fronteiro, em angustiada vigília, os olhos erguidos para ela, estava tom Hedley. Lucy fez-lhe um gesto de descontrolada alegria. E como ele se adiantasse em clireção à porta, correu-lhe ao encontro. E ali, na entrada do hospital, enquanto lhe dava a grata nova, a luz do sol nascente os envolveu.
O restabelecimento da pequenina Gracie Hedley provocou um feliz alvoroço em todo o hospital, tanto mais que coincidiu com o declínio geral do surto edipêmico. Havia quatro dias que, não se registrava um único óbito e a média de internações caíra de cinquenta por cento. O Dr. Forrest organizara um serviço preventivo especial na cidade e as visitas domiciliares realizadas pelas enfermeiras deram excelentes resultados. Tudo indicava que o terrível flagelo estava no fim. Poderiam surgir novos casos e os danos causados e ainda por causar permaneceriam; mas para Anne, sentada tranquilamente em seu quarto a escrever cartas, era como se a parte mais importante do seu trabalho estivesse realizada. Olhando para a frente, deixou que seus pensamentos divagassem em torno do seu regresso a Londres com Lucy. Passariam a trabalhar agora juntas no Trafalgar. Lucy, após a sua nobre atuação ali, seria colocada por Miss Melville como enfermeira-chefe na direção de uma enfermaria. Como seria maravilhoso trabalharem as duas juntas no mesmo hospital como enfermeiras-chefes!
Uma de suas cartas destinava-se aliás a Miss Melville, e nela arriscava-se a confiar-lhe essa esperança. Outra, já pronta, fora dirigida a Susan Gladstone na "Associação" e estava repleta de planos, projetos e arroubos de entusiasmo para o futuro. Escrevera também a Miss East, a diretora do hospital de Manchester. Anne sorria levemente ao descrever para a "Pugilista" as proezas de Nora e Glennie.
Redigia agora a última e a mais difícil das missivas. Destinava-se ela ao Dr. Prescott. Por que sentia tanta dificuldade em escrevê-la, era o que dificilmente conseguia compreender. Falara pouquíssimo na sua própria atuação e muito na de Lucy. Agradecera-lhe uma vez mais ter-lhes proporcionado a oportunidade de realizar aquele trabalho. Esgotou rapidamente o seu estoque de notícias e deu a carta por terminada. Pensara tanto em Prescott durante aquelas últimas semanas que achava estranho não conseguir traduzir em palavras seus pensamentos. Sentia em relação a ele um curioso embaraço, um vago conflito de emoções perturbadoras que não podia explicar, como se desejasse mas temesse revê-lo. Essa ideia provocou-lhe um ligeiro sorriso. E sorrindo ainda, alçou os ombros e dispôs-se com determinação a acabar a carta.
Foi nesse momento que Nora embarafustou pelo quarto sem bater sequer à porta. Parou, resfolegante, como se tivesse estado a correr, e, muito pálida, tentando dominar a sua aflição, balbuciou, com a respiração entrecortada:
- Lucy desmaiou na enfermaria. Ela. ela perdeu os sentidos e... e caiu.
Anne semivoltou-se como que paralisada em sua cadeira.
- Não é nada - gaguejou Nora, procurando disfarçar a gravidade da situação, mas desmentindo as próprias palavras com o seu nervosismo. - Só que... o Doutor Forrest. mandou-me vir chamar você.
Um profundo silêncio vibrou no quarto. Um punhado de perguntas tremia nos lábios de Anne. Não conseguia, entretanto, articulá-las. Sabia, por obra de um súbito e horrível pressentimento, a causa do colapso de Lucy. Paralisada ainda, como uma sonâmbula, levantou-se e seguiu Nora até a enfermaria.
Não foi lá, mas na pequena saleta contígua onde funcionava a copa, que encontraram Lucy. Estava deitada sobre alguns travesseiros colocados às pressas no chão onde ela caíra, com o Dr. Forrest de joelhos ao seu lado e duas enfermeiras de pé por trás dele. Antes mesmo de olhar para o Dr. Forrest, um simples relancear de olhos sobre Lucy, revelou tudo a Anne. Lucy não desmaiara. Estava inconsciente, com a respiração aceleradíssima, o rosto horrivelmente congestionado. Notavam-se já através de sua pele os primeiros e leves vestígios das feias placas eruptivas. Anne sentiu um frio de gelo no coração. Sabia que Lucy contraíra a moléstia.
com um estalar de suas velhas juntas, o Dr. Forrest ergueu-se. Evitava fixar Anne, receoso de que ela lesse em seus olhos a trágica verdade.
- Receio que ela se tenha contagiado - disse ele, afinal, num tom singular de quem pedia desculpas.
- Vamos colocá-la sozinha no quarto dos fundos. Lá é mais sossegado e mais quente. Vamos tentar tudo. Talvez... talvez não seja tão grave quanto pensamos.
Anne lutava para responder. Sabia que o estado de Lucy era muito mais grave do que o Dr. Forrest dera a entender, que ele estava apenas procurando poupá-la. Já tinha suficiente experiência em relação àquela terrível moléstia para compreender que Lucy fora atacada pela sua forma pior e mais maligna. com um grande esforço conseguiu controlar-se e, voltando-se para Nora, disse-lhe:
- Mande arrumar um leito no quarto dos fundos. Depois diga à.enfermeira Glennie que vou precisar dela também.
Dez minutos depois transportavam Lucy através da enfermaria para o quarto onde ela iria ficar. Imediatamente o Dr. Forrest aplicou-lhe uma injeção na espinha com uma dose maciça de soro. Nora e Glennie, de pé ao lado do leito, aguardavam as instruções de Anne. E uma vez mais, com um esforço desesperado, Anne controlou seus angustiados sentimentos. Destacou Glennie para o primeiro plantão e Nora para o segundo, resolvendo não arredar de junto da irmã. Embora sua voz estivesse firme, seu olhar torturado implorava em silêncio às suas amigas que não poupassem esforços para ajudá-la. E assim teve início o tratamento de Lucy.
A notícia correu rapidamente pelo hospital e uma sombra como que baixou sobre ele. Os modos cativantes de Lucy e sua inquebrantável dedicação ao trabalho tinham-na tornado realmente popular entre suas colegas. À hora do almoço todos se mostraram calados e a refeição decorreu num ambiente de silêncio e de tristeza. Depois o Dr. Hespley - o administrador seco e burocrata - procurou Anne com sincera simpatia e uma expressão preocupada no rosto magro.
- Lamento muito - murmurou ele sem jeito. Lamento profundamente. Se eu puder ser-lhes útil para alguma coisa...
- Obrigada, Doutor Hespley.
O médico puxou um pigarro, continuando nervosamente a tentar manifestar o seu pesar.
- Ela deve ter-se contagiado em consequência do contato com a filha de Hedley. Dedicou-se tanto. Creia que estou realmente pesaroso, Miss Lee. Havemos de fazer tudo para salvá-la.
Anne não precisava desse bondoso embora confuso alento. Estavam fazendo tudo - tudo - para salvar Lucy. Entretanto, apesar de todos esses esforços, Lucy não reagia ao tratamento.
Às quatro horas começou a delirar. Debatendo-se sob o efeito das toxinas da infecção, seus pobres olhos congestos, suas mãos a crispar-se sobre a colcha, balbuciava frases sem nexo, lembranças da sua infância, dos seus dias de escola, do tempo em que trabalhara no County. E falava continuamente em Anne. O delírio prosseguiu nesse ritmo incessante. Seu rosto contraía-se em contorsões infantis e chegou a rir-se de alguma piada há muito esquecida. Houve um momento em que com a sua voz fina e aguda tentou cantar um hino da predileção de sua mãe.
A agonia que isso provocava em Anne só Nora e Glennie podiam avaliar. Anne nada deixava transparecer enquanto com as mãos cansadas trocava o capacete de gelo sobre a cabeça febril da irmã. A temperatura de Lucy continuava a subir. O Dr. Forrest que vinha vê-la de hora em hora já não encontrava mais o que dizer. Só fazia abanar a cabeça.
Às seis e meia teve início a primeira crise. Anne parecia petrificada de horror. Mas foi ela quem aplicou em Lucy uma injeção de morfina.
- Anne! Pelo amor de Deus, saia daqui - suplicou Nora.
- vou sair apenas por um minuto - respondeu Anne com voz cava. Preciso passar um telegrama - tenho que chamar o marido dela.
Foi até o escritório e pelo telefone passou um telegrama a Joe, endereçado à "Transportes Limitada". Depois, pensando melhor, e temendo que o telegrama não encontrasse Joe, que se ele estivesse no norte o deixassem ficar no escritório, passou outro, mais longo, ao Dr. Prescott, pedindo-lhe para localizar Joe e fazê-lo embarcar imediatamente para Bryngover.
De volta ao quarto da doente, Anne encontrou o Dr. Forrest em conferência com o Dr. Hespley e mais outro médico da cidade, cujo nome era Tynell. Os três facultativos estiveram longo tempo junto à cabeceira da enferma. Em seguida o Dr. Forrest chamou Anne para um canto do quarto. Já não evitava mais olhar para ela e fitava-a diretamente nos olhos:
- Minha cara - disse-lhe ele com voz baixa e firme. - Você é uma mulher de coragem. Deu prova disso centenas de vezes, desde que tive o privilégio de conhecê-la. Eis porque prefiro contar-lhe tudo.
Fez uma pausa, sem tirar dela os seus olhos inteligentes.
- Sua irmã está morrendo. Ela apanhou a forma apoplética da moléstia. Não há nenhuma esperança. Essa forma é sempre fatal.
E prosseguiu como se tivesse pressa de dizer logo tudo:
- Não julgue que estamos abandonando o caso. Um de nós, médicos, permanecerá a noite toda no hospital. (Outra pausa). Eu só queria que você soubesse a verdade.
As mãos de Anne estavam fortemente cerradas.
- Eu já sabia - murmurou ela com uma voz diferente.
Caiu a noite e o delírio de Lucy recrudesceu. Apesar dos entorpecentes, debatia-se e dizia bobagens. Mais de uma vez Anne teve que segurá-la com força para contê-la. Ao fazê-lo sentiu, com um sobressalto horrível, a magreza dos braços de Lucy. Não fora a moléstia que dera cabo dela mas sim aquelas semanas de trabalho incessante que a haviam precedido. Mas eis que de repente a temperatura de Lucy caiu. Foi uma queda tão brusca que ao examinar o termómetro Nora deixou escapar uma abafada exclamação de pasmo:
- Em uma hora a febre caiu de quarenta graus e meio para trinta e sete e dois!
Na fisionomia de Anne não se estampou nenhuma-reação de alegria. Longe de ser um sintoma favorável, essa repentina mudança de temperatura era o pior indício possível, o inevitável precursor do fim.
- Vá chamar o Doutor Forrest - disse ela.
- E, por favor, traga Glennie também.
Pouco depois das onze horas o delírio de Lucy cessou. Seu rosto até ali congesto e inchado tornouse murcho e abatido. Momentos depois suas pálpebras adejaram levemente. Ela olhou então para Anne.
- Anne - sussurrou. - Um pouco d'água. Depois que lhe deram de beber ela permaneceu
um instante tranqiiila deitada de costas. Estava perfeitamente lúcida e lia-se em seus olhos a consciência de que estava morrendo. Seu olhar percorreu lentamente o quarto, pousando em Nora e depois em Glenme. Fez um esforço para estender a mão na direção delas.
- Foi uma maravilha conhecê-las... trabalhar com vocês...
Sua voz estava apenas audível.
Dois fios de lágrimas escorriam pelas faces de Nora e um tremor nervoso repuxava o rosto de Glennie.
- Logo estaremos trabalhando juntas de novo - respondeu-lhe com voz embargada a corajosa escocesa.
Lucy tentou sorrir, mas mal conseguiu entreabrir os lábios ressequidos.
- Agora nunca mais, Glennie.
Fêz-se um prolongado silêncio. Depois Lucy tornou a falar.
- Por favor, deixem-me um pouquinho a sós com Anne, sim? - balbuciou ela.
Seu pedido foi atendido. Nora deixou o quarto sufocada pelos soluços. Anne ficou só com Lucy. Sentou-se à beira da cama, segurando a mão da irmã em silêncio.
- Anne - disse Lucy afinal, com voz débil, mas perfeitamente consciente. - Lembra-se daquela criancinha que morreu... no County? Acho que agora resgatei a minha culpa.
O violento turbilhão de emoções que crescia no peito de Anne apenas lhe permitiu responder com um movimento de cabeça.
- Que sorte, não? - refletiu Lucy. - Eu ter tido oportunidade de salvar uma vida no lugar da que pus a perder.
- Sim, querida - bulbuciou Anne com a voz entrecortada.
- Há mais uma coisa que gostaria que você soubesse - murmurou Lucy. - Antes de vir para cá escrevi à diretora do County. Contei-lhe tudo.
Anne mordeu os lábios num esforço por conter o pranto.
Novo silêncio. Por fim Lucy indagou:
- Você mandou chamar Joe?
Anne tornou a responder afirmativamente de cabeça.
- Há um trem que chega à meia-noite.
A sombra de um sorriso aflorou aos lábios gretados de Lucy.
- Talvez... (fez uma pausa para respirar) talvez a essa hora o meu trem já tenha partido. Pobre Joe! - acrescentou. - Ajude-o, se puder, Anne querida. Ajudei-o tão pouco.
Em resposta, Anne apertou-lhe com mais força os dedos. com o coração partido daquela forma era-lhe simplesmente impossível falar.
A respiração de Lucy tornou-se mais superficial e uma névoa começou a toldar-lhe os olhos. Quedou um momento como que alheia e depois, de súbito, disse:
- Anne, cante aquele hino que cantávamos quando éramos meninas. Você se lembra? "O dia que nos deste, Senhor, está no fim".
Era o hino que ela cantara em seu delírio.
Anne reteve as lágrimas que a encegueciam. Oh, Deus, suplicava ela, permiti que eu ainda não me deixe vencer pela emoção Dai-me forças para fazer esta última vontade de Lucy. Passou o braço em torno dos ombros de Lucy e, apertando-a junto a si, começou a cantar em voz baixa e suave:
É findo, Senhor, o dia que nos deste. A uma ordem Tua descem sobre nós as trevas; A Ti subiram os nossos hinos matinais E teus louvores santificarão nosso repouso.
Terminara o último verso. Lucy suspirou.
- Obrigada, Anne.
Passou-se um momento. Os olhos de Lucy, muito abertos, pareciam fitos em algo muito distante.
- Foi uma noite muito escura - disse ela (sua face muito fria apoiava-se no rosto de Anne). Mas agora está clareando. Anne, querida, deve estar amanhecendo.
Com estas palavras seu corpo desfaleceu, sua cabeça pendeu para um lado e sob uma grande paz raiou para ela a eterna manhã.
ANNE deixou-se ficar longo tempo sentada à beira do leito. As lágrimas, durante tanto tempo contidas, agora não desciam. Gelada e impotente, sentia-se impossibilitada de fazer qualquer movimento. Beijou cegamente a fronte de Lucy, cerrou-lhe os olhos e cobriu-a com o lençol. Ouviu ao longe o apito de um trem. Pouco depois percebeu o rumor de um automóvel que chegava. Foi a entrada de Joe que a chamou a si.
Voltou-se lentamente para ele, que se detivera à entrada do quarto, torcendo o chapéu entre as mãos, o olhar apreensivo fixo no corpo encoberto pelo lençol sobre a cama. Anne fez um esforço para levantar-se. Viu que Joe estava preparado, que já lhe haviam dado a notícia lá fora.
- Veja que tristeza, Joe - murmurou ela baixinho. - Foi tudo tão inesperado.
Joe deu um passo para a frente, muito tímido. Ciente do que sucedera, lutava entre o nervosismo e a angústia. Anne procurou ajudá-lo o melhor que pôde.
- Esta moléstia ataca de maneira tão horrivelmente fulminante!
- Eu sei - balbuciou Joe, conseguindo finalmente falar. - Foi o que o Doutor Prescott me disse durante a viagem.
Anne olhou-o estupefata.
- O Doutor Prescott está aqui? Joe inclinou a cabeça.
- Ele me trouxe. Foi extremamente bondoso. Tornou a dar um passo nervoso em direção ao leito. E uma vez mais Anne, em sua bondade, procurou auxiliá-lo. Silenciosamente descobriu a morta. E só então, diante das feições desfiguradas da linda jovem que fora sua esposa, foi que Joe deu vazão à sua dor. Ajoelhou-se junto ao leito e desatou a chorar.
Anne compreendeu que devia deixá-lo a sós. De cabeça baixa, o coração apertado, o andar trôpego, retirou-se do quarto. Fora, a primeira pessoa que viu foi Prescott. Seu olhar sombrio e incrédulo divisou-lhe o rosto moreno de feições bem talhadas, marcado naquele momento por uma expressão grave e preocupada. Teve a vaga impressão de que ele a tomou pelo braço e a conduziu para longe daqueles cuja bem intencionada simpatia só poderia afligi-la mais. Ao fim do corredor deteve-se e, sem largarlhe o braço, fitou-a bem no rosto.
- Anne - disse-lhe ele num tom que traía afinal a sua profunda emoção. - Que poderei eu dizer-lhe, minha querida? Assim que recebi o seu telegrama apressei-me em trazer Joe aqui. Lamento termos chegado tão tarde.
- Não faz mal - murmurou Anne desalentada.
- Nada mais importa agora.
- Você está enganada, querida.
Sua voz tremia ligeiramente. Encheu-se de coragem para continuar a falar, para levar avante a resolução que tomara durante as longas semanas em que sofrera a sua ausência.
- Há algo que ainda importa. E muito. Você. Anne encarou-o como que apatetada. Prescotfc
continuou a falar, indescritivelmente emocionado pela sua tristeza, impelido pelos sentimentos que ela lhe despertava e que por tanto tempo reprimira, resolvido a dizer-lhe a todo o custo que a amava.
- Anne, minha querida. Não fique assim tão triste e abatida. Eu amo-a. Amo-a com todo o meu coração e já há muitos meses. Permita-me que eu a conforte, que a torne de novo feliz fazendo-a minha esposa.
Tentou abraçá-la, mas Anne afastou-se dele com um gesto frenético.
- Não, não - gritou-lhe desesperada. - Isso não. Não vê. que Lucy. a minha irmã querida. que Lucy está morta?
Alucinada, como um pássaro ferido, olhava para ele. E então toda a. sua dor, subitamente liberada, transbordou-lhe do peito, quase sufocando-a. Lágrimas - lágrimas ardentes e generosas - brotaram-lhe dos olhos. Soluçando convulsamente ela desceu correndo a escada e ganhando a porta do hospital a transpôs, ávida de sorver o ar puro e frio da manhã.
Dois meses depois, no escritório da "Associação das Enfermeiras", em Londres, Anne, sentada à sua mesa, cuidava da sua correspondência. Não mais de uniforme, seu vestido preto muito simples dava-lhe, entretanto, um ar de serena eficiência. Condizia ele com a simplicidade do escritório, e Anne se sentia igualmente em harmonia com esse ambiente.
Havia já duas semanas inteiras que fora nomeada secretária da "Associação", juntamente com Miss Gladstone. Em seu regresso de Bryngover, ela encontrara à sua disposição o seu posto na enfermaria do Trafalgar. Mas Susan Gladstone antecipara-se e insistira com ela para aceitar aquele lugar, indo partilhar o seu pequeno apartamento um andar acima do escritório. Embora tivesse representado um grande sacrifício para Anne abandonar a vida ativa de enfermeira, viu que as possibilidades de trabalhar pela sua classe seriam infinitamente maiores se se dispusesse a realizar aquele trabalho administrativo. O argumento final partira da própria Susan. Dali a um ano ela atingiria a idade limite e seria forçada a deixar a "Associação'' Desejava pois que Anne ficasse como sua sucessora.
Naquela manhã de junho, enquanto Anne acabava de escrever as suas cartas, Susan bateu à porta e entrou. Acendendo um cigarro, apoiou-se à mesa da amiga e ficou a contemplá-la com um olhar curioso.
- Estão lá fora dois repórteres - anunciou, fazendo um gesto com o cigarro entre os dedos na direção da sala de espera. - Deseja a honorável Comendadora do Império Britânico recebê-los ou não?
Anne levantou a cabeça. Embora ainda conservasse a sua aparência juvenil, sua beleza parecia ter adquirido contornos mais firmes e mais clássicos. A epidemia de Bryngover e a morte de sua irmã haviam deixado nela fundas marcas. Desde aquele dia tempestuoso, no pequeno cemitério do alto do morro, onde Lucy fora enterrada, o vivo e espontâneo sorriso de Anne parecia tê-la abandonado.
- Que é que você acha, Susan? - indagou ela.
- Sei que você pessoalmente não está interessada em entrevistas. Mas a publicidade seria muito proveitosa para a "Associação".
- Nesse caso eu os receberei - decidiu Anne. Minutos depois os dois repórteres entravam na sala.
- bom dia, Miss Lee - disse o mais velho dos dois, indo direto ao que queriam. - Estamos muito interessados na notícia de que a senhora vai ser condecorada com a comenda da Ordem do Império Britânico, pelos serviços prestados durante a epidemia de Bryngover. Queríamos felicitá-la. E desejamos transmitir aos nossos leitores as suas impressões a esse respeito.
Anne meditou algum tempo antes de responder:
- Naturalmente estou satisfeita - disse-lhes sorrindo. - Mas me sentiria mais feliz se todas as enfermeiras que combateram a epidemia recebessem idêntica prova de reconhecimento.
- Ora, Miss Lee - interveio o outro repórter.
- A senhora foi quem mais se destacou em Bryngover. Não seria possível condecorar com uma comenda da Ordem do Império Britânico todas as enfermeiras que lá estiveram.
- Está certo, mas podiam perfeitamente proporcionar-lhes melhores condições de trabalho.
- Isso mesmo - aprovou Susan, carregando na ênfase.
Os dois repórteres entreolharam-se, farejando uma reportagem fora do comum, algo capaz de despertar muito mais interesse do que a meia coluna de noticiário convencional que pretendiam.
- Quer explicar-nos melhor? - pediu o primeiro, preparando-se para anotar-lhe as palavras.
- Eu lhes conto - volveu Anne, escolhendo as palavras com tranquila deliberação. - Agora que a epidemia foi debelada e que finalmente permitiram aos jornais comentá-la, toda gente se mostra satisfeitíssima com o que as enfermeiras realizaram em Bryngover. Temos recebido pequenas e agradáveis manifestações de aplauso, amáveis palmadinhas nas costas. O público compreendeu o que a classe das enfermeiras pode fazer e está fazendo em todo o país. Mas o que o público não avalia são as espantosas condições sob as quais a maioria de nós outras, enfermeiras, trabalhamos - as longas horas de vigília, os magros salários, a vida dura que levamos. Digo-lhes francamente que em geral a vida de uma enfermeira é uma vida de penúria e de escravidão. E não será condecorando uma enfermeira em quarenta mil que irão remediar essa situação. Só poderão remediá-la, concedendo às quarenta mil um melhor padrão de existência.
- A senhora tem toda a razão, Miss Lee declarou o repórter mais jovem.
- Continue - disse o outro, manuseando rapdamente o seu lápis.
- O assunto reveste-se de importância nacional - prosseguiu Anne. - Se não me acreditam, vejam o que está acontecendo. Centenas de moças dotadas de verdadeira vocação para a enfermagem, desistem todos os dias de entrar para a profissão - não devido aos riscos que ela oferece, por maiores que eles sejam, mas devido aos tremendos sacrifícios que irá exigirlhes. Estamos já lutando com falta de enfermeiras. Se as coisas continuarem assim, antes que o percebamos isso se transformará numa calamidade nacional. Essa é apenas uma das razões pelas quais, quando regressei de Bryngover, vim trabalhar com Miss Gladstone na "Associação das Enfermeiras". Aqui, na "Associação", lutamos por obter melhores condições de vida para as enfermeiras. Falta só o público despertar para a realidade dos fatos. O povo deste país é justo e generoso. Acreditem-me, mais cedo ou mais tarde, conseguiremos o apoio do público e quando o obtivermos iremos ao Parlamento. Quando isso acontecer, nada impedirá que se procedam às reformas que há tanto tempo esperamos e que nos são mais que devidas.
Fêz-se um breve e dramático silêncio no escritório. Os dois rapazes da imprensa, por mais insensíveis que fossem, mostravam-se impressionados com a sinceridade das declarações de Anne.
- Talvez possamos dar-lhe uma ajuda, Miss Lee
- disse o primeiro, fechando de golpe o seu bloco de notas. - Prós diabos - com o seu perdão - há uma grande verdade no que a senhora acaba de dizer. A mim me parece que nossos jornais poderiam oferecer-lhe um bom apoio.
Estendeu-lhe a mão e Anne apertou-a. O outro fez o mesmo. E ambos saíram bruscamente, tão semcerimoniosamente como quando haviam entrado.
Susan, assim que eles viraram as costas, soltou uma exclamação de alegria.
- Muito bem! Lavramos um tento! Se eles fizerem como prometeram, poderão iniciar uma grande campanha pela imprensa.
- Se.. - observou Anne tristemente.
Seu pessimismo, entretanto, não se justificou. Às duas horas da tarde, depois que as duas terminaram o seu almoço em comum, Miss Gladstone foi até à rua e voltou correndo com um jornal na mão. Até que afinal uma vez na vida perdera a sua habitual frieza..
- Anne! - gritou ela. - O negócio estourou - muito melhor do que supúnhamos - simplesmente maravilhoso!
Anne arrancou-lhe o jornal das mãos trémulas. E viu então na primeira página a sensacional manchette:
HEROÍNA DE BRYNGOVER CONDECORADA com A COMENDA DA ORDEM DO IMPÉRIO BRITÂNICO PREFERIRIA EM VEZ DISSO CONSEGUIR MELHORES CONDIÇÕES DE VIDA PARA A SUA CLASSE
E sob o enorme cabeçalho, distribuída em duas colunas, seguia-se uma reportagem completa sobre a sua entrevista, com uma perfeita exposição do seu apelo. Havia ainda uma nota sobre a "Associação das Enfermeiras", seus objetivos e finalidade.
- Depois disto nossa cotação vai subir, na certa - comentou Susan.
Anne fez um gesto de assentimento. Via claramente o valor daquela propaganda, por mais que lhe desgostasse a exploração em torno do seu trabalho no País de Gales. Estava contente também por ver lançada a campanha. Não conseguia, entretanto, experimentar o entusiasmo que era de esperar. Continuava dominada pela melancolia, sujeita a constantes depressões; talvez ainda não estivesse totalmente refeita do abalo sofrido com a morte de Lucy. Um tanto pensativa, sentou-se e recomeçou a escrever.
Trabalhou arduamente toda a tarde, redigindo relatórios com Miss Gladstone. Sentia que Susan a todo momento a observava, e quando, findo o expediente, levantou-se para apanhar o chapéu, ela fez-lhe uma rápida pergunta:
- Você não vai subir para tomar chá?
- Tenho um encontro - respondeu-lhe Anne. Não estava muito desejosa de comparecer a ele, mas preciso ir. Estarei de volta às sete horas, o mais tardar.
Susan não quis importuná-la com perguntas. Entretanto, depois que Anne saiu, preparou e tomou o seu chá num estado de espírito pensativo e preocupado. Chegara a várias conclusões, mas a pior de todas era a de que Anne se sentia desesperadamente infeliz.
AS cinco e meia Anne chegou ao "Gato Preto", o mesmo modesto café de Regent Street que ela e Lucy costumavam frequentar. Talvez fosse a constante recordação do passado o que a fizesse sentirse tão triste. Contudo, ao entrar ali, havia também em seus olhos uma expressão de ansiedade. Combinara um encontro com Joe naquele café. E sentia-se vagamente apreensiva em relação ao que Joe teria a dizer-lhe.
Mas quando Joe apareceu, apressado e sorridente, metido numa roupa preta nova e num chapéu de feltro mole, esforçou-se por recebê-lo com um sorriso animado.
- Olá, Anne - disse-lhe ele afetuosamente. - É uma alegria para mim tornar a vê-la. Desculpe-me ter chegado atrasado. Mas tivemos que trabalhar até mais tarde hoje no escritório. Fomos obrigados a pôr em circulação mais dois ônibus.
Sentaram-se e pediram um chá. Joe parecia-lhe confiante e alegre como nunca se lembrava de o ter visto. Dava a impressão de que estava cheio de assunto. E de fato não tardou a exclamar:
- Tenho novidades para você, Anne. Acabo de sair da gerência. E mal posso acreditar no que me sucedeu. Imagine que me deram o lugar de gerente da seção norte.
- Que notícia esplêndida, Joe! - felicitou-o Anne.
- Não é má! - concordou Joe, corando ligeiramente como de costume.
Houve um instante de silêncio.
- Você sabe - prosseguiu ele, atacando seu chá com redobrado apetite. - Tenho que agradecer a você por não ter saído da "Transportes Limitada". Você se lembra daquela ocasião em Manchester, em que eu queria desistir de tudo e que você me aconselhou a continuar na empresa, ainda que fosse como motorista?
- Você refere-se àquela noite em que foi ao Hepperton?
- Justamente - tornou Joe, sacudindo animadamente a cabeça. - Eu estava no último furo do desânimo naquela noite. Se não fosse você teria me atirado no Ship Canal. Meu Deus! Como poderia eu imaginar então que ainda acabaria como gerente da seção norte!
- Foi realmente uma felicidade, Joe.
- Sabe quanto é que vão me pagar? Quinhentas libras por ano. Não é formidável? É muito mais do que jamais eu conseguiria tirar da companhia quando era seu proprietário, de sociedade com aquele canalha do Grein. E, além do mais, agora tenho todas as vantagens de poder morar no norte. vou ficar entre Liverpool, Manchester e Edimburgo. E pode estar certa de uma coisa, Anne, nada me impedirá de ter uma casinha na nossa velha Shereham.
Anne baixou os olhos a esta última frase de Joe, enquanto uma onda de constrangimento a invadia à medida que ele continuava a falar:
- Foi por isso que quis encontrar-me hoje com você, Anne. É que devo ir-me embora de uma vez para o norte na próxima semana. Há uma coisa muito especial e importante que quero lhe dizer.
Anne teve ímpetos de gritar e seu olhar evitou nervosamente o de Joe.
Ele deve ter adivinhado o sentimento que a angustiava, pois de súbito inclinou-se para a frente e segurou-lhe a mão.
- Não, Anne querida - disse ele. - Não é isso. Eu ainda a amo; creio que hei de amá-la sempre. Mas agora é diferente - é um sentimento confuso devido à morte de Lucy, à gratidão que sinto por você e... Oh!... e a mais alguma coisa. Creia-me, Anne, que nunca mais a importunarei.
Uma expressão de alívio expandiu-se pelo rosto de Anne. Foi o mesmo que se lhe houvessem tirado um enorme peso da alma ver-se tão inesperadamente livre do temor de ser novamente pedida em casamento por ele, de ter que magoá-lo com outra recusa.
- Seremos os melhores amigos deste mundo, Joe.
Joe sacudiu a cabeça enfaticamente.
- Seremos, não - somos. É por isso que me sinto com coragem de falar com você do modo como vou fazer.
E fincando os cotovelos na mesa pousou" nela um olhar em que havia todo o sagaz interesse de um irmão mais velho.
- Olhe aqui, Anne - continuou ele - se há neste mundo outra pessoa a quem eu admiro e respeito tanto quanto a você, é o Doutor Prescott.
Sob o inesperado do ataque as faces de Anne tingiram-se de um vivo rubor. Joe, porém, não se dava por achado.
- Você não avalia o que ele tem feito por mim. Quando Lucy morreu, coitadinha, ele foi extraordinário. E foi quem intercedeu junto à empresa para que me dessem esse novo emprego. Mas deixemos isso de lado. Não é de mim que estou falando - é do Doutor Prescott e de você. Só quero lhe dizer isto para o caso de você não saber (e inclinou-se para a frente com uma expressão mais intensa). Conheço vocês dois e tenho observado a ambos. Você está apaixonada por ele e ele por você. Por que não tomam então alguma providência?
Anne estremeceu. Não somente devido à franqueza de Joe, mas porque a armadura da sua reserva não o impedira de devassar o seu segredo. Nem lhe era possível esquivar-se a uma resposta.
- Você se esqueceu do que eu lhe disse há muito tempo, Joe. Ainda mesmo que o que você acaba de dizer fosse verdade, a profissão que escolhi não admite o casamento.
- Talvez isso estivesse certo quando você trabalhava como enfermeira. Mas agora está trabalhando num escritório, num lugar administrativo.
- Ainda sou enfermeira, Joe. E continuo trabalhando pelas enfermeiras.
Joe franziu a testa e ficou calado por um momento. Depois declarou:
- Eu acho que você está cometendo um erro terrível, Anne. O fato de estar casada não a impediria de trabalhar pelas enfermeiras. É o seu Orgulho, aposto..
Logo porém fez um impulsivo gesto de apologia.
- Oh, perdoe-me, minha cara. Eu não devia ter dito isso. Mas estou preocupado apenas com a sua felicidade. Não sei o que daria para ver você e o Doutor Prescott unidos e contentes.
Houve um longo silêncio. Anne sentia-se emocionada ante o desprendimento de Joe, ante o sincero interesse que demonstrava pela sua pessoa. E sentiu também uma dor penetrante e ardente, como se alguém lhe houvesse cravado um punhal no coração - dor de uma ferida que talvez nunca mais cicatrizasse. Sabia com um firme pressentimento que jamais seu orgulho se dobraria a ponto de permitir-lhe procurar Prescott. E ele, naturalmente, também era orgulhoso. Nunca também tornaria a procurá-la.
Joe não voltou ao assunto. Durante meia hora continuaram a falar sobre outras coisas. Depois ele a acompanhou até a Museum Square e ali se despediram.
MAIS um dia se passara para Robert Prescott. Não fora um dia nem de trabalho intenso nem de grande entusiasmo - apenas mais um dia. Entretanto, Prescott sentia-se cansado ao trocar os sapatos por um par de chinelos velhos e o paletó por um agasalho caseiro e ao encher lentamente o seu cachimbo, puxando sua cadeira para junto da lareira da sua biblioteca, no andar de cima. Estava uma noite fria e enfarruscada, uma dessas noites de outono em que um úmido nevoeiro encobre a cidade, prenunciando o horrível inverno londrino. À sua volta, a casa permanecia imersa em profundo silêncio. Era uma bela casa - bela e espaçosa. Ele preferira alugá-la a instalar-se num hotel e enchera-a com os seus lindos móveis antigos, transformando-a numa residência ideal para um médico.
Prescott sorriu amargamente. Seu trabalho progredia normalmente - sua clientela particular continuava a mesma, suas enfermarias no hospital tão cheias quanto antes - mas tudo parecia caminhar automaticamente, sem entusiasmo, sem a mais leve ambição de êxito de sua parte. Faltava algo na vida de Prescott. Ele se sentia gasto e espiritualmente vazio - vazio como a sua bela casa deserta. E igualmente inútil.
Seus amigos, bem o sabia, andavam fazendo comentários a seu respeito, atribuindo a sua atual apatia à decepção que devia ter-lhe causado o fato de o Governo ter desistido de levar avante os seus planos e censurando-o também pela sua estupidez que o levara a estragar sua oportunidades metendo-se no escandaloso caso Rolgrave. Ele não se dera ao trabalho de provar-lhes que estavam errados. Quando o convidavam para ir jantar fora ou para ir a um teatro, desculpava-se invariavelmente com um pretexto qualquer. Sabia que essa sua atitude mórbida e retraída estava prejudicando o seu futuro. Mas preferia passar suas noites assim, sozinho.
Talvez tenha se passado uma hora. Seu cachimbo apagara-se. O fogo ia morrendo na lareira sem que ele cuidasse de avivá-lo. E eis que no hall soou a campainha do telefone. Nem se mexeu, continuando afundado em sua cadeira, certo de que era Lowe que pretendia arrancá-lo de casa para uma partida de bridge, ou talvez do hospital onde poderia ter dado entrada algum doente grave. Mas quando sua governanta apareceu, viu logo que não era nem uma coisa nem outra. A boa mulher, que ele trouxera de Manchester, mostrava uma viva expressão de interesse no rosto envelhecido.
- O Doutor Sinclair o está chamando ao telefone, doutor - anunciou ela. - É um chamado interurbano de Manchester. Quando ouvi a voz dele custei a acreditar nos meus ouvidos - foi como se estivéssemos de novo lá em casa.
Uma vaga sombra de surpresa perpassou pela fisionomia de Prescott. Levantou-se e foi atender ao telefone. A voz do seu velho colega imediatamente se fez ouvir.
- Alo, Prescott. Sim, aqui fala Sinclair. É uma boa coisa estar falando novamente com você. Olhe aqui, Prescott, quero que você venha a Manchester ver um doente comigo.
- Sim? - respondeu Prescott, transformando a afirmativa em interrogação.
- É um caso muito importante. E interessante. Uma menina de catorze anos ameaçada de cegueira. Desconfio que se trate de um glaucoma. Quando nos encontrarmos lhe explicarei melhor.
Instintivamente Prescott quis tirar o corpo. No estado de espírito em que se encontrava não se sentia absolutamente inclinado a assumir novos compromissos.
- Não estou bem certo de poder ir, Sinclair. Afinal de contas, estou em Londres agora. Tenho as minhas enfermarias aqui. Seria muito difícil para mim sair.
- Mas é preciso que você venha - insistiu Sinclair. - É um caso absolutamente da sua especialidade. Talvez seja necessário operar. Não há mais ninguém na Inglaterra a quem eu possa entregar essa doente. Além do mais - acrescentou, lançando mão do seu último argumento - trata-se da neta do seu velho amigo Bowley. Só isso devia ser o bastante para decidi-lo.
Ao ouvir mencionar o nome de Bowley, a fisionomia de Prescott adquiriu incontinente uma expressão dura. E foi em tom frio e positivo que declarou:
- Sinto muito, Sinclair. Você terá que arranjar outro colega. Não irei atender a esse caso.
E antes que o outro pudesse dizer qualquer coisa, desligou o aparelho.
De volta à biblioteca, Prescott pôs-se a andar de um lado para o outro numa atitude de nervosismo e de indignação. Bowley, que fora eleito prefeito de Manchester, podia sem dúvida comprar muita coisa com o seu dinheiro; mas não poderia comprar os serviços de um homem a quem tratara com tão grosseira desconsideração. Prescott jamais pudera perdoar a Bowley o seu recuo egoísta e covarde. Agora porém era a vez da caça. A esse pensamento Prescott deixou escapar um rápido e fundo suspiro. Era uma satisfação, sem dúvida, poder pagar-lhe na mesma moeda.
Nisto o telefone tornou a tocar. Prescott apertou com mais força entre os dentes o cachimbo apagado. Adivinhava perfeitamente de quem seria aquele segundo chamado. Foi ele próprio atendê-lo.
- Alo, é Robert Prescott?
- Sim - respondeu Prescott, cerrando ainda mais os lábios.
Não se enganara em seu cálculo. Era o próprio Bowley quem estava no aparelho.
- Você sabe quem está falando, Robert? É o Matt. O seu velho amigo, Matt Bowley.
E a voz calou-se como que à espera de um sinal de reconhecimento, de uma palavra de saudação. Mas Prescott fechara-se num silêncio de pedra. E então a voz, mais agitada do que antes, continuou:
- Lamentei muito não nos termos visto mais durante o último ano. Mas tenho andado ocupadíssimo, Robert - terrivelmente ocupado depois da minha eleição para prefeito.
Prescott continuou mantendo a sua glacial reserva. E a voz de Matt começou a tremer sob o tom de grande camaradagem que vinha simulando.
- Agora ouça, Robert. Que história absurda é essa que acabo de ouvir do Sinclair? Então você não vem ver a minha Rose? Sinclair faz questão da sua presença aqui, Robert. E eu também. Você tem que vir, homem. Vamos, seja camarada e diga-me quando poderemos esperá-lo?
Só então foi que Prescott falou:
- Não me espere, Bowley.
- Mas que é isso, Robert? - volveu Bowley, cuja agitação agora chegava a fazer dó. - Sei que você não está falando sério. Você está apenas brincando, querendo pregar uma peça no seu velho amigo, Robert. Sei que você ainda guarda um certo ressentimento contra mim e reconheço que andei mal, mas águas passadas são águas passadas, Robert. O seu velho amigo não pode concordar com isso. Trata-se de Rose, Robert, a minha netinha Rose. Ela está muito mal, com uma moléstia de olhos. Aquele tonto do Sinclair acha que ela poderá. poderá ficar cega. Bowley pronunciou a custo a última palavra com uma entonação de angústia. E tão clara era a aflição do coitado que um impulso de piedade se apossou de Prescott. Ele porém reagiu friamente.
- Há outros médicos que poderão atendê-la.
- Não queremos outros médicos - volveu Bowley num rastejante tom de súplica. - Queremos você. Sabemos que, você poderá salvá-la. Eu confio em você. Não permitiria que outro cirurgião pusesse um dedo na minha Rose. Pelo amor de Deus, Prescott!
Bowley desistira de súbito de simular uma propiciatória familiaridade e agora a agonia de sua alma vibrava em cada palavra.
- Pelo amor de Deus, ajude-nos! Esqueça a sujeira que fiz com você e lembre-se de que adoro Rose. Ela é tudo que amo neste mundo e se algo lhe acontecer enlouquecerei.
Houve um silêncio. Por mais que quisesse se fazer de duro, Prescott sentia-se comovido diante da clara exposição da verdade. Se Bowley tivesse lançado mão de outros argumentos, se lhe tivesse oferecido dinheiro, magníficos honorários, ele teria recusado friamente. Todavia, agora, quase contra a sua vontade, via-se hesitante. Foi então que, repentinamente, se resolveu.
- Muito bem - declarou secamente. - Tomarei o noturno de hoje. Peça ao Dr. Sinclair para esperarme na estação amanhã.
Uma exclamação de alívio quase histérica ecoou do outro lado do fio. Antes porém que a torrente de palavras de gratidão transbordasse e lhe chegasse aos ouvidos, Frescott desligou abruptamente o aparelho.
Subiu a escada em direção ao seu quarto e ali com movimentos morosos atirou dentro de uma valise algumas roupas. Agora que a decisão estava tomada, sentia-se meio arrependido. Mas sua palavra estava empenhada. Não voltaria atrás. Três horas depois, instalado no noturno, viajava para o norte.
ERA muito cedo, madrugada ainda, quando Prescott chegou a Manchester, mas Sinclair, como um bom amigo, já estava à sua espera na estação com o seu carro. Prescott dormira pessimamente e depois de ouvir durante tantas horas seguidas o atordoante barulho do trem. era um prazer recostar-se ao estofamento macio do carro e contemplar através das vidraças aquelas ruas tão suas conhecidas. Logo após as palavras de boas-vindas, Sinclair, sem perder mais tempo, foi direto à exposição do caso de Rose.
Seu relato foi cuidadoso e técnico. Embora Prescott o ouvisse com uma fisionomia impassível, de quando em quando sacudia a cabeça em sinal de compreensão.
- Na minha opinião - concluiu o Dr. Sinclair - a lesão deve ser quase que na certa um tumor intracraniano, provavelmente de origem fibrosa, comprimindo o sistema ótico. Ela está perdendo dia a dia a vista. Dentro de poucos meses, no andar em que vai, se nada for feito, estará completamente cega. Falando como clínico só posso afirmar uma coisa qualquer tratamento médico será inútil. Quanto a uma intervenção cirúrgica - operação na base do crânio - isso cabe a você decidir, naturalmente. Mas a mim me parece que haveria apenas uma probabilidade de êxito em mil.
- Você não me parece nada esperançoso disse Prescott.
- E não estou mesmo. Para usar de franqueza, a meu ver esse caso oferece uma horrível alternativa. Se nada se fizer, a cegueira é certa. Se operarmos, a morte será fatal. Ainda não disse a Bowley toda a verdade. Coitado, antes mesmo de conhecê-la já anda meio doido.
- É bem feito - murmurou Prescott em tom sombrio, calando-se em seguida.
A esse tempo estavam já chegando à mansão de Bowley, cujo portão ostentava agora uma entrada em arco com uma reprodução das armas da cidade. Era uma estranha experiência para Prescott tornar a transpor os portões daquela casa que outrora conhecera tão bem. Mas nada deixou transparecer. Assim que transpuseram a porta do hall, sem dar atenção às palavras do criado declarando que Mr. Bowley seria imediatamente informado da sua chegada, pediu que o levassem ao quarto da doente e para lá se dirigiu diretamente.
Rose Bowley estava acordada em seu quarto envolto em penumbra. Era uma menina alta, de catorze anos, e tinha os olhos vendados por uma bandagem protetora. Embora procurasse ocultá-lo, achava-se desesperadamente assustada, presa de nervosos pressentimentos. Prescott calculou que ela havia passado a noite anterior em claro pensando na sua visita e aguardando o seu veredicto. Procurou no mesmo instante tranquilizá-la. com delicado tato retiroulhe a venda dos olhos e com voz ainda mais delicada começou a interrogá-la.
À medida que procedia ao exame tornava-se-lhe claro que o diagnóstico do Dr. Sinclair fora correto. Os sintomas da compressão - desde as dores de cabeça características até a constante sensação de enjoo
- eram típicos e o exame da retina através do oftalmoscópio elétrico revelou a localização da lesão. Quanto aos prognósticos, não podia senão concordar com o seu colega. Operar aquela região do cérebro seria incorrer num desastre quase certo. E todavia, se não operasse, o resultado seria a cegueira total e absoluta. Conforme dissera Sinclair, qualquer cirurgião sentiria dificuldade em tomar tão terrível decisão.
Nada disso transpareceu na fisionomia de Prescott, enquanto concluía o seu exame e dizia algumas palavras tranquilizadoras à doente. Esta, porém, com uma intuição que a fazia penetrar até o âmago do dilema, agarrou-lhe a mão quando ele se preparava para deixar o quarto.
- Não me deixe ficar cega, doutor - suplicoulhe com voz tensa e premente. - Eu não suportaria viver sempre no escuro. Acho. que preferiria morrer.
Novamente Prescott a acalmou, afagando-lhe a mão até que a tensão nervosa cedesse. Só então retirou-se do quarto acompanhado por Sinclair, Fora, à espera deles, no andar superior, estava Matthew Bowley. Caminhou lentamente ao encontro dos dois médicos. Usava um roupão sobre a calça e a camisa, tinha os cabelos em desalinho e seu olhar, a um tempo transtornado e aflito, permanecia ardentemente cravado em Prescott. Não o saudou sequer nem fez nenhuma observação preliminar.
- Então - murmurou ele com voz sumida que é que tem a dizer-me?
Prescott viera preparado para encontrar Bowley tomado de violenta ansiedade. Mas aquela expressão de desvairada agonia obrigou-o a evitar-lhe rapidamente o olhar. O homem, consumido pelo pavor, era apenas a sombra do rubicundo e alegre Matt que outrora conhecera.
- É difícil dizer-lhe o que achei - respondeu Prescott compungido. - O que o Dr. Sinclair já explicou está absolutamente certo em todos os pontos. Sua pobre netinha está perdendo rapidamente a vista. Nada poderá ser feito por ela - se excluirmos a hipótese de uma operação, pois esta seria tão arriscada que não devemos tentá-la.
Nem por um minuto Bowley tirara os olhos do rosto de Prescott.
- Uma operação! - repetiu ele. - Foi para isso que o chamamos.
Prescott fez um gesto contrariado.
- Eu não sou onipotente - disse ele em tom severo. - E não estou disposto a assumir a responsabilidade de uma intervensão cujo resultado seria provavelmente fatal.
- Quer que me ajoelhe aos seus pés, Robert? suplicou Bowley. - Não quero que minha netinha passe o resto de sua vida cega. E ela também não há de querer. Estamos ambos preparados para enfrentar o risco, Robert. Só o que lhe peço é que nos dê essa oportunidade.
Prescott pousou rapidamente o olhar em Bowley e logo o desviou. A angustiada simplicidade de Matt estava solapando o seu ressentimento, impelindo-o, malgrado a sua pessimista opinião, a pôr em jogo a vida de Rose num lance em que as probabilidades desfavoráveis eram incalculáveis. Mas poderia acaso negar a verdade contida nas palavras de Matt? Não seria realmente preferível proporcionar à menina aquela incerta oportunidade, a condená-la a longos anos de dolorosas trevas? Sem dúvida que sim, pensou Prescott, mas isso não ressalvava sua consciência, nem lhe resguardaria a reputação, caso Rose morresse na mesa de operação sob o seu bisturi.
De cabeça baixa encaminhou-se para o vitral do corredor, através do qual alongou um olhar sombrio até o verde tabuleiro de grama que lá embaixo se estendia, com os arbustos cintilantes do orvalho matutino, e mais além as alamedas de faias com os seus ricos tons de ferrugem. Toda aquela beleza Rose perderia a menos que, por algum milagre, ele pudesse restituir-lha. Esse pensamento encheu-o de uma súbita resolução. Era um idiota, um perfeito e presunçoso idiota, mas arriscaria. Voltou-se então rapidamente para Bowley,
- Tentarei a operação, embora não possa garantir o seu êxito. Deverá ser feita quanto antes, preferivelmente esta tarde, depois que eu descansar um pouco. Não poderá ser realizada aqui. A menina terá que ser levada para uma casa de saúde, ou, se quiser, para o quarto existente ao lado da minha antiga enfermaria no Hepperíon. E agora, se me dão licença, vou para o meu hotel.
Os olhos de Bowley continuavam fitos no rosto de Prescott, semelhantes aos olhos de um súplice cão espancado. Não fez nenhum protesto de gratidão, sua expressão não se modificou.
- Eu sabia que você faria isso por mim, Robert - disse ele, apertando uma campainha ao seu lado. - Mas você não vai para nenhum hotel. Se aceitar o meu oferecimento, já tenho aqui um quarto preparado para você.
Uma vez mais Prescott cedeu, vencido pela nova humildade de Bowley. Todavia, quando se encontrou no luxuoso aposento interno, naquela casa onde jurara nunca mais entrar, novas dúvidas sobre a sua quixotesca loucura voltaram a assaltá-lo. Sua reputação profissional se achava já em perigo. O fracasso num caso como aquele iria prejudicá-la de maneira irremediável. Irritado, tentou afugentar de sua mente esses demónios, concentrando-se nos preparativos que ainda teria de fazer. O Dr. Sinclair poderia ser incumbido de todos os arranjos necessários. Mas havia a parte dos seus instrumentos. Servindo-se do telefone de cabeceira, mandou passar um telegrama, pedindo que lhe enviassem todo o seu equipamento pelo próximo trem. Pensando melhor, porém, rabiscou um segundo telegrama dando instruções à sua assistente de Londres para que tomasse o mesmo trem rumo ao norte. Foi então que uma estranha réstia de luz penetrou em sua mente envolta em sombras.
Pensou profundamente e suas feições inundaram-se de uma curiosa luminosidade. E quanto mais refletia, mais forte se tornava aquele singular impulso. Fora ali, naquela casa, que Anne sofrera uma grave humilhação e injustiça. Por que não fazê-la presenciar a humilhação de Bowley, figurando no último ato daquele drama reconciliatório? Não seria mais do que um direito dela. com súbita determinação, tornou a apanhar o fone, cancelou o seu segundo telegrama e passou outro a Anne, pedindo-lhe para abandonar tudo a fim de assisti-lo numa operação toda especial ali em Manchester.
Um leve sorriso aflorou-lhe aos lábios ao tirar o paletó e os sapatos e ao deitar-se para algumas horas de necessário sono,
AS quatro horas daquele dia Prescott despertou. Mal abriu os olhos, sentiu-se alerta e cheio de vigor, consciente da tarefa que tinha pela frente, mas inteiramente refeito pelas seis horas de sono que gozara. Estava com fome também e tocou a campainha para pedir que lhe servissem uma ligeira refeição composta de costeletas grelhadas e pão torrado. Quando lha trouxeram já ele havia se barbeado, tomado uma ducha fria e estava com a sua toilette pronta. Na bandeja encontrou um bilhete de Sinclair que dizia apenas o seguinte:
A enfermeira Lee e seus instrumentos já chegaram. A operação está marcada para as seis horas. No Hepperton.
Naqueles últimos tempos poucos haviam sido os momentos de satisfação vividos por Prescott. Mas agora experimentava uma sutil e emocionante alegria. Não percebia que seu amor por Anne servira-se das circunstâncias do momento como de um pretexto. Sabia apenas que ela estaria ali, trabalhando com ele de novo, ajudando-o com a sua simples presença. Parecia um grande músico a quem a inspiração perdida fosse de súbito restituída.
Às cinco e meia vieram avisá-lo de que o carro estava na porta à sua espera. Fumou um último cigarro, desceu e foi levado para o hospital. Precisamente às seis menos cinco, dava ele entrada na sala de operação.
Anne lá estava. Embora ele não a fitasse diretamente embora sua expressão não se alterasse, sentiu-lhe instantaneamente a presença. Quando ela lhe apresentou o seu avental, depois que ele havia lavado as mãos, disse-lhe em tom formal e a meia-voz:
- Obrigado por ter vindo.
Apenas isso.
Anne não respondeu. Não havia necessidade de palavras. E ela aprendera a usá-las com a máxima parcimônia naquele recinto, onde só as ações importavam e os discursos não tinham valor.
Agora estava finda a ouverture - a sala pronta, a última máscara de gaze ajustada, tudo preparado. A um sinal de Prescott, a paciente, já anestesiada, foi trazida num carrinho. Mais três tempos
bem marcados e Rose foi deposta na mesa - reluzente mecanismo de aço e metal cromado - o corpo envolto num alvo lençol, a cabeça raspada, sem os lindos cabelos, como uma esfera pintada de iodo sob os refletores.
Prescott correu um último olhar em torno de si, divisando à sua frente, em seu imaculado avental, a figura de Sinclair, o vulto curvado do anestesista, as quatro enfermeiras e Anne, todas de máscaras e uniforme branco. Tomou então posição, como um es- tranho maestro prestes a reger a sinfonia da vida e da morte, à frente dos seus estranhos músicos de alvas vestes. Colocou então os dedos enluvados sobre a luminosa esfera que ninguém diria ser uma cabeça humana, esticou bem a pele e com um golpe de bisturi deu um talho até o osso. Sem que fosse preciso pedir, uma mecha de gaze surgiu sobre a sua mão, depois as pinças e nova mecha de gaze. Depois o trépano. E ele começou a perfurar o osso.
Como era curioso ver o cérebro róseo e palpitante através das suas translúcidas membranas aquele delicado cérebro humano, o órgão do pensamento, o cérebro de Rose Bowley, condenada à cegueira. Agora as membranas haviam cedido aos golpes do bisturi e Anne, inclinada sobre o seu trabalho, podia ver as intrincadas e lisas circunvoluções do córtex. Uma súbita sensação de pasmo empolgou-a. Era como se estivesse vendo a própria sede da alma.
Era preciso enfiar uma faca naquele centro da vida humana, furar, dissecar, isolar a lesão, separar os tecidos mortos dos sãos. Tudo isso Prescott tinha que fazer.
Ninguém que não alcançasse as assustadoras complicações e riscos de semelhante intervenção, poderia compreender plenamente as tremendas dificuldades da tarefa. Anne, porém, o compreendia bem. Via, com os olhos da mente, as centenas de células cerebrais separadas duas a duas em suas divisões como circuitos elétricos. Sabia que bastaria apenas que Prescott secionasse ou cruzasse um desses complexos circuitos para que o desenlace fatal se desse. Operar qualquer outra parte do corpo humano era algo muito sério, mas pelo menos era permitida ao cirurgião uma certa liberdade de ação, podendo ele ligar ou interromper artérias e reparar falsas incisões. Ali porém não havia margem para erros, nenhuma possibilidade de reparos, ou de renovar tentativas.
Vendo-o curvado, seguro e sereno, sobre o seu trabalho, Anne sentia por Prescott uma funda ternura. Fazia já quase uma hora que ele estava operando e ainda não penetrara no ponto mais profundo do tumor. Não havia meios de efetuar com maior rapidez a separação das fibras obstrutoras. Aquela intervenção não duraria nunca menos de três horas. Exigia uma paciência infinita, bem como uma infinita habilidade. Entretanto, os primeiros sinais de cansaço tornaram-se visíveis a Anne no rosto de Prescott e pequeninas gotas de suor brotavam-lhe da fronte.
A sala estava insuportavelmente quente. Sob sua máscara ela sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto de pena dele. Ansiava por poder oferecer-lhe algum descanso, uma palavra de encorajamento, por confiar-lhe num sussurro a fé que nele depositava.
Os minutos escoavam-se lentamente. E lentamente também os dedos de Prescott se moviam dentro do crânio palpitante de Rose Bowley. De repente no rosto do Dr. Sinclair, à sua frente, Anne notou uma fugaz expressão de susto. Ele inclinou-se e através da incisão examinou os tecidos do cérebro. com um aperto no coração Anne compreendeu que surgira algum imprevisto contratempo. Prescott deteve-se por
um momento e ergueu a cabeça para trocar um olhar com o seu colega. Os olhos dos dois homens, brilhando em seus rostos protegidos pelas máscaras, encontraram-se sobre a mesa operatória. O olhar de Sinclair, carregado de apreensão, continha uma silenciosa advertência. Intuitivamente Anne leu o que eles queriam dizer.
- Pare! diziam eles. - O tumor é muito mais profundo do que supúnhamos. Está comprimindo unt núcleo vital. Volte atrás. Se der um passo, a paciente morrerá!".
O olhar de Prescott não vacilou. E Anne leu mais facilmente ainda a mensagem que eles irradiavam.
"- Se eu recuar ela não escapará da cegueira. Aconteça o que acontecer, prosseguirei".
Esse intercâmbio de olhares, tão vital e tão vibrante, não durou mais que segundos. Ninguém na sala de operações o percebeu, a não ser Anne. Ninguém mais notou a mortal apreensão estampada na fisionomia de Sinclair quando Prescott estendeu a mão e em tom deliberado pediu:
- O trépano menor, por favor.
Anne passou-lhe o instrumento. Ele ia alargar a abertura naquele crânio já torturado.
Por um momento os pulsos de Anne quase deixaram de bater. Sinclair não assumiria aquela expressão a não ser que o risco que Prescott resolvera correr fosse mortal. Viu então, numa íntima revelação, porque viera tão prontamente ajudá-lo, porque, acima de tudo, desejava tanto vê-lo triunfar. Não era apenas pelo afeto que podia dedicar a Rose Bowley, ou pela grande dedicação que votava ao seu trabalho. Tudo isso a havia influenciado muito. Mas havia mais alguma coisa. Toda a sua pretensa amizade profissional por Prescott dissolveu-se como cera ao fogo. E com um estranho abalo íntimo, teve ódio a si mesma pela maneira por que se iludira, por ter evitado covardemente durante todos aqueles meses passados encarar a verdade irrecusável. Compreendia finalmente que o amava.
Agora, sim, seu coração desabrochava, todo o seu ser sentia-se impelido para ele. Vendo-o ali concentrado em seu trabalho, desejava com todas as forças de sua alma que ele não fracassasse. Ele não podia, não podia fracassar.
Enquanto de pé ao lado dele, imóvel e impassível, lhe ia passando um a um os ferros reluzentes, orava fervorosamente pelo seu sucesso. Como se fosse ela própria a encarnação do destino, abria sobre ele suas asas protetoras.
Talvez Prescott tivesse sentido essa proteção, captando a corrente de vibrações benéficas que lhe vinha da sua presença tão próxima. Se assim foi, entretanto, não o traiu sequer num só olhar. Continuou a trabalhar num esforço maior e mais concentrado do que nunca.
O olhar de Anne, que até ali sempre evitara o dele, nem por um instante se afastou de seu rosto. Pouco a pouco, à medida que os minutos se passavam e que Rose Bowley continuava a respirar, ela foi-se tornando consciente da mudança operada na fisionomia do Dr. Sinclair. Sua expressão já não traduzia o temor e a desaprovação de há pouco. Preso de um fascínio semi-involuntário, ele acompanhava os movimentos do cirurgião cujas mãos se aprofundavam mais e mais no interior do cérebro. E eis que uma espécie de suspiro de pasmo escapou-lhe dos lábios protegidos pela máscara, quando, com prudente delicadeza, Prescott retirou dos recessos da incisão uma massa fibrosa e irregular. Eram os restos do tumor.
Anne teve ímpetos de soltar um grito de triunfo e de alívio. Agora que fora finalmente ultrapassado o ponto perigoso, Prescott passara a trabalhar muito mais depressa, ligando, suturando as membranas, e afinal fechando a incisão. E, continuando a transmitir-lhe a mesma corrente de muda emoção, Anne incitava-o a agir com rapidez cada vez maior. Uma operação tão longa devia ter esgotado ao máximo as forças de Rose. Anne não ousava observar as débeis palpitações da carótida, temendo vê-las cessar de um momento para outro. Foi então que tudo terminou tranquilamente, que foi dado o último ponto e cortado o último fio de categute. Envolta em cobertores e rodeada de bolsas de água quente, Rose foi levada no carrinho para o quarto que ficava ao lado da enfermaria. Por mais longa e implacável que tivesse sido a tensão nervosa, a reação que se lhe seguiu ainda foi muito pior. Anne mal teve forças para arrastar-se até o esterilizador a fim de dar início ao trabalho de reesterilizar os instrumentos. O próprio Prescott quedara-se de pé junto à mesa, arcado sobre ela como se não tivesse percebido que não era mais preciso inclinar-se nem esforçar-se. Só quando Sinclair pousou a mão em seu ombro foi que ele se moveu. Deu então um longo suspiro e encaminhou-se com o outro para o lavatório.
Era estranho que tornasse a falar depois de tão longo período de silêncio. Sinclair também parecia achá-lo. Vários minutos se passaram antes que ele dissesse:
- Há coisas que a gente não pode comentar, Prescott. Esta é uma delas. Não o felicitarei - felicitações comuns seriam insuficientes. Mas você me proporcionou uma demonstração cirúrgica como nunca sonhei assistir. Foi soberbo!
Prescott olhou para o amigo como que atordoado.
- Como foi que consegui fazer o que fiz? indagou ele.
- Como posso saber? - respondeu-lhe Sinclair com um leve sorriso. - Foi você quem realizou o milagre - não eu.
Nada mais foi dito entre os dois. Quando acabaram de lavar as mãos, uma bandeja de café foi-lhes trazida. Sentados em dois tamboretes, ambos em mangas de camisa como estudantes, tomaram a bebida negra e reconfortante.
- Devíamos estar tomando champanhe e não café, Pfescott - disse Sinclair, tentando reanimar o outro com uma piada. - Que tal um magnífico Paul Rogar 1928?
- Deixemos isso para Bowley - respondeu-lhe Prescott com a fisionomia séria.
Mal ele acabara de falar, a porta externa abriu-se e Bowley penetrou na pequena ante-sala. Embora o suplício da espera houvesse deixado nítidas marcas em sua fisionomia, o colorido voltara-lhe às faces e o seu horrível ar de desespero tinha desaparecido. E no entanto, a despeito de todo o ardente júbilo que brilhava em seus olhos, continuava tímido como uma criança. com passo muito lento e incerto, aproximouse até parar defronte a Prescott.
- Robert - disse ele afinal, com voz sensivelmente trémula. - Que poderei eu dizer-lhe?
Fêz-se um pesado e constrangedor silêncio.
- Quando foi a minha vez - continuou Matt falando com a mesma dificuldade - tratei-o como um cão sarnento. Chegou então o seu turno. E você tratou-me como um deus. (Fez uma pausa). Você acaba de salvar a vida da minha Rose. Você lhe restituiu a vista. Isto representa para mim mais do que a minha própria vida. Como poderei agradecer-lhe?
- Não é preciso agradecer-me - murmurou Prescott.
- Nesse caso permita-me que eu lhe dê isto. Prescott recusou o cheque que o outro lhe oferecia e suas feições se endureceram.
- Não quero o seu dinheiro, Bowley. Espere que eu lhe mande a conta, para depois oferecer-me honorários.
- Mas não se trata de honorários - replicou Matt humildemente. - É algo que eu lhe havia prometido há muito tempo - pelo menos o começo da promessa. Tudo o que espero que você diga é - antes tarde do que nunca.
Automaticamente Prescott apanhou o cheque e olhou para ele. Seu rosto empalideceu. Era um cheque tirado em nome da Fundação Rose Bowley. A importância era de cinquenta mil libras.
- Não se importa que eu lhe dê o nome de Rose? - prosseguiu Matt. - Será a sua clínica do mesmo jeito. Poderá fundá-la tanto aqui como em Londres, ou onde quiser. Arranjarei todo o capital. Farei correr amanhã uma lista de subscrições e o dinheiro irá chover sobre a sua cabeça.
Fêz-se um longo intervalo de silêncio. Prescott procurava dominar a sua emoção.
- É muita generosidade sua - disse ele afinal.
- É muito mais do que isso - é algo magnífico. Aceito. E agradeço-lhe do fundo do coração.
- Para que agradecer, Robert? - volveu Bowley, recuperando um pouco do seu antigo humor brincalhão. - Você mesmo o disse ainda há pouco. Não quero agradecimentos seus, a menos que você me devolva com eles um pouco da sua antiga amizade.
Em resposta, Prcscott adiantou-se e estendeu a mão a Matt. Enquanto os dois homens trocavam um aperto de mão, a porta da sala de operações se abriu e Anne entrou. Ela julgara encontrar a saleta vazia, mas, dando pela presença de Bowley, fez menção de retirar-se. Matt, porém, deteve-a com um gesto.
- Não se vá, minha cara menina - disse-lhe ele. Você é outra com quem eu desejava encontrar-me.
Interrompeu-se para limpar os olhos úmidos de emoção.
Já que os apertos de mão estão em moda, não quer apertar a deste velho patife que se sente realmente arrependido, desgostoso e envergonhado de si próprio?
MEIA hora depois Anne estava pronta para partir. Terminara o seu trabalho, embrulhara os instrumentos de Prescott e despedira-se da diretora e das suas antigas colegas no alojamento das enfermeiras. Bowley voltara para a sua casa e presumivelmente Prescott fora com ele. Sinclair, que estivera à cabeceira de Rose, viera de lá com a grata nova de que ela estava passando bem.
E agora Anne, de pé diante da entrada do hospital, esperava o táxi que o seu velho amigo Mulligan, o porteiro, fora chamar para ela. Contava tomar o expresso das dez e quinze para Manchester, o qual a deixaria em Londres pouco depois das duas horas da madrugada. Após a tensão nervosa provocada pela operação e a profunda experiência emocional que ela lhe trouxera, sentia-se estranhamente triste e abandonada. A revelação do seu amor por Prescott produzira-lhe uma espécie de agridoce sofrimento. Todas as suas inabaláveis crenças, todos os seus planos de vida, jaziam em ruínas aos seus pés. Pelo menos era o que ela supunha no estado de espírito em que naquele momento se encontrava. Era tão intenso o seu nervosismo que tinha a impressão de haver traído a sua causa e todos os nobres ideais sobre os quais essa causa repousava.
Todavia, através da tormenta dos seus pensamentos em conflito, uma certeza persistia, iniludível e inexorável. A certeza de que o amava.
O táxi parara diante da porta do hospital e ela ia tomá-lo quando passos rápidos soaram às suas costas e alguém chamou-a pelo nome. Era a voz de Prescott. Ela voltou-se e viu-o descendo apressadamente a escada em sua direção.
- Onde é que você esteve? - perguntou-lhe ele rapidamente. - Há vinte minutos que a procuro por toda parte.
- Fui dar uma palavrinha com algumas das enfermeiras. E com a diretora.
- E agora ia-se embora sem me dar sequer oportunidade de agradecer-lhe.
Anne baixou os olhos.
- Foi uma alegria para mim vir até aqui, rever o velho Hepperton.
Fez uma pausa.
- De mais a mais, gosto muito de Rose.
- Mas isso é tolice. Tenho tanta coisa para conversar com você - coisas que interessam a você e a mim. Acabo de ter uma conversa com Bowley.
Ele está interessado na sua campanha e quer ajudá-la.
Interrompeu-se e consultou o relógio.
- Que trem você vai tomar?
- O das dez e quinze.
Ele tomou a sua resolução no mesmo instante.
- Irei com você. Eu tencionava embarcar à meia-noite. Mas o seu trem me convém do mesmo modo.
Antes que ela tivesse tempo de protestar, já ele havia pedido ao porteiro para ir apanhar a sua mala e colocá-la no táxi. Um minuto depois rodavam em direção à Central. Faltava pouco para o trem partir e não havia tempo para conversarem. Na estação Prescott pagou o carro, e conduziu-a apressadamente pela plataforma até uma cabina de primeira classe. O trem apitou e partiram.
- Chegamos na horinha - disse ele, colocando a bagagem de ambos no redil. - Mas é assim que as pessoas ocupadas como eu e você tomam um trem.
Anne sacudiu a cabeça e lançou um olhar desolado em torno da luxuosa cabina.
- Eu comprei apenas um bilhete de terceira classe - disse em tom infeliz.
As sombras que contraíam a fisionomia de Prescott dissiparam-se. Ele não pôde deixar de sorrir.
- Creio que poderemos facilmente transpor essa dificuldade. Mr. Matthew Bowley prometeu pagar as suas despesas, o velho canalha. Dizem que não há nada mais perigoso do que um patife regenerado. Mas desta feita sinto-me inclinado a discordar dessa ideia.
Sentado diante de Anne tirou a carteira do bolso e sacou de dentro dela o cheque de Bowley.
- Dê só uma olhadela nisto. É uma tirinha de papel interessante. Ou pelo menos será quando a transformarmos em tijolos e argamassa para a clínica.
Uma ardente centelha de excitação acendeu-se nos olhos de Anne e suas faces tingiram-se de um rubor mais vivo. Por um instante ela esqueceu-se de tudo para só sentir a alegria de saber que a ambição de Prescott fora alcançada.
- Até que enfim! - murmurou ela. Prescott inclinou a cabeça.
- Até que enfim.
Houve um longo silêncio. O trem, ganhando velocidade, corria pela noite afora, como por sob um negro pálio iluminado pelos faróis das fundições, pelos anúncios de gás néon, pelas luzes das ruas e das janelas das fábricas e, acima de todos esses brilhos vulgares da civilização, pelas estrelas sempre presentes.
- E agora - continuou Prescott em tom decidido - quero falar-lhe sobre o seu trabalho. Antes porém quero falar-lhe sobre algo mais prático. Eu tomei um café depois da operação, mas duvido que você tenha feito o mesmo. Receio que seja tarde demais para jantarmos aqui. Mas quando mais não seja, poderemos mandar vir alguns sanduíches e qualquer coisa de beber.
Anne deixou-o tocar a campainha e encomendar ao garçom uma refeição ligeira. Não estava com fome. Mas qualquer distração seria bem-vinda no estado de nervos e de autodesconfiança em que se achava. Seu maior pavor era vir a descontrolar-se diante dele e revelar-lhe tudo o que o seu orgulho exigia que ela escondesse. 291
Prescott esperou até que ela tivesse comido alguma coisa para depois recomeçar a falar no mesmo tom ardente.
- Não nego que me seja extremamente grato depois de tantas decepções ver a minha clínica tomar finalmente corpo. Mas esse é apenas o meu lado na equação. Há que considerar também o seu. Tive uma enérgica conversa com Bowley a esse respeito. Ele sente que lhe deve uma reparação e quer fazer alguma coisa por você também. Oh! Bem sei que grande parte dessa dor de consciência poderá de um momento para o outro desaparecer. Mas não totalmente. Ele dedica demasiado amor a Rose para que tal aconteça.
Em seu entusiasmo Prescott inclinou-se um pouco para a frente.
- Amanhã cedo você encontrará na caixa postal do seu escritório um generoso donativo para os fundos de guerra da "Associação". Mas só o aspecto financeiro não resolve o assunto. O nosso digno Matt vai candidatar-se ao Parlamento nas próximas eleições - sim, é dessa massa que são feitos os nossos legisladores! - e quando ele estiver lá em cima, como sem dúvida acontecerá, prometeu-me influenciar a opinião da Câmara em favor das enfermeiras. É bem verdade que no andar em que você está levando as coisas talvez nem chegue a precisar da ajuda dele. Nem tampouco da minha, embora eu lhe afiance que a porei sinceramente ao seu dispor.
Com um grande esforço Anne conteve o doloroso palpitar de seu coração e preparou-se para responder. Mas sem que soubesse explicar por que, só lhe acudiam frases sem nexo,
- O senhor é muito bom para mim, foi só o que conseguiu dizer.
- E por que não haveria de ser? - retorquiu Prescott, com aquele seu grave sorriso a aflorar-lhe tristemente de novo aos lábios. - Você sabe que eu a amo. Não adianta querer disfarçar esse fato. Já que nada mais é possível, permita-me ao menos demonstrar-lhe platonicamente esse amor.
Anne já não podia mais suportar a dor que lhe torturava o coração. Prescott tinha agora o olhar perdido ao longe, como que a contemplar um passado distante.
- Você se lembra - disse ele - daqueles nossos velhos tempos, do nosso primeiro almoço depois do desastre? Que grandessíssimo esnobe era eu e com que rapidez procurava esquecer que éramos um homem e uma mulher. Merecia um bom castigo por isso. E fui castigado.
Sob a ação de uma estranha e melancólica amargura, parecia disposto a magoar-se a si mesmo, diminuindo-se perante ela.
- E naquela noite em Bryngover em que a assustei tanto que você fugiu pela chuva. Eu tinha todos os meus argumentos preparados, minha tese prontinha, e pretendia demonstrar-lhe de uma forma absolutamente professoral que poderíamos ambos trabalhar infinitamente melhor, se nos casássemos. Que você poderia ajudar-me e eu poderia ajudá-la. Que a minha clínica e a sua campanha se transformariam em objetivos comuns em nossa vida em comum. Que nós dois nos beneficiaríamos unindo os nossos esforços individuais.
Vacilou em seus próprios pensamentos e depois deu um triste suspiro.
- Esquecia-me da única coisa essencial, que em meu egoísmo e em meu convencimento não me ocorreu - o fato de que você não me amava e não poderia amar-me.
Anne sentia os olhos em fogo sob as lágrimas que não ousava derramar, enquanto o violento pulsar de seu coração abafava em seus ouvidos o próprio barulho do trem. Sentia-se perdida, confusa e desesperadamente derrotada. Foi então que, de súbito, um raio de luz penetrou-a. Ela não podia, não deixaria passar aquele momento. Através da confusão que lhe ia na alma, lembrou-se repentinamente do pedido que Joe lhe fizera em seu "último encontro, quando ele lhe suplicara que esquecesse o seu orgulho. E então, enchendo-se de coragem, disse com voz trémula:
- Foi a mim que isso não ocorreu. Não ao senhor.
Ele a fitou com singular perplexidade. E sua fronte de súbito desanuviou-se. As palavras de Anne tão só mente não teriam aliviado a horrível opressão de seu peito. Mas em seus olhos ele lera a inconfundível verdade. Estendeu o braço e segurou-lhe a mão.
- Anne - murmurou. - Afinal você gosta realmente de mim?
E no mesmo instante foi sentar-se" ao lado dela. Anne ocultou o rosto contra as faces dele.
- Há uma semana que vivo atormentada soluçou ela. - Eu sabia que o amava. Mas não o admitia, uma coisa impedia-me de fazê-lo.
- Era a minha estupidez, o meu orgulho.
- Não - respondeu ela rindo e chorando ao mesmo tempo. - A minha estupidez e o meu orgulho.
Prescott ergueu-lhe o rosto tímido de pranto e beijou-a. Uma canção brotou do coração de Anne e sua alma aflita encontrou finalmente a paz. O trem rodava barulhento, levando-os ao encontro de um futuro que se abria brilhantemente diante de ambos.

 

 

                                                                  A. J. Cronin

 

 

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